DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DO MÉRITO
Sumário

I - O conhecimento de mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar quando o processo fornecer já em tal fase processual, antecipadamente relativamente à normal - a da sentença -, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
II - Assim, e pela negativa, nunca é legitimo ao julgador enveredar, antecipadamente, pela sua solução definitiva do litígio, sem que garantida esteja a presença de todos os factos necessários a que as outras visões possíveis possam, também, ser logo, sustentadas.
III - Perante a invocação de preenchimento de requisito suscetível de conduzir à procedência de pretensão formulada, mesmo que a alegação fáctica se revele conclusiva, sempre se impõe seja efetuada a devida interpretação das peças processuais e atividade, oficiosa, do juiz no sentido da especificação e concretização fáctica;
IV - E controvertida estando matéria relevante para efetuar a subsunção jurídica do caso a um instituto convocado, nunca pode ser considerado consolidado estado dos autos que permita ao juiz antecipar a decisão, com o adiantar da solução por si perfilhada, pois que necessária se torna (após instrução) a condensação - como provados e não provados - dos factos que permitam, na interpretação, concatenação e ponderação de todos eles, adotar justa solução que se desenhe no leque das possíveis.
V - Deve, pois, o juiz proceder à recolha dos factos da causa (cfr. art. 5º, do CPC) que se mostrem dotados de relevância jurídica, garantindo a condensação de todos, por forma a acautelar anulações de julgamento.

Texto Integral

Apelação nº 5900/20.9T8PRT-A.P1
Processo do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrentes: os Autores
Recorridos: os Réus

B…, C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J…, K…, L…, M… e N…, propuseram ação, com forma de processo comum, contra O… e P… pedindo seja proferida decisão a:
A. Reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua …, n.º .., na freguesia …, concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número 4428, e inscrito na matriz predial urbana da união das freguesias …, sob o artigo 15581, e, consequentemente, o direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “E”;
B. Declarar a nulidade do contrato-promessa de compra e venda alegadamente outorgado pelas partes em 23.05.2002, com fundamento no abuso de direito e na omissão de requisito para a transmissão ou constituição de direito real sobre a fração autónoma designada pela letra “E” – obtenção de alvará de licença de utilização – por culpa imputável aos réus; (negrito nosso)
Ou, se assim não for entendido, subsidiariamente:
C. Declarar a resolução do referido contrato-promessa, com fundamento em incumprimento definitivo e na perda objetiva de interesse pelos promitentes não faltosos;
Em qualquer dos casos – Nulidade ou Resolução:
D. Ordenar a restituição da fração autónoma designada pela letra “E”, destinada a habitação, de tipologia T3, integrada no prédio urbano, descrito no pedido A., aos autores;
E. Condenar os réus a procederem à demolição dos anexos construídos no logradouro do prédio dos autos e um deles ocupado pelos réus;
F. Condenar os réus no pagamento aos autores de indemnização/compensação pelo prejuízo causado, sendo que:
1. No caso de declarar a nulidade do contrato-promessa: a indemnização deverá corresponder ao valor apurado após compensação de créditos, a saber:
a) € 161.636,06 = € 14.963,94 (sinal dos réus) - € 176.600,00 (valor global dos danos dos autores, considerando-se a data de 23.05.2002, a saber:
. € 139.100,00 (€ 650,00 x 214 meses), a título de (rendimento mínimo que Q… e, entretanto, os seus herdeiros, aqui autores, obteriam se a fração autónoma estivesse disponível no mercado de arrendamento desde a data supra enunciada);
. € 5.000,00, correspondente ao valor a despender pelos autores com a demolição dos anexos construído e um deles ocupado pelos réus, caso não seja atendido o pedido de demolição a realizar pelos réus;
. € 32.500,00, a título de compensação pela perda de rendimento que Q… e, mais tarde, os seus sucessores, autores na presente ação, deixaram de auferir com a venda ou arrendamento das outras quatro frações autónomas que integram o prédio);
ou, caso assim não seja entendido:
b) € 159.036,06 = € 14.963,94 (sinal dos réus) - € 174.000,00 (valor global dos danos dos autores, considerando-se a data de 30.09.2002, a saber:
. € 136.500,00 (€ 650,00 x 210 meses), a título de rendimento mínimo que Q… e, entretanto, os seus herdeiros, aqui autores, obteriam se a fração autónoma estivesse disponível no mercado de arrendamento desde a data supra enunciada;
. € 5.000,00, correspondente ao valor a despender pelos autores com a demolição dos anexos construído e um deles ocupado pelos réus, caso não seja atendido o pedido de demolição a realizar pelos réus;
. € 32.500,00, a título de compensação pela perda de rendimento que Q… e, mais tarde, os seus sucessores, autores na presente ação, deixaram de auferir com a venda ou arrendamento das outras quatro frações autónomas que integram o prédio;
2. No caso de declarar a resolução do contrato-promessa: deve reconhecer-se que o sinal prestado fica a pertencer ao promitente vendedor não faltoso e a indemnização deverá corresponder ao valor de:
a) € 176.600,00 (valor global dos danos dos autores, considerando-se a data de 23.05.2002), nos termos supra discriminados;
ou, caso assim não seja entendido:
b) € 174.000,00 (valor global dos danos dos autores, considerando-se a data de 30.09.2002), nos termos supra discriminados”.
Alegam, para tanto e resumidamente, com relevância para a decisão, designadamente da nulidade do referido contrato promessa (pedido principal), desde logo a omissão de requisito, imposto pelo nº3, do artigo 410º, do Código Civil, dado faltar licença de utilização por facto imputável aos Réus, que, culposamente, construíram dois anexos, destinados a garagem, causando, ao construírem e não demolirem as construções, não licenciadas ou licenciáveis no logradouro do prédio, a impossibilidade de obtenção de alvará de licença de utilização do prédio e das suas frações autónomas, sendo que a nulidade se verifica, também, por abuso e ofensa aos bons costumes e à boa fé, excedendo-se os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito, tendo os Réus ocupado abusivamente, a fração autónoma e ocupado, também, uma das garagens que construíram, impedindo a obtenção de tal licença astutamente, fazendo o referido uso, desde 23/5/2002, sem pagar qualquer valor e bem sabendo que “enquanto não procederem à demolição das construções clandestinas, não licenciáveis, da sua autoria e ocupação, não é possível obter licença de utilização do prédio/fração”.
Invocam, assim, desde logo, o incumprimento dos requisitos formais do contrato promessa de compra e venda, estatuídos no nº3, do art. 410º, do CPC, por causa imputável aos Réus.
Os Réus, sustentando que à data da celebração do contrato promessa os anexos já estavam construídos (cfr., designadamente, arts 25º e 34º, da contestação), contestaram, defendendo-se por impugnação, ao negarem factos alegados pelos Autores, e pugnam pela validade e eficácia do contrato promessa de compra e venda e pela inexistência de abuso, má fé ou ofensa dos bons costumes por si, concluindo pela total improcedência da ação e pela sua absolvição dos pedidos.
Sustentam que a minuta do contrato promessa foi redigida pela promitente vendedora, que dispensou as formalidades omissas, e que o contrato definitivo ainda não se celebrou devido à falta do alvará de licença de utilização do prédio, imputável a inércia da promitente vendedora e dos Autores.
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Designada audiência prévia, foi a mesma realizada e, após, considerando o tribunal a quo que, “Não obstante ainda subsistirem algumas alegações de facto por provar nesta demanda, não há que remeter um processo para julgamento quando, independentemente da prova produzida sobre os factos dela carecidos − isto é, qualquer que seja a solução plausível de direito considerada −, a sorte da ação sempre seria a improcedência. A existência de diferentes soluções plausíveis de direito não é um critério de julgamento, mas sim de elaboração dos temas da prova, no caso de se admitir que uma delas pode levar à procedência da pretensão. Fazer a ação prosseguir para a fase de instrução seria um ato inútil, proibido por lei − sobre esta solução, cfr. o Ac. do TRP de 19-02-2004 (0325347V)”, proferiu, de imediato, decisão, com a seguinte
parte dispositiva:
“Pelo exposto, julga-se a ação parcial e antecipadamente procedente e, em conformidade, declaram-se os autores, B…, C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J…, K…, L…, M… e N…, proprietários, em comunhão hereditária, do prédio urbano sito na rua …, n.º .., …, Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número 4428/19991123/ …, incluindo da sua fração autónoma designada pela letra “E” (identificado como pedido A).
Julga-se a ação parcial, antecipada e manifestamente improcedente e, em conformidade, absolve-se os réus, O… e P…, dos pedidos:
a) de declaração de nulidade do contrato-promessa de compra e venda acima descrito (identificado como pedido B);
b) de resolução do contrato-promessa de compra e venda acima descrito (identificado como pedido C);
c) de condenação dos réus na restituição da fração acima referida (identificado como pedido D);
d) de condenação dos réus no pagamento aos autores de uma indemnização, sem prejuízo do referido na al. b) no ponto seguinte, e sem prejuízo, em caso de procedência do pedido referido na al. a) no ponto seguinte, do disposto no art. 868.º e segs. do CPC (identificado como pedido F, parte).
Prossegue a ação para conhecimento dos pedidos:
a) de condenação dos réus a procederem à demolição dos anexos (identificado como pedido E);
b) de condenação dos réus no pagamento da quantia de “€ 32.500,00, a título de compensação pela perda de rendimento que (…) os autores (…) deixaram de auferir com a venda ou arrendamento das outras quatro frações autónomas” (identificado como pedido F, parte).
Custas a cargo dos autores, na proporção de 50% das devidas até ao momento”.
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Do assim decidido apresentaram os Autores recurso de apelação pugnando pela sua revogação e pela substituição por outra que determine o prosseguimento dos autos para julgamento de toda a matéria de facto alegada com relevância para a decisão dos pedidos julgados improcedentes, com base nas seguintes
CONCLUSÕES:
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O Réu O… apresentou contra-alegações a pugnar por que seja negado provimento ao recurso interposto e confirmada a decisão recorrida sustentando, em síntese:
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Admitido o recurso, foi ordenada a instrução deste apenso com os articulados e com a decisão impugnada, tendo sido junta (cfr fls 31 e segs) certidão, da qual constam, como articulados da causa, a petição inicial e a contestação oferecida.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Se os autos devem prosseguir, para instrução, por se mostrarem controvertidos factos relevantes para a decisão segundo as soluções plausíveis da questão de direito, não podendo o julgador, enveredando pela sua, deixar de assegurar a recolha necessária às outras possíveis.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Foram os seguintes os factos considerados pelo Tribunal a quo como alegados, com relevância para fundamentar a decisão da ação (transcrição):
1.º − Em 11 de janeiro de 2000, pela Ap. 14, foi inscrita a favor de Q… (adiante, Q1…) a aquisição do prédio urbano sito na rua …, n.º .., …, Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número 4428/19991123/ … (fls. 11).
2.º − Em 12 de julho de 2001, pela Ap. 4, foi registada a constituição da propriedade horizontal do referido prédio, assim dividido em cinco frações autónomas, identificadas com as leras de A a E.
3.º − Em 23 de maio de 2002, Q1… e os réus, O… e P…, subscreveram o documento intitulado CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA, junto a fls. 27 (apenso doc.), onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito
CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA PRIMEIRA OUTORGANTE: Q… (…);
SEGUNDO OUTORGANTE: O… e esposa, P… (…);
E DISSE A PRIMEIRA OUTORGANTE:
Que então e legítima proprietária de um prédio de r/chão e andar, em regime de propriedade horizontal, sito na rua …, .., …, Gondomar, (…) descrito na Conservatória sob o n.º 4428-…;
PRIMEIRO: Que pelo presente contrato de promessa de compra e venda, a primeira outorgante promete vender aos segundos (…) o primeiro andar, designado pela letra
“E” (…);
SEGUNDO: O preço (…) é fixado na importância de € 74,819,68 (…), entregando o segundo outorgante como sinal e princípio de pagamento a importância de € 14963,94 (…), que a primeira dá quitação pelo original do presente contrato;
TERCEIRO: O restante do valor em dívida (…) são liquidados no ato da escritura notarial de compra e venda;
QUARTO: A escritura notarial de compra e venda, será realizada, até 30/09/2002, em virtude do segundo outorgante ir solicitar um empréstimo bancário (…);
(…)
E PELO SEGUNDO OUTORGANTE É DITO:
De que aceita o presente contrato nos termos e condições surpra exaradas. (…) Gondomar, 23 de maio de 2002.
4.º − Desde Em 23 de maio de 2002, os réus têm vindo a ocupar a fração referida no ponto 3.º − fração autónoma designada pela letra E.
5.º − Os réus nunca agendaram a outorga da escritura pública do contrato de compra e venda prometido.
6.º − A escritura pública do contrato de compra e venda prometido nunca foi outorgada.
7.º − Em 25 de julho de 2012, Q1…, por meio de representante, requereu a notificação judicial avulsa dos réus (fls. 60 apenso doc.) “para o seguinte”:
a) No prazo de vinte dias, a contar da notificação, promoverem e concluírem a demolição da construção ilegal impeditiva da emissão, pela Câmara Municipal …, de Alvará de Licença de Utilização da totalidade do identificado prédio;
b) No mesmo prazo, pagarem o valor de € 76.700,00 (C 650,00 x 118 meses de mora), a título de indemnização pelo prejuízo causado pelo atraso no cumprimento das obrigações a que estavam adstritos a marcação e realização de escritura pública e a coibição da prática de atos impeditivos da obtenção de licenciamento, acrescido do valor que se vier a apurar entre a presente data e a da outorga da escritura pública;
c) De que, no caso de não demolirem aqueles anexos no indicado prazo — facto que é impeditivo do licenciamento de todo o prédio serão responsabilizados por todos os danos e prejuízos resultantes da Requerente se ver impedida de alienar ou arrendar as demais frações desse prédio.
8.º − Em 11 de janeiro de 2015, faleceu Q1…, sendo os autores os seus atuais sucessores.
9.º − Após a ocupação da fração autónoma, os réus construíram dois anexos, destinados a garagem, e ocuparam um deles, não tendo estas construções sido licenciadas.
10.º − Os referidos anexos não são licenciáveis, impedindo a sua existência a obtenção da licença de utilização das cinco frações do edifício.
11.º − Os custos da demolição das obras realizadas pelos réus ascendem a € 5000,00.
12.º − Em resultado da conduta dos réus, os autores e a sua antecessora viram-se privados de explorar o imóvel, auferindo os rendimentos correspondentes à sua fruição ou alienação.
13.º − Os rendimentos não auferidos referidos no ponto anterior ascendem a € 32.500,00.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da necessidade de os autos prosseguirem, para ulterior decisão após produção de prova à matéria de facto controvertida, por forma a que a sentença (momento, em regra, oportuno e normal de decisão de uma causa) possa comtemplar, dentro do leque das soluções plausíveis da questão de direito, todas as que possam ser configuradas como possíveis.

Tendo os Autores, ora apelantes, formulado, como pedido principal, o de “declaração de nulidade do contrato-promessa de compra e venda, outorgado pelas partes em 23.05.2002”, com fundamento, para além do mais, designadamente em “abuso de direito” e “ofensa dos bons costumes”, “em omissão de requisito para a transmissão ou constituição de direito real sobre a fração autónoma designada pela letra “E” – obtenção de alvará de licença de utilização – por culpa imputável aos réus”, e deduzindo pedido para ser apreciado subsidiariamente, insurgem-se os mesmos contra a decisão proferida no despacho saneador, que julgou, antecipadamente, o pedido principal improcedente, com os seguintes fundamentos:
- Quanto à nulidade por abuso do direitoA nulidade (ausência de efeitos do negócio) é a sanção civil para a ocorrência de vícios genéticos do ato jurídico, vícios tipicamente inerentes à declaração negocial (quer quanto à substância, quer quanto à forma), ao objeto do contrato ou ao seu fim. No seu regime-regra, a nulidade importa a total ineficácia originária do ato – no que respeita aos efeitos jurídicos visados com a sua prática (art. 285.º, 286.º e 289.º do Cód. Civil).
Deficiência genética significa, em termos muito genéricos, que a vontade, dirigida ao facto jurídico, ou seja, à formação do negócio jurídico e à produção dos seus efeitos, é afetada por “imperfeições” ou foi manifestada sem adoção da forma exigida pela lei – cfr. HENRICH EWALD HÖRSTER e EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA, A Parte Geral do Código Civil Português, Coimbra, Almedina, 2019, pp. 226 e 227. O negócio que não é geneticamente nulo nunca é nulo.
O simples (subsequente) incumprimento de uma prestação não gera a nulidade do contrato, mas sim, em determinados casos, o nascimento na esfera jurídica do credor do direito potestativo de resolução. Também o exercício abusivo de um direito – que o titular efetivamente adquiriu de fonte contratual ou legal – não gera (retroativamente) a nulidade do ato, apenas determinando o instituto do abuso do direito a sua ilicitude (e consequente impedimento)”.
- Quanto à nulidade por falta de licença de utilização “Resulta dos n.os 2 e 3 do art. 410.º do Código Civil que, no que ora releva, no caso de promessa de compra e de venda de uma fração autónoma, devem as declarações dos promitentes constar de documento contendo as suas assinaturas presencialmente reconhecidas, bem como a certificação da existência da respetiva licença de utilização.
Contudo, dispõe a norma vertida na segunda parte deste último número que “o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte”. Esta norma estabelece, como é sabido, uma nulidade atípica.
Não cabe ao promitente vendedor alegar, conclusivamente, que a omissão de requisitos foi “culposamente causada pela outra parte”; cabe-lhe, sim, alegar os factos dos quais o tribunal pode tirar esta conclusão – respondendo a parte pelos factos afirmados em sede de litigância de má-fé (e a contraparte pela impugnação que opuser). Ora, os autores não alegam nenhum facto do qual se extraia que, na data da outorga do contrato-promessa, a hipotética omissão de requisitos foi causada pelos réus. Uma conduta ulterior, seja ela qual for, não é causalmente idónea a impedir retroativamente a satisfação de requisitos que devem estar presentes no momento da conclusão do negócio (isto é, da celebração do contrato-promessa)”.
Concluem, desde logo, os apelantes que os autos deviam ter seguido para julgamento da matéria de facto alegada referente aos pedidos que foram julgados improcedentes no despacho saneador, controvertida e relevante para a decisão a proferir sobre os mesmos, devendo a decisão recorrida, nessa parte, ser revogada.
Admitindo o tribunal a quo que a nulidade, atípica, em causa, possa existir, entende que a mesma não pode ser invocada pelos autores, que não “alegam nenhum facto do qual se extraia que, na data da outorga do contrato-promessa, a hipotética omissão de requisitos foi causada pelos réus”.
Ora, o nº3, do art. 410º, do Código Civil, que consagra tal nulidade atípica prevê que ela possa ser invocada pelo contraente que promete transmitir o direito “quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte” e vem alegada a construção pelos Réus e anexos como sendo causa da mesma (causa da falta, falta essa assente entre as partes), o que não pode, naturalmente, deixar de ser interpretado e entendido como verificado antes da outorga do contrato promessa, face à mencionada imputação da culpa.
Arguida a nulidade do contrato promessa, entre outros, com este fundamento, não devia ser conhecido deste pedido sem a concretização/especificação fáctica, se entendida necessária, e respetiva instrução.
Com efeito, não devia tal pedido, referente à nulidade do contrato promessa, ter sido apreciado no despacho saneador, pois que, na verdade, como resulta da lei e da interpretação que dela vem sendo efetuada quer pela doutrina quer pela jurisprudência, designadamente pela deste Tribunal em Acórdãos em que a ora relatora foi adjunta, O tribunal em questões de insuficiência de alegação de matéria de facto, hoje em dia, está vinculado, face à nova redacção do nº 2 do art. 590º do CPC, ao convite às partes para aperfeiçoamento do articulado em que tais deficiências se verifiquem, não podendo avançar no processo sem previamente ter cumprido este comando legal”[1], e, por outro lado, “o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, não se devendo ter em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.” [2] [3].
Com efeito, bem se analisa naquele Acórdão que “na versão actual do CPC, no âmbito dos poderes de gestão inicial do processo (art. 590º do CPC), onde antes se dizia “pode o juiz”, determina-se agora que “incumbe ao juiz”, numa clara assunção de que o convite ao aperfeiçoamento deixou de constituir uma simples possibilidade, um poder, para se assumir como um dever, como um acto vinculado a ser praticado.
Assim, se ao juiz se afigurar que a petição ou a contestação padecem de insuficiência/imprecisão na alegação da matéria de facto, tem de convidar as partes ao seu aperfeiçoamento, sob pena de incorrer, como referimos, em nulidade pela inobservância de um acto prescrito na lei, que se repercutirá no exame e decisão da causa, como é característica das insuficiências da matéria de facto (art. 195º nº 1 CPC).
No caso concreto, temos que as AA. apresentaram – como o próprio tribunal recorrido logo salientou ao ponto de mencionar que se poderia eventualmente configurar uma situação de falta de causa de pedir – um articulado deficiente – deficiências que o tribunal também logo evidenciou.
O que está subjacente ao convite ao aperfeiçoamento, para além do espírito de cooperação, é a garantia a uma tutela jurisdicional efectiva, a prevalência das decisões de mérito sobre as decisões de forma, ou seja, o princípio pro actione, e a justa composição do litígio (art. 7º, nº 1 do CPC).
Perante articulados deficientes, designadamente no tocante a “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” (art. 590º nº 4 CPC) que sejam sanáveis[4], a lei impõe ao juiz que ordene o respectivo aperfeiçoamento, por forma a que a acção possa vir a alcançar o seu objectivo, que é o conhecimento do mérito.
Já vimos que esse convite não foi feito e, atentas as diversas finalidades que o legislador previu, a omissão do convite plasmado no art. 590º nº 4 CPC poderá constituir também, como já referimos, uma nulidade processual (art. 195º do CPC).
Mas como o convite ao aperfeiçoamento só se justifica perante deficiências sanáveis (até pela proibição de prática de actos inúteis, art. 130º CPC), resta ainda averiguar se era aqui o caso, pois doutra forma não ocorre a nulidade do art. 195º CPC.
A nossa lei consagra a teoria da substanciação (cf. arts. 552º nº 1 al. d) e 581º nº 4 do CPC), isto é, impõe-se a alegação dos factos que integram a causa de pedir e fundamentam o pedido, formando-se caso julgado sobre a situação da vida assim delimitada.
Como é sabido, a causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o Autor se propõe fazer valer ou no “(…) núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido (…)”[5].
Ora, dado que a previsão legal de direito material, a estatuição normativa, é formulada abstractamente, torna-se necessário alegar os factos concretos, as ocorrências da vida que, no caso, integram o núcleo essencial da previsão da norma e permitem identificar o referido “facto jurídico”.
Ou seja, é preciso não confundir a identidade de factos naturalísticos ou materiais com identidade de factos jurídicos.
Quanto à falta de causa de pedir, é consensual o entendimento de que não é a simples deficiência de alegação que acarreta a nulidade por ineptidão, mas a sua falta total. Esta é insanável, enquanto que aquela pode ser suprida.
O não estarem alegados todos os factos que integram a estatuição das normas de direito material que se invoca como causa de pedir é questão que ultrapassa a esfera da ineptidão da petição inicial para se situar no domínio da procedência/improcedência da acção.
Olhada a petição inicial, podemos concluir que manifestamente não estamos perante um caso de omissão total de factos.
Concluímos, no entanto, tal como, aliás, o tribunal recorrido concluiu, que os articulados apresentados não são exemplos de clareza e objectividade, merecendo, sem dúvida, um convite ao seu aperfeiçoamento - no sentido já por mais de uma vez salientado.
Importa dizer, de qualquer forma, que, não obstante isso, a Ré apresentou contestação e da análise da sua peça pode-se depreender ter ela interpretado a petição em termos de poder articular uma defesa eficaz.
Nestas circunstâncias, as deficiências que os articulados apresentados pelas AA. apresentam são sanáveis.
Os vícios de insuficiência/inteligibilidade de alegação são exactamente o campo de actuação do convite ao aperfeiçoamento.
A omissão de tal convite influi claramente no exame e decisão da causa, já que a parte fica coarctada da possibilidade de suprir as deficiências – como sucedeu no caso concreto”.
E, supridas as deficiências/insuficiências de alegação, que o Tribunal a quo até, de algum modo, aponta, como neste último Acórdão bem se entendeu, “o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a (visão) partilhada pelo juiz da causa[6].
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior art. 511º do CPC, o juiz, ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC), deve (continuar a) seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, “…o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final”[7].
Na verdade, “… quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados… Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica…”[8].
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema[9]”.
Aí bem se considerou que “o Tribunal Recorrido, apelando a uma interpretação própria e opinativa da factualidade[10], entendeu que, para esse efeito, era irrelevante apurar toda esta factualidade, considerando que o processo continha já todos os elementos necessários a proferir uma decisão de mérito conscienciosa (impedindo, nessa medida, que os RR. pudessem produzir prova sobre essa factualidade que, como se acaba de referir, se mantém controvertida).
Daí que se nos afigure que o Tribunal Recorrido não podia, desde já, proferir tal decisão, porque desconsiderou o aludido comando legal de se dever atender à necessidade de ponderar a factualidade de acordo com (todas) as soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
Com efeito, tendo em conta o aludido critério de atender às várias soluções plausíveis de Direito, impõe-se, no caso concreto, que a decisão a proferir, em sede de mérito, deva aguardar a produção dos meios de prova oferecidos ou que venham a ser produzidos pelas partes, seja em sede da fase instrutória do processo, seja em sede da Audiência Final, no que concerne à aludida factualidade alegada pelos Réus e que ainda se mostra controvertida.
Na verdade, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito”.
Destarte, bem sendo esta a solução consagrada na lei e a interpretação que dela é efetuada pela Doutrina e Jurisprudência, nunca podem ser desconsiderados factos alegados que possam ser relevantes, segundo outros enquadramentos jurídicos, possíveis, de mérito, e enveredar, antecipadamente, por uma solução do pleito. Se não completamente concretizados os factos e cabalmente esclarecida a situação, sempre compete ao juiz, no âmbito dos seus poderes de gestão processual, determinar a sua especificada concretização ou seja efetuado o esclarecimento.
Com o respeito que a solução jurídica adiantada nos merece, certo é que, no caso concreto, e perante os factos essenciais e as posições das partes assumidas nos autos, mesmo com recurso a conclusões, outras soluções jurídicas da questão de direito se podem configurar como possíveis, como até resulta do que o próprio Tribunal a quo, refere.
Para que outras soluções jurídicas, igualmente plausíveis, da questão de direito possam ser adotadas, necessária é a presença de toda a matéria de facto alegada pelos Autores e a consideração, ainda, do carreado para os autos pelos Réus e adquirido para o processo, impondo-se necessárias concretizações.
Com efeito, cabe referir que os factos 4º e 9º supra mencionados se não encontram, na verdade, nenhum deles, completamente provado, por acordo, antes impugnados foram (cfr. art. 25º, 34º e 73º, da contestação), não aceitando os Réus que a ocupação tenha tido início no dia 23/5/2002 (apenas que, pelo menos, desde essa data têm vindo a ocupar), sequer que tenham sido eles a construir os anexos, afirmando, mesmo, ser isso falso, que os anexos estavam já construídos em 23 de maio de 2002 e que o estavam já, mesmo, em 17/5/2020 (cfr. art. 25º e 34º, da contestação).
Assim, a matéria relativa:
- a terem sido os Réus a construir os anexos;
- e ao momento da sua construção (se anterior ou posterior à celebração do contrato promessa em causa nos autos);
é controvertida.
E sendo controvertida e relevante para a decisão da causa segundo as várias soluções possíveis da questão de direito, como se depreende da própria decisão recorrida (existindo manifesto erro no ponto 4º), têm os autos de prosseguir para apreciação dos pedidos julgados, antecipadamente, improcedentes.
Sendo alegada a ocupação, pelos Réus, da fração desde 23/5/2002, tal não significa que a afirmada construção dos anexos seja ulterior a tal data, antes vindo invocada a culpa dos Réus pela falta de licença de utilização (“vide art. 410º, nº3, do CC”- cfr art. 48º , da petição inicial), o que inviabilizou a obtenção da mesma, dada a construção dos anexos (ilegal/clandestina), por eles realizada, não licenciada nem licenciável, e os Réus, reconhecendo existirem os anexos em causa desde muito antes daquela data, imputam a culpa da falta dos requisitos a que alude o referido preceito à promitente vendedora, dada a construção dos mesmos (que não por si), e a sua existência já à data da celebração do contrato promessa a que os autos aludem.
E para se aferir do preenchimento dos requisitos, evidentemente no momento da efetiva celebração do contrato-promessa, é necessário apurar se e quando as ações em causa foram praticadas, já que de matéria controvertida se trata.
Estando alegada a culpa dos Réus pela falta de preenchimento de requisito consagrado no nº3, do art. 410º, do CC, devido à construção, por eles, dos anexos, necessariamente a pressupor, já, existência da construção dos mesmos, confirmando os Réus a sua real existência e, até, antes da outorga do contrato, embora afirmando não ter sido ato seu (dado que nada foi, por eles, construído), cabe determinar, por relevar para a decisão, se os RR. realizaram as construções, sem licenciamento e que não são licenciáveis, no logradouro do prédio dos autos e, em caso afirmativo, se no momento em que as realizaram havia ou não sido já celebrado o contrato promessa.
E é garantida ampla liberdade, em sede de instrução, no sentido de permitir que, na produção de meios de prova (máxime, prova testemunhal, pericial ou por depoimento de parte), sejam averiguados os factos circunstanciais ou instrumentais, designadamente aqueles que possam servir de base à posterior formulação de presunções judiciais, sendo que a instrução da causa “deve ter como critério delimitador o que seja determinado pelos temas da prova erigidos e deve ter como objetivo final habilitar o juiz a expor na sentença os factos que relevam para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito”[13].
Não há, pois, “cristalização da matéria de facto na fase intermédia do processo, ficando relegada para a sentença, isto é, para depois de concluída a instrução, a definição do quadro fáctico da lide, o que é, aliás, uma decorrência do dever de o juiz considerar na decisão os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução (art. 5º, nº2, al. b))”[14], consagrando este preceito todos os factos a expor na decisão da matéria de facto (cfr. nº1, 2 e 3, de tal artigo) .
E importa referir, ainda, que a “maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”[15], em obediência ao estatuído no nº 4, do art. 607º.
E na exposição dos factos, quer dos provados quer dos não provados “o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar a recolha de todos os factos que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito” pois “não é de excluir que, apesar de o concreto juiz entender que basta um determinado enunciado de factos provados ou não provados para que a ação proceda ou improceda, o tribunal superior, em sede de recurso, divirja daquela perspetiva e considere outras soluções dependentes do apuramento de outros factos. Em tais circunstâncias, melhor será que o juiz, de forma previdente, use um critério mais amplo, inscrevendo na matéria de facto provada e não provada todos os elementos que possam ter relevo jurídico, evitando ou reduzindo as anulações de julgamento decretadas ao abrigo do art. 662º, nº2, al. c), in fine[16].
Têm, pois, de ser analisados, para efeitos de serem considerados provados ou não provados, os factos alegados pelas partes, nos articulados da causa para, após, e com a necessária segurança e ponderação se encontrar a justa solução jurídica do caso.
Devem, assim, os autos prosseguir os seus ulteriores termos processuais para apreciação, também dos pedidos objeto do recurso, com as, devidas, e complementares, identificação do objeto do litígio e enunciação dos respetivos temas da prova.
Destarte, procedendo a apelação, cumpre revogar a decisão quanto aos pedidos objeto do recurso (os que foram julgados improcedentes, referidos na conclusão 1, das alegações), com a consequência de, em primeira instância, se dever retomar a fase anterior, substituindo-se a decisão, parcialmente revogada, por decisão que atenda à matéria de facto alegada pelos Autores, por relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, em cumprimento do estatuído nos arts. 595º a 597º, do CPC.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam, nessa parte, a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, determinando se retome anterior fase do saneamento do processo, para completa identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova, em conformidade com o supra referido, para ulterior apreciação dos pedidos julgados improcedentes.
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Custas pelos apelados, pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2, do CPC -, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Porto, 24/5/2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Ac. RP de 22/2/2021, proc. 3738/18.2T8AVR.P1, in dgsi.pt
[2] Ac. RP de 25/1/2021, proc. 17469/19.2T8PRT.P1, e, ainda, no mesmo sentido, Acs. RG de 5/1/2017, proc. 1703/15.0T8BCL.G1 e de 11/7/2017, proc. 114815/16.8YIPRT.G1, estes últimos in dgsi.pt.
[3] Cfr. seguindo, também, esta orientação, a jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores, designadamente a que se segue, acessível in dgsi.pt:
-Ac. do STJ de 18/12/2012, proc. 1345/10.7TVLSB.L1.S1, onde se considerou que “seja na selecção dos factos assentes, seja na selecção dos factos controvertidos, o juiz deve ter em conta todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os factos que relevam para a solução da questão de direito que tem como aplicável” e que “ na fase do despacho saneador, não pode o juiz decidir de acordo com os factos então assentes e que tem por suficientes para a solução jurídica que considera correcta, desprezando factos ainda controvertidos e relevantes para uma solução jurídica diversa sustentada por parte da jurisprudência”;
-Ac. RL de 3/12/2020, proc. 4711/18.6T8LRS-A.L1-2, onde se entendeu que “Em sede de prolação de despacho saneador, não sendo caso de emissão de despacho de aperfeiçoamento e sendo os factos alegados pelo autor inábeis a deles extrair o efeito jurídico por ele pretendido, o juiz deverá, ainda assim, em princípio, elencar os factos que considere provados”, “Se o juiz do Tribunal recorrido - considerado estar em condições de conhecer de imediato do mérito da causa - elencou em sede de fundamentação que a genérica alegação factual do autor, nos moldes que reproduziu, mesmo que se viesse a provar, não conduziria à procedência da pretensão do autor, não se verifica a nulidade da al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC no saneador-sentença assim proferido” e, ainda, “O conhecimento imediato do mérito no despacho saneador só é legítimo se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes segundo as soluções plausíveis da questão de direito”;
- Ac. RP de 22/5/2019, proc. 3610/18.6T8MTS.P1, onde se decidiu “O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito” e que, face a isso, “apesar do juiz se considerar habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, com base apenas no núcleo de factos incontroversos, caso existam factos controvertidos com relevância para a decisão, segundo outras soluções também plausíveis de direito, deve abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa”;
- Ac. da RG de 16/2/2017, proc. 4716/15.9T8VCT-A.G1, onde se escreve “O conhecimento imediato do mérito da causa no despacho saneador, permitido na alínea b) do n.º 1 do artigo 595º do CPC, só poderá acontecer (i) quando toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou por documentos, (ii) quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, e (iii) quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental” e, assim, “mostrando-se ainda controvertidos factos alegados pelo Autor que, com relevância, contendem com a causa de pedir subjacente aos pedidos sobre os quais o Tribunal decidiu pronunciar-se no despacho saneador, estava vedado àquele Tribunal conhecer imediatamente, nessa fase processual, do mérito desses pedidos”.
[4] E só essas, como refere Teixeira de Sousa, local citado: “Se, mesmo que fosse formulado um convite ao autor para aperfeiçoar a sua petição inicial, a acção haveria de improceder, não pela falta de esclarecimento de um facto constitutivo, mas pela falta de um facto constitutivo integrante da causa de pedir, é claro que não tem sentido dirigir esse convite”.
[5] Lebre de Freitas, in “A Acção Declarativa Comum, à luz do Código revisto, pág. 37.
[6] Cf. Ac. da RL de 17/12/2001 publicado em www.dgsi.pt.
[7] Ac. da Relação de Coimbra de 2-07-2013 publicado em www.dgsi.pt.
[8] Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 256/7.
[9] Paulo Pimenta, in “Processo civil declarativo”, págs. 257; cfr. Lebre de Freitas, in “A acção declarativa comum à luz do CPC de 2013”, pág. 186.
[10] V., por exemplo, que o tribunal recorrido concluiu, sem que isso decorra da matéria de facto e sem qualquer produção de prova, que “… a vedação com acrílico ou vidro temperado até oferece uma segurança maior do que a rede de malha porque não permite que as crianças a trepem e ampara uma eventual queda eleva (?) a altura da varanda. Aliás a opção pela colocação de uma rede de malha não foi inocente porquanto em termos económicos o seu custo é bastante inferior à solução autorizada pelo condomínio e esta terá sido, certamente, um dos motivos senão o motivo para se ter optado por esta solução. Por outro lado, são absolutamente irrelevantes as “opiniões” emitidas pelas câmaras municipais porquanto nos encontramos no âmbito da autonomia privada (…)”.
[11] 4.º - Desde Em 23 de maio de 2002, os réus têm vindo a ocupar a fração referida no ponto 3.º − fração autónoma designada pela letra E”.
[12] “9.º - Após a ocupação da fração autónoma, os réus construíram dois anexos, destinados a garagem, e ocuparam um deles, não tendo estas construções sido licenciadas”.
[13] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, pág 503
[14] Ibidem, pág.725
[15] Ibidem, pág 725
[16] Ibidem, pág 744 e seg