EXECUÇÃO
VENDA
ADJUDICAÇÃO DE IMÓVEL
PROTESTO PELA REIVINDICAÇÃO
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
Sumário

- Os artºs 840º e 841º do C.P.C. não preveem a prestação de caução como condição da adjudicação do imóvel adquirido em venda por proposta em carta fechada.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 8ª Secção cível do tribunal da relação de lisboa

Na ação executiva intentada por Caixa Y contra M. e esposa E., L. e A., em 27/11/2018, foi proferido o seguinte despacho:
“Verifica-se, agora, no que não se atentou, anteriormente, que continua pendente o recurso da decisão que indeferiu liminarmente a petição inicial que deu origem ao apenso “F”. Ora, este apenso corresponde à ação de reivindicação instaurada pelo autor do protesto de 17 de março de 2017. Consequentemente, cobram aqui aplicação as medidas cautelares previstas no artigo 840.º do CPC, ex vi artigo 841.º, do mesmo Código. Vale isto por dizer que a exequente só poderá ver-lhe adjudicado o imóvel penhorado, em relação ao qual foi feito o protesto, se prestar caução. Pelo exposto, e enquanto não for prestada caução pela exequente não será proferido despacho de adjudicação. Notifique-se.”
A exequente recorre deste despacho, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“1ª- A apresentação do termo de protesto pela reivindicação em que se fundamenta o douto despacho recorrido para negar a emissão de despacho de adjudicação à exequente, ora recorrente, do imóvel descrito sob o nº 0000, não pode constituir fundamento legal da decisão recorrida.
2º- O artigo 840º e 841º do C.P.Civil, que constituem fundamento de direito da decisão recorrida, não são aplicáveis ao caso dos autos porquanto tais disposições legais apenas são aplicáveis à venda de móveis e não de imóveis, sendo que o bem agora em causa é um imóvel.
3º-Não são aplicáveis ainda porque o protesto pela reivindicação foi lavrado em data muito posterior à data venda do imóvel em ato de venda judicial, o que obstaria sempre à aplicação do preceito ao caso em análise, mesmo que se tratasse de venda de bem móvel, o que não é o caso.
4º- A douta decisão recorrida padece pois do vício de violação de lei por erro de interpretação a aplicação dos artigos 840º e 841º do C.P. Civil;
5º- Os demais elementos do estilo certificados em certidões judiciais.
Termos em que deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que adjudique o imóvel a adquirente Caixa Y, determine o cancelamento no registo, dos ónus e encargos que incidem sobre o imóvel que caducam com a venda judicial, dispense o depósito do preço nos termos do artº 887º, nº1,do C.P. Civil, sendo a adquirente a própria exequente, bem como declare a adquirente, entidade bancária, isenta do pagamento do imposto municipal de transmissão de imóveis e do imposto de selo e ordene a emissão de certidão judicial dos referidos atos com vista ao registo da aquisição na Conservatória do Registo Predial competente.”
O interveniente A. apresentou contra-alegação, terminando com as seguintes conclusões:
“I. O aqui Reivindicante concorda integralmente com a aplicação do Direito ao caso em apreço.
II. Ao contrário do alegado pela Recorrente/Exequente andou bem o meritíssimo Juiz do tribunal a quo ao decidir que o imóvel penhorado, em relação ao qual foi feito o protesto, só poderá ser adjudicado à Recorrente/Exequente se esta prestar caução.
III. Os artigos 840º e 841º do CPC, por interpretação extensiva, aplicam-se também aos bens imóveis.
IV. O douto despacho recorrido não padece de violação de lei por “erro de interpretação e aplicação” das normas constantes dos artigos 840º e 841º do Código de Processo Civil, devendo ser confirmado.
Nestes termos nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser negado provimento ao recurso sub judice, mantendo-se na íntegra o douto Despacho recorrido, como é de inteira e sã Justiça!”
*
A factualidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a seguinte:
a) Em 14/03/2007 foi aceite a proposta por carta fechada apresentada pela exequente para aquisição do prédio misto denominado O., sito na Rua W, Freguesia de …, Concelho de …., tendo a parte urbana o n.º 25, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de …. sob a ficha n.º 000, inscrito na matriz a parte urbana sob o Artigo n.º 0000 e a parte rústica sob o Artigo 000 da Secção I, pelo valor de € 300.000.
b) Na diligência de abertura de propostas a exequente solicitou “a dispensa do depósito do preço, nos termos do artº 906º do COPC, redação antiga, correspondente ao artº 887º da redação então vigente, e por não haver créditos reconhecidos a considerar, bem como a dispensa de isenção do pagamento de IMT, nos termos do nº 1 do artº 8º do respetivo código, uma vez que a exequente é uma instituição de crédito”.
c) No ato foi proferido despacho com o seguinte teor:
“(…) considerando que a proposta apresentada pela Caixa Y excede os 70% do valor base é a mesma aceite. A fim de se apreciar o requerido pela Exequente/Proponente, proceda-se à liquidação de julgado a fim de apurar o montante da quantia exequenda acrescida de juros e a quantia devida a título de custas.
d) Por requerimento de 12/11/2008 a exequente solicitou a prolação de despacho de adjudicação do imóvel, o cancelamento de inscrições sobre o mesmo, declaração de que se encontra dispensada do depósito do preço, que está isenta do pagamento de IMT e do imposto de selo e a emissão do título de transmissão.
e) Em 16/12/2008 foi lavrada “cota” do seguinte teor:
“CÁLCULO DA QUANTIA EXEQUENDA E CUSTAS PROVÁVEIS
Quantia Exequenda....................................... 131.407,14 €
Juros de Mora ......................................... 379.693,99€
Custas Prováveis ............................ 11.052,66€
Total em dívida ........................... 522.153,79€”
f) Em 16/2/2009 foi proferido o seguinte despacho:
Atento o disposto nos artigos 455º e 887º do CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, notifique a exequente para, em 15 dias, proceder ao depósito à ordem dos presentes autos da quantia de € 11.053,00.”
g) Em 26/05/2009 a exequente juntou comprovativo do depósito do valor referido em e) efetuado em 05/03/2009.
h) Em 29/06/2009 foi proferido o seguinte despacho:
Fls. 440 e 441: Julgo regularizados os autos no que ao cumprimento do despacho de fls. 437 respeita, considerando válido o depósito efectuado quanto às custas prováveis.(…)”
i) Por requerimento de 12/01/2016 a exequente solicitou a prolação de despacho de adjudicação do imóvel e a emissão do título de transmissão a seu favor.
j) Em 21/09/2016 A. instaurou, por apenso aos autos de execução, ação de reivindicação do referido imóvel, contra M. e esposa E., L., A. e Caixa Y.
k) Em 18/03/2017 foi proferida decisão de indeferimento liminar da petição inicial da ação mencionada em i), com fundamento na incompetência material do tribunal.
l) Da decisão referida em j) foi interposto recurso, que se mostrava pendente à data da decisão recorrida.
m) Em 17/03/2017 A. declarou ser proprietário do imóvel acima identificado, tendo sido lavrado o respetivo termo de protesto pela reivindicação.  
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Assim, a única questão a decidir consiste em apurar se se verificam os requisitos da prestação de caução.
A apelante veio pugnar pela revogação da decisão recorrida por entender que não estão verificados os requisitos para que sejam aplicadas as cautelas dos artºs 840º e 841º do CPC, uma vez que o protesto lavrado nos autos não é anterior à venda do bem; o bem em causa é imóvel e aqueles preceitos apenas se aplicam a móveis. Mais concretiza que a proposta de aquisição foi expressamente aceite no mesmo ato de abertura de propostas, de 14/03/2007, pelo que estava consumada a venda, faltando apenas garantir o pagamento das custas prováveis do processo, o que foi concretizado pela exequente em 26/05/2009.
Estabelecem os artºs 840 e 841º do CPC que:
“Artigo 840º
Cautelas a observar no caso de protesto pela reivindicação
1 - Se, antes de efetuada a venda, algum terceiro tiver protestado pela reivindicação da coisa, invocando direito próprio incompatível com a transmissão, lavra-se termo de protesto; nesse caso, os bens móveis não são entregues ao comprador e o produto da venda não é levantado sem se prestar caução.
2 - Se, porém, o autor do protesto não propuser a ação dentro de 30 dias ou a ação estiver parada, por negligência sua, durante três meses, pode requerer-se a extinção das garantias destinadas a assegurar a restituição dos bens e o embolso do preço; em qualquer desses casos, o comprador, se a ação for julgada procedente, fica com o direito de retenção da coisa comprada, enquanto lhe não for restituído o preço, podendo o proprietário reavê-lo dos responsáveis, se houver de o satisfazer para obter a entrega da coisa reivindicada.
Artigo 841º
Cautelas a observar no caso de reivindicação sem protesto
O disposto no artigo anterior é aplicável, com as necessárias adaptações, ao caso de a ação ser proposta, sem protesto prévio, antes da entrega dos bens móveis ou do levantamento do produto da venda.”
O despacho recorrido exigiu a prestação de caução como condição da prolação do despacho de adjudicação, invocando o disposto no artº 840º, ex vi do artº 841º do CPC, por se encontrar pendente o recurso da decisão que indeferiu liminarmente a petição inicial que deu origem ao apenso “F”, que corresponde à ação de reivindicação instaurada pelo autor do protesto de 17 de março de 2017.
Ao invés do pugnado pela apelante os citados preceitos legais aplicam-se tanto a bens móveis como imóveis, no que ao segmento do “levantamento do produto da venda” respeita, exigindo o artº 841º do CPC, aqui aplicável, que a ação de reivindicação tenha sido intentada, ainda que sem prévio protesto, antes do levantamento do produto da venda.
“Sendo admitido o protesto, o despacho do juiz determinará que os bens que sejam móveis não serão entregues ao comprador ou adjudicatário. Por outro lado, o produto da venda de qualquer bem, imóvel ou móvel, não será levantado por credor que deva ser pago, sem que preste caução”.   [1] (sublinhado nosso)
É discutido o momento em que se efetiva a venda executiva, sendo esta constituída por uma sequência de atos.
A aceitação da proposta não conclui o ato da venda, podendo sobrevir o exercício de preferência (artº 823º), pelo que tal aceitação constitui uma espécie de contrato preliminar entre o proponente e o tribunal, que culminará com a adjudicação dos bens (artº 827º). (…)
Na jurisprudência há quem entenda que a transmissão da propriedade ocorre aquando da adjudicação com a emissão do título de transmissão (RE 6-12-18, 1866/14, RG 3-3-16, 976/09, RP 20-11-14, 810/09 e RL 27-3-14, 17748/12) e quem defenda que a venda executiva reveste a natureza de um negócio jurídico que se realiza com a aceitação de determinada proposta, ficando o efeito translativo da propriedade da coisa ou da titularidade do direito sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos a que se refere o artº 815º (RL 28-4-15, 30347/09).”   [2]
 “… parece-nos que os efeitos da venda executiva se dão com a emissão do título de transmissão, tratando-se de coisa vendida em proposta por carta fechada e em leilão eletrónico (…).” [3]
“A “data em que os bens foram adjudicados” (artº 827-1) é a do depósito do preço, ainda que o título de transmissão só seja emitido após o pagamento da sisa, que pode ter lugar posteriormente (CPC anotado, III, nº 2 da anotação ao art. 900). Só com a adjudicação termina o processo da venda (…)” [4]
Independentemente do momento em que se deve ter por efetivada a venda em processo executivo – o que apenas assumiria relevância caso fosse aplicável diretamente o disposto no artº 840º do CPC – o momento processual apto a impor a prestação de caução é a interposição daquela ação antes do levantamento do produto da venda, funcionando ainda como condição desse levantamento.
No despacho recorrido o artº 840º foi aplicado por remissão do artº 841º. Este manda aplicar, com as necessárias adaptações, o disposto naquele.
“Se a ação de reivindicação for proposta em data anterior à entrega dos bens móveis (artº 827º, nº 1) ou ao levantamento do produto da venda (artº 795º, nº 1), dando o reivindicante conhecimento de tal pendência na execução, mas sem formalizar o termo de protesto, aplica-se o disposto no artº 840º, nº 1, 2ª parte, bem como o disposto no nº 2, excetuando o segmento atinente à propositura da ação no prazo de 30 dias.”  [5]
Da conjugação dos dois preceitos resulta que as cautelas a observar, designadamente a prestação de caução, dependem do momento em que é lavrado o termo de protesto - que normalmente é efetuado antes da propositura da ação de reivindicação -, ou em que é instaurada a ação. Assim, se o protesto é lavrado antes da venda rege o disposto no artº 840º do C.P.C.. Se a ação de reivindicação é instaurada, sem protesto prévio – como é o caso, dado que o termo de protesto foi lavrado em momento posterior à propositura da ação – antes da entrega dos bens móveis ou do levantamento do produto da venda rege o disposto no artº 841º.
A interposição de ação de reivindicação não suspende os termos da execução, nem sequer da venda, refletindo-se a decisão final na execução, nos termos previstos no artº 839º, nº 1, al. d) do CPC.
“A dedução deste incidente não susta a venda executiva, mas acautela a reversibilidade da venda. Lavrado o termo de protesto, os bens móveis não são entregues ao comprador e o produto da venda não será levantado sem que o beneficiário do pagamento preste caução.” [6]
E em termos de cautela a observar apenas se condiciona à prestação de caução o levantamento do produto da venda – e não a adjudicação por aquisição em venda mediante proposta em carta fechada.
Isto é, o credor que tenha direito sobre o produto da venda só pode proceder ao seu levantamento depois de prestar caução.
Ora, in casu, o tribunal recorrido fez depender da prestação de caução o próprio despacho de adjudicação – o que não está previsto nas normas citadas.
Acresce que o tribunal recorrido, ao ter notificado a exequente para proceder ao depósito das custas prováveis, depois de efetuado o cálculo da quantia exequenda, juros e custas prováveis, e por o valor daquela, acrescida dos juros, ultrapassar o montante do preço da aquisição, deferiu a dispensa do depósito do preço, invocando o disposto nos artºs 455º e 887º do CPC, na redação vigente à data.
E a exequente procedeu ao depósito das custas prováveis em 05/03/2009 – data em que se verifica uma espécie de compensação entre a obrigação de pagamento do preço da aquisição e o crédito exequendo, na parte correspondente.
“Em vez de depositar a totalidade do preço para depois levantar todo ou parte dele, faz-se o encontro entre as duas verbas – a da dívida e a do crédito – e só deposita aquilo que excede o montante do que tem direito a receber.” [7]
Este momento equivale, na situação dos autos, ao do levantamento do produto da venda.
Assim, quando a ação de reivindicação foi proposta já se tinha verificado a compensação, pelo que não se mostra preenchido o requisito previsto no artº 841º do CPC.
Não pode, pois, manter-se o despacho recorrido.
A exequente concluiu as suas alegações de recurso pela revogação do despacho recorrido e sua substituição por despacho “que adjudique o imóvel à adquirente, determine o cancelamento no registo, dos ónus e encargos que incidem sobre o imóvel que caducam com a venda judicial, dispense o depósito do preço nos termos do artº 887º, nº1,do C.P. Civil, sendo a adquirente a própria exequente, bem como declare a adquirente, entidade bancária, isenta do pagamento do imposto municipal de transmissão de imóveis e do imposto de selo e ordene a emissão de certidão judicial dos referidos atos com vista ao registo da aquisição na Conservatória do Registo Predial competente.”
Todavia, uma vez que o presente apenso de recurso não contém os elementos necessários que permitam a este Tribunal conhecer dos respetivos requisitos, caberá ao tribunal de 1ª instância pronunciar-se sobre o requerido. [8]
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, devendo o tribunal de 1ª instância proferir despacho de adjudicação do imóvel, se a tal nada mais obstar.
Custas do recurso a cargo do interveniente.

Lisboa, 9 de junho de 2021
Teresa Sandiães
Ferreira de Almeida
António Valente
_______________________________________________________
[1] Rui Pinto, A Ação Executiva, pág. 775
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, C.P.C. Anotado, vol. II, pág.243 e 247
[3] Rui Pinto, ob. citada, pág. 913
[4] Lebre de Freiras, A Ação Executiva à Luz do CPC de 2013, pág. 381
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. citada, pág.262
[6] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. citada, pág.261. No mesmo sentido, Rui Pinto, ob. citada, pág. 775
[7] Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. II, pág. 392
[8] O processo de execução iniciou-se em data anterior a 2007, constando verbete extraído em 18/01/1996, integra os apensos A a H, designadamente de reclamação de créditos, embargos de executado, embargos de terceiro, ação de reivindicação, não se encontrando os respetivos atos totalmente acessíveis no sistema citius.