QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRINCÍPIO DA CULPA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Sumário

I - Pelo estabelecimento das normas dos nºs 5 e 6 do art.º 569º do Código de Processo Civil, que preveem a possibilidade de prorrogação do prazo da contestação, o legislador encontrou uma via apertada para, em harmonia de interesses, permitir a prorrogação excecional do prazo da contestação sem prejudicar a marcha do processo para a resolução do litígio e a realização, tão célere quanto possível, da justiça em cada caso concreto.
II - Da aplicação daquelas normas jamais poderá resultar um efeito contrário e perverso; daí também a impossibilidade de recurso.
III - Na investigação a efetuar quanto à determinação das pessoas a afetar pela qualificação da insolvência, nem os demais interessados nem o tribunal estão confinados às pessoas que foram indicadas no requerimento inicial do incidente, seja este do Administrador da Insolvência ou de qualquer outro interessado.
IV - A nulidade da sentença por condenação em quantidade superior ou em objeto diverso não se confunde com qualquer irregularidade relativa aos sujeitos da ação.
V - A determinação da pessoa do afetado pela qualificação da insolvência como culposa e a aplicação das sanções previstas no art.º 189º, nº 2, do CIRE, não podem deixar de obedecer ao princípio da culpa, às regras de adequação e proporcionalidade, estando o intérprete obrigado a fazer uma leitura constitucional daquele preceito.

Texto Integral

Proc. nº 5253/18.5T8VNG-O.P1 (apelação - 3ª Secção)
Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – J 2

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
Na sequência de declaração de insolvência da sociedade B…, S.A., o Sr. Administrador da Insolvência requereu a abertura do Incidente de Qualificação da Insolvência, fundamentando parecer no sentido da sua qualificação como culposa.
No essencial, alegou que os responsáveis não cumpriram o dever de apresentação à insolvência por parte da insolvente, sendo que o administrador da sociedade não lhe prestou a colaboração a que estava obrigado, mesmo depois de várias vezes instado para informar sobre a localização do ativo da insolvente, motivo pelo qual parte do mesmo nunca foi apreendido para a massa, o que consubstancia um prejuízo concreto para os credores.
Também o Ministério Público se pronunciou no sentido da qualificação da insolvência como culposa, com afetação dos seus administradores, C… e D…, alegando a falta de colaboração de ambos para com o Administrador da Insolvência, designadamente no fornecimento de todos os documentos de suporte da existência, proveniência e destino da totalidade do saldo de caixa da insolvente, no valor de € 301.633,41, transferido para a conta 27, do balancete analítico reportado a março de 2018. Acrescentou que, de acordo com a informação prestada pelo anterior contabilista certificado da sociedade insolvente, Dr. E…, técnico da F…, Lda., a contabilidade da insolvente está nas instalações dela e, consequentemente, na posse dos respetivos administradores, desde agosto de 2015. Alegou ainda que, a não prestação de tais elementos contabilísticos, impossibilitou ou, pelo menos, dificultou o conhecimento da real situação patrimonial e financeira da insolvente.
Mais alegou o Ministério Público que aqueles dois administradores nem após notificação pelo Administrador da Insolvência e pelo tribunal para o efeito forneceram informação (no âmbito do apenso de apreensão de bens) quanto à real existência, localização e destino dos bens/valores que não foram apreendidos para a massa, mas que constam da contabilidade da sociedade.
Concluiu pela existência de prova suficiente de que os mesmos administradores violaram o dever de colaboração para com o Administrador da Insolvência e o tribunal, assim preenchendo a presunção de insolvência culposa prevista no art.º 186º, nº 2, al. i), do CIRE[1], o que conduz necessariamente à qualificação da insolência como culposa.
Por falta de cumprimento de exigências legais, foi ordenado o desentranhamento da oposição apresentada pelo Requerido C….
A oposição do Requerido D… também ficou em falta.
Por despacho de 15.12.2020, determinou-se a notificação das partes para se pronunciarem quanto à possibilidade de imediata prolação de decisão de mérito e quanto a eventuais consequências para os Requeridos caso a presente insolvência devesse ser declarada culposa.
Os Requeridos e o Ministério Público nada disseram.
O Administrador da insolvência declarou nada ter a opor à prolação de sentença, reafirmando o que nesta matéria expôs no seu parecer.
Foi depois proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Face ao exposto, decide-se:
1. Qualificar a insolvência da sociedade “B…, SA” como culposa;
2. Declarar afetados pela qualificação da insolvência como culposa os requeridos Administradores da insolvente C… e D….
3. Decretar a inibição de C… e D… para administrarem patrimónios de terceiros pelo período de quatro anos.
4. Declarar C… e D… inibidos para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de quatro anos.
5. Determinar a perda de quaisquer créditos dos requeridos C… e D… sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
6. Condenar os requeridos C… e D… a indemnizarem os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, após o término da liquidação do ativo da insolvente, até às forças do respetivo património, valor a apurar em liquidação de sentença.
Custas pelos requeridos.
Fixo o valor da presente ação em €30.000,01.
(…).»

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Inconformado, dela apelou o Requerido D…, tendo produzido alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
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Pretende o recorrente a revogação a sentença e a sua substituição por outra que conclua pela sua absolvição.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Seguindo uma ordem de precedência lógica, estão para apreciar e decidir as seguintes questões, suscitadas na apelação:
1. Negação da prorrogação do prazo de oposição;
2. Nulidade da sentença;
3. Erro de julgamento em matéria de facto;
4. Erro de julgamento em matéria de Direito.
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III.
São os seguintes os factos considerados provados na 1ª instância:
A) Nos presentes autos atendendo à não oposição dos requeridos e aos documentos juntos ao processo com interesse para a decisão resultaram provados os seguintes factos:
1. A “B…, SA.” intentou, em setembro de 2015, um processo especial de revitalização que correu termos no Juízo do Comércio de Vila Nova Gaia – Juiz 3, sob o n.º 8318/15.1T8VNG.
2. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14 de setembro de 2017 foi recusada a homologação do plano de revitalização apresentado no processo mencionado em 1.
3. Em 17 de maio de 2018 o Sr. Administrador Judicial Provisório apresentou, no referido processo, parecer de insolvência da “B…, SA”.
4. Foi, então, extraída certidão desse parecer e remetido o mesmo à distribuição como processo de insolvência, dando origem ao processo de insolvência n.º 5253/18.5T8VNG a que os presentes autos estão apensos.
5. No processo de insolvência foi, então, determinada a citação da “B…, SA.” para, querendo, deduzir oposição, não tendo a mesma deduzido qualquer contestação.
6. Por sentença proferida em 10 de agosto de 2018 foi a “B…, SA.” declarada insolvente.
7. Em 17/9/2018 o Sr. administrador da insolvência nomeado no processo de insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155.º do C.I.R.E., ao qual juntou o mapa de depreciações e balancete sintético de março de 2018 respeitante à insolvente que lhe fora facultado pelo contabilista certificado da insolvente.
8. De acordo com os elementos contabilísticos da insolvente, designadamente IES de 2015, 2016 e 2017 e Balancete sintético a 31/03/2018, esta, em 31/12/2017, detinha em armazém mercadorias/inventários no valor de €392.080,58, valor que permanece inalterado no balancete de 31/03/2018.
9. De Ativos Fixos Tangíveis a sociedade tinha registados: Equipamento Básico no valor de 940,63 €, Equipamento Administrativo no valor de 1.227,17 €, outros ativos tangíveis no valor de 73.581,61 €, num total de 2.560.477,17 €.
10. Sobre a insolvente foram reconhecidos créditos no valor de 5.330.994,21 € por sentença proferida no apenso de reclamação de créditos, já transitada em julgado.
11. As últimas contas da sociedade depositadas na Conservatória do Registo Comercial, dizem respeito ao ano de 2017.
12. O capital próprio da sociedade apresenta valores negativos em 31/12/2017 no valor de €1.042.184,17.
13. A insolvente apresentou resultados positivos no ano de 2015 e a partir daí os resultados foram sempre negativos.
14. A contabilidade da insolvente foi realizada, até ao ano de 2016, pelo gabinete “F…, Lda.”, sendo que, desde agosto de 2015 e por decisão da administração da insolvente, a contabilidade e toda a documentação inerente foi transferida para as instalações da insolvente, ficando o gabinete de contabilidade apenas responsável pelo envio das declarações únicas.
15. Em 2016 a “F…, Lda.” deixou de prestar serviços de contabilidade à insolvente, passando a contabilidade a ser organizada por outro contabilista.
16. O Sr. administrador da insolvência remeteu aos requeridos várias comunicações solicitando-lhes informações sobre o ativo da insolvente.
17. Entre outras, enviou, em 20/1/2019, aos requeridos um email solicitando-lhes que lhe fossem sejam entregues os documentos que titulam o ativo intitulado "Concessões – G…" no valor de €32.500,00.
18. Em 19/2/2019 o requerido C… remeteu ao Sr. administrador da insolvência um email dizendo que “o material existente do inventário algum se encontra no armazém de Vila Real (lote …) e outra parte em Mondim de Basto no lote .. da zona Industrial ….”
19. Em 20/2/2019 o Sr. administrador da insolvência remeteu ao requerido C… um email solicitando, que, no prazo de 5 dias, o esclarecesse sobre o concreto local de cada bem identificado no Inventário enviado aos autos e esclarecer onde se encontram em concreto os bens, nomeadamente quais, em concreto, é que se encontram no armazém de Vila Real (lote …) e outra parte em Mondim de Basto no lote .. da zona Industrial … e o destino dado aos que não se encontrem num lado ou no outro. Solicitou também a entrega imediata dos documentos que titulam o ativo intitulado "Concessões – G…" no valor de €32.500,00
20. O requerido não prestou mais nenhuma informação ao Sr. administrador da insolvência sobre a localização de bens da insolvente.
21. O Sr. administrador da insolvência apreendeu para a massa:
- Um armazém para garrafas ou outros arrumos e logradouro, a confrontar de norte – H…, sul – caminho, nascente - estrada municipal poente – H…, situado em: … - …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar, Freguesia …, sob o n.º 1036/20010202 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1259 (Teve origem no artigo 1331), freguesia …, com o valor patrimonial atual (CIMI) no valor de €10.194,33.
- três veículos automóveis, sendo que dois deles estavam avariados e em mau estado de conservação e o outro em estado de sucata.
- um lote de sucata com 1.600 ks, um lote de 150 paletes, em mau estado de conservação, três computadores obsoletos, em estado de sucata e duas cadeiras de escritório com rodas de cor preta, assim como o montante de €952,48 que foi recebido no âmbito da execução n.º 515/14.3T8CHV que corre termos no Juízo de Execução de Chaves do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real.
22. Os requeridos nunca forneceram ao Sr. administrador da insolvência todos os documentos de suporte da existência, proveniência e destino da totalidade do saldo de caixa da insolvente, no valor de 301.633,41 €, transferido para a conta 27.
23. Nem forneceram informações completas quanto à real existência, localização e destino dos bens/valores que não foram apreendidos para a massa, mas que constam da contabilidade da sociedade insolvente - concretamente, no inventário de bens e mapa de depreciações relativo ao ano de 2018, que foi entregue ao A.I. pelo Administrador da insolvente e mostra-se junto com o relatório a que alude o art. 155º, do CIRE - designadamente do ativo da licença concessão G… - I…, no valor de 32.500,00 €.
24. As dívidas à Segurança Social, no montante global de € 745.433,78 dizem respeito a contribuições e quotizações desde 2013/14.
25 A insolvente tem dívidas à Autoridade Tributária desde junho de 2015.
26. C… e D… eram administradores da insolvente desde 15/11/2013.
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IV.
Apreciação das questões do recurso
1. A negação da prorrogação do prazo de oposição
O apelante defende que houve um equívoco da Segurança Social relativamente à informação prestada ao tribunal quanto ao prazo do seu pedido de apoio judiciário e que conduziu à negação da prorrogação do prazo de oposição que requereu, apesar do próprio recorrente ter explicitado a situação.
O Requerido situa a questão ao nível de um “erro na valoração da prova no tocante à informação encaminhada pela Segurança Social aos autos aquando do pedido de apoio judiciário” que o “impossibilitou de apresentar defesa (oposição)” que “levou à decisão proferida da sentença da afetação do recorrente na insolvência culposa”.
Vejamos.
Por requerimento de 4.12.2020, na sequência da sua citação para se opor ao incidente de qualificação da insolvência, o aqui apelante apresentou um pedido de prorrogação do prazo legal de 15 dias previsto para o efeito no art.º 188º, nº 6, do CIRE.
O tribunal solicitou à Segurança Social que informasse sobre a data em que o Requerido D… apresentou o pedido de apoio judiciário naqueles serviços e, obtida essa comunicação, proferiu despacho fundamentado com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Pelo exposto, considerando que o requerido D… requereu apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono já depois de decorrido o prazo para deduzir oposição e que o pedido de prorrogação do prazo para deduzir oposição foi apresentado já depois de decorrido tal prazo, não existe qualquer fundamento para deferir o requerido.
Pelo exposto, indefere-se o requerido em 4/12/2020.»
Poderá a Relação conhecer desta questão?
O pedido de prorrogação de prazo de oposição foi formulado ao abrigo do art.º 569º, nº 5, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º, nº 1, do CIRE.
Dispõe aquele primeiro normativo que “quando o juiz considere que ocorre motivo ponderoso que impeça ou dificulte anormalmente ao réu ou ao seu mandatário judicial a organização da defesa, pode, a requerimento deste e sem prévia audição da parte contrária, prorrogar o prazo da contestação, até ao limite máximo de 30 dias”.
O legislador colocou nas mãos do juiz um mecanismo processual pelo qual reconhece, ou não, a dificuldade que, nalgum caso, o réu, justificadamente, tem em organizar a sua defesa no prazo normal da contestação/oposição. Pode então o juiz, a pedido daquele, conceder uma prorrogação daquele prazo por um período determinado de tempo, nunca superior a 30 dias.
Compreende-se bem a posição do legislador. Dispondo o autor quase sempre de um largo período de tempo para ponderar a decisão de preparar e instaurar a ação, mesmo em casos de caducidade do direito, designadamente para elaborar o exigente articulado inicial, e recolher e reunir os meios de prova que deve indicar com esse articulado, o mesmo não acontece com o réu que dispõe de prazos relativamente curtos e perentórios para apresentar a sua defesa, no caso, de 15 dias (art.º 188º, nº 6 do CIRE e art.º 139º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil).
Aquela faculdade está, no entanto, reservada para situações em que exista um motivo ponderoso, muito significativo, que impeça ou dificulte anormalmente ao réu ou ao seu mandatário a organização da sua defesa. São situações excecionais de evidência de necessidade de maior prazo do que o prazo normal previsto na lei para apresentação da contestação.
Se o objetivo da norma é permitir o uso excecional de uma prorrogação que nunca poderá ser superior a 30 dias sobre o prazo normal para contestar, não se compreenderia que, por “portas travessas”, o réu, pretenso beneficiário, viesse a conseguir uma prorrogação superior a 30 dias ou mesmo a anulação do julgamento, seja porque o juiz demorou mais do que a própria prorrogação admissível a decidir o seu pedido, seja porque não proferiu a decisão correta e adequada, rejeitando indevidamente o pedido do demandado. Seria uma causa de insegurança e de grande perturbação ou instabilidade processual que o legislador quis, em primeira linha e a todo o custo, evitar.
Aquele resultado conduziria à negação dos princípios da economia e da celeridade processual e até da igualdade externa da posição do réu, quando comparado com a generalidade dos outros réus, noutras ações judiciais, que cumprem, tantas vezes com dificuldade, os prazos normais da contestação. Seria --- podemos dizê-lo --- a negação do próprio prazo e da sua natureza perentória e preclusiva, uma permissão enviesada e contrária à própria natureza de rigor e segurança inerentes às leis do processo.
Não surpreende, por isso, a norma do nº 6 do citado art.º 569º quando refere que o juiz deve decidir o requerimento de prorrogação do prazo em vinte quatro horas e a secretaria notifica imediatamente o requerente dessa decisão. E não surpreende sobretudo quando ali se estabelece também que a apresentação do requerimento de prorrogação não suspende o prazo em curso. Ou seja, o requerente há de sempre contar que, apesar do requerimento de prorrogação, o prazo normal da contestação continua a decorrer e que não deve deixar de preparar a sua defesa nem confiar que o seu pedido vai ser deferido; pode não lhe ser reconhecido e, nesse caso, terá que fazer a defesa possível dentro do prazo normal da contestação.
Foi esta a apertada via encontrada pelo legislador do processo para, em harmonia de interesses, permitir a prorrogação excecional do prazo da contestação sem prejudicar a marcha do processo para a resolução do litígio e a realização, tão célere quanto possível, da justiça em cada caso concreto.
Por isso também, o juiz decide a questão rapidamente e sem possibilidade de recurso nem audição do autor (citado nº 6); impossibilidade apelativa que não se restringe ao exercício do poder discricionário que a norma do nº 5 contém, de prorrogar ou não prorrogar ou de prorrogar por um período de tempo e não por outro, o prazo da contestação, mas que, excecionalmente, se estende também aos fundamentos da própria decisão. Só assim se controla e previne a desordem e a insegurança que resultaria da possibilidade de recurso no caso em que o juiz não avalia corretamente os pressupostos de facto ou de Direito da decisão; só assim se compreende que o prazo normal da contestação não se suspenda e, como tal, o requerente esteja obrigado a deduzir defesa nesse prazo da contestação sempre que não obtenha decisão favorável de prorrogação ou não seja notificado dessa decisão dentro desse mesmo prazo.
Em caso algum um pedido de prorrogação de prazo servirá um propósito de alívio injustificado dos ónus processuais ligados ao exercício da defesa.
Seria uma incoerência jurídica permitir o recurso a final da decisão negatória da prorrogação de prazo da contestação, com qualquer fundamento, quando a decisão de rejeição daquele articulado admite recurso autónomo, com subida imediata e em separado ainda que com efeito meramente devolutivo (art.ºs 644º, nº 2, al. d), 645º, nº 2 e 647º, nº 1, do Código de Processo Civil). É manifesta a preocupação do legislador com a celeridade e a utilidade processual.
Apesar do direito à prorrogação, o risco corre sempre pelo réu, que poderá ser tanto mais reduzido quanto mais próximo do início do prazo da contestação o seu requerimento de prorrogação de prazo for apresentado. Tanto assim que lhe será lícito requerer a reforma da decisão nos termos do art.º 616º, nº 2, do Código de Processo Civil, por dela não caber recurso.
A propósito, referem A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Filipe Pires de Sousa[3] que “como é evidente, o pedido de prorrogação deverá ser formulado antes de terminar o prazo inicialmente fixado e, é claro, com antecedência que previna a eventualidade de vir a ser rejeitado. Aliás, para além de o prazo em curso não se suspender por via da apresentação do requerimento, a decisão do juiz, seja qual for o seu sentido, não admite recurso”.
Aqui chegados, a nossa solução para a questão só pode ser a improcedência.
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2. Nulidade da decisão por condenação ultra vel petitum
Alega o recorrente que, nas conclusões do Administrador da Insolvência, não foi pedida a sua afetação no incidente de qualificação, mas apenas a do administrador C…. Com o tal, não podia o tribunal considerar afetado e condenar o apelante pela qualificação da insolvência. Daí a arguição da nulidade da sentença, nos termos do art.º 609º, nº 1 e 615º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil.
O incidente de qualificação a insolvência pode iniciar-se por um requerimento do Administrador da Insolvência, mas também por requerimento de qualquer outro interessado (art.º 188º, nº 1, do CIRE, sendo interessado qualquer pessoa que tenha legitimidade para requerer a declaração de insolvência, à luz do art.ºs 18º e 20º do CIRE). É, em rigor, um requerimento inicial pelo qual o interessado alega, não propriamente os fundamentos de facto indispensáveis à qualificação e à identificação das pessoas que devam ser consideradas afetadas por essa qualificação (e não outras), terminando por um rigoroso pedido condenatório, como é próprio de um puro processo de partes, mas um requerimento/parecer pelo qual o requerente (ou os requerentes, porque podem ser vários os interessados) alega de modo fundamentado, por escrito, o que tem por conveniente para efeitos da qualificação da insolvência como culposa, identificando as pessoas que, em sua opinião, devem ser afetadas pelo incidente.
Não é exigível que o requerente teça ali uma exposição completa sobre o objeto do incidente nem que termine com um pedido em função do qual e dentro de cujos limites se haja de situar a decisão a sentenciar. O que se utiliza não é um articulado em sentido próprio (art.º 147º, nº 1, do Código de Processo Civil), mas um requerimento fundamentado (com posterior autuação por apenso) que contenha os elementos necessários a convencer o tribunal da oportunidade e da viabilidade da pretensão qualificadora da insolvência e da respetiva afetação pessoal dos responsáveis, declarando ou não declarando aberto o incidente.
O art.º 11º do CIRE (princípio do inquisitório) é cristalino quando determina que “no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência[4], a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”.
Não sendo o Administrador da Insolvência o requerente, compete-lhe emitir parecer sobre a qualificação da insolvência, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas nela qualificação da insolvência como culposa, no que não está adstrito à posição eventualmente assumida pelo interessado requerente, podendo segui-lo ou não, indicando, ou não, outras pessoas que devam ser afetadas pela qualificação. Certo é que, quer seja no requerimento inicial, quer no seu eventual parecer posterior (quando não é o requerente), deve esforçar-se por fazer uma fundamentação completa e apoiada em meios probatórios.
Ao Ministério Público assiste o direito de se pronunciar sobre os pareceres e as alegações que tiverem sido emitias no processo, não estando a sua posição submetida a qualquer delimitação das posições anteriores. Pode, nomeadamente, em face dos elementos disponíveis no processo, identificar outras pessoas como sendo responsáveis para afetação.
O tribunal não está vinculado pelo requerimento inicial ou pelos pareceres, antes deve atender a todos os factos assentes no processo, ainda que não tenham sido alegados pelos interessados ou mencionados ou atendidos nos pareceres do administrador ou do Ministério Público.[5]
Não identificando o Administrador da Insolvência e o Ministério Público as mesmas pessoas para afetação, devem ser citadas todas elas.[6] O tribunal não está especialmente vinculado a um ou a outro dos pareceres e deverá considerar as pessoas identificadas num e noutro requerimentos, ordenando a sua citação e viabilizando assim a oportunidade de exercerem a sua defesa.
Assim aconteceu.
Colhe-se o seguinte excerto do parecer do Ministério Público, junto a fl.s 895 do histórico eletrónico, datado de 29.5.2020:
«(…)
- Os Administradores da insolvente C… e D…, pese embora terem sido para tal notificados, quer pelo A.I., quer pelo Tribunal (no âmbito do apenso de apreensão de bens) não forneceram qualquer informação quanto à real existência, localização e destino dos bens/valores que não foram apreendidos para a massa, mas que constam da contabilidade da sociedade insolvente - concretamente, no inventário de bens e mapa de depreciações relativo ao ano de 2018, que foi entregue ao A.I. pelo Administrador da insolvente e mostra-se junto com o relatório a que alude o art. 155º, do CIRE - designadamente do ativo da licença concessão G… - I…, no valor de 32.500,00 €, o que inviabilizou o apuramento da real existência desses bens/direitos e, bem assim, as respetivas e eventuais apreensões para a massa insolvente, com o inerente prejuízo para os credores.
Resulta, assim, suficientemente comprovada a violação reiterada, por parte dos Administradores da insolvente, do dever de colaboração para com o A.I. e o tribunal, o que preenche a presunção de insolvência culposa prevista no art. 186º, nº 2, i), do CIRE, o que conduz inexoravelmente à qualificação da insolência como culposa.
Somos, assim, pela qualificação da presente insolvência como culposa, devendo ser afetados por tal qualificação os Administradores da insolvente C… e D….»
Pelo menos esta pronúncia do Ministério Público, efetuada ao abrigo do nº 4 do art.º 188º do CIRE, aponta para afetação do apelante e, em conjunto com o requerimento inicial do Administrador da Insolvência, para a qualificação da insolvência como culposa. O recorrente foi regularmente visado no processo, onde também foi chamado pelo ato de citação.
A sentença proferida condenou o apelante D… por ter sido identificado para afetação e ter considerado provados os fundamentos de factos justificativos da sua afetação. Não é um terceiro relativamente ao incidente, mas uma parte com legitimidade no processo, visada e interessada na sua solução.
De resto, nunca poderia ser declarada a invocada nulidade da sentença ao abrigo do art.º 615º nº 2, al. e), do Código de Processo Civil. O que ali se prevê tem a ver com o objeto/pedido da ação e com o valor do pedido. O tribunal não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
No essencial, importa reter que, por um lado, através do pedido, as partes delimitam o thema decidendum da ação, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se à situação real conviria ou não providência diversa; por outro lado, a sentença não deve ultrapassar o limite do pedido, não podendo o juiz, como se disse, condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Sendo manifesto que não se trata de uma condenação em quantidade superior à que se pediu, também se nos afigura que não há condenação em objeto diverso do pedido, já que não há qualquer modificação qualitativa quanto ao efeito que se pretende ver reconhecido.
A referência há de ocorrer sempre em relação ao objeto do pedido para que possa funcionar aquela regra de proibição condenatória ultra vel petitum. Alberto dos Reis dá exemplos[7]: “Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega duma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo).
Ora, o que está aqui em causa é um sujeito do processo, não é o pedido nem o objeto do processo.
Improcede a questão da nulidade suscitada.
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3. O erro de julgamento em matéria de facto
O apelante não foi rigoroso nas conclusões da apelação quanto à alteração pretendida na matéria de facto dada como provada, mas deixou a ideia segura de que deve ser reconhecido e provado que quem ocupava e exercia a função de administrador da Sociedade Insolvente era o Sr. C…, com exclusão do recorrente. É o que se extai com a segurança necessária das conclusões II. c) e II.1.II-4, 3º§, e também do corpo das alegações recursivas.
Para tal, indicou um conjunto de elementos probatórios documentais alegadamente constantes dos processos apensos ao processo principal e identificados nas conclusões II. e), f), g), h), i), j), k), l) e m). Descreveu assim tais documentos:
«e) O processo de Execução instaurado pelas Finanças constituindo a Sociedade Insolvente, sr. C… e o recorrente como arguidos, tendo o recorrente absolvido, por ter ficado provado que o C… era o único com poder de administrativo e financeiro da sociedade insolvente;
f) Da mesma forma, o recorrente teve os autos do inquérito do processo de abuso de confiança instaurado pela Segurança Social nos quais a Sociedade Insolvente, o C… e Recorrente foram constituídos arguidos, tendo novamente a absolvição do recorrente pelo MP sob a alegação de que ficou provado que o recorrente não tinha poder de administração da sociedade insolvente;
g) As provas documentais assinadas pelo C… como administrador da insolvente:
h) O Acordo de Alteração ao Contrato de Locação Financeira Imobiliário - Leasing do Armazém de Vila Real da B… - J… acordo este assinado pelo C…;
i) Recibos de vencimentos de todos os funcionários da empresa, sobretudo do Recorrente, que recebia sempre o menor dos salários (no ano de 2017 era de 640,00 euros);
j) Acordo de Cessação de Contrato de Distribuição – K…, assinado pelo C…;
k) Acordo de Cessação de Contrato de Distribuição – L…, assinado pelo C…;
l) Aditamento de Linha de Crédito J1…-J…, assinado pelo C…;
m) Contrato de prestação de serviços entre a Insolvente e M…, S.A. (M1…), assinado pelo C….
n) E não obstante a sua falta de oportunidade processual do recorrente – oposição- peca por notória e evidente erro na apreciação das provas e dos factos por impedimento causado por informação equivocada da Segurança social. Sendo certo, que o indeferimento da devolução do prazo para deduzir oposição, embora ser este prazo peremptório, houve um equívoco por parte da Segurança Social que informou o prazo do pedido pelo recorrente erroneamente aos autos, mas que o recorrente explicitou o equívoco ao juízo contudo, contudo, não mereceu relevo.».
Invoca também, na motivação das alegações o depoimento das testemunhas N… (inspetor tributário) e E… (contabilista certificado e responsável técnico que prestou serviços par a insolvente, através da sociedade F…, Lda.).
A motivação das alegações do recorrente[8] contem repetidamente expressa a mesma ideia, de que C… era a única pessoa que tomava todas as decisões respeitantes ao funcionamento da sociedade, procedendo designadamente à venda de vinhos e derivados, outras bebidas alcoólicas e tabaco e, bem assim ao pagamento dos salários e impostos.
Do requerimento inicial de alegação do Administrador da Insolvência colhem-se várias referências expressas que deixam uma forte indiciação de que apenas o C… exercia a administração da sociedade insolvente. Dão-se exemplos:
Na sequência o signatário procedeu ao envio de diversas comunicações, nomeadamente ao Gerente e ao seu Ilustre Mandatário e ainda ao Contabilista Certificado, no momento, em funções.
(…)
- Considerando o teor da resposta supra, o signatário solicitou quer ao actual contabilista certificado, quer ao Administrador da Insolvente (Sr. C…) o seguinte: “(…)
(…)
- O Administrador da Insolvente (Sr. C…) veio através do Ilustre Mandatário solicitar mais prazo para reunir documentação. Tendo-lhe sido concedido;
(…)
- No dia 31 de Janeiro de 2019, recebemos uma comunicação do Advogado do Administrador da Insolvente (Sr. C…) reproduzindo os esclarecimentos:
(…)
Acresce ainda que, não era da responsabilidade do Presidente do CA o tratamento e envio de documentos para a contabilidade, essa função competia ao outro elemento do CA, senhor D…[9]
(…)
- Face às afirmações ali efectuadas foram novamente pedidos esclarecimentos ao antigo contabilista Certificado (Dr. E…) e foram solicitados novos esclarecimentos ao Administrador da insolvente – face também à factualidade ali alegada e datas -, através do envio de comunicação ao seu Ilustre Mandatário;
(…)
- Na sequência da notificação do Tribunal obtiveram-se as seguintes respostas:
Em 20 de Março de 2019, através de requerimento junto aos autos, veio o Ilustre Mandatário da insolventes esclarecer o seguinte:
“(…) 1. Após contacto com o Administrador da Insolvente (Sr. C…),(…)
(…)
Em síntese:
O Administrador de insolvência aquando da elaboração do Relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE analisou os documentos contabilísticos da insolvente, mas todavia os documentos de suporte solicitados e acima melhor identificados não foram entregues ao signatário pelo Administrador da Insolvente o que indicia suficientemente a violação do dever de colaboração a que alude o artigo 83.º do CIRE.
(…)
Com efeito, não obstante ter notificado o administrador da insolvente por diversas vezes para esclarecer e indicar onde se encontravam os bens a verdade é que o mesmo o mesmo não respondeu à maior parte das mesmas e a resposta dada nas restantes poderá ser interpretada como vaga e inconsistente.
Para ilustrar o que acabou de afirmar-se juntamos cópia das diversas comunicações trocadas e das respostas recebidas que se juntam como Documento n.º 1 a Documento n.º 101.
Quanto à licença/concessão de G…, o signatário procedeu ao envio de comunicações ao administrador da insolvente e a várias entidades para tentar localizar e apreender o activo registado na contabilidade da insolvente intitulado "concessões G… - I…" Vide cópia das comunicações e respostas que se juntam como Documento n.º 11 a Documento n.º 18).
Tal como resulta das comunicações acabadas de juntar, não foi possível proceder à apreensão do activo em causa.
Por outro lado, nenhuma explicação nos foi dada pelo Administrador da insolvente o que indicia suficientemente, a nosso ver, para além do mais, a violação do dever de colaboração a que alude o artigo 83.º do CIRE.
Tal como decorre do teor das comunicações enviadas o Administrador da Insolvente foi notificado com a expressa advertência ao Dever e Colaboração a que alude o artigo 83.º do CIRE.
(…)
ENQUADRAMENTO FACTUAL ADICIONAL

(…)
6. De acordo com o relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE e respectivos documentos, o Administrador da Insolvência procedeu ao envio de comunicação, através de correio postal registado, ao Administrador da Insolvente solicitando o envio dos elementos/documentos/informações e de onde decorre que foi feita expressa advertência à necessidade de cumprimento dos deveres previsto no artigo 83.º do CIRE e da consequência dessa falta, informações que foram sendo prestadas a “conta gotas” e a informação prestada acabou por se manifestar insuficiente quer para a liquidação quer para a apreensão do activo pertencente à insolvente;
7. (…) a intervenção daquele contabilista certificado não exonera o administrador da insolvente do cumprimento dos Deveres especificamente consignados no artigo 83.º do CIRE;
8- (…) salvo melhor opinião, não obstante nos terem sido dadas algumas pontuais respostas (pelo administrador da insolvente, ou pelo Ilustre Mandatário da insolvente) às comunicações que íamos enviando (…)existem indícios suficientes para concluir que o administrador da insolvente incumpriu o Dever de Colaboração especificamente consignado no artigo 83.º do CIRE;
(…)
D. CONCLUSÃO E PARECER
(…)
48. Os administradores da insolvente (de facto e de direito) não poderiam desconhecer a situação de incumprimento generalizado, por mais de 6 meses, das obrigações do tipo previsto no ponto i) e ii) da alínea g) do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
(…)
50. Ao praticar os factos consubstanciados supra, não ignoravam os administradores da insolvente (de facto e de direito) que daí resultava para os credores a impossibilidade de obterem a integral satisfação dos seus créditos ou, pelo menos o agravamento substancial dessa possibilidade;
(…)
52. Desconhece-se o destino dado a boa parte do activo da insolvente e relativamente a este tema temos que assinalar que o administrador da insolvente foi, por diversas vezes notificado para, ao abrigo do dever de colaboração, prestar as informações sobre a localização do activo e o destino dado ao mesmo tendo optado por não responder pura e simplesmente ao peticionado pelo Administrador da Insolvência ou respondendo selectivamente a alguns temas sempre dando respostas vagas e pouco consistentes. Não nos esqueçamos que sendo administrador da insolvente o mesmo não pode alegar desconhecer o que aconteceu ao activo da insolvente entendendo-se que com a apresentação a PER ou à insolvência não exonera o gerente/administrador da devedora/insolvente da obrigação de cumprir o dever de boa gestão que por sua vez se consubstancia nos deveres de cuidado, lealdade e dever de informação o que – face às circunstâncias do caso – parece não ter sido cumprido.
(…)
54. Parece resultar ainda, considerando o que supra se explanou, que a actuação dos administradores da insolvente (de facto e de direito) agravaram os prejuízos patrimoniais dos credores, frustrando qualquer hipótese de viabilização da sua actividade.
55. Tendo em conta o supra exposto, entende-se dever qualificar-se a presente insolvência culposa por se considerarem verificadas as presunções a que aludem o n.º 1, as alíneas a) a i) do n.º 2 e as alíneas a) e b) do n.º3 do artigo 186º do CIRE, atendendo ao que supra se disse, entende-se dever qualificar-se a presente insolvência culposa pela violação do dever de apresentação à insolvência estabelecido no nº 1 do artigo 18º e nº 3 al. a) do artigo 186º ambos do CIRE. Agiram os gerentes da insolvente (de facto e de direito) com culpa grave.
56. Pela qualificação de insolvência deverão ser afectados:
C…, contribuinte fiscal n.º ………

DEVE, POIS, QUALIFICAR-SE ESTA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA, COM CULPA GRAVE DOS ADMINISTRADORES, DE DIREITO OU DE FACTO, DA DEVEDORA, ORA INSOLVENTE.”.
Seguiu-se o requerimento probatório, do qual consta a indicação de depoimentos de quatro testemunhas, a produzir.
Os e.mails juntos com o requerimento inicial parecem confirmar que, pelo menos, todos os contactos estabelecidos por aquele meio entre o Administrador da Insolvência e a administração da sociedade aconteceram com C… e não com o recorrente D…. São confirmativos do requerimento inicial, no sentido de que o Administrador da Insolvência via C… como o único responsável pela administração da sociedade insolvente, de tal modo que apenas identificou aquele (e não também o recorrente) como a pessoa a afetar com a proposta de qualificação culposa da insolvência. Ainda assim, num ou noutro excerto das passagens transcritas, utiliza o plural “administradores”, o que poderá corresponder, ou não, a lapso de simpatia informático devido à reutilização de textos habituais semelhantes destinados a outros processos.
Dos referidos excertos consta também uma informação de C… (presidente do CA), colhida pelo Administrador da Insolvência, de que o aqui apelante, também administrador, era o responsável pelo tratamento e envio de documentos para a contabilidade.
Não deixa de ser este um ponto a esclarecer necessariamente pelo próprio Administrador da Insolvência, pois que se indicia, ainda que de modo frágil, o exercício de responsabilidades de administração por parte do apelante D… que aquele órgão da insolvência não explicou nem considerou para efeito de afetação.
O Ministério Público, no seu parecer, revelou-se ciente de que era o administrador C… a pessoa que o Administrador da Insolvência interpelava para fornecer os documentos necessários ao apuramento da situação dos bens e valores, designadamente as existências em falta. Mas acrescentou que D… também foi interpelado pelo Administrador da Insolvência e até pelo tribunal no âmbito do apenso de apreensão de bens para o fornecimento dos elementos contabilísticos e informação sobre o destino de bens, e nada forneceu ou informou. Por isso, propôs a qualificação da insolvência como culposa e a afetação dos dois administradores da insolvente.
Pois bem; embora os documentos indicados pelo recorrente apontem para um exercício de responsabilidades apenas por C… em várias situações relevantes de gestão da empresa, indicando o mesmo sentido o que melhor se extrai do corpo do requerimento inicial do Administrador da Insolvência e das suas conclusões, os elementos probatórios recolhidos e indicados não são decisivos para proferir uma decisão segura em matéria de facto sobre o conhecimento dos atos de gestão da sociedade e a real e efetiva ação ou omissão do apelante no exercício da administração, não nos parecendo suficiente à fundamentação da afetação do apelante pela qualificação a insolvência o facto dado como provado sob o ponto 26 da sentença. Pode haver uma explicação para o facto do ponto 22, de nunca D… ter fornecido ao Administrador da Insolvência os documentos solicitados, designadamente por nunca a solicitação lhe ter sido dirigida ou, tendo-o sido, já não lhe ser exigível, em cada momento, o seu fornecimento.
Não olvidemos que a qualificação como culposa resultou exclusivamente da verificação parcial dos fundamentos da al. i) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, da falta de colaboração de administradores da sociedade para com o Administrador da Insolvência até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º daquele código. Trata-se da violação de um dever legal da administração, em que há um comportamento direto e particular do agente que não pode ser impedido de provar que não praticou o ato censurável para efeito de qualificação[10], ou sejam, que não incumpriu, de forma reiterada o dever de colaboração.
Mas, a questão em debate é apenas relativa à afetação do apelante, havendo que demonstrar que o ato censurável lhe é imputável e devendo admitir-se-lhe a possibilidade de contraprova ou mesmo da prova do contrário se a desejar fazer. Importa reter uma ideia-base relativa à prova. O ónus da demonstração dos fundamentos das presunções ou factos-índice (se assim se preferir) --- os comportamentos referidos sob o nºs 2 do art.º 186º do CIRE --- é de quem os invoca (art.º 342º, nº 1, do Código Civil). Tais fundamentos não se presumem; o que se presume é a culpa na insolvência e o nexo causal a partir da prévia demonstração dos factos-índice. Sem a prova destes, a presunção (iuris et de iure) não funciona.
O art.º 189º tem natureza marcadamente sancionatória, compreensivelmente, em ordem a prevenir a repetição de condutas prejudiciais ao mercado, seja pelo requerido, seja pela via da prevenção geral.
A aplicação ao afetado pela qualificação da insolvência como culposa das sanções previstas no art.º 189º, nº 2, do CIRE, não pode deixar de obedecer ao princípio da culpa, às regras de adequação e proporcionalidade, estando o intérprete obrigado a fazer uma leitura constitucional daquele preceito.
A decisão (final) recorrida foi proferida no saneador, apenas com base em prova constituída, prova essa que, quanto à matéria colocada em equação no recurso, se revela insuficiente a uma decisão conscienciosa e justa.
Além do largo poder inquisitório do juiz de oficiosamente investigar factos não alegados pelas partes (art.º 11º do CIRE), foram indicados meios de prova, nomeadamente testemunhal, que o tribunal não produziu; e devia tê-lo feito, por se justificar nova factualidade, pelo concreto apuramento da ação ou omissão relevante do recorrente na prática dos atos censuráveis justificativos da falta reiterada de colaboração com o Administrador da Insolvência.
Os elementos de prova atendidos na decisão não esgotam esta matéria, podendo até mostrar-se de grande importância a prova testemunhal indicada e as declarações do Administrador da Insolvência.
Assim e porque, além do mais, se trata de prova necessária e a constituir, nos termos do art.º 662º, nº 2, al. b), parte final, do Código de Processo Civil, ex vi art.º 17º, nº 1, do CIRE, há que sobrestar no reexame da prova produzida e na revisão da decisão proferida em matéria de facto, anulando o julgamento e a sentença (apenas) na parte que respeita à afetação do recorrente com a qualificação de insolvência, para que sejam produzidas as provas indicadas e outras que se justificarem nessa matéria, com ampliação da matéria de facto em conformidade.
Fica, por isso, também prejudicado o conhecimento do invocado erro de julgamento em matéria de Direito que, tanto quanto nos parece resultar das alegações de recurso, se justificaria em função da modificação da decisão recorrida em matéria de facto.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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………………………………
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto em anular a sentença na parte que respeita à afetação do apelante, D…, pela qualificação da insolvência, para ampliação da matéria de facto com produção de novas provas, devendo os autos, para o efeito, prosseguir a sua normal tramitação para audiência final, nos termos dos art.ºs 137º a 139º, ex vi art.º 188º, nº 6, e 189º do CIRE.
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Custas do recurso a cargo do recorrente por não ter havido contra-alegações e dele ter tirado proveito o apelante (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 27 de maio de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
______________
[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[2] Por transcrição.
[3] Código de Processo Civil anotado, Almedina, 2019, vol. I, pág. 638.
[4] O negrito é nosso.
[5] L. A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2009, pág. 619, citando o acórdão da Relação de Lisboa de 17.11.2007, Colectânea de Jurisprudência, T. V, pág. 104.
[6] Idem, pág. 620.
[7] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 68.
[8] Indesejavelmente longas e repetitivas.
[9] O negrito é nosso.
[10] Maria do Rosário Epifânio, Estudos do Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 121.