DIREITO ESTRANGEIRO
REGIME DE BENS
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário

I - A substância e efeitos do regime de bens são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento que têm a mesma nacionalidade (artigo 53º do CC).
II - Nos termos do artigo 348º do CC cabe ao tribunal oficiosamente averiguar o conhecimento do direito estrangeiro sempre que com base no mesmo tenha de decidir.
E na impossibilidade de determinar tal conteúdo, recorrerá o tribunal às regras do direito comum português.

Texto Integral

Processo nº. 383/20.6T8STS.P2
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta - Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta - Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Comércio de Santo Tirso
Apelante/B…

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
1- Requereu B… – que se identificou como portador da autorização de residência número ……… e do NIF ……….. - a declaração da sua insolvência bem como a exoneração do passivo restante.
Para tanto alegou, em suma:
- O requerente é de origem chinesa, estando a residir em Portugal há vários anos juntamente com o seu agregado familiar, composto por si e pela sua esposa;
- Embora seja casado, o seu casamento foi celebrado no Consulado Chinês e não foi transposto para o ordenamento jurídico Português, pelo que só produz efeitos jurídicos na China;
- Encontra-se a laborar desde o início deste mês na empresa unipessoal “C… – Unipessoal, Lda.”, auferindo o salário mínimo nacional;
- Em abril de 2010 constituiu com a sua “mulher” uma sociedade por quotas “D…, Lda.” cujo objeto era o transporte rodoviário de mercadorias em viaturas ligeiras;
Apesar de todos os esforços o projeto não logrou e a insolvência da referida sociedade de que foi sócio gerente veio a ser decretada;
- Em 2011 passou também com a sua esposa a ser sócio, juntamente com a sua esposa, da sociedade “E…, Lda.” da qual viria a ser declarada a insolvência;
- Apesar da liquidação das sociedades, o requerente que assumira em nome próprio diversas dívidas a fornecedores, nunca recuperou dos investimentos realizados e já não consegue cumprir com as obrigações assumidas. Sendo executado em vários processos que identificou;
- Sendo já com muita dificuldade que o requerente procede ao pagamento das despesas do quotidiano do seu agregado familiar que identificou;
- Identificou ainda o requerente os seus credores, contabilizando um total de € 378.844,68 que afirmou não ter capacidade para liquidar.
Estando em situação de impossibilidade objetiva de cumprir as suas obrigações;
Termos em que concluiu estarem preenchidas as condições para ser declarado insolvente.
O que requereu.
Bem como formulou pedido de concessão da exoneração do passivo restante.

Juntamente com a sua petição inicial, ofereceu:
. relação por ordem alfabética de todos os credores e respetivos domicílios e montantes de créditos;
. documento comprovativo do pedido de apoio judiciário formulado (do qual consta ainda a identificação do seu nº de SS);

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Foi a 04/02/2020 proferido o seguinte despacho:
“Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 27º, n.º 1, al. b), do CIRE, notifique o requerente para, no prazo de 5 dias e sob pena de indeferimento liminar:
a) juntar aos autos certidão do seu assento de nascimento ou documento equivalente emitido pelos respetivos serviços consulares - art. 23º, n.º 2, al. d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) juntar cópia certificada da respetiva autorização de residência, a fim de comprovar a legalidade da sua permanência em território nacional;
c) juntar comprovativo da composição do respetivo agregado familiar e identificar o respetivo cônjuge/companheiro - art. 23º, n.º 2, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
d) juntar documento em que explicite a atividade ou atividades a que se tenha dedicado nos últimos três anos e os estabelecimentos de que seja titular, bem como o que entenda serem as causas da situação em que se encontra - art. 24º, n.º 1, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
Deverá ainda, no referido prazo de 5 dias:
e) indicar os rendimentos que aufere e que lhe permitem suportar as despesas regulares que diz suportar, juntando comprovativo de tais rendimentos;
f) juntar documento comprovativo do local onde vive (sendo casa arrendada, mediante cópia do contrato de arrendamento e último recibo de renda ou, sendo casa própria, a respetiva certidão da CRP);
g) juntar comprovativos das despesas fixas mensais que referiu suportar;
h) juntar cópia da última declaração de IRS.
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Deverá ainda, no mesmo prazo de 5 dias e sob cominação de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante que formulou, juntar o respetivo certificado do registo criminal, para os fins previstos no art. 238º, n.º 1, al f) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
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Na sequência do assim determinado, veio o requerente em 18/02/2020 requerer e informar o seguinte:
“1. Tendo o douto Tribunal solicitado certidão do seu assento de nascimento ou documento equivalente emitido pelos respetivos serviços consulares, vem o ora Requerente juntar aos autos cópia do seu passaporte emitido pelo seu país de origem, a China, julgando ser documento bastante para atestar da sua naturalidade, cfr. documento 1[1] que ora se junta e se considera devidamente reproduzido para os devidos efeitos legais.
2. No que concerne à juncão aos autos da autorização de residência e do registo criminal, solicita a V. Exa. a prorrogação do prazo concedido para o efeito tendo em consideração que o Requerente, devido ao horário laboral, ainda não conseguiu reunir toda a mencionada documentação e muito menos reunir com a sua Mandatária.
3. Em relação à composição do agregado familiar do Requerente, o mesmo é composto por si e pela sua esposa, F… (portadora do cartão de cidadão n.º ……… … e do NIF ………..), sendo que se junta cópia do seu IRS de 2018 como prova de tal facto, cfr. documento n.º 2[2] que aqui se junta e se dá por reproduzidos para todos os efeitos legais.
4. Conforme consta na Petição Inicial, o Requerente encontra-se empregado, exercendo as funções de motorista, auferindo mensalmente o salário mínimo nacional, cfr. recibo de vencimento que se protestou juntar sob o número 1 aquando do envio da mencionada peça processual[3].
5. Anteriormente, o mesmo prestava a mesma atividade para a empresa G…, Lda., não exercendo qualquer outra atividade nos últimos 3 anos – cfr. documentos n.ºs 3 e 4 que aqui se juntam e se dão por reproduzidos para os devidos efeitos legais.
6. Na sua perspetiva, e conforme evidenciou na petição inicial, a situação em que se encontra deve-se essencialmente à crise que o país atravessou, atendendo que chegou a ter negócios próprios que não singraram, tendo investido as suas poupanças nos mesmo.
7. No que concerne à sua residência, o agregado familiar, de modo a terem meios de liquidez para suportar as suas despesas, vivia num armazém na comunidade chinesa de Vila do Conde.
8. Recentemente, atendendo que a sua esposa teve um problema de saúde, por auxílio de pessoas amigas que ficaram sensibilizadas com tal facto e conhecem a sua situação financeira, encontra-se a residir num apartamento emprestando, onde tem que assegurar o pagamento das despesas de luz, água, gás, condomínio e pugnar pela conservação da mesma; sendo que paga os montantes que o proprietário mensalmente lhe apresenta.
9. No que ao IRS diz respeito já junta os mesmos sob os documentos n.º 2, 3 e 4 com o propósito de fazer prova do seu agregado e dos seus rendimentos.
Face ao exposto requer-se a V. Ex. a prorrogação do prazo concedido, nunca inferior a 10 dias, para a junção da documentação solicitada e em falta”.

Concedido o prazo requerido, veio o requerente em 04/03/2020 requerer a junção aos autos dos seguintes documentos:
“1. Junta-se cópia certificada do seu título de residência, cfr. documento n.º 1 que aqui se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais[4].
2. Com o intuito de ver deferido o seu pedido de exoneração do passivo restante, o Requerente vem juntar o respetivo certificado de registo criminal, cfr. documento n.º 2[5] que aqui se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
3. Por último, o Requerente vem proceder à junção do comprovativo de concessão do apoio jurídico aos autos. cfr. documento n.º 3[6] que aqui se junta e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.”
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Na sequência dos documentos assim oferecidos, veio a ser proferida a seguinte decisão (em 06/03/2020):
“Os presentes autos de insolvência (apresentação) foram instaurados por B…, natural da China, contribuinte fiscal n.º ………, portador da autorização de residência número ………. residente na Rua n.º ., Lote .., …, ….-… Vila do Conde.
Os artigos 23º e 24º do CIRE elencam os elementos que devem constar da petição inicial e os documentos que devem acompanhar a mesma, nos quais se incluem a certidão do assento de nascimento do requerente e, bem assim, a certidão de casamento, da qual resulte o regime de bens, na hipótese de ser casado - arts. 23º, n.º 2, als. c) e d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
No caso vertente, o requerente não juntou com a petição inicial tais documentos, nem identificou o respetivo cônjuge, apesar de ter declarado naquele articulado que celebrou casamento no Consulado Chinês, mas que em Portugal tal união não se encontra reconhecida, por nunca ter sido transposta para o ordenamento jurídico Português.
Em face da falta dos referidos elementos, o requerente foi notificado nos termos do disposto no art. 27º, n.º 1, al. b), do CIRE, para, em 5 dias, dar cumprimento às assinaladas exigências legais e das demais referidas no despacho proferido em 04-02-2020, prazo esse que foi alargado por mais 10 dias a pedido do requerente.
Analisados os requerimentos apresentados pelo requerente em 18-02-2020 e 04-03-2020, e os documentos que os acompanham, verifica-se que o requerente não supriu os assinalados vícios que lhe foram apontados, pois limitou-se a juntar a autorização de residência destinada a comprovar a legalidade da sua permanência em território nacional, assim como fotocópia do respetivo passaporte, em alternativa à respetiva certidão de nascimento, assim como 3 declarações de IRS, destinadas a “fazer prova do seu agregado e dos seus rendimentos”.
Ora, além da fotocópia do passaporte não substituir a certidão de nascimento em falta, cuja junção o requerente não se encontra dispensado de apresentar, não obstante a nacionalidade estrangeira e fora do espaço da União Europeia, impondo-se a junção de tal certidão devidamente traduzida e legalizada com a respetiva apostilha ou autenticação equivalente, certo é que também o respetivo estado civil suscita dúvidas não esclarecidas pelo requerente, antes constatando-se a existência de uma contradição entre o estado civil “casado”, mas não reconhecido no Estado Português, por tal casamento, celebrado no Consulado Chinês, não ter sido transposto para o ordenamento jurídico nacional, e o facto de em todas as declarações de IRS juntas com o requerimento de 18-02-2020, assinalar o estado civil “casado” no campo próprio.
Tais omissões e contradição, determinam o indeferimento liminar da petição inicial.
Pelo exposto, nos termos do disposto no art. 27º, n.º 1, al. b) do CIRE, indefiro liminarmente a petição inicial.
Custas pelo requerente, sem prejuízo da decisão a proferir em matéria de apoio judiciário solicitado pelo mesmo.
Cumpra o disposto no art. 27º, n.º 2 do CIRE.
Registe e notifique.”
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Notificado o requerente do assim decidido, interpôs recurso de apelação.
Por Acórdão deste Tribunal da Relação de 15/06/2020 foi decidido:
“julgar totalmente procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão recorrida, determinando ao tribunal a quo que notifique o requerente para identificar o regime de bens em que foi o seu casamento contraído e juntar certidão demonstrativa de tal casamento e regime de bens aplicável ao casamento.
Após o que e em consonância com o acima decidido, será apreciada a pretensão do requerente.”

Na sequência do assim decidido, desceram os autos à 1ª instância.
Aqui foi determinada a notificação do requerente para “em cinco dias, identificar o regime de bens em que foi o seu casamento contraído e juntar certidão demonstrativa de tal casamento e regime de bens aplicável ao casamento.”

Em cumprimento do ordenado, juntou o requerente certidão do seu casamento, celebrado na Embaixada da República Popular da China em Portugal em 30/01/2006 dando nota de o mesmo não estar reconhecido no ordenamento jurídico português.
Traduzida a certidão junta – da qual se extrai a declarada nacionalidade chinesa de ambos os nubentes e inexistente menção quanto a convenção antenupcial - não constando desta o regime de bens aplicável ao casamento foi o requerente notificado para juntar certidão a comprovar o regime a que tal casamento está submetido.
Em resposta e perante a ausência de indicação do regime em questão na certidão junta, requereu o ora recorrente, após alegar que um dos cônjuges (não especificando qual) já tem a nacionalidade portuguesa – o que carece de demonstração e de qualquer modo é contrário ao que consta quer na certidão de casamento quer nos documentos de identificação juntos pelo requerente - a aplicação do disposto no artigo 52º nº 1 do CC, nos termos do qual “… o regime de bens em vigor será a comunhão de adquiridos.”
Na sequência do assim requerido foi decidido (e bem) solicitar “(…) diretamente à Embaixada da Republica Popular da China, com cópia do certificado emitido, informação, com carater urgente, do regime de bens aplicável ao matrimónio aí contraído.”
Enviado o pedido por carta registada e face à ausência de resposta - mesmo após 2 insistências, a última das quais veio devolvida com a informação de “recusada” - foi proferida a seguinte decisão:
“Os presentes autos de insolvência (apresentação) foram instaurados por B…, natural da China, contribuinte fiscal n.º ………, portador da autorização de residência número ………., residente na Rua n.º ., Lote .., …, ….-… Vila do Conde.
Na sequência da decisão proferida em 06-03-2020, que indeferiu liminarmente a petição inicial, o requerente apresentou recurso, no âmbito do qual o Tribunal da Relação do Porto, no douto acórdão proferido nestes autos em 15-06-2020, determinou que deve o requerente “identificar o regime de bens em que foi o seu casamento contraído e juntar certidão demonstrativa de tal casamento e regime de bens aplicável ao casamento”.
Apesar de ter procedido à junção de documento comprovativo do respetivo casamento através do requerimento de 30-07-2020, posteriormente traduzido para a língua portuguesa, subsiste a falta de informação do regime de bens aplicável ao matrimónio, não obstante a solicitação naquele sentido efetuada à Embaixada da Republica Popular da China.
Por outro lado, não poderá este Tribunal alinhar no entendimento do requerente, no sentido de considerar que, na falta de qualquer indicação nesse sentido na certidão de casamento, o regime de bens em vigor seja o da comunhão de adquiridos, pois sendo esse o regime supletivo que constitui a regra no ordenamento jurídico nacional, poderá não o ser à luz das normas existentes na Republica Popular da China (RPC), em cuja embaixada (considerada território nacional da RPC) contraiu matrimónio.
Subsiste, por conseguinte, a indefinição quanto ao regime de bens do matrimónio contraído pelo requerente, não obstante as diligências realizadas pelo Tribunal, não se vislumbrando quaisquer outras a ordenar.
Como tal, conclui-se que não se encontra integralmente cumprido o determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, pois mantém-se em falta a certidão demonstrativa do regime de bens aplicável ao casamento – art. 23º, n.º 2, al. c) do CIRE.
Tal omissão determina o indeferimento liminar da petição inicial.
Pelo exposto, nos termos do disposto no art. 27º, n.º 1, al. b) do CIRE, indefiro liminarmente a petição inicial.
Custas pelo requerente, sem prejuízo da decisão em matéria de apoio judiciário.
Cumpra o disposto no art. 27º, n.º 2 do CIRE.”

Notificado o requerente do assim decidido, interpôs recurso de apelação, oferecendo alegações e formulando as seguintes
CONCLUSÕES
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Não se mostram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
Foram dispensados os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC [Código de Processo Civil] – resulta das formuladas pelo apelante ser questão a apreciar se existe fundamento para o decidido indeferimento liminar, com base na indefinição quanto ao regime de bens aplicável ao matrimónio contraído pelo requerente [artigo 23º nº 2 al. c) do CIRE].
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III- Fundamentação
Para o conhecimento do recurso relevam as vicissitudes processuais acima elencadas.
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Conhecendo.
Resulta do preâmbulo do diploma legal que aprovou o CIRE [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[7]] ser objetivo de qualquer processo de insolvência a satisfação pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores, desde logo pelos reflexos que o incumprimento por parte de certos agentes se repercute necessariamente na situação económica e financeira dos demais (vide § 3 do citado preâmbulo).
Tendo no caso dos autos sido o devedor, pessoa singular, quem voluntariamente se apresentou a requerer a declaração de insolvência.

Nos termos do disposto nos artigos 23º e 24º, incumbe ao requerente que se apresenta à insolvência expor os factos que integram os pressupostos da declaração requerida e concluir pela formulação do correspondente pedido [vide artigo 23º nº 1].
E na petição, o requerente [23º nºs 2 e 3]:
a) Sendo o próprio devedor, indica se a situação de insolvência é atual ou apenas iminente, e, quando seja pessoa singular, se pretende a exoneração do passivo restante, nos termos das disposições do capítulo I do título XII;
b) Identifica os administradores, de direito e de facto, do devedor e os seus cinco maiores credores, com exclusão do próprio requerente;
c) Sendo o devedor casado, identifica o respetivo cônjuge e indica o regime de bens do casamento;
d) Junta certidão do registo civil, do registo comercial ou de outro registo público a que o devedor esteja eventualmente sujeito.[8]
3 - Não sendo possível ao requerente fazer as indicações e junções referidas no número anterior, solicita que sejam prestadas pelo próprio devedor.”
Acresce incumbir ao devedor juntar, nos termos do artigo 24º:
“1- Com a petição (…) quando seja o requerente, (…) ainda os seguintes documentos:
a) Relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respetivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem, e da eventual existência de relações especiais, nos termos do artigo 49.º;
b) Relação e identificação de todas as ações e execuções que contra si estejam pendentes;
c) Documento em que se explicita a atividade ou atividades a que se tenha dedicado nos últimos três anos e os estabelecimentos de que seja titular, bem como o que entenda serem as causas da situação em que se encontra;
d) Documento em que identifica o autor da sucessão, tratando-se de herança jacente, os sócios, associados ou membros conhecidos da pessoa coletiva, se for o caso, e, nas restantes hipóteses em que a insolvência não respeite a pessoa singular, aqueles que legalmente respondam pelos créditos sobre a insolvência;
e) Relação de bens que o devedor detenha em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou venda com reserva de propriedade, e de todos os demais bens e direitos de que seja titular, com indicação da sua natureza, lugar em que se encontrem, dados de identificação registral, se for o caso, valor de aquisição e estimativa do seu valor atual;
f) Tendo o devedor contabilidade organizada, as contas anuais relativas aos três últimos exercícios, bem como os respetivos relatórios de gestão, de fiscalização e de auditoria, pareceres do órgão de fiscalização e documentos de certificação legal, se forem obrigatórios ou existirem, e informação sobre as alterações mais significativas do património ocorridas posteriormente à data a que se reportam as últimas contas e sobre as operações que, pela sua natureza, objeto ou dimensão extravasem da atividade corrente do devedor;
g) Tratando-se de sociedade compreendida em consolidação de contas, relatórios consolidados de gestão, contas anuais consolidadas e demais documentos de prestação de contas respeitantes aos três últimos exercícios, bem como os respetivos relatórios de fiscalização e de auditoria, pareceres do órgão de fiscalização, documentos de certificação legal e relatório das operações intragrupo realizadas durante o mesmo período;
h) Relatórios e contas especiais e informações trimestrais e semestrais, em base individual e consolidada, reportados a datas posteriores à do termo do último exercício a cuja elaboração a sociedade devedora esteja obrigada nos termos do Código dos Valores Mobiliários e dos Regulamentos da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários;
i) Mapa de pessoal que o devedor tenha ao serviço.
2 - O devedor deve ainda:
a) Juntar documento comprovativo dos poderes dos administradores que o representem e cópia da ata que documente a deliberação da iniciativa do pedido por parte do respetivo órgão social de administração, se aplicável;
b) Justificar a não apresentação ou a não conformidade de algum dos documentos exigidos no n.º 1.
3 - Sem prejuízo de apresentação posterior, nos termos do disposto nos artigos 223.º e seguintes, a petição apresentada pelo devedor pode ser acompanhada de um plano de insolvência.”
Finalmente, nos termos do artigo do artigo 27º, o qual disciplina a apreciação liminar do requerimento pelo juiz, está regulado que este:
a) Indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente;
b) Concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente quando esta careça de requisitos legais ou não venha acompanhada dos documentos que hajam de instruí-la, nos casos em que tal falta não seja devidamente justificada.”[9]

Foi ao abrigo deste último normativo e al. b) que o requerimento inicial foi uma vez mais indeferido liminarmente, por o requerente não ter junto, no prazo para tanto concedido, “certidão demonstrativa do regime de bens aplicável ao casamento - art. 23º, n.º 2, al. c) do CIRE”.

Analisando os fundamentos do novo indeferimento liminar em causa está agora – já após assente por via do decidido anteriormente que o requerente satisfez “a obrigação de cabal identificação do mesmo, com exceção do seu estado civil” – a identificação do regime de bens aplicável ao casamento.
Anteriormente o requerente não havia junto documento comprovativo da celebração do seu casamento nem cabalmente identificado o cônjuge.
Casamento e identificação do cônjuge que estão agora cabalmente demonstrados, fruto da certidão junta emitida pelo Ministério dos Assuntos Civis da República Popular da China.
E certidão da qual consta que “O requerimento de casamento está em conformidade com a Lei de Casamento da República Popular da China”.
Tal como no anterior Acórdão se afirmou “…em causa está um casamento celebrado entre estrangeiros, ambos de nacionalidade chinesa e que optaram por celebrar o seu casamento perante os respetivos agentes diplomáticos. Portanto nos termos e de acordo com a sua (comum) lei nacional (chinesa).
(…)
Sendo as relações entre os cônjuges reguladas pela lei nacional comum (artigo 52º nº 1 do CC), salvo se tiver havido convenção antenupcial para os fins previstos no artigo 53º do mesmo CC.”
Artigo 53º do CC que no seu nº 1 dispõe ainda que a substância e efeitos do regime de bens (para o que ora releva) são definidos pela lei nacional dos nubentes ao tempo da celebração do casamento.
Assim só não ocorrendo no caso de os nubentes não terem a mesma nacionalidade, caso em que regulam os nºs 2 e 3 deste artigo.
Como já antes mencionado o requerente e seu cônjuge são ambos de nacionalidade chinesa.
E optaram por celebrar o seu casamento perante os respetivos agentes diplomáticos, nos termos e de acordo com a sua lei nacional comum.
O que a certidão junta confirma.
Desta não constando a menção de celebração de qualquer convenção antenupcial, importa aplicar a lei nacional comum, para aferição do regime de bens aplicável.
Nos termos do artigo 348º do CC, sem prejuízo do ónus de prova que recai sobre aquele que invoca a aplicação de direito estrangeiro, cabe de igual forma ao tribunal averiguar oficiosamente o conhecimento daquele quando com base no mesmo tenha de decidir, aliás em conformidade com o disposto no artigo 5º nº 3 do CPC.
De igual forma quando as normas de direito interno mandam aplicar o direito estrangeiro, como é o caso – vide artigos 52º nº 1 e 53º do CC – incumbe ao tribunal o conhecimento oficioso das normas do direito estrangeiro (vide 348º nº 2 do CC).
Em último caso e na impossibilidade de determinar o conteúdo do direito aplicável, recorrerá o tribunal às normas do direito comum português (artigo 348º nº 3 do CC).

O tribunal a quo deverá em conformidade proceder.
E atestando a impossibilidade de obter conhecimento do conteúdo do direito aplicável, após as diligências necessárias – entre as quais e nomeadamente recorrer ao Ponto de Contacto de Portugal junto do CSM solicitando a sua colaboração para estes fins[10] - em último recurso e nos termos do disposto no nº 3 do artigo acima citado, aplicará as normas do direito comum português.
Pelo exposto inexiste fundamento para o decidido indeferimento liminar.
Procede nestes termos o recurso interposto.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto, consequentemente e revogando a decisão recorrida, determinando-se ao tribunal a quo que proceda às diligências necessárias ao conhecimento do conteúdo do direito estrangeiro aplicável. Em último recurso aplicando ao caso as normas do direito comum português.
Sem custas.
Notifique.

Porto, 2021-05-24.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
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[1] Tendo sido junta cópia do referido passaporte com a seguinte identificação (entre o mais) do requerente: nome; data de nascimento; nacionalidade e local de nascimento [não consta do mesmo estado civil].
[2] Tendo sido junta declaração de IRS relativa aos anos de 2016, 2017 e 2018 conjunta do requerente e da pessoa com quem declarou ter casado, constando nesta declaração o estado civil do requerente como casado. E identificado o seu cônjuge, em conformidade com a identificação que o requerente forneceu no ponto 3 deste requerimento.
[3] Recibo de vencimento emitido pela entidade patronal indicada pelo requerente, com uma remuneração líquida auferida de 283,02 no mês de janeiro de 2020.
[4] Documento este emitido pelo DRNORTE SEF-CNAI em 18/11/2018 intitulado “TÍTULO DE RESIDÊNCIA”, do qual consta a identificação do requerente [nome; data de nascimento; nacionalidade; residência; NIF; NISS] e em observações “AUTORIZ. DE RESID. TEMPORÁRIA ART 78 DA LEI 23/2007 DE 04/07, ATUAL VERSÃO”.
Sem qualquer menção ao estado civil do requerente.
[5] Documento emitido pela DGAJ e do qual consta o nome; naturalidade; data de nascimento; nacionalidade; documento de identificação por referência ao título de residência e respetivo nº de identificação relativos ao requerente. Bem como a menção de “NADA CONSTA ACERCA DA PESSOA IDENTIFICADA”.
[6] Documento do qual consta a concessão do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
[7] Diploma legal a que faremos referência quando em contrário nada se diga.
[8] Destaque nosso.
[9] Destaque nosso.
[10] Colaboração que junto deste confirmámos estar disponível não obstante as suas competências específicas. Tendo já encetado diligências com vista a obter informação sobre a lei chinesa em sede de regime de bens no casamento. Colaboração disponibilizada a que o tribunal a quo deverá dar seguimento.