INSOLVÊNCIA
APREENSÃO PARA A MASSA INSOLVENTE
AQUISIÇÃO POR TESTAMENTO
CLÁUSULA TESTAMENTÁRIA
Sumário

I - Não ocorre uma nulidade da decisão relativa à reclamação destinada a retirar da massa insolvente um direito insusceptível de apreensão para os seus efeitos, se o insolvente e o tribunal concorrem para a tramitação anómala do respectivo incidente e as irregularidades ocorridas nem influenciam o exame e decisão da questão, nem chegam a ser arguidas perante o tribunal, em tempo útil.
II - Não pode ser apreendido para a massa insolvente um direito patrimonial adquirido pelo insolvente, por sucessão e em momento ulterior ao da constituição das obrigações verificadas na insolvência, quando o autor da sucessão, por testamento, houver instituído uma cláusula de exclusão de responsabilidade relativamente a tal categoria de obrigações, nos termos do art. 603º do C. Civil.

Texto Integral

PROC. N.º 2285/20.7T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 3

REL. N.º 608
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC).
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1. RELATÓRIO

Na presente acção em que B… requereu e viu ser declarada a sua insolvência, havia ela alegado ser titular do direito a metade indivisa de uma fração autónoma, designada pela letra “X”, sita na …, freguesia …, concelho de Lisboa, inscrita na respetiva matriz sob o artigo 949 e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2062/19950727, requerendo, porém, que a mesma não fosse apreendida para a insolvência, pois que tal direito lhe havia sido transmitido com uma cláusula de exclusão de responsabilidade, nos termos do artº 603º, nº1 do Cód. Civil, inibindo a possibilidade de este direito ser apreendido.
Na sequência da declaração de insolvência, esse direito foi, no entanto, apreendido pela Exma. Administradora da Insolvência, o que mereceu reclamação da insolvente, requerendo que tal apreensão não se verificasse.
Ouvidos os credores e a Sra. Administradora, veio a C… responder que a insolvente não fazia prova da sua alegação e veio aquela anunciar que entendia dever manter-se a apreensão realizada, tanto mais que havia já logrado concretizar o respectivo registo definitivo, na Conservatória do registo Predial.
Foi, então, proferida a decisão recorrida, onde se afirmou, por um lado, que o procedimento adequado à impugnação da apreensão seria o expediente previsto “nos artigos 141º nº 1 alínea c), 144º e 146º do CIRE, consoante for aplicável (de harmonia com a fase processual em que ocorra)”; e, por outro, que a cláusula de exclusão de responsabilidade pelas dívidas anteriores (artº 603º do C.C.) não se coaduna com o processo de insolvência, pelo que, a metade indivisa da Recorrente deverá manter-se apreendida e objeto de venda no âmbito do processo de insolvência.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, que a insolvente termina formulando as seguintes conclusões:
“A) O presente recurso pretende impugnar o Despacho inicial de Exoneração do Passivo Restante, proferido nos presentes autos em 15.02.2021, restringindo-se à questão da apreensão da metade indivisa do único imóvel de que a Recorrente é proprietária, aceitando tudo o mais que da mesma consta, restringindo-se o presente recurso apenas a esta questão, com as consequências daí resultantes, procedendo o presente recurso.
B) Resulta dos autos que a Recorrente, logo com a petição inicial alegou que efetivamente era detentora de um único bem, constituído por uma metade indivisa de um imóvel, composto por uma fração autónoma, devidamente identificada nos autos.
C) Do mesmo modo, alegou e provou documentalmente que o referido imóvel (diga-se o direito à metade indivisa) detinha uma cláusula de exclusão de responsabilidade, nos termos do artº 603º do C.C.
D) Entretanto foi proferida sentença de declaração de insolvência, da qual constava a determinação da apreensão de todos os bens da Recorrente, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artº 46º do CIRE.
E) De seguida foi apresentado pela Ex.ma Administradora da insolvência o respetivo Relatório de Inventário de Bens e Direitos, com o qual juntou a Relação de Credores e Mandatários, onde constava como único bem da Recorrente a referida metade indivisa do dito imóvel.
F) Juntou igualmente com aquele relatório o auto de apreensão da aludida metade indivisa do imóvel.
G) Face a este requerimento, a Recorrente reclamou, alegando que tal direito não poderia ser objeto de apreensão, uma vez que continha uma cláusula de exclusão de responsabilidade, nos termos do artº 603º do C.C.
H) Em consequência deste requerimento, apresentado pela Recorrente foi proferido despacho pelo Meritíssimo Juiz a quo ordenando que se notificassem os credores e a Ex.ma Administradora para se pronunciarem sobre o mesmo, no prazo de dez dias.
I) Apenas a Credora C… apresentou requerimento, afirmando tão só que, ficaria a aguardar pela certidão a juntar pela Ex.ma Administradora de insolvência, embora nada mais tenha dito nos autos até hoje.
J) Entretanto foi emitido despacho no sentido dos autos aguardarem pela junção aos autos da certidão da Conservatória do Registo Predial, referente ao registo da apreensão da aludida metade indivisa que a Requerente detém no mencionado imóvel.
K) A Ex.ma Administradora de insolvência efetivamente apresentou a solicitada certidão onde constava o registo da apreensão daquele direito da Recorrente.
L) Mas, fez acompanhar um requerimento, onde pugnava pela manutenção do registo da apreensão daquele direito, justificando com o facto do registo requerido não ter sido recusado, bem como, colocando algumas questões sobre a referida cláusula.
M) Porém, a Recorrente não foi notificada deste requerimento para se poder pronunciar, considerando-se que, caso tivesse tido conhecimento do mesmo ter-se-ia pronunciado e contradito e respondido às questões aí colocadas.
N) Porém, mais nenhum Credor se pronunciou sobre esta questão.
O) E, logo de seguida é proferido o despacho de que se recorre, a qual considera:
- Que a Recorrente deveria ter reagido aquando da apreensão e
- Que a cláusula de exclusão de responsabilidade pelas dívidas anteriores, prevista no artº 603º do C.C. não é aplicável ao regime do processo de insolvência.
P) Com efeito, relativamente à reação da Recorrente àquela apreensão, a mesma reclamou atempada e devidamente, pois apresentou requerimento, decorridos sete dias após a notificação da Relatório e do auto de apreensão, como se retira dos autos.
Q) Poderia colocar-se a questão de não ter sido utilizado o formalismo adequado, em cumprimento do disposto nos artºs 130º a 145º do CIRE, mas o requerimento é manifestamente claro sobre a reclamação que a Recorrente pretendia efetuar, sendo que, o documento mais importante – certidão da CRP, se encontrava junto aos autos (Docº nº 10 da P.I.). Até porque o Tribunal ordenou que os demais Credores e a Ex.ma Administradora de insolvência se pronunciassem em dias, em cumprimento do princípio do contraditório e como determina o nº 2 do artº 130º do CIRE.
R) Mas, mesmo que assim se não entendesse ou entenda, poderia, senão mesmo, deveria, o Tribunal a quo, ordenar que a Recorrente aperfeiçoasse o requerimento, para cumprimento dos princípios da cooperação e da boa fé, da economia processual, do inquisitório e da adequação formal, previstos nos artºs 6º, 7º, 8º, 146º, nº 2, 411º e 590º, nº 2, als. b), c), 3 e 4 do CPC, por remissão do artº 17º do CIRE, porém não o fez proferiu logo a decisão de que se recorre.
S) Assim, considerando-se que foi preterida a realização destes atos, ou seja, a omissão de atos, acrescido do facto de tal omissão ter tido consequências importantes na esfera jurídica da Recorrente, prejudicando-a significativamente, a que acresce a falta de notificação da Recorrente do requerimento apresentado pela Ex.ma Administradora da insolvência, datado de 07.01.2021, tratando-se assim de nulidades processuais que desde já se invocam, nos termos dos artigos 195º e 196º do C.P.C.
T) Tal invocação de nulidades ocorre apenas por mera precaução de patrocínio, porquanto o Signatário considera em sua modesta opinião que o requerimento apresentado seria suficiente, atenta a sua clareza, e tendo em conta toda a factologia processual exposta.
U) Acresce que, o facto de a Conservatória do Registo Predial não ter recusado o registo da apreensão, como invoca a Ex.ma Administradora no seu requerimento, tal não justificaria a manutenção da apreensão, uma vez que havia sido tempestivamente reclamada tal apreensão pela Recorrente, até porque, o acto de registo não constitui direitos, apenas os publicita.
V) Relativamente à decisão do despacho em recurso, considerando que a cláusula de exclusão de responsabilidade pelas dívidas anteriores, prevista no artº 603º do C.C. não é aplicável ao regime do processo de insolvência, discordamos frontalmente.
W) Como se retira da certidão permanente da Conservatória do Registo Predial, constava da mesma o registo da “cláusula de exclusão de responsabilidade, prevista no nº 1 do artigo 603º do C.C. relativamente à herdeira B…, cujo registo desta cláusula foi efetivado em 18/09/2018, através da apresentação nº 2475, aquando do falecimento do autor da herança e pai da Recorrente – D…, ou seja, em 12 de Setembro de 2016, como se retira do DOCº Nº 1 (Habilitação e Testamento) que se junta.
AA) Acresce que, da documentação junta aos autos, mormente da petição inicial, o Anexo I e o Docº 13 da mesma, bem assim, da Lista definitiva de Créditos Reconhecidos, junta com o Relatório da Ex.ma Administradora da insolvência, resulta que todas as dívidas da Recorrente são anteriores à liberalidade que gerou esta cláusula.
BB) Pelo que, a situação da Recorrente preenche os dois requisitos exigíveis para que possa beneficiar da impossibilidade deste direito responder por estas dívidas, porque:
- As dívidas são anteriores à efetivação da liberalidade e
- O registo desta cláusula foi efetivado antes do registo da apreensão.
CC) Ora, face ao exposto não restam dúvidas que o testador pretendia evitar que o bem, por si deixado respondesse pelas dívidas anteriores da Recorrente, daí ter outorgado o testamento nos termos em que o fez, até porque sendo filha, conhecia a sua situação, procurando assim salvaguardar os seus bens da execução dos Credores, porque se assim não fosse tê-los-ia deixado ou doado a outros herdeiros ou terceiros.
DD) Quanto à aplicabilidade desta cláusula ao regime da insolvência, é entendimento da doutrina e da jurisprudência que tal não é de excluir, uma vez que se trata dos mesmos devedor, credores, créditos e bens para que serviria esta cláusula, caso a Recorrente não tivesse optado pela sua insolvência pessoal, por isso, não será de aceitar que, para os mesmos efeitos sejam utilizados meios diferentes.
EE) Assim, concretizando-se a subsunção desta norma e do seu espírito, atenta a intenção do legislador, considera-se que é de aplicar esta cláusula ao regime da insolvência, neste caso em concreto, descordando-se totalmente com a decisão de que se recorre, quando a mesma considera que “as razões que presidiram à sua admissibilidade pelo legislador não se verificarão no âmbito de um processo de insolvência.”
FF) Pelo exposto, deverá ser revogada a Decisão de que se recorre, no sentido de ser admitida a cláusula de exclusão de responsabilidade incidente sobre o direito a metade indivisa do imóvel em causa e, em consequência, deverá ainda ser ordenando o cancelamento do registo da apreensão averbado à descrição nº 2062/19950727, da Conservatória do Registo Predial de Lisboa, da fração autónoma, destinada a habitação, designada pela letra “X”, com artigo matricial 949, da freguesia …, concelho de Lisboa, sob a AP. 1639, de 2020/10/19 e da AP. 2475 de 2020/09/18. “
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Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo. Foi recebido nesta Relação e cumpre decidi-lo.
Em qualquer caso, e porquanto a apelante havia requerido a atribuição de efeito suspensivo a este mesmo recurso, cumpre afirmar, em plena concordância com o decidido pelo tribunal recorrido, que essa pretensão não poderia ser acolhida – como não foi – em razão do regime estabelecido no nº 5 do art. 14º. Aí se prevê que recursos como o presente tenham efeito meramente devolutivo, o que afasta a aplicação de qualquer outra solução. Nada cabe, pois, alterar a este respeito.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não cabendo apreciar outras, salvo se forem de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 2, do C.P. Civil.
Assim, a questão a resolver, extraída de tais conclusões, é tão só a de verificar se a cláusula de exclusão de responsabilidade, aposta no acto sucessório por via do qual a insolvente adquiriu a metade indivisa da fracção autónoma supra identificada deve ter por consequência a sua exclusão do processo de insolvência, por não dever responder pelas dívidas da insolvente B….
Sendo essa a questão substantiva a decidir, não pode deixar de atentar-se no percurso processual absolutamente irregular por via do qual a questão acabou por ser decidida em primeira instância e foi sucessivamente endereçada a este tribunal, através de recurso de apelação.
Com efeito, o que se constata do processo de insolvência do qual os presentes autos foram extraídos, para processamento do recurso, é que a insolvente, logo no seu requerimento inicial, alertou para a existência do problema em causa: a existência da cláusula de exclusão de responsabilidade aposta ao acto pelo qual havia adquirido o único património que tinha.
Admitindo-se que nada justificasse, nessa fase, o tratamento e a solução do problema, o que se verificou é que a Sra. Administradora de Insolvência, na aplicação do seu entendimento sobre a matéria, concretizou a apreensão daquele direito da insolvente (direito a metade indivisa da fracção descrita supra).
Perante esse facto, a insolvente, logo apresentou um requerimento, pronunciando-se pela inadmissibilidade daquela apreensão. Não obstante a respectiva simplicidade, o que é certo é que logo o mesmo deveria ser qualificado como uma reclamação destinada a excluir da massa aquele património, sob a alegação de que era insusceptível de apreensão, com fundamento na sua sujeição à referida cláusula de exclusão de responsabilidade, do tipo previsto no art. 603º do C. Civil. Era esse precisamente o fim pretendido pela insolvente, sem margem para dúvidas quer quanto à sua pretensão, quer quanto aos seus fundamentos.
Por conseguinte, não obstante os termos da sua apresentação pela insolvente, não poderia deixar o tribunal de qualificar essa peça processual como um requerimento inicial do incidente previsto no art. 141º, nº 1, al. c) do CIRE, determinando o seu prosseguimento segundo as regras específicas do nº 2 desse preceito, e das constantes do art. 132º e ss, aplicáveis por remissão do nº 1 daquele art. 141º. Tal é o dever que lhe resulta do art. 6º do CPC, mas de cuja inobservância resultou uma inadequada condução do processo, nos termos da qual se deu azo a uma tramitação diferente da legalmente prevista, com a notificação da administradora da insolvência e dos credores para se pronunciarem sobre o requerimento, com a instrução do incidente com peças que se entendeu serem necessárias (por indicação da administradora da insolvência) e com uma efectiva decisão da pretensão da requerente, embora com a simultânea afirmação de que outro devia ter sido o processado para esse efeito. Tudo isso se fez nos autos, culminando na decisão agora em crise, na qual, com efeito, o tribunal não deixou de assinalar o indevido processamento do incidente, apesar de o ter imputado exclusivamente à má actuação processual da requerente, no esquecimento da sua própria contribuição para o efeito. De resto, no limite, se entendia não ter esse dever, o tribunal poderia ter ordenado o aperfeiçoamento do articulado de reclamação ou indeferido o incidente, por incumprimento da forma legal. Sendo certo que não o fez, a decisão proferida ressuma de uma actividade processual que só pode ter-se como anómala.
Com efeito, nos termos das normas aplicáveis (apenas referidas com a ligeireza que nesta fase se tem por bastante), designadamente dos nºs 1 e 2 do art. 141º do CIRE, do art. 132º, do art. 134º, 135º, 136º, o incidente deveria ter sido autuado em separado, com o requerimento e os meios de prova que ao caso coubessem; não deveria ter havido notificações para contestação; à contestação da administradora, designadamente, poderia a requerente responder em 5 dias, sem precedência de notificação (art. 141º, nº 2, al. c) do CIRE); a comissão de credores deveria juntar parecer; deveria ter havido uma audiência e só depois deveria ter havido decisão.
No entanto, no caso em apreço, a situação foi tratada com uma agilidade a que não foi alheia a circunstância de não haver outra prova a ponderar que não a respeitante à natureza e conteúdo do direito da insolvente apreendido para a massa, demonstrados por prova documental (registal) e uma decisão acabou por ser efectivamente proferida sobre a pretensão formulada, viabilizando agora a sua impugnação, embora na sequência de um procedimento totalmente diferente do devido, como se assinalou.
Importa ponderar, todavia, se a inobservância do procedimento legalmente previsto deve ser ignorada, ou determinar anulação de todo o procedimento e da decisão em que terminou.
Dispõe o art. 195º do CPC que a inobservância de formalidades que a lei prescreva só produz nulidade se a irregularidade verificada puder influir no exame e decisão da questão.
Ora, no caso em apreço, a natureza da questão a resolver, de cariz absolutamente técnico-jurídico, perante uma realidade fáctica perfeitamente adquirida e relativamente à qual a insolvente já havia tido oportunidade de expor os seus argumentos, é de ordem a induzir a conclusão de que as irregularidades verificadas não foram aptas a perturbar a análise e a decisão que a situação exigia. De resto, não só a questão foi apreciada pelo tribunal a quo, como foi admitido recurso que permite agora a sindicância da correspondente decisão. Isto, só por si, já prejudicaria a declaração da referida nulidade.
Mas, ainda que assim não fosse, uma tal nulidade sempre haveria de considerar-se sanada, por não ter sido arguido em tempo útil e perante o próprio tribunal recorrido, nos termos do art. 196º e 199º do CPC. Com efeito, as irregularidades apontadas ocorreram no âmbito do procedimento tendente à decisão, não consubstanciando nulidade da própria decisão, tal como as descritas no art. 615º do CPC. Nessa medida, não tendo sido oportunamente arguida, mesmo que se viesse a concluir pela sua verificação, sempre ela haveria agora de considerar-se sanada.
Por todo o exposto, indefere-se a nulidade arguida pela apelante, nos termos da conclusão da al. S) do seu recurso.
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A rejeição da arguição da nulidade da decisão recorrida e do procedimento que a ela conduziu devolve-nos à apreciação da questão substancial do recurso, que é, afinal, a da decisão sobre a relevância da cláusula aposta no acto através do qual a insolvente adquiriu o património que está em causa, constituído pela metade indivisa de uma fracção autónoma de um imóvel sito na …, …, Lisboa.
Para esse efeito, devemos ter presente, como substrato factual relevante para a decisão a proferir, os seguintes dados, que se mostram provados pelos competentes documentos:
1 - Por testamento de 22/12/2016, D… instituiu “que os bens da sua herança que venham a preencher o quinhão hereditário de sua filha, B…, divorciada, (…) ficam com a cláusula de exclusão de responsabilidade prevista no art. 603º do Código Civil, respondendo unicamente pelas obrigações da responsabilidade da beneficiária posteriores ao recebimento dos mesmos bens.”
2- B… adquiriu, por sucessão hereditária ao testador, falecido em 12/9/2018, em comum com E… e sem determinação de parte ou direito, a propriedade da fracção designada pela letra “X”, do prédio sito na …, …, Lisboa, inscrita na respetiva matriz sob o artigo 949 e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2062/19950727.
3 – A aquisição foi registada por apresentação de 18/9/2918, juntamente com a “Cláusula: de exclusão de responsabilidade, prevista no nº 1 do art. 603º do Código Civil, relativamente à herdeira B…”.
4 – Na lista Definitiva de Créditos Reconhecidos, apresentada pela Sra. Administradora da Insolvência e constante destes autos de insolvência, referem-se os seguintes créditos, com datas de vencimento ou incumprimento:
AUTORIDADE TRIBUTÁRIA-Dir. Fin.Aveiro - Vencº a 31/07/2011 169.332,27 €
C…, SA - Data Incumpº 04/07/1999 61.979,11 €
F… - AVAL da Insolvente- Contrato Mútuo de 17/10/1996 420.754,10 €
- AVAL da Insolvente- Contrato Mútuo 31/03/2000 115.088,91 €
- AVAL da Insolvente -Mútuo nº 60889 do 217.419,47
G…, SA - Data Incumpº-2013
INST. SEG. SOCIAL,IP - Restituição Abono Família- de 09/2010 189,30 €
I... - Descoberto- Cartão de cred Data Incumpº- 08/07/2017 9.408,90 €
H… -Mútuo- Vencº 05/1999 6.211,16 €
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TOTAL DOS CREDITOS RECONHECIDOS 1.000.383,22 €
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Importa, neste contexto, decidir se a metade indivisa de uma fracção autónoma de um prédio urbano, que a insolvente adquiriu por sucessão, deve responder pelo passivo verificado nos autos da respectiva insolvência, perante a circunstância de uma tal aquisição ter beneficiado de uma cláusula de exclusão de responsabilidade, nos termos do art. 603º do C.Civil.
Dispõe este preceito, no seu nº 1: “Os bens deixados ou doados com a cláusula de exclusão da responsabilidade por dívidas do beneficiário respondem pelas obrigações posteriores à liberalidade, e também pelas anteriores se for registada a penhora antes do registo daquela cláusula.”
A razão de ser desta solução é fácil de apreender: permitir ao testador ou doador subtrair os bens a deixar ou a doar à satisfação das dívidas do beneficiário existentes ao tempo da liberalidade (sem prejuízo da necessidade de registo quando o objeto da liberalidade seja um imóvel ou um móvel sujeito a registo), mas sem que disso possam beneficiar as dívidas ulteriores ou mesmo outras anteriores cujo credor tenha registado a penhora antes do registo da cláusula.
Com isto, favorece-se a realização de liberalidades, sem frustração de legítimas expectativas dos credores do beneficiário, pois que ao tempo do surgimento dos créditos os bens doados ou deixados não integravam o património do devedor, não podendo aqueles esperar dos mesmos qualquer utilidade enquanto garantia de realização do seu crédito. De outra forma, não ocorreriam as liberalidades, pois o testador/doador compreenderia que os bens só iriam resultar em favor dos credores do beneficiário, e não deste. Concretizando-se as liberalidades, por testamento ou doação, os credores de forma alguma verão lesada qualquer expectativa sua, pois que os bens objecto da liberalidade não poderiam ter sido antevistos como garantia.
Como se refere no Ac. do TRP de 4/12/2017 (proc. nº 6861/13.6YYPRT-A.P1, em dgsi.pt) “com o reconhecimento da validade e oponibilidade de uma cláusula deste tipo facilita-se e estimula-se a realização de liberalidades mesmo a favor de quem esteja insolvente ou perto da insolvência. Sem a possibilidade desta cláusula, o terceiro, por mais que prezasse o devedor, por princípio, não se disporia a fazer-lhe uma liberalidade que, no fundo, acabaria praticamente por apenas beneficiar os seus credores. No entanto, como se referiu, essa limitação da responsabilidade patrimonial por determinação de terceiro relativamente aos bens deixados (irrelevando, para este efeito, que o beneficiário seja herdeiro legítimo, legitimário, testamentário ou legatário, já que, neste conspecto, se deverá relevar o princípio, incontornável em sede de interpretação e aplicação da lei, de que onde a lei não faz distinção, também o intérprete a não deve fazer) é apenas oponível aos titulares de créditos anteriores a essa liberalidade, os quais, fundadamente, não podiam, aquando da constituição dos créditos respetivos, contar com uma liberalidade feita, no futuro, ao seu devedor.” Esta mesma ideia se repete no Comentário ao Código Civil, Universidade Católica Editora, 2018, pgs. 666-667.
Na decisão recorrida, apesar de ter sido enunciada a mesma compreensão deste instituto, foi entendido que a cláusula de exclusão de responsabilidade não deveria operar, quer por ter sido viável a concretização da apreensão, através do seu registo definitivo na Conservatória, quer por serem diferentes as abrangências de uma execução e de uma insolvência, não cabendo nesta última salvaguardar qualquer património do insolvente. E isso, também, em razão da circunstância de nem todos as responsabilidades da insolvente B… serem anteriores à data da liberalidade.
Entendemos, no entanto, não podermos acompanhar esta solução.
Antes de mais, devemos afirmar ser absolutamente irrelevante a decisão do Conservador quanto ao registo da apreensão, para aferir da legitimidade desta, na situação sob apreciação. Com efeito, a Sra. Administradora orientou a sua contestação à pretensão da insolvente de não apreensão do seu direito, pela circunstância de ter logrado obter o registo definitivo da operação, e não um registo meramente provisório. Daí concluiu pela legitimidade da apreensão, comunicando-o ao tribunal, que, de alguma forma, o parece ter considerado igualmente relevante. Acontece, porém, que o registo de um acto jurídico deste género há-de ser sempre uma actividade meramente registal, que pressupõe a sua validade, mas que não é condição dessa mesma validade. De nenhum preceito do Código de Registo Predial se extrai um tal significado para um tal registo. Daí ser inútil um tal argumento.
Para além disso, vistos os créditos reconhecidos pela Sra. Administradora da insolvência, constata-se que todos eles procedem de operações de 1996, 1999 e 2000, a que acrescem um crédito fiscal de 2011, um da Segurança Social, de 2010, e um gerado por dívidas de um cartão de crédito, de 2017. A aquisição do direito, por sucessão hereditária, foi registada por apresentação de 18/9/2018, subsequentemente ao falecimento do testador, ocorrida em 12/9/2018, conforme consta da escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos. Conclui-se, por isso, que todas as obrigações verificadas na insolvência são anteriores à liberalidade que foi instruída com a cláusula de exclusão de responsabilidade em causa, assim tornando a situação em apreço subsumível ao regime do art. 603º do Código Civil.
Por fim, considerou a decisão recorrida que, sendo a insolvência uma execução universal, não lhe pode ser imposta a limitação de responsabilidade que resultaria da cláusula registada em favor do direito da insolvente, pois que no âmbito da insolvência todos os créditos estão sujeitos a um princípio de igualdade, só podendo prevalecer aqueles fundados em garantias ou privilégios conferidos por lei, nos termos dos arts. 47º e 172º do CIRE.
Esta justificação, parecendo olhar à natureza dos créditos e à igualdade dos credores, não atenta em que a questão que aqui cumpre resolver se coloca na outra vertente do problema: a do património do devedor e da sua aptidão para responder pelas respectivas obrigações.
A este propósito, dispõe o nº 1 do art. 46º do CIRE: “A massa insolvente (…) salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.” E, no nº 2, acrescenta: “Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.”.
Daqui se retira, ao contrário da afirmação genérica e insustentada do tribunal a quo, que inexiste a apontada obliteração de regras sobre a alteração da elegibilidade de bens do devedor que devem responder pelas suas obrigações, entre o regime de uma execução e o de uma insolvência. Um bem que, no âmbito de uma execução, seja impenhorável, só integrará a massa insolvente se o devedor voluntariamente o presentar e a sua impenhorabilidade não for absoluta.
Assim, se o tribunal admite (parece pressupô-lo, na decisão recorrida) que no âmbito de uma execução, o direito da agora insolvente B… à metade indivisa de uma fracção de um prédio não haveria de responder pela satisfação de obrigações anteriores à respectiva aquisição, só poderia concluir que não passará a ser elegível para esse efeito no âmbito de uma execução universal, consubstanciada no processo de insolvência. Um juízo diferente, como o que foi proferido, não só não tem norma que o sustente, como as disposições do art. 46º do CIRE dispõem em sentido diferente.
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Temos, em suma e em plena congruência com o acórdão deste TRP supra citado, que inexiste qualquer fundamento para afastar a operatividade da cláusula de exclusão de responsabilidade aposta no testamento por via do qual a insolvente adquiriu a titularidade do direito de propriedade a metade indivisa facção acima identificada, no âmbito da respectiva insolvência. Consequentemente, reconhecendo que esse direito não poderá ser útil para os presentes autos, cumpre recusar a sua apreensão para a massa insolvente resultante da insolvência da ora apelante B…, bem como o cancelamento do correspondente registo.
Procederá, pois, nos descritos termos, a presente apelação, com a inerente revogação da decisão recorrida.
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III- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar procedente a presente apelação, com o que, revogando a decisão recorrida, determinam que seja levantada a apreensão operada sobre o direito de propriedade da insolvente relativamente a metade indivisa da fracção autónoma, designada pela letra “X”, do prédio sita na …, freguesia …, concelho de Lisboa, inscrita na respectiva matriz sob o artigo 949 e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº 2062/19950727, porquanto o mesmo não haverá de responder pelos créditos tidos por verificados sobre a insolvente B…, na presente insolvência. Será igualmente cancelado o respectivo registo, na C. R. Predial.
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Custas pela massa.
Registe e notifique.
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Porto, 25/5/2021
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro