ACÇÃO DE DESPEJO
FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS
INCIDENTE DE DESPEJO IMEDIATO
MEIOS DE OPOSIÇÃO AO DESPEJO IMEDIATO
Sumário

I - Na actual redacção do nº 5, do artigo 14º, do NRAU, a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato.
II - Neste incidente, o inquilino pode opor outros meios de defesa para além da prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta.

Texto Integral

Proc. nº 1344/20.0T8VRL-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
Nos presentes autos supra epigrafados foi proferida a seguinte decisão:
A Lei 4-B/2021 de 01.02.2021 que revogou o art. 6º-A da Lei n. 1-/2020, de 19 de março, aditou a esta lei o artigo 6º B, que dispõe expressamente no seu n. 5, alínea d) que a suspensão dos prazos processuais não obsta a que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.
É o que sucede precisamente no presente incidente, pois entende o tribunal, pelas razões que a seguir se irão enumerar que não será necessário realizar quaisquer outras diligências, pelo que se passa a proferir a seguinte:

=DECISÃO=
Vieram os Autores, B… e C…, requerer o despejo imediato nos termos do disposto no art. 14º, n. 5 do NRAU, alegando, para o efeito, que a Ré, D…, desde que a ação foi proposta, não pagou as rendas, nem as depositou.
A Ré, notificada, veio defender que em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, deverá apreciar-se a questão suscitada na contestação, relativa à falta de condições de habitabilidade, que compromete seriamente o uso e fruição do locado.
***
Inexistem questões prévias ou exceções de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do incidente.
Os autos contêm já todos os elementos para uma decisão conscienciosa.
Cumpre apreciar e decidir:
No caso em apreço, a ação deu entrada em juízo em 11.09.2020, sendo invocado como fundamento para a resolução do contrato de arrendamento (celebrado em 27 de abril de 2020) a falta de pagamento de rendas a partir do mês de junho de 2020 (a Ré pagou apenas uma única renda) desde a que se venceu em maio de 2020, sem que se mostrem depositadas as rendas vencidas desde a instauração do processo.
Na contestação a Ré, alega, por um lado que sempre pagou as rendas devidas e, por outro, que o arrendado está inabitável e, por esse motivo tem direito de suspender o pagamento das rendas.
A questão que tem sido colocada ao nível da doutrina e da jurisprudência - e que nos presentes autos se coloca de novo - é a de saber se é legalmente viável decretar o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência de ação de despejo/procedimento especial de despejo, quando ainda não se decidiu se o locatário tinha ou não a obrigação de pagar as rendas peticionadas, tendo por base o incumprimento contratual que estes imputam aos autores.
A questão não tem merecido uma resposta unívoca na doutrina e na jurisprudência. Para uma corrente, o despejo imediato não deve ser decretado (cfr. J. ARAGÃO SEIA, op. cit.. pág. 298-299, AC RG de 29.10.2015, relator JOÃO DIOGO DOMINGUES e AC RL de 12.02.2015, CARLOS MARINHO, disponíveis in www.dgsi.pt.).
Para uma outra corrente, nada obsta ao despejo imediato (cfr. MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 64, RUI PINTO, Manual da Execução e Despejo ", Ia ediçäo, pág. 1120/1121, ABÍLIO NETO, op. cit., pág. 98, AC RP de 19.05.2014, relator ALBERTO RUÇO, AC RP de 20.05.2008, relator CRISTINA COELHO, AC STJ de 9.10.2007, relator MÁRIO CRUZ, AC STJ de 5.12.2006, relator JOÃO CAMILO, AC STJ de 15.12.2005, relator SALVADOR da COSTA, estes últimos no domínio do referido art. 580 do RALL todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Por nós, consideramos que no âmbito do incidente de despejo imediato, o arrendatário apenas poderá obstar ao respetivo decretamento pagando ou depositando (ainda que a título condicional) o valor das rendas vencidas na pendência da causa e da indemnização legal, não lhe sendo consentido, por via de regra, um outro tipo de defesa para obstar ao decretamento do despejo imediato.
Com efeito e conforme doutamente expendido no Acórdão da Relação do Porto de 19.05.2014, in in www.dgsi.pt, processo 1423/11.5TBPRD-A.P1:
“A razão de ser ou o fundamento jurídico do despejo imediato consistiu e consiste em evitar situações em que o arrendatário, demandado em juízo pelo senhorio, poderia continuar a gozar da coisa arrendada sem pagar a renda estipulada, podendo tal situação arrastar-se por vários anos, desde a instauração da acção até à execução da sentença transitada em julgado, após um ou mais recursos.
De acordo com esta razão de ser e finalidade, o incidente não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas”.
A forma de pôr termo a tais ações abusivas dos arrendatários e de evitar a disseminacão de tal comportamento, consistiu precisamente na possibilidade de ser obtido o despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas durante pendência do processo.
Face aos interesses em causa e à finalidade do incidente, os fundamentos da ação passam a ser secundários, pelo que, seja qual for o fundamento invocado na ação para a resolução do contrato de arrendamento, o senhorio, após a instauração da ação, poderá sempre obter o despejo com fundamento na falta de pagamento das rendas vencidas durante a ação, caso estas não sejam pagas ou depositadas. E isto é assim mesmo nos casos em que o fundamento da ação, ou um dos fundamentos, é justamente a falta de pagamento de rendas.
Conforme se conclui no douto aresto citado:
“Desta forma, tendo de existir contrato de arrendamento escrito, desde a entrada em vigor da nova redacção do artigo 1069.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, sob pena de não ser possível instaurar acção de despejo, então serão residuais e, por isso, desprezíveis, os casos em que surgirão arrendatários a invocar a «inexistência de um contrato de arrendamento válido» acompanhada de recusa de entrega do local ocupado, ou de «não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário», ou algum dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade» ou, ainda, «invocação de diverso título para justificar a ocupação do local», hipóteses estas mencionadas no citado acórdão do Tribunal Constitucional.
Afigura-se, por conseguinte, que no contexto da actual ordem jurídica, devido à exigência de contrato escrito, sob pena de não existir arrendamento válido, embora existindo uma limitação dos direitos de defesa do arrendatário, tal limitação é socialmente justificada, não ofendendo por isso, salvo melhor entendimento, os preceitos exarados no artigo 20.º (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) da Constituição.”
Consideramos assim que este incidente não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas.
***
Com vista à decisão do incidente, há que considerar assentes os seguintes factos:
1. Os Autores, invocando e juntando contrato de arrendamento escrito, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, bem como a falta de pagamento pela Ré, das rendas relativas ao mesmo de junho de 2020 e seguintes, pretendem que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento, com a consequente condenação da Ré no despejo do prédio arrendado e no pagamento das rendas vencidas, no valor global de 2.100€ e vincendas até efetivo despejo.
2. A ação deu entrada em Juízo em 11 de setembro de 2020.
3. A Ré foi notificada para, em 10 dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas vencidas desde a instauração do processo e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, nos termos do disposto no art. 14º, n. 5 do NRAU, mas defende que não tem que depositar, nem pagar qualquer importância, em virtude de o arrendado se encontrar inabitável.
Dispõe o nº 3 do artigo 14° da Lei 6/2006, de 27/02, na redação introduzida pela Lei 31/2012, de 14 de Agosto, aplicável no caso em apreço (tendo a ação principal sido interposta em 11.09.2020), que:
“Na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais”; dispondo o nº 4, do citado preceito legal, que “Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 (dez) dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos(…).
“Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 7 do artigo 15º e nos artigos 15º-J, 15º-K e 15º-M a 15º-O”.
Assim, considerando a manifestada posição da Ré de que não tem que pagar, nem depositar as rendas vencidas desde a propositura da ação e indemnização devida, haverá que decretar o despejo imediato.
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Pelo exposto, julga-se procedente o incidente de despejo imediato e, em consequência, condena-se a Ré a despejar imediatamente a fração autónoma designada pela letra “G”, destinada a habitação, tipo T2, sita no piso 2, corpo 103-B e ao lugar de garagem e arrumos sitos no Piso 0, identificados pela mesma letra G do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua …, n. … e …, Rua …, .. e Rua … n.ºs ..,…, …, …, …, …, … e … da freguesia … com entrada pelo número … da Rua …, Habitação …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º 3954-G e inscrito na respetiva matriz d … sob o artigo 6515º-G, que deverá entregar aos Autores livre e devoluto de pessoas e bens.
Custas do incidente pela Ré, fixando-se a taxa de justiça em 1 uma) UC – arts. 527º do CPC e 7º, n. 4 do RCP e Tabela II anexa.
Notifique.”

A ré, D…, veio interpor recurso, concluindo:
1º - O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos.
2º - A defesa da R. em sede de contestação da ação principal obsta ao deferimento do incidente de despejo imediato;
3º Na pendência da ação de despejo mantém-se a obrigação do arrendatário de pagamento das rendas.
4º - Pretende-se, evitar que o arrendatário mantenha o gozo da coisa locada durante a pendência da ação sem a correspondente remuneração do locador.
5º - Contudo, tendo em conta a redação do nº 5, do art. 14º, do NRAU (introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto) – ao referir-se a “em caso de deferimento do requerimento” – conclui-se que, a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da ação não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato (cfr. Maria Olinda Garcia, cit., pág. 194).
6º - Nesse sentido, há que dar relevância ao teor da contestação apresentada pela R..
7º - Com efeito, a R. alegou a falta de condições de habitabilidade, que compromete seriamente o uso e fruição do locado; a existência de mora por parte dos AA., na realização das obras, o que obrigou a R. a invocar a exceção do não cumprimento do contrato.
8º - Ora, tal situação, carece naturalmente de ser provada, não só através de prova testemunhal já indicada na contestação, como também de Inspeção ao local, que requereu aquando da Oposição ao Incidente de Despejo imediato, para se aquilatar dos defeitos e vícios invocados na contestação e que estão na base da suspensão do pagamento das rendas.
9º - Motivo pelo qual não deveria ter sido deferido o Incidente de Despejo imediato, antes de ser dada a possibilidade à R. de fazer a prova, como aliás requereu.
10º - Com efeito, a rapidez que se pretende que caracterize o incidente de despejo imediato não poderá jamais resultar na limitação dos direitos de defesa do arrendatário ao pagamento ou depósito das rendas vencidas e da indemnização devida pelo não pagamento atempado.
11º - Os tribunais superiores têm entendido que a limitação a estas duas hipóteses redundaria numa “privação absoluta” do direito ao contraditório dos arrendatários.
12º - A este propósito refere-se no douto Ac TC 327/2018 de 27 de Junho:
«.., Mais chocante seria a situação que se verificaria por regra: como explica o Tribunal, o decretamento do despejo imediato teria como consequência a extinção da ação principal em virtude da inutilidade superveniente da lide – afinal de contas, o fim prosseguido pela ação já havia sido obtido. Ora, é manifesto que tal resultaria numa manifesta má administração da justiça, possibilitando a norma contida no número 4 do artigo 14.º do NRAU um efeito jurídico que com o qual o sistema na sua globalidade não pode compactuar.
Um outro argumento que foi na nossa ótica bem invocado pelo Tribunal e que depõe no sentido da decisão, prende-se não com a alteração levada a cabo no preceito contido no número 4 do artigo 14.º do NRAU pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, mas sim com a nova redação daquele contido no número 5 que, como explica MARIA OLINDA GARCIA, ao passar a referir a expressão “em caso de deferimento”, parece conduzir à conclusão de acordo com a qual o despejo imediato não é consequência direta e necessária do não pagamento ou depósito das rendas vencidas, carecendo antes de ponderação e análise do julgador…»
13º - É inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no art. 20º da Constituição, a interpretação do art. 14º, nº 4, do NRAU, no sentido de, no incidente de despejo imediato, apenas ser admitida como defesa a alegação e prova de pagamento ou depósito das rendas em mora.
14º - Com efeito, o entendimento segundo o qual o arrendatário, na resposta ao incidente de despejo imediato, apenas pode fazer prova documental do pagamento ou de depósitos das rendas, não lhe sendo permitido invocar quaisquer circunstâncias modificativas e impeditivas do pagamento, viola os princípios do Estado de Direito democrático (artigos 2.º e 9.º, alínea h), da Constituição da República Portuguesa - CRP), da igualdade (artigo 13.º da CRP), da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º da CRP) e do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP). Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes nem a efetividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.° da CRP.
15º - A este respeito, refere Maria Eduarda Borges, cuja posição, sufragamos, …Se é verdade que a admissão de comprovativo de pagamento ou depósito das rendas e indemnizações devidas como único meio de oposição do arrendatário conduziria a uma maior celeridade processual, também é verdade que tal poderia conduzir com frequência à tomada de decisões injustas ao arrepio dos princípios do Estado de direito democrático. A celeridade em causa seria, na verdade, meramente aparente.
Além disso, para que sejam pagas ou depositadas as rendas e outros montantes que a elas estejam associadas, é necessário que elas sejam, realmente, devidas e, consequentemente, existentes e exigíveis.
Em termos práticos, parece-nos que a interpretação da norma contida no número 4 do artigo 14.º do NRAU em conformidade com a CRP redundará na sua pouca aplicabilidade, uma vez que poucos serão os casos em que o julgador estará, no momento de dedução do incidente, apto a julgar as exceções que o arrendatário – muito bem – alegue para obstar ao pagamento ou depósito das rendas.»
16º - Deve assim julgar-se inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 14.º n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia se as rendas são ou não devidas se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
17º - O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art. 14º n.º 4 e 5 da NRAU e, artºs 2º, 9º,13º, 18º e 20º da CRP.
Nestes Termos, deve ser dado provimento ao recurso e revogado o Douto Despacho recorrido.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em apurar se se no incidente de despejo imediato apenas pode ser admitida como defesa a alegação e prova de pagamento ou depósito das rendas em mora.

II – Fundamentação de facto
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra.

III - Fundamentação de Direito
Dispõe o nº 3 do artigo 14º do NOVO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o seguinte:
- Na pendência da acção de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais – nº 3-
- Se as rendas, encargos ou despesas vencidos por um período igual ou superior a dois meses não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas do levantamento do depósito, que são contadas a final – nº4-
- Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no nº 7 do artigo 15 e nos artigos 15 –J, 15-L e 15-M a 15 –Q – nº 5-
Estabelece-se aqui, para as acções de despejo, um incidente de despejo imediato, com fundamento na falta de pagamento de rendas, vencidas na pendência da acção.
Este incidente corre nos próprios autos e tem início com o requerimento do locador para que o locatário seja notificado nos termos e para os efeitos do artigo 14º, nºs 4 e 5, do NRAU.
Como se disse, a questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se no incidente de despejo imediato, apenas pode ser admitida como defesa a alegação e prova de pagamento ou depósito das rendas em mora.
Convém então fazer uma breve resenha do histórico deste incidente.
O incidente esteve previsto no artigo 979 n.º 2 do CPC, entendendo-se aqui que o arrendatário apenas podia, em sua defesa, impugnar se as rendas se tinham vencido na pendência da acção, provar documentalmente que as havia pago ou depositado até ao prazo da resposta, com a indemnização respectiva, se estivesse em mora.
Esta norma foi revogada pelo artigo 3.º n.º 1 al. b) do decreto-lei 321-B/90 de 15 de Outubro, tendo sido substituído pelo artigo 58º do mesmo diploma, cuja redacção deixou de aludir à prova documental.
A pretexto desta alteração parte da doutrina e da jurisprudência começou a alargar o âmbito de defesa do arrendatário, admitindo-se que, na sua resposta, pudesse fazer toda a defesa que colocasse em causa a exigibilidade das rendas, quando a acção principal assentasse na falta de pagamento de rendas. O arrendatário poderia invocar qualquer excepção que legitimasse o não pagamento das rendas. Nesta defesa cabia a invocação da mora do credor e não apenas do devedor. Surgiu, deste modo, uma cisão jurisprudencial e doutrinal que ainda hoje subsiste.
O Tribunal Constitucional, no acórdão 673/2005, de 6/12/2005, publicado a 3 de Fevereiro de 2006, no DR. II série, n.º 25, pág. 1626 a 1632, considerou haver violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, pela norma do artigo 58º do Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-lei n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
Cumpre agora atentar na actual redacção do nº 5 do artigo 14º do NRAU (introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto): “Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O.” (sublinhado nosso).
Com base nesta expressão do texto, Maria Olinda Garcia, em Arrendamento Urbano Anotado, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, pág. 194, veio assumir que a actual redacção do nº 5, do artigo 14º, do NRAU ao referir-se a “em caso de deferimento do requerimento” evidencia que a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato.
Na realidade o legislador, em 2012, não podia ignorar a controvérsia jurisprudencial e doutrinal existente e o texto legal não lhe pode ser indiferente.
O legislador não podia, sobretudo, deixar de ter reflectido na argumentação do dito acórdão do Tribunal Constitucional cuja interpretação não encerrou, de todo, as divergências firmadas mas veio dar sinal incontornável de que, pelo menos nas hipóteses analisadas no acórdão, a interpretação restritiva dos meios de defesa do arrendatário afrontavam o princípio constitucional da proibição da indefesa.
Recorde-se que na fundamentação do acórdão consignou-se que: “Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local). No presente caso, em que, para além da controvérsia sobre a qualidade de locatária da primitiva ré, a interveniente (ora recorrente) sustenta o seu direito de ocupação do local em contrato-promessa de compra e venda que teria celebrado com o autor, com consequente inexistência do dever de pagamento de rendas, sendo as entregas de valor feitas imputadas no pagamento do preço de compra, questão que se encontrava ainda pendente quando foram proferidas as decisões das instâncias ora em causa, é óbvia a desadequação e inefectividade do único meio de defesa que foi reconhecido à recorrente: a prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida”.
Depois desta análise julgamos não ser possível continuar a defender, de forma categórica, que no incidente de despejo imediato o único meio de defesa do locatário é a prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida, como se entendeu no despacho recorrido.
O direito como ordenamento pressupõe uma coerência e integridade estrutural.
Todo o esforço interpretativo tem de perceber claramente o sentido do progresso e o sentido do retrocesso.
A evolução do direito é civilizacional e equaciona-se cada vez mais na protecção da dignidade da pessoa humana, de onde resulta todo um reforço dos direitos de defesa, do contraditório, da amplificação dos meios de prova que não contendam com aquela dignidade.
A brevidade do tempo presente, nunca como agora, demandou uma premente necessidade de representar o futuro com juízos de antecipação, de previsão ancorados na lucidez da percepção dos fenómenos do passado. Quanto mais fugaz é o presente maior é imprescindibilidade da antevisão para que não se persista facilmente em interpretações anacrónicas.
Assim, não pode manter-se a decisão recorrida que se baseou no entendimento de que o presente incidente não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas.
Haverá, pois, que apreciar a defesa apresentada, nomeadamente se ela se apresenta como uma invocação da excepção de não cumprimento e, se sim, se da situação manifestada decorre a sinalagmaticidade inerente à dita excepção, própria dos contratos bilaterais.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que não sufrague o entendimento de que o presente incidente não admite outra defesa que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas.
Custas pela parte vencida a final.
Custas pelo apelante.

Porto, 11 de Maio de 2021
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
Atesta-se que o presente acórdão tem voto de concordância do Exmº Desembargador Adjunto José Carvalho, nos termos do disposto no artigo 15º-A do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção introduzida pelo artigo 3º do DL 20/2020, de 1/5.