O perdão de penas, previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado, em data anterior à da entrada em vigor da mesma Lei.
Não podem beneficiar desse perdão os condenados que, embora a decisão condenatória, à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, já tenha transitado em julgado, não tenham, a essa data, ingressado no estabelecimento prisional, ou seja, que não tenham a condição de reclusos.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando as conclusões da motivação do recurso a questão suscitada é a da aplicabilidade do perdão de penas previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 14/04, aos condenados cuja decisão condenatória tenha já transitado em julgado à data da entrada em vigor do mesmo diploma legal e que a essa data não tenham ainda a qualidade de reclusos vindo a tê-la (dando entrada no estabelecimento prisional) durante a vigência da mesma Lei.
2.2. Despacho recorrido
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«Do perdão (Lei n.º 9/2020 de 10/4)
Para decidir sobre a aplicação do perdão de pena previsto no art.º 2 n.º 1 da Lei n.º 9/2020 de 10/4, conforme requerido pelo recluso, cumpre ter presente o seguinte:
1 - O recluso ora requerente foi condenado no Proc. 2228/11.9GBABF da Secção Criminal (Juiz 1) da Instância Central de Portimão, na pena de 2 anos de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade;
2 - Tal decisão transitou em julgado em 18/10/2018;
3 - Para cumprimento desta pena o requerente apresentou-se voluntariamente no Estabelecimento Prisional de Beja no dia 1/3/2021.
2.3. Conhecimento do recurso
Tal como acima referimos a questão suscitada no recurso é a da aplicabilidade do perdão de penas previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 14/04, aos condenados cuja decisão condenatória tenha já transitado em julgado à data da entrada em vigor do mesmo diploma legal e que a essa data não tenham ainda a qualidade de reclusos vindo a tê-la (dando entrada no estabelecimento prisional) durante a vigência da mesma Lei.
O recorrente defende que a enunciada questão merece resposta positiva, sustentado que o entendimento contrário viola, além do mais, o principio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP, pugnando, por isso, para que se revogue o despacho recorrido que decidiu pela não aplicação ao ora recorrente do referido perdão e que seja o mesmo substituído por outro que decida pela aplicação desse perdão.
O Ministério Público entende que a questão colocada merece resposta negativa, por, no caso concreto, o ora recorrente não ter a condição de recluso à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/20 (11/04/2020), sendo essa condição necessária para que pudesse beneficiar do perdão de pena previsto no artigo 2º da mesma Lei, conforme se decidiu no despacho recorrido.
Apreciando:
Dispõe o artigo 2º da Lei n.º 9/20, de 10 de abril, que:
«1 - São perdoadas as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos.
2 - São também perdoados os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena.
(…)
7 - O perdão a que se referem os n.ºs 1 e 2 é concedido a reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor da presente lei e sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada.
8 - Compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respetivos mandados com caráter urgente.
(…).»
Como é sabido a questão colocada no presente recurso tem suscitado divergência na jurisprudência dos Tribunais da Relação.
Com efeito, enquanto uns perfilham o entendimento que foi sufragado no despacho recorrido, no sentido de que o perdão de penas previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/20, de 10 de abril depende de um duplo pressuposto, qual seja, a decisão ter transitado em julgado, em data anterior à da entrada em vigor da mesma Lei e ter já a qualidade de recluso isto é, encontrar-se já em cumprimento de pena, no estabelecimento prisional, outros[1], entendem não ser necessário que a condição de recluso de verifique à data da entrada em vigor da referenciada Lei para que seja aplicável o perdão de penas nela previsto, estando também abrangidos os reclusos que tendo sido condenados por decisão transitada em julgado em momento anterior ao da entrada em vigor da Lei 9/20, venham a ingressar no estabelecimento prisional, durante a vigência da mesma Lei[2].
O entendimento que foi acolhido no despacho recorrido é o que vem sendo maioritariamente perfilhado pela jurisprudência das Relações, sendo também o adotado pelo STJ, nos recentes acórdão de 07/04/2021 e de 08/04/2021[3].
No referenciado Acórdão do STJ de 08/04/2011, em que estava em causa a providência de habeas corpus requerida pelo condenado, decidiu-se, na parte que importa para a questão que aqui nos ocupa, que, o ali peticionante não estava «em condições de usufruir do perdão do perdão conferido pela Lei n.º 9/2020 e que entrou em vigor em 11 de abril de 2020, porque só veio a ser detido quase um ano depois, em 11 de março de 2021. A Lei aplica-se aos reclusos presos à data da sua entrada em vigor, não podendo ser uma providência para futuro, que necessariamente teria a virtualidade de erodir a força normativa das decisões a tomar pelos tribunais. Uma providência excecional de perdão não pode aplicar-se como fórmula normativa para o futuro, mas incidir sobre o passado. Neste âmbito, não há uma espécie de indulgência plenária de que se pudessem prevalecer os potenciais infratores. O perdão, forma do chamado Direito de graça ou de clemência, sendo uma das formas de extinção da responsabilidade criminal (art. 127.º, do CP), quando haja de aplicar-se, não é um salvo-conduto, uma carta que livre da prisão para o futuro, um privilégio de imunidade. Exerce-se apenas sobre factos passados. Colocar-se-ia até complexo problema lógico num perdão “carta branca” a aplicar para factos futuros.
(…)
A referida lei é muito clara: aplica-se apenas a “reclusos condenados por decisão transitada em julgado”. No momento da entrada em vigor da lei, 11 de abril de 2020, o peticionante não se encontrava nessas condições. A decisão transitou em julgado em 28 de outubro de 2020, e foi detido em 11 de março de 2021.»
Perfilhamos do entendimento que foi sufragado no despacho recorrido, de que o perdão de penas, previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, só pode ser aplicado a reclusos, condenados por sentença transitada em julgado, em data anterior à da entrada em vigor da mesma Lei. Não podem beneficiar desse perdão os condenados que, embora a decisão condenatória, à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, já tenha transitado em julgado, não tenham, a essa data, ingressado no estabelecimento prisional, ou seja, que não tenham a condição de reclusos.
São três os principais argumentos aduzidos pela jurisprudência, em defesa deste entendimento, a saber:
- A Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, veio estabelecer um Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19, prevendo um conjunto de medidas, entre as quais o perdão de penas de prisão até dois anos, tendo essas medidas por finalidade prevenir ou minimizar os riscos de natureza sanitária decorrentes do confinamento, por vezes, em condições de sobrelotação, dos estabelecimentos prisionais.
- A interpretação da norma do artigo 2º da Lei n.º 9/2020, nos seus elementos gramatical, sistemático e teleológico, sendo empregue a expressão “reclusos” nos n.ºs 1, 2 e 7 desse artigo 2º, não pode ser outra que não a de que o perdão de penas aí previsto só pode ser concedido a “reclusos”, cujas condenações tenham transitado em julgado à data da entrada em vigor da mesma Lei (11/04/2020) e que se encontrem em cumprimento de pena, recluídos no estabelecimento prisional.
- Tratando-se de medidas de exceção, a interpretação e aplicação da lei que as consagra, devem ser feitas nos seus precisos termos, sem extensões, nem restrições que nela não venham expressas. Á semelhança do que acontece em relação às Leis de Amnistia, que preveem o perdão de penas, em que este entendimento vem sendo pacificamente aceite pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores[4].
Salvo o devido respeito, os argumentos aduzidos em sentido contrário ao entendimento que se perfilha e que são invocados pelo aqui recorrente, não merecem acolhimento.
Com efeito:
O argumento de que, tendo em conta a finalidade da medida em questão, visando a diminuição da população prisional, não faria sentido restringir a aplicação do perdão de penas, aos condenados reclusos à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020 e excluindo os condenados, por decisão já transitada em julgado a essa data, viessem a ingressar no meio prisional, em momento posterior, mas durante a vigência da mesma lei, o que, na prática, se traduziria, em “tirar uns para colocar lá outros”, não procede, porquanto, como vem sendo assinalado pela jurisprudência que acolhe o entendimento que foi sufragado no despacho recorrido, há que conjugar o regime da suspensão dos prazos e da tramitação processual (art. 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de março) com o regime do perdão (art. 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril).
Deste modo, tendo sido decretada, no artigo 7º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março de 6 de Abril, a suspensão de todos os prazos para a prática de atos processuais que devessem ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, «até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19», abrangendo essa suspensão de prazos toda a tramitação processual tendente à emissão e execução de mandados de captura na sequência de condenação transitada em julgado, dessa forma, se evitando, que durante esse mesmo período, ingressassem no estabelecimento prisional novos reclusos, e assim se logrando garantir que não fosse ocupado o espaço prisional deixado livre pela libertação dos reclusos abrangidos pelo perdão.
E o argumento de que, tratando-se de condenados, por sentença já transitada em julgado, à data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, a exclusão da aplicação do perdão de penas previsto no artigo 2º do mesmo diploma legal, dos não reclusos, àquela data, viola o principio da igualdade com consagração no artigo 13º da CRP, também não procede.
O Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre a conformidade à Constituição e especificamente ao principio da igualdade consagrado no artigo 13º, da interpretação de normas, em matéria de amnistia e perdão de penas, tem decidido serem constitucionalmente conformes, “as eventuais diferenças de tratamento, desde que as mesmas surjam materialmente fundadas e baseadas em critérios de valor objetivo”[5].
Ora, como se faz notar no Acórdão da RC de 28/10/2020[6] a aparente diferença de tratamento entre condenados por sentença transitada em julgado conforme sejam reclusos ou não reclusos, tem um fundamento material bastante, qual seja, o de eliminar os riscos de contágio, que só existem relativamente aos reclusos, que se encontram a cumprir pena, em meio prisional, uma vez que, relativamente aos já condenados por sentença transitada em julgado, o regime da suspensão dos prazos processuais logra o mesmo resultado.
«E, nessa medida, segundo o sedimentado critério do Tribunal Constitucional, a norma do art. 2º, da Lei n.º 9/2020, na sua interpretação literal de só abranger os indivíduos que, à data da sua entrada em vigor, estivessem já presos em cumprimento de pena, é constitucionalmente conforme[7].»
Por todo o exposto e em conformidade, não sendo o ora recorrente recluso, à dada da entrada em vigor da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril (11/04/2020), só vindo a ingressar no estabelecimento prisional, em 01/03/2021, onde se apresentou voluntariamente, não se verifica um dos pressupostos para que pudesse beneficiar do perdão de pena previsto no artigo 2º da Lei n.º 9/2020, pelo que, nenhuma censura merece o despacho recorrido, que decidiu não aplicar ao ora recorrente o perdão de pena que havia requerido, não tendo existido violação de qualquer das normas legais invocadas no recurso.
Improcede, pois, o recurso.
3. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido/condenado/recluso (…) e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UC´s. (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais)
Fátima Bernardes
Fernando Pina
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[1] Neste sentido, cfr. Acórdãos da RE de 16/12/2020, proc. n.º 13/15.8PTEVR.E1 e de 09/02/2021, proc. n.º 1346/10.5TXCBR-T.E1; Acórdãos da RC de 09/09/2020, proc. n.º 178/20.7TXCBR-B.C1, de 30/09/2020, proc. n.º 47/20.0TXCBR-B.C1, de 07/10/2020, proc. n.º 719/16.4TXPRT-F.C1, de 14/10/2020, procs. n.º 175/20.2TXCBR-B.C1 e n.º 259/18.7GLSNT.L1-3, de 28/10/2020, procs. n.ºs 109/20.4TXCBR-B.C1, 187/20.6TXCBR-B.C1, 210/20.4TXCBR-C.C1 e 404/18.2TXCBR-B.C1, de 03/02/2021, proc. n.º 190/20.6TXCBR-B.C1 e de 07/04/2021, proc. n.º 380/12.5TXCBR-B.C1 e Ac. da RG de 09/12/2020, proc. n.º 242/15.4GEBRG.G1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, vide Acs. da RC de 30/09/2020, proc. n.º 744/13.7TXCBR-P.C1, de 28/10/2020, proc. n.º 10/18.1TXCBR-C.C1 e de 16/12/2020, proc. n.º 430/20.1TXCBR-A.C1; Acs. da RP de 21/10/2020, proc. n.º 150/14.6GBILH.P2, de 25/11/2020, proc. n.º 311/15.0GAARC.P2, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Proferidos, respetivamente, no proc. n.º 628/17.0PYLSBA.S1 e no proc. n.º 155/20.8TXLSB-F.S1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[4] Cfr., entre outros, Ac. do STJ n.º 2/2001 – AFJ – in DR Série I-A de 14/11/2001.
[5] Vide, entre outros, Acs. do TC n.º 152/95, de 15/03/1995 e n.º 784/96, de 25/06/1997, acessíveis in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/; n.º 298/2005, de 07/06/2005, in DR n.º 144/2005, Série II de 28/07/2005 e n.º 488/2008, de 07/10/2008, in DR n.º 250/2008, Série II de 29/12/2008
[6] Proferido no proc. n.º 109/20.4TXCBR-B.C1, acompanhando o Ac. da mesma Relação de 30/09/2020, proc. nº 47/20.0TXCBR-B.C1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. citado Ac. da RC de 20/09/2020.