PENA ACESSÓRIA
PERDA AMPLIADA DE BENS
Sumário

I - Para aplicação da sanção acessória de proibição de exercício de função são dois os pressupostos exigidos, um de natureza formal e outro, de natureza material.
O primeiro diz respeito à condenação numa determinada pena: 3 anos de prisão; o segundo relaciona-se com a conexão do crime praticado com as funções exercidas, ou por o crime ter sido cometido com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes (alínea a), ou por o crime praticado, apesar de cometido fora da função, revelar indignidade no exercício do cargo, ou implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função (alíneas b) e c).
II - A perda de vantagens, tal como está estabelecida no art. 110º do Código Penal, abrange os designados “efeitos patrimoniais” do crime. Neste conceito estão incluídas quer as vantagens obtidas “com o crime”, numa visão tradicional de “fruto”, quer aquelas que são obtidas “pela prática do crime”, ou seja, tudo aquilo que possa ser considerado preço ou recompensa de carácter económico que alguém entrega a outrem para que cometa um ilícito penal.
Demonstrado aquele incremento na esfera patrimonial do arguido declara-se a perda a favor do Estado daquela quantia de € 4.604,33, quantia que se condena a pagar.
A aplicação do mecanismo de “perda alargada” de bens, previsto na Lei nº 5/2002, de 11-01, assenta na verificação dos seguintes requisitos:
a) Condenação pela prática de um crime do catálogo (art. 1º da Lei nº 5/2002, de 11-01).
b) Património do condenado.
c) Incongruente com o seu rendimento lícito.
Uma vez verificados os pressupostos atrás elencados (condenação por crime de catálogo, património, incongruente com o rendimento lícito), o legislador presume, para efeitos de confisco, que a diferença entre o valor do património detectado e aquele que seria congruente com o rendimento lícito do arguido provém de actividade criminosa.

Texto Integral

Proc. n.º 1771/18.3T9PRT.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum coletivo, a correr termos no Juízo Central Criminal da Porto-J9, foi proferida decisão:
1. Parte Criminal:
Julgam parcialmente procedente a acusação e, em consequência:
a) Absolvem o arguido B… da prática de um crime de peculato (art. 375º, nº 1, do Código Penal), de que vinha acusado;
b) Absolvem o arguido B… da prática de um crime de peculato (art. 375º, nº 1, do Código Penal), de que vinha acusado;
c) [Por convolação] Condenam o arguido B…, pela prática, entre Janeiro e Março de 2011, de um crime de peculato de uso (art. 376º, nº 1, do Código Penal), na pena de 7 meses de prisão;
d) Suspendem a pena de prisão aplicada ao arguido B… pelo período de 1 ano, sujeita à condição de o arguido, no prazo de suspensão, repor na conta-cliente de onde foi retirada, da quantia em causa nos autos (€ 10.000,00);
e) Absolvem o arguido B… da aplicação da pena acessória de proibição do exercício da função de agente de execução.
Custas pelo arguido, nos termos do art. 513º do CPP, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC e suportando ainda os encargos devidos.

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2. Perda de vantagens:
Pelos fundamentos atrás expostos, julgam improcedente a pretensão de condenação do arguido A… no pagamento ao Estado da quantia de € 17.500,00, a título de perda de vantagem obtida com a prática do facto ilícito típico.
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3. Perda alargada:
Pelos fundamentos atrás expostos, julgam improcedente o incidente de liquidação tendente à perda alargada de bens (não havendo qualquer valor a ser declarado perdido a favor do Estado) e, em consequência, determinam o levantamento do arresto de bens decretado nos autos.”

O M.P recorreu e “condensou” nas seguintes “conclusões” os fundamentos do seu recurso (transcrição):
“1. Vem o presente recurso apenas interposto quanto à matéria de facto e nas suas duas vertentes de erros formais (de conhecimento oficioso por parte do Tribunal Superior) referentes ao artigo 410º nº2 als. b) e c), do CPP, mas também erro de julgamento nos termos do art.412º nº3, do CPP;
2. Discordância da absolvição total em relação a um dos crimes de peculato da previsão do artigo 375º do Código Penal e a transformação do dolo subjetivo do arguido em relação a um outro dos dois crimes, revertendo a intencionalidade apropriativa em apenas temporária e imputando-lhe a sua conduta num mero crime de peculato de uso da previsão do artigo 376º nº1, do Código Penal, apesar de, ate à data, o arguido não ter reposto qualquer quantia;
3. Tal como se discorda da não declaração de perdimento de qualquer vantagem para o Estado, improcedendo a condenação ao pagamento da quantia de 17.5000,00€ e bem assim do incidente da perda alargada de bens, também peticionada nos autos;
4. Por se entender que a mesma enferma de uma má e relevante apreciação da matéria de facto, com notório erro na sua apreciação e por existir contradição insanável entre a matéria dada como provada e não provada; em relação à primeira situação (ação executiva nº3015/10.7TBVFR), nos termos do artigo 410º nº1 al. b) do CPP;
5. Por insuficiência dos factos provados nos itens 33º da matéria dada como provada e em relação ao segundo imputado crime de peculato (ação executiva nº39/13.6TBVLF) e também por sofrer de contradição entre os factos provados e não provados, de nos termos do artigo 410º nº1 al. a) e b), do CPP;
6. Mas, caso assim se não entenda, então deveremos reapreciar a mesma matéria fáctica considerando-se que existiu erro de julgamento;
7. Aplicação da pena acessória de proibição do exercício de função, prevista no art. 66º, n.º 1, als. a) e c), do Código Penal, peticionada na nossa peça acusatória;
8. Julgar procedente o incidente de liquidação tendente à perda alargada de bens (dado que os crimes de peculato da previsão do artigo 375º do Código Penal, serem um dos crimes de catálogo previsto no diploma em causa- Lei nº5/2006, de 11/01) e condenar o arguido a restituir ao Estado Português o incongruente património no montante global de € 477.813,79.
9. O erro de raciocínio por parte deste Tribunal, começa desde logo por se lhe atribuir apenas um crime de peculato de uso ao arguido (artigo 376º do Código Penal), quando o mesmo possui um património incongruente naquele enorme montante!
10. Também e como questão prévia nos cumpre aqui e agora consignar neste recurso que este mesmo arguido B…, em 19 de dezembro de 2019, por decisão deste mesmo Juízo e Comarca e confirmada pelo Tribunal da Veneranda Relação do Porto, no âmbito dos autos de processo comum coletivo nº1296/13.3T3AVR, J1, foi condenado na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, por factos cometidos durante o período temporal de 2010, 2011 e 2012, suspensa na sua execução, pelo cometimento de crime de peculato da previsão do artigo 375º nº1 do Código Penal, com aplicação de pena acessória de proibição do exercício de funções de agente de execução, por igual período temporal de 3 anos e 2 meses nos termos do artigo 66º do Código
Penal, bem como na perda de vantagem nos termos do artigo 110º do Código Penal (atual 111º nºs 2e4 na redação da Lei nº32/2010, de 02/9) ;
11. Assim e em relação ao primeiro vício de natureza formal, previsto no artigo 410º nº1 al. b), do CPP, o Tribunal de tal forma procurou minimizar e até mesmo desculpabilizar a atuação do arguido que se contradiz e fê-lo, por forma insanável, quanto a esta primeira situação e crime de peculato, porquanto dá como provada a apropriação e utilização de uma determinada quantia em seu proveito, as quais foram movimentadas a débito da conta cliente exequentes e transferidas para a sua conta particular, ficando esse dinheiro disponível e temporariamente na posse do arguido (itens 16º, 18º, 19º);
12. Na verdade, o Tribunal “ad quo” entrou em contradição insanável e em relação ao primeiro imputado crime de peculato (processo executivo nº3015/10.7TBVFR), ao afirmar não ter tido, o arguido, intenção apropriativa de uma quantia de 10.000,00€ da conta clientes exequentes para credito na conta bancária da qual é titular (item 18 dos factos provados) e logo a seguir afirmar que apenas ficou disponível e temporariamente na sua posse e pretendendo restitui-lo, oportunamente, o que não fez até ao presente!
13. Melhor precisando, cumpre-nos salientar que e quanto a este processo (ação executiva nº3015/10.7TBVFR), que a contradição insanável da fundamentação, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP, que resulta do texto da própria decisão;
Pois,
14. Se por um lado: se dá como não provado (cfr. facto não provado 1 a 4) o propósito formulado e concretizado pelo arguido de se apoderar da quantia de 10.000,00 € na ação executiva 3015/10.7TBVFR, ao mesmo tempo, por outro lado, na fundamentação da matéria de facto (cfr. fl.18 e 19 do acórdão), dá-se como assente, com base nas declarações do próprio arguido, que a justificação da transferência de tal quantia ocorre por conta do adiantamento da cobrança de honorários e despesas do processo;
15. Conforme resulta do trecho da decisão: “Perante a evidência da transferência do montante de € 10.000,00 € da conta-cliente exequentes para uma sua conta bancária particular (evidência documentalmente comprovada e admitida pelo arguido, entre Janeiro e Março de 2011 (3.000,00 € + 1.000,00 € + 3.000,00 € + 3.000,00 €), o arguido justificou tal movimentação bancária com fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos, refutando que tivesse havido qualquer apropriação daquele montante (como afirma a acusação) e argumentando que só no final dos autos executivos (com a apresentação da conta final de despesas e honorários) é que pode ser feito um apuramento do montante de honorários e despesas devidas e do destino da quantia de € 10.000,00. No entanto, o arguido reconheceu em julgamento que o montante de € 10.000,00 é excessivo para os honorários devidos naquela execução”;
16. Numa acção executiva onde havia sido penhorada a quantia de 33.500,00 €, a transferência da quantia de 10.000,00 €, repartida em 4 tranches (3.000,00 €; 1.000,00 €; 3.000,00 €; e 3.000,00 €) e realizada em momentos temporais distintos, para uma conta particular, tem ínsito, no concreto contexto dos factos provados e da fundamentação da matéria de facto, se apreciada à luz das regras
da experiência comum, a intenção de apropriação desse montante;
17. Quando se afirma a transferência do dinheiro por conta dos honorários, ainda que em valor excessivo (até porque, no facto provado 20, já se dá como provado que o arguido cobrara, nessa mesma acção, a título de provisão por despesas e honorários, cobrou a quantia de 250,92 €), não se pode afirmar que o arguido não pretendeu fazer seu esse dinheiro;
18. Esta transferência, “cobrança” ou “adiantamento” ou “garantia” de honorários é, isso sim, incompatível com o propósito de utilização temporária do dinheiro e de o oportunamente o restituir, facto dado como provado no ponto 21 dos factos provados.
19. Já em relação aos outros vícios de forma (referente ao processo executivo nº39/13.6tbvlg), diremos que a matéria dada como provada no item 33º se revela, de todo, insuficiente, para que se pudesse concluir e julgar improcedente a atuação deste arguido, porquanto num conjunto de dívidas que o arguido podia ter em relação à massa insolvente, não menciona concreta e efetivamente, quais possuía;
20. Deveria, pois, ter o douto Tribunal questionado, quais eram essas notas de honorários, e incumbia ao arguido, identifica-las; o que não fez!
21. Só assim se poderia eventualmente falar em direito de retenção, face ao que se deu como provado no item 31º!
22. Acrescente-se que esta insuficiência para a decisão da matéria de facto e também de contradição insanável da fundamentação, vícios previstos no art. 410º, nº 2, als. a) e b) do CPP, que resultam do texto da própria decisão quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto:
23. Se dá como provado e se fundamenta a matéria de facto, para afastar a intenção de apropriação da quantia 7.500,00 € cobrada na acção executiva 39/13.6TBVLF, na existência de solicitações de pagamento e várias notas de despesas e honorários em dívida, ou seja, num pretenso direito de retenção/compensação do arguido face ao administrador de insolvência da massa insolvente exequente nessa acção, e não se apura, então, qual o valor da dívida do administrador de insolvência para com o arguido; quais as datas e os montantes das alegadas notas de honorários; quando e de forma foram enviadas; onde está, se está, instaurada a acção de honorários destinada à cobrança desses montantes (que o arguido nunca instaurou) – cfr. factos provados 28 a 33; factos não provados 6 a 8; e fundamentação da matéria de facto a fls.25 parágrafo 4 e 5, do acórdão);
24. – e quanto à contradição insanável da fundamentação, se dá por assente, para afastar a intenção de apropriação da quantia 7.500,00 € cobrada na acção executiva 39/13.6TBVLF, a existência de um quadro de facto reconduzível ao instituto do direito de retenção/compensação do arguido face ao administrador de insolvência da massa insolvente exequente nessa execução e, ao mesmo tempo, se questiona a conformidade jurídica dessa mesma realidade. Tanto mais quando, nesta acção executiva, se dá como provado que o arguido cobrou de honorários a quantia de 750,00 €, que recebeu (cfr. facto provado 31 e fundamentação da matéria de facto a fl35 do acórdão);
25. É esta a posição doutrinal e jurisprudencial que vem sendo seguida maioritariamente, não podendo falar-se em direito de retenção, numa situação em que o agente de execução, aqui também solicitador, não enviou notas de despesas e de honorários ao senhor administrador de insolvência, nos termos do que dispõe o artigo 145º da Lei nº154/2015, de 14 de setembro.
26. Tendo também neste segundo caso ter existido uma errada avaliação e erro de raciocínio, pois, segundo as regras normais da experiencia comum referente ao património incongruente apurado ao arguido!
27. O comportamento, ao locupletar-se com as quantias das quais indevidamente se apoderou e fez suas, aspeto este e referente à intencionalidade que o Tribunal desprezou.
28. Daí que e só por si a matéria dada comprovada, seria suficiente para poder imputar ao arguido os dois crimes de peculato da previsão do artigo 175º nº1, do Código Penal; para além da pena acessória e também concomitantemente da perda alargada de bens.
29. Devendo, o Tribunal recorrido deveria ter concluído como o fez no item 16 de tal factualidade provada, mas, antes e em ambos os casos, na senda do elemento subjetivo e dando como provados os itens que deu como não provados!
30. Sem prescindirmos de criticarmos esta sentença/acórdão nestes termos, entendemos ter existido erro de julgamento, por não terem sido devidamente valorados os depoimentos das testemunhas C…, D…, E…, F…, em detrito total das declarações ultra valorizadas do próprio arguido;
31. Designadamente perante os depoimentos das testemunhas C… e E…, executados, cujos depoimentos aqui se reproduzem, o arguido permitiu-se pagar os seus honorários à cabeça, como se de juros bancários se tratasse, quando já se encontrava suspenso, pois já havia sido nomeado um outro agente e inclusive, dando-se ao luxo de propor descontos se esses pagamentos lhe fossem feitos de imediato e sem faturas.
32. Também no segundo caso o arguido, mesmo não tendo judicialmente qualquer direito de retenção, nessa sua qualidade mesmo serem-lhe imputados dois crimes de peculato, da previsão do artigo375º nº1, do Código Penal, com referencia ao artigo 386º nº1 al. a) do mesmo diploma e, ainda ao artigo 10º nº1 do Decreto-Lei nº243/2015, de 19/10;
33. Designadamente por virtude dele não ter apresentado qualquer notas de honorários e de despesas, conforme melhor nos referiu o sr. Administrador de insolvência, D…, que aqui damos como reproduzido, se lhe fossem pagos, à cabeça, os honorários dele nessa insolvência;
34. Nesta conformidade, deveria este Tribunal ter-lhe imputado dois crimes de peculato, da previsão do artigo375º nº1, do Código Penal, com referencia ao artigo 386º nº1 al. a) do mesmo diploma e, ainda ao artigo 10º nº1 do Decreto- Lei nº243/2015, de 19/10;
35. Da perda de vantagem a favor do Estado, por nós requerida ao abrigo do artigo 110º nº1 al. b) e 4 do Código Penal [artigo 111 nºs. 2 e 4, do Código Penal na atual redação, porquanto o arguido obteve um incremento patrimonial correspondente à quantia de 17.500,00 € (10.000.00 €+7.500,00 e), com o que se locupletou;
36. Quantia esta que consiste na vantagem global da atividade criminosa obtida pelo arguido com a prática dos crimes, isto é, traduz a vantagem económica diretamente resultante desses factos, de que é responsável e uma vez que não é possível a apropriação da vantagem em espécie, porque esta se traduz em montantes pecuniários depositados em contas bancárias juntamente com outros valores obtidos de forma lícita ou em quantias entregues em numerário ao arguido, que foram gastas em seu proveito;
37. Porquanto decorre do disposto no artigo 110 nº1 al. b) e nº4, anterior ao atual artigo 111.º, nºs 2 e 4, do Código Penal, na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30.05 e vigente à data dos factos, que são declarados perdidos a favor do Estado, sem prejuízo de direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie. Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidas nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor.
38. Tal como com a liquidação do património incongruente –perda alargada-, perante o património incongruente apresentado de €421.297,64, montante este que deve ser declarado perdido a favor do Estado.
39. Desde logo porque os crimes em causa e por cuja pratica deverá ser condenado, constituem crime de catálogo e tendo sido o arguido constituído arguido em 4-12-2018, o mesmo nos 5 anos que antecederam a constituição como arguido e até 31-12-2018, o arguido, solteiro, obteve rendimentos de trabalho e rendimentos de mais-valias e consequentemente, apresentou perante a AT os seguintes rendimentos, para efeitos de IRS, no montante global de 56.516,15 €;
40. Porem, no mesmo período temporal, isto é, durante os 5 anos que antecederam a constituição como arguido e até 31-72-2018, o arguido possuiu um património composto por depósitos bancários e outros produtos financeiros, verificado nas contas bancárias infra indicadas de que é titular e, bem assim, na conta bancária titulada pela sociedade comercial G…, Unipessoal L. da, relativamente à qual tem o domínio e o beneficio exclusivo;
41. Obtendo, assirn, nas contas bancárias do arguido e da referida sociedade, infra id., foram verificados, naquele período temporal, os movimentos/entradas a crédito, no total de 477,813,79 €, resultantes de depósitos de cheques e valores em numerário e transferências;
42. Como melhor se poderá aferir de toda a prova documental junta aos autos e que acompanhou a acusação publica, bem como do depoimento do inspetor da PJ/GRA, H…, conforme melhor se poderá constatar do trecho que supra se expôs e aqui se dá por reproduzido, sendo certo que qual o arguido não conseguiu ilidir a sua proveniência incongruente como tratando-se de património licito.
43. Neste sentido e sem abdicar de que- desde logo através da matéria dada como provada-, mereceria uma outra integração por parte do Tribunal, integrando esta parte final da conduta do arguido, violando o principio da livre apreciação da prova, segundo as regras normais da experiencia comum das coisas e, acrescentando, uma melhor apreciação e valorização da prova por nós apresentada, quer em termos da natureza dela, documental (totalmente não valorizada), quer testemunhal, tudo isto impunha uma interpretação totalmente diversa daquela que foi feita por parte deste Tribunal “ a quo” e aqueles outros que impunham uma decisão diversa e nos termos do art.412º nº3 al. a) e b), do C.P.P.;
44. Pelo que, relevando toda a matéria comprovada e reapreciando a prova apresentada em julgamento, com total desprezo pela apresentada prova também de natureza indiciaria, em conjugação com as regras normais da experiencia comum das coisas, se conclui que existiu também, por parte do Tribunal “ad quo”, uma má apreciação da prova globalmente produzida e de acordo com o disposto no art.412º nº3 al. b), do C.P.P.;
45. Daí que e fase ao alegado por nós e da conjugação de toda a prova, direta e indiciaria declarações e depoimentos produzidos na audiência de julgamento, afigura-se-nos que deveriam os Srs. Juízes terem relevado toda esta prova e por forma oposta àquela que o fizeram, dando igualmente como provada e para além daquela outra matéria assente e segundo as regras normais da experiência comum e de acordo com o que dispõe o artigo 127º do C. P. Penal:
a) - Acção executiva nº 3015/10.7TBVFR:
b) 1. O arguido formulou a resolução de se apoderar de parte deste dinheiro e gastá-lo em seu proveito.
c) 2. Este dinheiro ficou definitivamente na posse do arguido, que dele se apoderou, fazendo-o coisa sua e gastando-o em seu proveito.
d) 3. O arguido actuou com o propósito concretizado de se apoderar e fazer sua aquela quantia monetária, que ilegitimamente integrou no seu património e que utilizou em benefício e proveito próprio, ciente, portanto, de que não o podia fazer coisa sua.
e) 4. O arguido, ao se apropriar da quantia que se apropriou, violou os deveres funcionais de probidade e fidelidade a que, enquanto agente de execução e funcionário, estava vinculado no exercício do cargo, atentando contra a integridade do exercício dessas funções, contra o bom andamento e imparcialidade da Administração Pública e contra a administração da Justiça, ao mesmo tempo que atentou contra a tutela de bens patrimoniais de terceiros.
f) 5. Tais transferências naqueles montantes da conta cliente exequentes para a sua conta bancária particular (do arguido) têm fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos.
g) - Acção executiva nº 39/13.6TBVLF:
h) 6. Nessa altura, arguido decidiu que, caso E… ali se deslocasse e lhe entregasse tal quantia monetária, faria seu esse montante.
i) 7. O arguido, tal como havia realizado, apoderou-se imediatamente desse montante, no total de 7.500,00 €, que fez coisa sua e que utilizou e gastou em seu proveito.
j) 8. O arguido actuou com o propósito concretizado de se apoderar e fazer sua aquela quantia monetária, que ilegitimamente integrou no seu património e que utilizou em benefício e proveito próprio, bem sabendo que esse dinheiro não lhe pertencia, que a ele não tinha direito e que tal valor estava na sua posse e lhe era acessível por causa das funções de agente de execução que exercia naquele processo executivo e, exclusivamente, para efeitos do cumprimento dos deveres funcionais que lhe incumbiam nessa qualidade, ciente, portanto, de que não o podia fazer coisa sua.
k) 9. O arguido actuou sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, com o que, ao se apropriar do valor como se apropriou, violou os deveres funcionais de probidade e fidelidade a que, enquanto agente de execução e funcionário, estava vinculado no exercício do cargo, atentando contra a integridade do exercício dessas funções, contra o bom andamento e imparcialidade da Administração Pública e contra a administração da Justiça, ao mesmo tempo que atentou contra a tutela de bens patrimoniais de terceiros.
l) Perda de vantagens:
m) 10. O arguido obteve um incremento patrimonial correspondente à quantia de € 17.500,00;
46. Pelo que e ao abrigo do disposto no artigo. 7º, no 1, da Lei nº 5/2002, de 11/01, deverá o valor de 421.297 ,64 €, ser declarado perdido a favor do Estado, porquanto constitui vantagem de atividade criminosa.
47. Sendo-nos indiferente que o arguido tivesse auferido (ilicitamente e sem pagar impostos) os rendimentos incongruentes com as suas declarações de rendimentos, e como se infere destas declarações -, na qualidade de sócio de facto da aludida empresa.
48. Sob pena de violação do disposto nos artigos 375º nº1, 376º, 386º, nº 1, al. 66º,nº 1, als. a) e c) e nº 5, 67º e 68º, 110º, nº 1, al. b) e nº 4, todos do Código Penal,
art.145º do Decreto-Lei 154/15 de 14 de dezembro, artigo 127º, do CPP e arts. 1º, al. g), 7º e 8º, nº 1, da Lei nº 5/2002, de 11-01.
49. Nestes termos, deverá, pois, o douto acórdão recorrido ser revogado e o arguido condenado pela prática, de dois crimes de peculato, da previsão art.375º nº1, do Código Penal, aplicando-se a pena acessória prevista no artigo 66º nº1, als. a), b) e c), do mesmo diploma, para além de se condenar no peticionado pedido de €17.500,00, formulado na acusação pública, correspondente à vantagem ilicitamente obtida, nos termos do artigo 111º do Código Penal;
50. Bem como condenado na perda alargada de bens a favor do Estado ao abrigo do disposto nos arts. 1º, al. g), 7º e 8º, nº 1, da Lei nº 5/2002, de 11-01, apresentando o valor de € 421.297,64 como o montante que deve ser declarado perdido a favor do Estado.”

Por seu turno, o arguido B… rematou a motivação da sua resposta com o seguinte quadro conclusivo:
(transcrição):
«1. O Arguido vinha acusado da prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 2 (dois) crimes de peculato p.e.p. art. 375º nº. 1 do Código Penal, com referência aos arts. 66º nº. 1 als. a) a a), nº. 5, 67º, 68º e 386º nº. 1 al. d), também do Código Penal.
2. Tal qualificação jurídica dos factos assenta na actuação concreta do Arguido na:
iii. Acção executiva 3015/10.7TBVFR, instaurada em 12/06/2010 no Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro em que é exequente I… e executada a sociedade comercial J…, Unipessoal, Lda., tendo sido o Arguido indicado para o exercício da função de Agente de Execução, que aceitou tal
designação; e ainda
iv. Acção executiva nº. 39/13.6TBVLF, instaurada em 22/02/2013 no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Foz Côa, em que era exequente a massa insolvente K…, Lda., administrada pelo administrador de insolvência D…, e executado E…, tendo sido o Arguido indicado para o exercício da função de Agente de Execução, que aceitou tal designação.
3. Objectivamente, o Arguido deu por integralmente reproduzido o disposto na Douta Acusação do Ministério Público na parte do exercício de funções, isto é, o teor constante do art. 1º a 11º.
4. Porém, o Arguido não se conformou com os factos que lhe foram imputados e da maneira como o foram nem tampouco com a pretensão do Ministério Público, ora manifestada, no Recurso que interpôs, pois a versão dos factos na Acusação as conclusões / qualificação jurídica dos factos na Acusação e Recurso padecem de vícios notórios quer quanto à interpretação dos factos, o que atenta com a realidade, quer quanto à subsunção dos mesmos aos tipos de crime imputados.
5. No que respeita à Acção Executiva 3015/10.7TBVFR, desde logo somos a referir que tal acção executiva foi inspeccionada pela CPEE (Comissão para a Eficácia das Execuções) em 23/05/2013 in loco no escritório do Arguido sito na …, .., 13º, S/B, ….-… Vila Nova de Gaia, da qual não resultou qualquer procedimento disciplinar, ilícito civil ou a denúncia de qualquer ilícito criminal.
6. No âmbito da acção executiva 3015/10.7TBVFR, instaurada em 12/06/2010 junto do Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis do Tribunal judicial da Comarca do Porto, o Arguido foi nomeado ao processo na qualidade de Agente de Execução e, em consequência, notificou em 17/06/2010 a L…, CRL para que procedesse à penhora do saldo bancário existente nas contas da sociedade J…, Unipessoal, Lda., até ao montante de € 33.500,00.
7. Em 18/06/2010, tal ordem de penhora foi concretizada pela entidade bancária no valor de € 33.500,00 no saldo bancário da conta de depósitos titulada pela mencionada sociedade comercial e, em 01/07/2010, o Arguido ordenou a transferência daquele montante penhorado (€ 33.500,00) para a conta cliente executados.
8. Dos € 33.500,00 penhorados e depositados na conta cliente executados, o Arguido deu ordem de transferência da quantia de € 20.000,00 para a conta cliente exequentes.
9. Da conta cliente exequentes o Arguido deu quatro ordens de ordem de transferência para a sua conta bancária particular nº. ………..:
- Em 31/01/2011, da quantia de € 3.000,00;
- Em 09/02/2011, da quantia de € 1.000,00;
- Em 18/02/2011, da quantia de € 3.000,00; e
- Em 11/03/2011, da quantia de € 3.000,00
O que perfaz a quantia total de € 10.000,00.
10. Tais transferências naqueles montantes da conta cliente exequentes para a sua conta bancária particular tinha fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos, não obstante a quantia de € 250,92 que lhe havia sido paga a título de provisão por despesas e honorários em resultado do pedido de provisão com a referência PE/101/2010 de 14/06/2010.
11. Segundo o art. 821º do antigo CPC, correspondente ao actual art. 735º CPC, no seu nº. 3, “a penhora limita-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação, no valor de 20%, 10% e 5% do valor da execução, consoante, respectivamente, este caiba na alçada do tribunal da comarca, exceda, sem exceder o valor de quatro vezes a alçada do Tribunal da Relação, ou seja superior a este último valor”.
12. No auto de penhora da execução em análise o Arguido referiu, no campo respeitante ao «limite da penhora», que as «despesas prováveis» ascenderiam ao montante de € 5.395,67 (cfr., por ex., doc. de fl. 135vº e 136 dos autos), respeitando assim o valor de 20% do valor da execução previsto no art. 735º, nº 3, do CPC e aplicável àquela concreta execução.
13. Não obstante excessivo o valor transferido se se atender somente ao valor das despesas prováveis, sem contar com o valor dos seus devidos honorários, o Arguido, atendendo às “despesas previsíveis da execução, as quais se presumem, para o efeito de realização da penhora e sem prejuízo de ulterior liquidação”, ordenou a transferência de € 10.000,00 de modo fraccionado para a sua conta bancária particular, considerando o acerto de contas a final dos autos executivos com a apresentação da sua nota final de despesas e honorários, fase a que os autos executivos ainda não chegaram.
14. Por conseguinte, a exigibilidade dos € 10.000,00 transferidos somente pode ser apurada a final do processo executivo para os fins da conta final de despesas e honorários do Agente de Execução, a qual só pode ser apresentada, igualmente, a final dos autos executivos.
15. O Arguido nunca fez seus os € 10.000,00, tanto que nunca os gastou em seu proveito nem de terceiros. Na verdade, reteve-os até conta final dos autos executivos para o respectivo encontro de contas a realizar in fine, sendo que essa retenção nunca foi definitiva, pois tais montantes nunca foram movimentados, face à sua disponibilidade, quer para eventual devolução parcial ou acréscimo mediante a sua nota discriminativa de despesas e honorários de agente de execução in fine.
16. Sempre perguntamos como é que se pode inferir por uma ilegítima apropriação definitiva, no sentido de ser indevida ou imerecida, quando há a forte probabilidade de tais € 10.000,00 serem, pelo menos parte deles, devidos a título de despesas e honorários??? E ainda, sendo a conta final de despesas e honorários do Agente de Execução apresentada somente a final dos autos executivos, como se pode deduzir que tal quantia foi apropriada pelo Arguido com a intenção de obter para si ou para terceiros, algum benefício ilegítimo ou causar prejuízos a outra pessoa???
17. Não bastará a alegação do Ministério Público de que o Arguido tivesse feito suas tais quantias, que delas se tivesse apoderado e que as tivesse gasto em seu proveito!!! Na acusação pública ou em julgamento não foi produzida qualquer prova de que tenha havido apropriação definitiva da quantia em crise e que a tenha gasto, onde, com quem ou em quê.
18. O simples facto de a conta final de despesas e honorários do Agente de Execução só poder ser apresentada a final dos autos executivos, demonstra claramente a provisoriedade da quantia transferida, não obstante o Arguido ter referido que seria eventualmente excessiva tal montante.
19. Produzida a prova em sede de audiência e julgamento, resultou clara a inexistência de resolução de apropriação por parte do arguido, verificando-se, no entanto, o uso indevido pelo arguido da referida quantia monetária.
20. A ausência de intenção de apropriação sempre foi claramente afirmada pelo arguido (referindo o arguido, a título complementar, que tal quantia se destinava a honorários, apesar de reconhecer ser exagerada tal quantia face aos honorários a que tinha direito, e que Inspecção da CPEE não viu qualquer irregularidade no processo físico da acção executiva nº 3015/10.7TBVFR existente no seu escritório, conforme resulta, aliás, da prova documental junta aos autos).
21. Ora, as declarações do arguido mereceram o crédito do Tribunal a quo, pois corroboradas na circunstância de a transferência efectuada corresponder a uma parte da quantia penhorada e não a sua totalidade.
22. Se o arguido pretendesse a apropriação da quantia penhorada, certamente teria transferido a totalidade de tal quantia e não de uma parte da quantia penhorada, o que vai ao encontro da tese da movimentação ter como fundamento a garantia dos honorários, o que exclui a intenção de apropriação.
23. Se se atender aos procedimentos que o Arguido adoptou para a transferência da dita quantia, os quais surgem desviados do programa legal aplicável, mas também à manifestação de vontade de o arguido pretender fazer um encontro de contas no momento próprio do processo - não fosse o caso de ter ficado suspenso de funções e privado do acesso aos processos e à movimentação das constas-cliente -, mas que ainda assim lhe é permitido apresentar a sua nota de despesas e honorários in fine dos autos executivos, bastando para isso ser notificado pela agente de execução substituta ou liquidatária para o efeito.
24. Ora, o exposto constitui não uma apropriação indevida ou ilegítima mas uma situação de uso indevido de quantia monetária.
25. É certo que não ocorreu a restituição pelo arguido da quantia monetária em análise, elemento típico implícito do crime de peculato de uso, mas se tal restituição está relacionada com o encontro de contas a fazer, uma vez que o arguido tem direito a receber honorários pelo desempenho da função de agente de execução, tal momento chegará ao seu conhecimento pela Agente de Execução substituta nos autos ou a liquidatária.
26. Relativamente à existência de uma contradição entre o facto 18 e o 19 do elenco dos factos provados, o supra exposto dissipa cristalinamente tal alegada contradição pois, sendo a conta a final, a quantia na posse do Arguido nunca o poderia ser definitiva mas provisória até ao momento próprio de apresentação da sua nota de despesas e honorários “in fine”.
27. Face ao exposto, malogra a motivação do Ministério Público pois não pode ser imputável ao Arguido a prática do ilícito de Peculato enquanto a acção executiva ainda não estiver finda e dada a oportunidade de o Arguido apresentar a sua nota de despesas e honorários e ainda a conta final do processo executivo, o arguido não se ter apropriado da quantia em crise pois constituir – pelo menos – parte dos seus devidos honorários e despesas pelas funções que exerceu no processo, como bem decidiu o Tribunal a quo.
28. No que respeita à Acção executiva nº. 39/13.6TBVLF, por economia processual, o Arguido aceitou por corresponder à verdade o disposto nos arts. 22º e 24º a 26º da Douta Acusação do Ministério Público.
29. Porém, o Arguido nunca se apoderou ou fez coisa sua ou utilizou ou gastou em seu proveito a quantia total de € 7.500,00 que lhe havia sido entregue por E… e por M… em representação daquele, o seu pai.
30. Face a tais pagamentos, o Arguido informou a extinção da execução e o levantamento da penhora do imóvel conforme consta a fls. 320 a 322 dos presentes autos.
31. Sucede que, após várias transferências do Arguido para o Administrador da Insolvência da Exequente, a massa insolvente da K…, Lda., e solicitações de pagamento das suas várias notas de despesas e honorários em dívida (pois o Arguido era Agente de Execução em mais de 40 execuções em que a K… … era Exequente), sem que aquele Administrador de Insolvência liquidasse qualquer uma das referidas notas de despesas e honorários enviadas, o Arguido comunicou telefonicamente ao Administrador de Insolvência que não iria transferir qualquer quantia exequenda enquanto não fossem pagas as notas de despesas e honorários em dívida.
32. Aliás, do auto de inquirição do Administrador de Insolvência da massa insolvente de K… … a fls. 329 dos autos cristalinamente se alcança que a testemunha admitiu a existência de dívida não paga ao Arguido e que o Arguido comunicou a retenção lícita do valor de “cerca de € 7.000,00” pois “só lhe entregaria caso o Administrador de Insolvência lhe pagasse os honorários” devidos.
33. O Arguido já havia transferido duas quantias exequendas de cerca de € 10.000,00 cada, com a promessa do Administrador de Insolvência de que após as mesmas lhe pagaria o valor das notas de despesas e honorários em dívida, sem que das duas vezes o tivesse efectivamente feito.
34. Assim, o arguido justificou a ausência de entrega daquele valor à exequente K…, Lda., ou à respectiva massa insolvente, com a existência, a seu favor, de um crédito sobre a exequente (e/ou respectiva massa insolvente), relativo a despesas e honorários da função de agente de execução desempenhada em vários processos em que aquele sociedade foi exequente, sendo ainda certo que as notas de honorários foram enviadas ao Administrador de Insolvência e este, após ter recebido transferências do arguido, não liquidou as referidas notas, razão pela qual o arguido lhe comunicou que não iria transferir qualquer quantia exequenda enquanto não fossem pagas as notas despesas e honorários em dívida. Refutou assim o arguido a existência de qualquer apropriação daquele valor (como afirma a acusação), afirmando que a sua actuação estava coberta por uma retenção lícita daquele valor.
35. Face ao exposto, é evidente a inexistência de resolução de apropriação por parte do arguido (ou resolução de uso indevido pelo arguido da referida quantia monetária).
36. Se a ausência de intenção de apropriação surge claramente afirmada pelo arguido nas suas declarações, a credibilidade que o Tribunal a quo lhe conferiu adveio dos vários meios de prova juntos aos autos, a que acresceu o teor dos depoimentos das testemunhas E… e C….
37. Desde logo, o arguido, apesar de ter recebido em dinheiro a quantia em análise (€ 7.500,00), logo emitiu ao executado (ou seu filho) declarações de recebimento de tais quantias, depositou tal quantia na conta-cliente executado e promoveu o levantamento da penhora do imóvel junto da conservatória do registo predial, tanto bastando para infirmar a tese da intenção de apropriação (se o arguido pretendesse a apropriação da quantia em causa, não tinha adoptado estes procedimentos).
38. Depois, a existência do crédito que o arguido invocou para não entregar a quantia em causa à exequente, nem a depositar à ordem da massa insolvente, encontra suporte em vários documentos juntos aos autos (notas de honorários e troca de emails com o Administrador de Insolvência - fls. 636 a 663 dos autos), desvalorizando o teor do depoimento da testemunha D… (o qual, de resto, afirmou várias vezes não se recordar dos factos) e valorizando as declarações do arguido.
39. E ainda que se possa discutir, in casu, a bondade jurídica da invocação de um direito de retenção ou a invocação de um direito de compensação, o certo é que as apontadas circunstâncias contribuem para infirmar a tese da intenção de apropriação, como bem sustentou o Tribunal a quo.
40. Realce-se que a testemunha D…, convenientemente olvidado, não deixou de se contradizer nas suas declarações de fls. 329 e 358 dos autos quando a fls. 329 afirmou que o Arguido “telefonou para o depoente dizendo que tinha cerca de 7.000 Euros para lhe entregar por conta dos créditos que a empresa falida tinha” e a fls. 358 diz “não ter conhecimento que tenha havido a cobrança do crédito referido a que respeita a execução 39/13.6TBVLF”!!!!
41. Para recordar a memória do devedor mas também para justificar, como aliás está bem presente nos autos de que o Arguido não praticou o ilícito criminal de que foi acusado, vejam-se as notas de despesas e honorários do Arguido apresentadas ao Administrador de Insolvência da massa insolvente da K… … a fls. 636 a 663, o que demonstra, evidentemente, o crédito que o Arguido ainda tem sobre a K… … pois tais processos executivos continuam a ser tramitados, desconhecendo o Arguido na presente data os valores actualizados das suas notas de despesas e honorários a liquidar pela massa insolvente da K… representada pelo administrador relapso de memória de insolvência.
42. Assim, e uma vez mais, malogra a motivação do Ministério Público.
43. No que respeita à liquidação do património incongruente, começamos por recordar que quando não há apropriação, não há incremento patrimonial e, por conseguinte não há perdas de vantagens.
44. Durante os 5 anos que antecederam a constituição como arguido (entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2018), o arguido, obteve rendimentos de trabalho e rendimentos de mais-valias (declarados / comunicados em sede fiscal) no montante global de € 56.516,15.
45. No mesmo período temporal (entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2018), nas contas bancárias (pessoais, i.e., excluindo as contas bancárias profissionais [conta-cliente Executados e conta-cliente Exequentes]) do arguido e na conta bancária da sociedade G…, Unipessoal, Lda., relativamente à qual o arguido tem o domínio e benefício exclusivo, foram verificados movimentos/entradas a crédito no total de € 477.813,79 (depósitos de cheques e valores em numerário e transferências).
46. Nos movimentos/entradas a crédito (no total de € 477.813,79) verificados nas contas bancárias do arguido e na conta bancária da sociedade G…, Unipessoal, Lda., estão incluídos depósitos/pagamentos da empresa da qual o arguido é sócio (N…, Lda.), no montante de € 95.876,24, depósitos respeitantes a acordos de pagamento com devedores, relativos à mesma empresa, no montante de € 30.115,00, depósitos da mesma empresa, que no extracto constam com a menção “honorários N1…” ou “Transf de honorários”, no montante de € 50.786,82, depósitos respeitantes a honorários da actividade de agente de execução e solicitador, no montante de € 19.484,30, depósito respeitante a uma indemnização recebida pelo arguido, no montante de € 1.400,00, depósitos respeitantes a duas transferências realizadas pela irmã do arguido, no montante total de € 1.450,00, depósito respeitante a uma indemnização recebida pelo arguido de uma companhia aérea, no montante de € 1.200,00, estorno de uma quantia relativa a um processo judicial, no montante de € 5.000,00 (duas transferências de € 2.500,00), transferência entre contas do arguido, no montante de € 5.000,00, troca de notas na máquina do balcão do O…, no montante de € 2.200,00, transferências do Instituto de Gestão Financeira relativas a pagamentos de honorários, no montante total de € 523,44, e entrada do valor de € 120.000,00, através de cheque, respeitante ao produto da venda de um imóvel em que o arguido interveio no exercício da actividade de solicitador, tudo no montante global de € 333.136,15.
47. Face ao exposto, terminamos como começamos, dizendo: quando não há apropriação, não há incremento patrimonial e, por conseguinte não há perdas de vantagens.»

Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acolheu a posição do M.P. a quo no recurso, pugnando pela respetiva procedência. Mais refere, “a impugnada convolação do crime de peculato p. e p. pelo art. 375º nº 1 do CP para peculato de uso p. e p. pelo art. 376º nº 1 do mesmo Código como se fez no acórdão, estando em causa dinheiro afigura-se-nos interdita, uma vez que, enquanto o 1º preceito refere expressamente o dinheiro, o 2º na enumeração dos bens passíveis de uso indevido não o contempla.
Mas também não cabe aqui a convolação para o crime do nº 2 do referido art. 376º do CP, onde se prevê o desvio de dinheiro, sem motivos de interesse público que o justifiquem, para outro uso público diferente daquele a que está legalmente afectado …
O que resultou provado é que o Arguido enquanto funcionário (agente de execução) procedeu a transferências bancárias para a sua conta pessoal de determinadas quantias monetárias afectas a processos de execução, dinheiro esse que, embora sabendo que seu não era e dele não podia dispor, o fez seu e o fruiu/gastou/dissipou em proveito próprio sem que o tenha devolvido.
*
É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação constantes da decisão recorrida (transcrição):

«2.1. Matéria de facto provada
I.1. Do exercício de funções:
1. O arguido B… é solicitador e encontra-se inscrito na Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução desde 11-4-2000, sendo titular da cédula profissional nº …..
2. Desde 2-6-2009 e até 14-3-2016, o arguido vem exercendo as funções de agente de execução, para o que também se encontra inscrito na respectiva Ordem.
3. No exercício desta actividade, o arguido teve domicílio profissional nos seguintes locais:
- Avenida …, nº …., 3º S/U, …. – … Aveiro;
- Rua …, nº ., 2º, …. – … Anadia;
- Rua …, nº .., 5º Direito, frente, …. – … Porto;
- Rua …, nº …, 2º, Sala .., …. – … Matosinhos;
- Rua …, nº …, 5º CT, …. – … Maia;
- Rotunda …, nº .., 13.º S/B, …. – … Vila Nova de Gaia;
- Rua …, nº …, escritório 4, ….-… Porto.
4. Por deliberação da Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (CAAJ), datada de 14-3-2016, foi aplicada ao arguido a sanção disciplinar de suspensão de funções pelo período de 5 anos, nos termos do art. 142º, nº 1, al. f) do ECS, conjugado com o nº 5 do art. 145º do mesmo Estatuto.
5. No âmbito das funções de agente de execução que desempenhou nos processos executivos para os quais foi designado, como sucedeu nas acções infra indicadas, cabia ao arguido, entre o mais, identificar e localizar bens penhoráveis, proceder à penhora desses bens e praticar os actos necessários ao pagamento da dívida exequenda, ao exequente ou a outro credor.
6. No domínio destas competências, e sem prejuízo das demais previstas na lei, incumbia especificamente ao arguido, nos casos em que a penhora recaísse sobre moeda corrente, depósito bancário em dinheiro ou outro direito de crédito pecuniário cuja importância tivesse sido depositada, proceder à entrega do dinheiro penhorado ao exequente ou a outro credor, efectuar esse pagamento por cheque ou por transferência bancária.
7. No exercício das funções de agente de execução impunha-se ao arguido que actuasse com respeito pelos deveres do cargo, concretamente e sem prejuízo dos demais previstos na lei, pelos deveres de honestidade, probidade, rectidão, zelo e diligência.
8. Para o exercício das funções de agente de execução, o arguido é titular das seguintes contas bancárias, sediadas na sucursal do O…, sita na Av. …, nº …, em Lisboa:
- Conta bancária nº ……….., correspondente à conta-cliente executados;
- Conta bancária nº ……….., correspondente à conta-cliente exequentes.
9. A título particular e aberta em seu nome, o arguido utiliza também a conta bancária nº ……….., sediada na sucursal do O…, sita na Rua …, nº …, no Porto.
10. A par das funções de agente de execução, o arguido ainda é sócio e gerente da sociedade comercial G…, Unipessoal LDA, a que corresponde o NIPC ………, com sede na Rua …, nº …, 2, sala .., ….-… Matosinhos, que se dedica à ocupação de tempos livres para jovens, no âmbito do desporto e dos trabalhos manuais, com o CAE principal …..-...
11. A sobredita sociedade comercial é titular da conta bancária nº ……….., sediada na sucursal do O…, sita na …, nº …, no Porto.
I.2. Da actuação concreta:
I.3. Elemento subjectivo:
- Acção executiva nº 3015/10.7TBVFR:
12. Na acção executiva nº 3015/10.7TBVFR, instaurada em 12-6-2010, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis, em que é exequente I… e executada a sociedade J…, Unipessoal Lda., o arguido foi indicado para o exercício da função de agente de execução, aceitando tal designação.
13. No âmbito desta acção, em 17-6-2010, o arguido, já no exercício e na qualidade de agente de execução, notificou a L…, CRL para que procedesse à penhora do saldo bancário existente nas contas da sociedade J…, Unipessoal Lda., sediadas nesta instituição bancária, até ao montante de 33.500,00 €.
14. Donde, em 18-6-2010 e por determinação do arguido, a L…, CRL concretizou a ordem de penhora, do montante de 33.500,00 €, no saldo da conta de depósitos à ordem com o nº 40233794782, titulada pela sobredita sociedade.
15. Em 1-7-2010, por ordem do arguido, a L…, CRL efectuou a transferência bancária da quantia penhorada nessa conta para a conta bancária nº ……….. (conta-cliente executados).
16. Com efeito, tendo na sua disponibilidade esta quantia monetária, o arguido formulou a resolução de utilizar temporariamente parte deste dinheiro em seu proveito, com o propósito de oportunamente o restituir.
17. Dos 33.500,00 €, o arguido, em 12-7-2010, deu ordem de transferência da quantia de 20.000,00 € da conta bancária nº ……….. (conta-cliente executados) para a conta bancária nº ……….. (conta cliente exequentes).
18. Destes 20.000,00 €, o arguido deu ordem de transferência da quantia de 10.000,00 € da conta bancária nº ……….. (conta cliente exequentes) para crédito na conta bancária particular de que é titular com o nº ……….., nas datas e pelos seguintes montantes:
- Em 31-1-2011, da quantia de 3.000,00 €;
- Em 9-2-2011, da quantia de 1.000,00 €;
- Em 18-2-2011, da quantia de 3.000,00 €; e
- Em 11-3-2011, da quantia de 3.000,00 €.
19. Em consequência e por determinação do arguido, estas quantias monetárias foram movimentadas a débito da conta cliente exequentes e transferidas para a sua conta particular, ficando esse dinheiro disponível e temporariamente na posse do arguido, que o pretendia restituir oportunamente.
20. Pelos serviços que prestou na acção executiva nº 3015/10.7TBVFR, o arguido cobrou, a título de provisão por despesas e honorários, a quantia de 250,92 €, o que fez por via do pedido de provisão com a referência PE/101/2010, datado de 14-6-2010.
21. O arguido actuou com o propósito concretizado de utilizar temporariamente aquela quantia monetária e de oportunamente a restituir, bem sabendo que esse dinheiro não lhe pertencia, que a ele não tinha direito e que tais valores estavam na sua posse e lhe eram acessíveis por causa das funções de agente de execução que exercia naquele processo executivo e, exclusivamente, para efeitos do cumprimento dos deveres funcionais que lhe incumbiam nessa qualidade, ciente, portanto, de que não o podia utilizar livremente.
22. O arguido actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, com o que, ao utilizar temporariamente aquela quantia monetária, violou os deveres funcionais de probidade e fidelidade a que, enquanto agente de execução e funcionário, estava vinculado no exercício do cargo, atentando contra a integridade do exercício dessas funções, contra o bom andamento e imparcialidade da Administração Pública e contra a administração da Justiça, ao mesmo tempo que atentou contra a tutela de bens patrimoniais de terceiros.
23. No que respeita à Acção Executiva 3015/10.7TBVFR, o processo físico existente no escritório do arguido foi inspeccionado pela CPEE (Comissão para a Eficácia das Execuções), em 23/05/2013, não tendo resultado de tal inspecção qualquer procedimento disciplinar ou participação de ilícito civil ou penal.
24. A conta final de despesas e honorários do Agente de Execução só pode ser apresentada no final dos autos executivos.
- Acção executiva nº 39/13.6TBVLF:
25. Na acção executiva nº 39/13.6TBVLF, instaurada em 22-2-2013, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Foz Côa, em que era exequente a Massa Insolvente da sociedade K…, Lda., administrada pelo AI D…, e executado E…, o arguido foi indicado para o exercício da função de agente de execução, aceitando tal designação.
26. No decurso desta acção executiva, em data não concretamente apurada, anterior a 25-7-2014, o arguido e o executado E… combinaram entre si que este se deslocaria ao escritório do arguido, sito na Rotunda …, nº .., 13 B, em Vila Nova de Gaia, a fim de lhe entregar quantia monetária para pagamento da dívida exequenda.
27. Com efeito, no dia 25-7-2014, E… deslocou-se ao escritório do arguido, sito na Rotunda …, nº .., 13 B, em Vila Nova de Gaia, tendo sido acompanhado pelos filhos M… e C….
28. Nesta ocasião, E… entregou ao arguido a quantia de 6.000,00 € em numerário, para pagamento da dívida exequenda na acção executiva nº 39/13.6TBVLF.
29. Posteriormente, no dia 29-7-2014, M…, em nome e representação do seu pai, deslocou-se novamente ao escritório do arguido, sito naquele local, onde lhe entregou a quantia de 1.500,00 € em numerário, para completar o pagamento da dívida exequenda na acção executiva nº 39/13.6TBVLF.
30. O arguido recebeu estas quantias no exercício e em razão das suas funções de agente de execução e não as entregou à exequente, nem as depositou à ordem da massa insolvente.
31. Pelos serviços que prestou na acção executiva nº 39/13.6TBVLF, o arguido cobrou, a título de honorários, a quantia de 750,00 €, que recebeu do executado E…, através da entrega de três cheques, com os nºs …….., …….. e …….., no valor de 250,00 € cada, emitidos por C…, cheques esses sacados sobre a conta bancária titulada por esta, com o nº ……………, do banco P….
32. Face aos pagamentos supra mencionados, o arguido informou o executado que iria ocorrer a extinção da execução e promoveu, junto da conservatória do registo predial, o levantamento da penhora do imóvel.
33. Após várias transferências do arguido para o Administrador de Insolvência da Exequente (Massa Insolvente da sociedade K…, Lda.) e solicitações de pagamento das suas várias notas de despesas e honorários em dívida (pois o arguido era Agente de Execução em várias execuções em que a K…, Lda. era exequente), sem que aquele Administrador de Insolvência liquidasse as referidas notas de despesas e honorários enviadas, o arguido comunicou telefonicamente ao Administrador de Insolvência que não iria transferir qualquer quantia exequenda enquanto não fossem pagas as notas de despesas e honorários em dívida.
IV. Liquidação do património incongruente – perda ampliada:
34. A constituição como arguido de B… ocorreu em 04-12-2018.
35. Durante os 5 anos que antecederam a constituição como arguido (entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2018), o arguido, solteiro, obteve rendimentos de trabalho e rendimentos de mais-valias (declarados / comunicados em sede fiscal) no montante global de € 56.516,15.
36. No mesmo período temporal (entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2018), nas contas bancárias (pessoais, i.e., excluindo as contas bancárias profissionais [conta-cliente Executados e conta-cliente Exequentes]) do arguido e na conta bancária da sociedade G…, Unipessoal, Lda., relativamente à qual o arguido tem o domínio e benefício exclusivo, foram verificados movimentos/entradas a crédito no total de € 477.813,79 (depósitos de cheques e valores em numerário e transferências).
37. Nos movimentos/entradas a crédito (no total de € 477.813,79) verificados nas contas bancárias do arguido e na conta bancária da sociedade G…, Unipessoal, Lda., estão incluídos depósitos/pagamentos da empresa da qual o arguido é sócio (N…, Lda.), no montante de € 95.876,24, depósitos respeitantes a acordos de pagamento com devedores, relativos à mesma empresa, no montante de € 30.115,00, depósitos da mesma empresa, que no extracto constam com a menção “honorários N1…” ou “Transf de honorários”, no montante de € 50.786,82, depósitos respeitantes a honorários da actividade de agente de execução e solicitador, no montante de € 19.484,30, depósito respeitante a uma indemnização recebida pelo arguido, no montante de € 1.400,00, depósitos respeitantes a duas transferências realizadas pela irmã do arguido, no montante total de € 1.450,00, depósito respeitante a uma indemnização recebida pelo arguido de uma companhia aérea, no montante de € 1.200,00, estorno de uma quantia relativa a um processo judicial, no montante de € 5.000,00 (duas transferências de € 2.500,00), transferência entre contas do arguido, no montante de € 5.000,00, troca de notas na máquina do balcão do O…, no montante de € 2.200,00, transferências do Instituto de Gestão Financeira relativas a pagamentos de honorários, no montante total de € 523,44, e entrada do valor de € 120.000,00, através de cheque, respeitante ao produto da venda de um imóvel em que o arguido interveio no exercício da actividade de solicitador, tudo no montante global de € 333.136,15.
38. O arguido B… já sofreu as seguintes condenações:
a) Por sentença proferida em 18/11/2004, transitada em julgado em 14/11/2004, o arguido foi condenado pela prática, em 10/09/1999, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, no montante global de € 360,00, julgada extinta pelo pagamento da multa (Processo nº 1041/99.4SMPRT – 2º Juízo Criminal do Porto, 3ª Secção);
b) Por sentença proferida em 20/07/2007, transitada em julgado em 04/09/2007, o arguido foi condenado pela prática, em 26/05/2004, de um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de injúria, na pena única de 165 dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no montante global de € 3.300,00, julgada extinta pelo pagamento da multa (Processo nº 4968/04.0TDPRT – 3º Juízo Criminal do Porto, 1ª Secção);
c) Por sentença proferida em 02/05/2012, transitada em julgado em 08/10/2012, o arguido foi condenado pela prática, em 03/11/2009, de um crime de injúria, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, no montante global de € 500,00, julgada extinta pelo pagamento da multa (Processo nº 607/09.0GBOBR – Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro);
d) Por sentença proferida em 12/12/2013, transitada em julgado em 24/01/2014, o arguido foi condenado pela prática, em 24/06/2012, de um crime de desobediência, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 15,00, no montante global de € 1.200,00, julgada extinta pelo pagamento da multa (Processo nº 6106/12.6TDPRT – Juízo Local de Pequena Criminalidade do Porto – Juiz 1);
e) Por acórdão proferido em 02/03/2016, transitado em julgado em 17/10/2016, o arguido foi condenado pela prática, em 29/08/2011, 09/01/2012, 05/09/2011, 27/01/2012, 05/09/2011 e 24/08/2011, de um crime de ameaça agravada, de um crime de difamação, de um crime de injúria agravada, de cinco crimes de difamação agravada, de três crimes de injúria e de um crime de ameaça, na pena única de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e 3 meses, com a obrigação de pagamento de indemnizações; a suspensão foi prorrogada e depois a pena foi julgada extinta (Processo nº 2162/12.5TDPRT – Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 14);
f) Por acórdão proferido em 01/02/2017, transitado em julgado em 03/03/2017, o arguido foi condenado pela prática, em 24/04/2013, de um crime de peculato de uso, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de € 20,00, no montante global de € 600,00; a multa foi convertida em 20 dias de prisão subsidiária, cuja execução foi suspensa por 1 ano, sujeita a regime de prova, por decisão de 12/10/2017, transitada em julgado em 22/11/2017 (Processo nº 6158/13.1TDPRT – Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 14).
39. O arguido B… nasceu em 03/09/1966 (tem 54 anos de idade).
2.2. Matéria de facto não provada
- Acção executiva nº 3015/10.7TBVFR:
1. O arguido formulou a resolução de se apoderar de parte deste dinheiro e gastá-lo em seu proveito.
2. Este dinheiro ficou definitivamente na posse do arguido, que dele se apoderou, fazendo-o coisa sua e gastando-o em seu proveito.
3. O arguido actuou com o propósito concretizado de se apoderar e fazer sua aquela quantia monetária, que ilegitimamente integrou no seu património e que utilizou em benefício e proveito próprio, ciente, portanto, de que não o podia fazer coisa sua.
4. O arguido, ao se apropriar da quantia que se apropriou, violou os deveres funcionais de probidade e fidelidade a que, enquanto agente de execução e funcionário, estava vinculado no exercício do cargo, atentando contra a integridade do exercício dessas funções, contra o bom andamento e imparcialidade da Administração Pública e contra a administração da Justiça, ao mesmo tempo que atentou contra a tutela de bens patrimoniais de terceiros.
5. Tais transferências naqueles montantes da conta cliente exequentes para a sua conta bancária particular (do arguido) têm fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos.
- Acção executiva nº 39/13.6TBVLF:
6. Nessa altura, arguido decidiu que, caso E… ali se deslocasse e lhe entregasse tal quantia monetária, faria seu esse montante.
7. O arguido, tal como havia realizado, apoderou-se imediatamente desse montante, no total de 7.500,00 €, que fez coisa sua e que utilizou e gastou em seu proveito.
8. O arguido actuou com o propósito concretizado de se apoderar e fazer sua aquela quantia monetária, que ilegitimamente integrou no seu património e que utilizou em benefício e proveito próprio, bem sabendo que esse dinheiro não lhe pertencia, que a ele não tinha direito e que tal valor estava na sua posse e lhe era acessível por causa das funções de agente de execução que exercia naquele processo executivo e, exclusivamente, para efeitos do cumprimento dos deveres funcionais que lhe incumbiam nessa qualidade, ciente, portanto, de que não o podia fazer coisa sua.
9. O arguido actuou sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, com o que, ao se apropriar do valor como se apropriou, violou os deveres funcionais de probidade e fidelidade a que, enquanto agente de execução e funcionário, estava vinculado no exercício do cargo, atentando contra a integridade do exercício dessas funções, contra o bom andamento e imparcialidade da Administração Pública e contra a administração da Justiça, ao mesmo tempo que atentou contra a tutela de bens patrimoniais de terceiros.
Perda de vantagens:
10. O arguido obteve um incremento patrimonial correspondente à quantia de € 17.500,00.
2.3. Motivação da decisão de facto
Como é sabido, a legislação processual penal portuguesa reafirma (tendo em conta que o princípio da livre apreciação da prova é um princípio constitucional) como critério geral de apreciação da prova, o sistema da livre convicção, vinculando-o ao respeito pelas regras da experiência, e assinalando-lhe, ainda, algumas restrições que constituem condicionantes da apreciação valorativa (art. 127º do CPP).
A livre apreciação da prova traduz-se na possibilidade do julgador formar uma convicção pessoal de verdade dos factos, convicção essa, ainda assim, racional (i.e., assente em provas), assente em regras de lógica e experiência (i.e., inexpugnavelmente compatível com os princípios que se reconhece regularem mentalmente a gnose), objectiva (i.e., desprovida de subjectivismo injustificável, assente em elementos reais e externos ao Tribunal, afastando-se de meros conhecimentos ou presunções privadas Da pessoa que ocupa a posição de julgador) e comunicacional (i.e., intrinsecamente reflectida e claramente compreensível por terceiros).
A decisão sobre a matéria de facto há-de ser, por isso, o resultado de todas as operações intelectuais, integradoras de todas as provas oferecidas e que tenham merecido a confiança do juiz.
Nesse âmbito de argumentação racional, o julgador pode socorrer-se de regras da experiência ou máximas de experiência, isto é, juízos formados na observação do que comummente acontece e que, como tais, podem ser formados em abstracto por qualquer pessoa de cultura média. Em substância, as presunções ditas naturais, de facto, simples ou de experiência são consequências, ou seja, assunções que o juiz, como homem, e como qualquer homem criterioso, atendendo à ordem natural das coisas – quod plerumque fit – extrai dos factos da causa, ou das suas circunstâncias, e nas quais assenta sua convicção quanto ao facto probando.
É tempo, portanto, de expor a fundamentação da presente decisão.
A) Perante o objecto do processo, tal como exposto na acusação/pronúncia, o arguido assumiu em julgamento a verificação e/ou a prática de vários dos factos aí descritos, nomeadamente, os factos respeitantes ao exercício e funções (factos provados nºs 1 a 11), vários dos factos respeitantes à actuação concreta na Acção Executiva nº 3015/10.7TBVFR (factos provados nºs 12 a 15, 17, 18 e 20) e vários dos factos respeitantes à actuação concreta na Acção Executiva nº 39/13.6TBVLF (factos provados nºs 25 a 31).
De resto, grande parte dos factos que constavam da acusação é sustentada por documentos que constam dos autos (elencados como meios de prova na acusação/pronúncia), acrescendo os documentos juntos pelo arguido com o requerimento de abertura de instrução (essencialmente o doc. nº 1) e os documentos juntos aos autos no decurso do julgamento:
- Documento de fl. 15 (informação da CAAJ, respeitante ao processo disciplinar do arguido);
- Documento de fls. 16 a 48 (decisão da Comissão de Disciplina dos Auxiliares da Justiça, incluindo relatório final do Processo Disciplinar nº 58/2002);
- Documento de fl. 49 (cópia da cédula profissional do arguido);
- Documento de fl. 58 (informação da CAAJ, incluindo o bloqueio a débito das contas-clientes);
- Documento de fls. 59 a 61 (certidão permanente da sociedade G…, Unipessoal, Lda.);
- Documento de fls. 84 a 90 (certidão permanente da sociedade K…, Lda.);
- Documentos de fls. 107 e 150 (informações do Processo nº 3015/10.7TBVFR);
- Documento de fl. 134 (informação da L…, CRL, relacionada com o Processo nº 3015/10.7TBVFR);
- Documento de fl. 139 (cópia da notificação enviada à L…, CRL, para penhora de saldos bancários, no âmbito do Processo nº 3015/10.7TBVFR);
- Documentos de fls. 179 e 180 (declarações emitidas pelo arguido de recebimento de quantias monetárias no âmbito do Processo nº 39/13.6TBVLF);
- Documento de fls. 181 e 182 (informação do registo predial no âmbito do Processo nº 39/13.6TBVLF);
- Documento de fls. 183 a 190 (troca de emails entre o arguido e C… no âmbito do Processo nº 39/13.6TBVLF);
- Documentos de fls. 197 a 199 e 205 a 207 (informação prestada por C… e E…, relativa ao Processo nº 39/13.6TBVLF);
- Documentos de fls. 210, 304 e 459 (informações da L…);
- Documentos de fls. 211 a 304 (informação e extractos bancários do O…, respeitantes a contas do arguido);
- Documentos de fls. 367 e 368 (recibos passados pelo arguido a E…, relativos ao Processo nº 39/13.6TBVLF);
- Documento de fls. 390 a 392 (informação prestada pela Solicitadora Liquidatária Q…, relativa ao Processo nº 3015/10.7TBVFR);
- Documento de fls. 411 a 417 (informação prestada pela Solicitadora Liquidatária Q…: print do histórico do Processo nº 3015/10.7TBVFR existente no sistema GPESE);
- Documentos de fls. 424, 526, 573 e 574 a 581 (informações da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução);
- Documentos de fls. 438 a 447 (informação e extractos bancários do O…, respeitantes a contas do arguido);
- Documentos de fls. 636 a 663 (troca de emails entre o arguido e D… e documentação conexa, relativa ao Processo nº 39/13.6TBVLF);
- Anexo I: Certidão do Processo nº 39/13.6TBVLF;
- Anexo II: Certidão do Processo nº 3015/10.7TBVFR.
- Documentos bancários juntos pelo arguido em julgamento;
- Documentos juntos pelo Administrador de Insolvência em julgamento.
Perante o acervo documental acabado de expor e perante a posição do arguido em julgamento (e já plasmadas na contestação junta aos autos), a prova testemunhal produzida em julgamento serviu apenas de complemento para algumas das questões ainda em discussão, nos termos a concretizar à frente.
Cumpre abordar, portanto, as questões que ainda se mostram em discussão nos autos, respeitantes à «actuação concreta» (Processo nº 3015/10.7TBVFR e Processo nº 39/13.6TBVLF).
A) Acção executiva nº 3015/10.7TBVFR:
Perante a evidência da transferência do montante de € 10.000,00 da conta-cliente exequentes para uma sua conta bancária particular (evidência documentalmente comprovada e admitida pelo arguido), entre Janeiro e Março de 2011 (€ 3.000,00 + € 1.000,00 + € 3.000,00 + € 3.000,00), o arguido justificou tal movimentação bancária com fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos, refutando que tivesse havido qualquer apropriação daquele valor (como afirma a acusação) e argumentando que só no final dos autos executivos (com a apresentação da conta final de despesas e honorários) é que pode ser feito um apuramento do montante dos honorários e despesas devidas e do destino da quantia de € 10.000,00. No entanto, o arguido reconheceu em julgamento que o montante de € 10.000,00 é excessivo para os honorários devidos naquela execução.
A Portaria nº 282/2013, de 29-08 (com as várias alterações sofridas após a sua publicação), regulamenta vários aspectos das acções executivas cíveis, aí se incluindo a remuneração do agente de execução (art. 43º: “o agente de execução tem direito a receber honorários pelos serviços prestados, bem como a ser reembolsado das despesas que realize e que comprove devidamente, nos termos da presente portaria”).
Os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efectuadas serão satisfeitos, em primeira linha, pelo produto dos bens penhorados.
Prevê a lei, no entanto, o adiantamento de honorários ao agente de execução, pelo exequente, através de um sistema de fases (Fases 1 a 4), estando os respectivos montantes fixados na Tabela do Anexo VI da mencionada Portaria (estando igualmente prevista a possibilidade de reforço de provisão).
Os critérios de fixação dos honorários do agente de execução estão igualmente previsto na mencionada Portaria, estando o agente de execução obrigado a aplicar as tarifas legais, que compreendem uma parte fixa, estabelecida para determinados tipos de actividade processual, e uma parte variável, dependente da consumação dos efeitos ou dos resultados pretendidos com a sua actuação.
Estão ainda previstos na mencionada Portaria obrigações de informação sobre honorários e despesas, a cargo do agente de execução.
Observe-se que o estabelecimento, no Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (que substituiu o Estatuto da Câmara dos Solicitadores), da possibilidade de o solicitador requerer provisões por conta de honorários ou para pagamento de despesas não invalida a aplicação obrigatória das regras fixadas na Portaria atrás mencionada.
Observe-se também que o Código de Processo Civil (art. 735º), ao estabelecer que a penhora deve limitar-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, estabelecendo presunções de valor destas últimas em face do valor da execução, não está a regular directamente a matéria dos honorários do agente de execução, na vertente da sua fixação, mas antes a regular os limites objectivos da penhora.
Repare-se que, no auto de penhora da execução em análise, o agente de execução, aqui arguido, referiu, no campo respeitante ao «limite da penhora», que as «despesas prováveis» ascenderiam ao montante de € 5.395,67 (cfr., por ex., doc. de fl. 135vº e 136 dos autos), respeitando assim o valor de 20% do valor da execução previsto no art. 735º, nº 3, do CPC e aplicável àquela concreta execução.
Afigura-se igualmente evidente, perante a exposição precedente, que os honorários do arguido, enquanto agente de execução nomeado no Processo nº 3015/10.7TBVFR, nunca ascenderiam ao montante de € 10.000,00 (tendo o próprio arguido assumido que este valor é excessivo, como já foi salientado) e, por outro lado, a provisão (ou adiantamento) de honorários nunca poderia ter sido feita da forma que o foi.
Ainda numa outra vertente, cumpre analisar sucintamente a matéria das contas-cliente.
O agente de execução deve ter, pelo menos, duas contas-cliente à sua ordem, uma com a menção da circunstância de se tratar de uma conta-cliente dos exequentes e a outra com a menção de se tratar de uma conta-cliente dos executados, nas quais obrigatoriamente deposita: a) Nas contas-cliente dos exequentes, todas as quantias destinadas a taxas de justiça, despesas e honorários; b) Nas contas-cliente dos executados, todas as quantias recebidas e destinadas ao pagamento da quantia exequenda e aos demais encargos com o processo.
As quantias depositadas nas contas-cliente não constituem património próprio do agente de execução, mas antes patrimónios autónomos.
A verificação de falta de provisão nas contas-cliente, de existência de indícios de irregularidade na respectiva movimentação, bem como a falta de registo dos valores recebidos e pagos nas contas-cliente, constitui fundamento para a instauração de processo disciplinar.
No caso da execução em análise, o documento junto a fls. 412 a 417 (print do histórico do Processo nº 3015/10.7TBVFR existente no sistema GPESE), a par do depoimento da testemunha C… (antiga funcionária do escritório do arguido, com entrada em funções em data posterior aos factos relevantes para o Processo nº 3015/10.7TBVFR, mas cujo nome surge associado a este processo porque fez a conciliação bancária dos movimentos a crédito e a débito) evidenciam que, a partir de 12/07/2010, existem movimentações anormais (ou com registo anormal no GPESE, visto que pode ser dada uma ordem de pagamento/transferência sem ser registada e pode ser registada uma operação no sistema sem correspondência com a realidade), nomeadamente, no que respeita a pagamentos ao exequente (e/ou “entrega de resultados”) e no que respeita à movimentação entre contas-cliente dos exequentes e dos executados.
Perante o exposto, fácil é concluir que o arguido praticou um ilícito ao transferir o montante de € 10.000,00 da conta-cliente exequentes para uma sua conta bancária particular (quando o arguido admite ou assume que aquela quantia é excessiva para os honorários devidos ou potencialmente devidos, está a admitir a prática de um acto ilícito; de igual modo, os procedimentos adoptados pelo arguido para a transferência da dita quantia evidenciam a prática de um ilícito).
Resta saber se a actuação do arguido tinha o propósito de apropriação do montante de € 10.000,00 (como pretende a acusação – cfr. arts. 16, 19, 31 e 32).
É sabido que a determinação da componente subjectiva do crime suscita, por vezes, especiais dificuldades.
Afirma-se, a propósito, que, não sendo possível escrutinar os pensamentos do agente no momento em que actuou (a intenção com que o agente actua habita nos arcanos inexpugnáveis do ser humano), a intenção tem de ser deduzida de factos exteriores, perceptíveis e provados.
É aqui que entra a prova «indirecta» ou «indiciária» (entendendo-se aqui o «indício» no rigoroso sentido de «circunstância certa a partir da qual, por indução lógica, se pode alcançar uma conclusão acerca da existência de um facto a provar»).
Como é facilmente reconhecido, a ausência de provas directas não implica necessariamente o fracasso da acusação.
Nem o recurso à prova por presunções naturais, de facto, simples ou de experiência equivale, particularmente no caso do Direito Penal, à condenação com base em simples conjecturas, meras suspeitas, ou equívocas aparências.
É que pode dar-se o caso de ocorrência de vários indícios numa mesma direcção, possuindo tais indícios uma elevada carga de persuasividade, permitindo, pois, que se alcance a certeza jurídica que legitima a condenação do arguido.
Como é referido no Ac. STJ, de 07/04/2011 (relator: Santos Cabral; in www.dgsi.pt), para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime, nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é, desde logo, a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória.
Ora, analisada a prova (e os indícios dela resultantes), nos termos a concretizar de seguida, a convicção do tribunal é no sentido da inexistência de resolução de apropriação por parte do arguido, verificando-se, no entanto, o uso indevido pelo arguido da referida quantia monetária.
Se a ausência de intenção de apropriação surge claramente afirmada pelo arguido nas suas declarações (referindo o arguido, a título complementar, que tal quantia se destinava a honorários, apesar de reconhecer ser exagerada tal quantia face aos honorários a que tinha direito, e que Inspecção da CPEE não viu qualquer irregularidade no processo físico da acção executiva nº 3015/10.7TBVFR existente no seu escritório, conforme resulta, aliás, da prova documental junta aos autos), a credibilidade de tais declarações obtém corroboração na circunstância de a transferência por este efectuada corresponder a uma parte da quantia penhorada (se o arguido pretendesse a apropriação da quantia penhorada, certamente teria transferido a totalidade de tal quantia; a transferência de uma parte da quantia penhorada obtém aderência com a tese da movimentação ter como fundamento a garantia dos honorários, o que exclui a intenção de apropriação).
Contudo, porque ficou demonstrado (e reconhecido pelo arguido) que a quantia transferida era excessiva, face aos honorários (e despesas) que seriam devidos, porque os procedimentos adoptados pelo arguido para a transferência da dita quantia surgem desviados do programa legal aplicável e porque o arguido afirmou pretender fazer um encontro de contas no momento próprio do processo (mas entretanto ficou suspenso de funções e ficou privado do acesso aos processos e á movimentação das constas-cliente), entende o tribunal ter ficado provada uma situação de uso indevido da quantia monetária em análise (no quadro de um crime de peculato de uso).
É certo que não ocorreu a restituição pelo arguido da quantia monetária em análise (€ 10.000,00), elemento típico implícito do crime de peculato de uso.
Contudo, se tal restituição está relacionada com o encontro de contas a fazer (i.e., o arguido terá direito a receber honorários pelo desempenho da função de agente de execução), há que dizer que, a partir de certa altura, tal encontro de contas deixou de ser possível (dada a situação de suspensão de funções pelo arguido e falta de acesso às contas – cliente, sendo certo que estas contas possuem fundos monetários, conforme resulta dos documentos juntos aos autos).
É esta a fundamentação do tribunal para a matéria da «actuação concreta» do arguido na «acção executiva nº 3015/10.7TBVFR», com consequente reflexo no estabelecimento dos factos provados e não provados (factos relevantes alegados na acusação/pronúncia ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa).
B) Acção executiva nº 39/13.6TBVLF:
Perante a evidência do recebimento do montante de € 7.500,00, mediante entrega em dinheiro pelo executado e pelo filho deste em representação daquele (facto sobre o qual existiu consenso nos autos), o arguido justificou a ausência de entrega daquele valor à exequente K…, Lda., ou à respectiva massa insolvente, com a existência, a seu favor, de um crédito sobre a exequente (e/ou respectiva massa insolvente), relativo a despesas e honorários da função de agente de execução desempenhada em vários processos em que aquele sociedade foi exequente, sendo ainda certo que as notas de honorários foram enviadas ao Administrador de Insolvência e este, após ter recebido transferências do arguido, não liquidou as referidas notas, razão pela qual o arguido lhe comunicou que não iria transferir qualquer quantia exequenda enquanto não fossem pagas as notas despesas e honorários em dívida. Refutou assim o arguido a existência de qualquer apropriação daquele valor (como afirma a acusação), afirmando que a sua actuação estava coberta por uma retenção lícita daquele valor.
Analisada a prova (e os indícios dela resultantes), nos termos a concretizar de seguida, a convicção do tribunal é no sentido da inexistência de resolução de apropriação por parte do arguido (ou resolução de uso indevido pelo arguido da referida quantia monetária).
Se a ausência de intenção de apropriação surge claramente afirmada pelo arguido nas suas declarações, a credibilidade de tais declarações obtém corroboração em várias circunstâncias plasmadas nos meios de prova juntos aos autos (acima elencados), a que acresce o teor dos depoimentos das testemunhas E… e C….
Desde logo, o arguido, apesar de ter recebido em dinheiro a quantia em análise (€ 7.500,00), logo emitiu ao executado (ou seu filho) declarações de recebimento de tais quantias, depositou tal quantia na conta-cliente executado e promoveu o levantamento da penhora do imóvel junto da conservatória do registo predial, tanto bastando para infirmar a tese da intenção de apropriação (se o arguido pretendesse a apropriação da quantia em causa, não tinha adoptado estes procedimentos).
Depois, a existência do crédito que o arguido invocou para não entregar a quantia em causa à exequente, nem a depositar à ordem da massa insolvente, encontra suporte em vários documentos juntos aos autos (notas de honorários e troca de emails com o Administrador de Insolvência - fls. 636 a 663 dos autos), desvalorizando o teor do depoimento da testemunha D… (o qual, de resto, afirmou várias vezes não se recordar dos factos) e valorizando as declarações do arguido. E ainda que se possa discutir, in casu, a bondade jurídica da invocação de um direito de retenção ou a invocação de um direito de compensação, o certo é que as apontadas circunstâncias contribuem para infirmar a tese da intenção de apropriação.
É esta a fundamentação do tribunal para a matéria da «actuação concreta» do arguido na «acção executiva nº 39/13.6TBVLF», com consequente reflexo no estabelecimento dos factos provados e não provados (factos relevantes alegados na acusação/pronúncia ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa).
B) No que respeita aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal valorou o teor do CRC junto aos autos.
C) No que respeita às condições pessoais, familiares, sociais e económicas do arguido, cumpre referir que o arguido não colaborou na elaboração de relatório social.
D) No que respeita aos factos da perda de vantagens (facto não provado nº 10), importa referir que, no peculato de uso, não há apropriação, logo não há incremento patrimonial, logo não há perda de vantagens.
E) No que respeita aos factos da perda alargada de bens, importa distinguir os factos provados nºs 34 a 36 do facto provado nº 37.
Assim, quanto ao primeiro grupo de factos, o tribunal valorou o teor do Relatório Final elaborado pelo GRA, datado de Maio de 2019, junto a fls. 359 a 373 do Apenso de Investigação Patrimonial e Financeira (Apenso C) e respectivo Anexo A.
Cumpre referir que havia sido elaborado outro Relatório Final, em Dezembro de 2018 (no qual havia valores diferentes para algumas das parcelas), mas este Relatório foi desvalorizado, face à maior actualidade do Relatório de Maio de 2019 (conforme é neste referido), sendo esta a razão para a discrepância de valores apontada pelo arguido na contestação.
Quanto ao facto provado nº 37, o tribunal valorou o teor das declarações do arguido em julgamento, as quais, nesta parte, mereceram credibilidade, em face da forma pormenorizada como foram prestadas (concluindo o arguido, após a explicação das parcelas que alegou na contestação e confirmou em julgamento, apenas não conseguir justificar movimentos a crédito em valor que oscila entre os € 5.000,00 e os € 10.000,00).»
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que os recorrentes colocam à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Erro notório.
- Contradição insanável entre a matéria dada como provada e não provada.
-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
-Erro de julgamento.
-Pena acessória de proibição do exercício de função.
-Incidente de liquidação na perda alargada de bens.
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Vejamos.
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Dos vícios.

Inicia o recorrente a sua motivação imputando à decisão recorrida os vícios do erro notório na apreciação da prova, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e a contradição insanável entre a matéria dada como provada e não provada, alegando que a mesma enferma de uma má e relevante apreciação da matéria de facto, com notório erro na sua apreciação e por existir contradição insanável entre a matéria dada como provada e não provada; em relação à primeira situação (ação executiva nº3015/10.7TBVFR), nos termos do artigo 410º nº1 al. b) e c), do CPP e por insuficiência dos factos provados nos itens 33º da matéria dada como provada e em relação ao segundo imputado crime de peculato (ação executiva nº39/13.6TBVLF) e nos termos do artigo 410º nº1 al. a) do CPP e também ainda neste segundo caso por contradição também insanável entre a matéria de facto provada e não provada (410º nº1 al. b) do CPP).
Especificando relativamente à primeira ação executiva refere que Assim e em relação ao primeiro vicio de natureza formal, previsto no artigo 410º nº1 al. b), do CPP, dir-se-á que, o Tribunal de tal forma procurou minimizar e até mesmo desculpabilizar a atuação do arguido que se contradiz e fê-lo, por forma insanável, quanto a esta primeira situação e crime de peculato, porquanto dá como provada a apropriação e utilização de uma determinada quantia em seu proveito, as quais foram movimentadas a débito da conta cliente exequentes e transferidas para a sua conta particular, ficando esse dinheiro disponível e temporariamente na posse do arguido (itens 16º, 18º, 19º) e passamos a citar: “
“…16. Com efeito, tendo na sua disponibilidade esta quantia monetária, o arguido formulou a resolução de utilizar temporariamente parte deste dinheiro em seu proveito, com o propósito de oportunamente o restituir.
………………………………………
………………………………………
………………………………………
18. Destes 20.000,00 €, o arguido deu ordem de transferência da quantia de 10.000,00 € da conta bancária nº ……….. (conta cliente exequentes) para crédito na conta bancária particular de que é titular com o nº ……….., nas datas e pelos seguintes montantes:
- Em 31-1-2011, da quantia de 3.000,00 €;
- Em 9-2-2011, da quantia de 1.000,00 €;
- Em 18-2-2011, da quantia de 3.000,00 €; e
- Em 11-3-2011, da quantia de 3.000,00 €.
19. Em consequência e por determinação do arguido, estas quantias monetárias foram movimentadas a débito da conta cliente exequentes e transferidas para a sua conta particular, ficando esse dinheiro disponível e temporariamente na posse do arguido, que o pretendia restituir oportunamente………………..”;
E, por outro lado, ao dar como não provado essa mesma intenção apropriativa nos seus itens 1º a 4º e passamos igualmente a citar:
“- Acção executiva nº 3015/10.7TBVFR:
1. O arguido formulou a resolução de se apoderar de parte deste dinheiro e gastá-lo em seu proveito.
2. Este dinheiro ficou definitivamente na posse do arguido, que dele se apoderou, fazendo-o coisa sua e gastando-o em seu proveito.
3. O arguido actuou com o propósito concretizado de se apoderar e fazer sua aquela quantia monetária, que ilegitimamente integrou no seu património e que utilizou em benefício e proveito próprio, ciente, portanto, de que não o podia fazer coisa sua.
4. O arguido, ao se apropriar da quantia que se apropriou, violou os deveres funcionais de probidade e fidelidade a que, enquanto agente de execução e funcionário, estava vinculado no exercício do cargo, atentando contra a integridade do exercício dessas funções, contra o bom andamento e imparcialidade da Administração Pública e contra a administração da Justiça, ao mesmo tempo que atentou contra a tutela de bens patrimoniais de terceiros.”;
O douto Tribunal “ad quo”, entrou em contradição insanável nessa mesma parte e em relação a este primeiro crime de peculato referente ao processo executivo nº3015/10.7TBVFR.
Assim sustentando o vício da contradição e igualmente o erro notório com recurso igualmente à fundamentação da decisão E, ao mesmo tempo, por outro lado, na fundamentação da matéria de facto (cfr.25 do acórdão):
- se dá como assente, com base nas declarações do próprio arguido, que a justificação da transferência de tal quantia ocorre por conta do adiantamento da cobrança de honorários e despesas do processo.
É este o trecho da decisão:
- “Perante a evidência da transferência do montante de € 10.000,00 € da conta-cliente exequentes para uma sua conta bancária particular (evidência documentalmente comprovada e admitida pelo arguido, entre Janeiro e Março de 2011 (3.000,00 € + 1.000,00 € + 3.000,00 € + 3.000,00 €), o arguido justificou tal movimentação bancária com fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos, refutando que tivesse havido qualquer apropriação daquele montante (como afirma a acusação) e argumentando que só no final dos autos executivos (com a apresentação da conta final de despesas e honorários) é que pode ser feito um apuramento do montante de honorários e despesas devidas e do destino da quantia de € 10.000,00. No entanto, o arguido reconheceu em julgamento que o montante de € 10.000,00 é excessivo para os honorários devidos naquela execução”.
Numa acção executiva onde havia sido penhorada a quantia de 33.500,00 €, a transferência da quantia de 10.000,00 €, repartida em 4 tranches (3.000,00 €; 1.000,00 €; 3.000,00 €; e 3.000,00 €) e realizada em momentos temporais distintos, para uma conta particular, tem ínsito, no concreto contexto dos factos provados e da fundamentação da matéria de facto, se apreciada à luz das regras da experiência comum, a intenção de apropriação desse montante.
Quando se afirma a transferência do dinheiro por conta dos honorários, ainda que em valor excessivo (até porque, no facto provado 20, já se dá como provado que o arguido cobrara, nessa mesma acção, a título de provisão por despesas e honorários, a quantia de 250,92 €), não se pode afirmar que o arguido não pretendeu fazer seu esse dinheiro.
Esta transferência, “cobrança” ou “adiantamento” ou “garantia” de honorários é, isso sim, incompatível com o propósito de utilização temporária do dinheiro e de o oportunamente o restituir, facto dado como provado no ponto 21 dos factos provados.
E Em relação ao outros apontados vícios de forma, referente ao processo executivo nº39/13.6TBVLG, diremos também que a matéria dada como provada no seu item 33º se revela, de todo, insuficiente para que pudesse concluir-se de tal forma negativa e julgar-se improcedente este crime de peculato imputado ao arguido, porquanto num conjunto de dívidas que o mesmo podia ter face à massa insolvente, não se menciona quais aquelas que concreta e efetivamente, possuía;
Resta-nos, pois questionar, quais eram essas notas de honorários, e incumbia ao arguido, identifica-las; o que não fez!
Só assim se poderia eventualmente falar em direito de retenção, face ao que se deu como provado no item 31º!
Acrescente-se que esta insuficiência para a decisão da matéria de facto e contradição insanável da fundamentação, vícios previstos no art. 410º, nº 2, als. a) e b) do CPP, que resultam do texto da própria decisão quando:
- Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto, se dá como provado e se fundamenta a matéria de facto, para afastar a intenção de apropriação da quantia 7.500,00 € cobrada na acção executiva 39/13.6TBVLF, na existência de solicitações de pagamento e várias notas de despesas e honorários em dívida, ou seja, num pretenso direito de retenção/compensação do arguido face ao administrador de insolvência da massa insolvente exequente nessa acção, e não se apura, então, qual o valor da dívida do administrador de insolvência para com o arguido; quais as datas e os montantes das alegadas notas de honorários;quando e de forma foram enviadas; onde está, se está, instaurada a acção de honorários destinada à cobrança desses montantes (que o arguido nunca instaurou) – cfr. factos provados 28 a 33; factos não provados 6 a 8; e fundamentação da matéria de facto a fls25 parágrafo 4 e 5, do acórdão);
- Relativamente à contradição insanável da fundamentação, se dá por assente, para afastar a intenção de apropriação da quantia 7.500,00 € cobrada na acção executiva 39/13.6TBVLF, a existência de um quadro de facto reconduzível ao instituto do direito de retenção/compensação do arguido face ao administrador de insolvência da massa insolvente exequente nessa execução e, ao mesmo tempo, se questiona a conformidade jurídica dessa mesma realidade. Tanto mais quando, nesta acção executiva, se dá como provado que o arguido cobrou de honorários a quantia de 750,00 €, que recebeu (cfr (cfr. facto provado 31 e fundamentação da matéria de facto a fl35 do acórdão);

É jurisprudência pacífica a que considera que os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detetáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente percetíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Os vícios contemplados no art. 410º do CPP são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação comum, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir, tanto ao nível da matéria de facto, como de direito.
Tais vícios (ou, como também são designados, erros-vícios) não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.

Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada «quando a decisão de direito não encontre na mesma matéria uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo que permita a conclusão.»[2]
Concretizando:
«III - O vício da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - reside em se não terem considerado provados factos, imprescindíveis para se poderem ter por preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, ou para se considerarem verificados outros factores que moldaram a condenação. Sublinhe-se, que moldaram a condenação, e não, que deviam ter moldado a condenação. Este vício surge quando teria sido preciso que se tivessem dado por provados outros factos para que a condenação tivesse surgido como surgiu.
IV - O vício em questão manifesta-se perante a decisão que foi proferida e não perante uma decisão que o arguido gostaria de ter visto ser proferida. A insuficiência da matéria de facto provada é aferida perante a decisão que foi realmente proferida.»[3]

A insuficiência tem de existir internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão, que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que são coisas distintas, e como tal não podem ser confundidas.
I. A insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o Tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo; na segunda censura-se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal. II. O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo á impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa”.
O vício elencado na al. c) do nº 2 do art. 410º/CPP – que se traduz no desacerto, no equívoco ostensivo e evidente que não passa despercebido ao observador comum ou, na expressão do Ac. do STJ de 06.04.1994 (CJ STJ, II, 2, p. 186) “como facto de que todos se apercebem directamente, ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório”.
“O erro notório na apreciação da prova é um vício da matéria de facto, que, como decorre do n.º2, do artigo 410º do CPP, tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
No erro notório na apreciação da prova estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente ou escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Todavia, a fim de obstar a que o preceito perca grande parte do seu interesse prático também vem sendo entendido, que integrará o erro notório aquele erro que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada. E para assegurar a notoriedade do erro basta que ela ressalte do texto da decisão recorrida ainda que devidamente escrutinada e sopesada à luz das regras da experiência. Por outro lado, vem sendo entendido que não configura um erro claro e patente uma apreciação da prova que se traduza numa leitura possível, aceitável, razoável, da mesma prova”- Ac. da RP 15.10.2014, (proc. nº 469/11.8JPRT).
Este erro é pacificamente aceite como aquele em que incorre o tribunal de modo ostensivo, evidente aos olhos de um observador comum, patente a esse homem de formação média – Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3.º volume, página 326, e por exemplo, Ac. da R. Coimbra de 17/12/2014, www. dgsi.pt -.
Ora, a violação de análise de regras de experiência poderia ser um dos motivos para sustentar um tal erro no sentido de que o tribunal valorava regras de experiência que entendia como existentes quando afinal não existiam ou valorava tais regras existentes num sentido contrário àquele que as mesmas determinavam.
E por último o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ocorre “(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1999, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III, p. 184.
Ou nas palavras de M.Simas Santos e M.Leal Henriques, “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al.b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”. Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol, pág.379.

Como se sabe, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova e contradição insanável (defeitos decisórios invocados e integrantes do nº 2 do art. 410º do CPP) e erro de julgamento são realidades diferentes: o erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada não pode conduzir à matéria de facto que foi dada como provada, enquanto o erro notório tem que ser ostensivo, prescinde da análise da prova produzida, para se centrar exclusivamente no texto da decisão recorrida, isolada ou de forma conjugada com as regras da experiência comum.

Assim, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, pressupõe que a decisão de direito proferida não encontre na matéria de facto provada uma base sólida e consistente que a suporte: traduz-se, pois, numa insuficiência dos factos provados para a conclusão jurídica exposta no texto da decisão recorrida [nesse sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-04-2004, in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XII, tomo II, pp. 166-167].
No caso do vício de erro notório na apreciação da prova exige-se a evidência de um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores da decisão recorrida e que se traduza em uma conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, 200.
No caso da contradição, como salienta o Ac. da RL de 21-05-2015 (proc. nº 3793/09.6TDLSB.L1-9) “O vício em apreço [contradição insanável de fundamentação], como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso á decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Transpondo para o caso concreto os conceitos enunciados, cabe desde já dizer que o recorrente invoca os vícios prevenidos no nº2 do artº 410º do CPP fora das condições legais, uma vez que se limita a divergir do modo como o tribunal recorrido valorou a prova produzida em audiência.
Os vícios do artigo 410.º, nº 2 são, repetimos, vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.
Neste caso, o objeto da apreciação é apenas a peça processual recorrida.
Ora, compulsado o texto da decisão recorrida e vista a matéria de facto provada e não provada e respetiva motivação, bem como a decisão de direito que se baseou nesses elementos, há que concluir que a decisão proferida encontra ali suporte bastante e necessário – pois as conclusões de direito a que o Tribunal a quo chega estão suportadas pela matéria de facto fixada.
Pode o recorrente não concordar com a análise efetuada pelo Tribunal a quo e espelhada na decisão recorrida mas a mesma não padece de qualquer vício de lógica num no sentido apontado.

Concretizando, relativamente ao alegado erro notório, desde logo, lida a peça não ressalta à leitura tal erro. Contudo e como está intimamente relacionado com eventual erro de valoração da prova associado às regras da experiência, deixaremos para mais tarde a sua apreciação quando for de analisar eventual erro de julgamento.
Relativamente à invocada contradição entre factos provados e não provados ou entre estes e a motivação, ela não existe. O tribunal a quo claramente faz a distinção entre intenção de apropriação e intenção de uso do dinheiro com propósito de restituir. Da leitura dos factos 16,18 e 19 é isso que resulta em contraposição com o que dá como não provado em 1 a 4. O tribunal a quo não deu como provada a apropriação nos factos 16, 18 e 19, aliás refere-o expressamente “ formulou a resolução de utilizar temporariamente parte deste dinheiro em seu proveito com o propósito de oportunamente o restituir
A apropriação no crime de peculato tem de ser definitiva e isso não resulta daqueles factos, logo não colidem os mesmos com os factos dados como não provados, dado que não há resolução de apropriação no sentido do dinheiro ficar definitivamente na posse do arguido, inversão do título da posse da coisa, fazendo-a coisa sua e toda a fundamentação da decisão vai nesse sentido.
O recorrente faz uma valoração diferente do comportamento do arguido ao afirmar Na verdade como se pode afirmar que o arguido não teve efetiva intenção apropriativa (definitiva), quando ele próprio deu uma ordem de transferência de uma quantia de 10.000,00€ da conta cliente exequentes para crédito na conta bancaria de que é titular e em diversas datas (item 18 dos factos provados);
E, logo a seguir (item 19) se refere que esse dinheiro apenas ficou disponível e temporariamente na sua posse e que o pretendia restituir oportunamente;
Quando até ao presente não o fez!!!, mas aqui, como se compreenderá, já estamos no domínio de um eventual erro de julgamento e não do vício alegado.
Mais à frente diz o recorrente que haverá ainda contradição entre os factos não provados 1 a 4 e a fundamentação “Perante a evidência da transferência do montante de € 10.000,00 € da conta-cliente exequentes para uma sua conta bancária particular (evidência documentalmente comprovada e admitida pelo arguido, entre Janeiro e Março de 2011 (3.000,00 € + 1.000,00 € + 3.000,00 € + 3.000,00 €), o arguido justificou tal movimentação bancária com fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos, refutando que tivesse havido qualquer apropriação daquele montante (como afirma a acusação) e argumentando que só no final dos autos executivos (com a apresentação da conta final de despesas e honorários) é que pode ser feito um apuramento do montante de honorários e despesas devidas e do destino da quantia de € 10.000,00. No entanto, o arguido reconheceu em julgamento que o montante de € 10.000,00 é excessivo para os honorários devidos naquela execução”.
Todavia, o tribunal a quo dá uma explicação detalhada, para o que considera na sua convicção não ter havido apropriação “A Portaria nº 282/2013, de 29-08 (com as várias alterações sofridas após a sua publicação), regulamenta vários aspectos das acções executivas cíveis, aí se incluindo a remuneração do agente de execução (art. 43º: “o agente de execução tem direito a receber honorários pelos serviços prestados, bem como a ser reembolsado das despesas que realize e que comprove devidamente, nos termos da presente portaria”).
Os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efectuadas serão satisfeitos, em primeira linha, pelo produto dos bens penhorados.
Prevê a lei, no entanto, o adiantamento de honorários ao agente de execução, pelo exequente, através de um sistema de fases (Fases 1 a 4), estando os respectivos montantes fixados na Tabela do Anexo VI da mencionada Portaria (estando igualmente prevista a possibilidade de reforço de provisão).
Os critérios de fixação dos honorários do agente de execução estão igualmente previsto na mencionada Portaria, estando o agente de execução obrigado a aplicar as tarifas legais, que compreendem uma parte fixa, estabelecida para determinados tipos de actividade processual, e uma parte variável, dependente da consumação dos efeitos ou dos resultados pretendidos com a sua actuação.
Estão ainda previstos na mencionada Portaria obrigações de informação sobre honorários e despesas, a cargo do agente de execução.
Observe-se que o estabelecimento, no Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (que substituiu o Estatuto da Câmara dos Solicitadores), da possibilidade de o solicitador requerer provisões por conta de honorários ou para pagamento de despesas não invalida a aplicação obrigatória das regras fixadas na Portaria atrás mencionada.
Observe-se também que o Código de Processo Civil (art. 735º), ao estabelecer que a penhora deve limitar-se aos bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas previsíveis da execução, estabelecendo presunções de valor destas últimas em face do valor da execução, não está a regular directamente a matéria dos honorários do agente de execução, na vertente da sua fixação, mas antes a regular os limites objectivos da penhora.
Repare-se que, no auto de penhora da execução em análise, o agente de execução, aqui arguido, referiu, no campo respeitante ao «limite da penhora», que as «despesas prováveis» ascenderiam ao montante de € 5.395,67 (cfr., por ex., doc. de fl. 135vº e 136 dos autos), respeitando assim o valor de 20% do valor da execução previsto no art. 735º, nº 3, do CPC e aplicável àquela concreta execução.
Afigura-se igualmente evidente, perante a exposição precedente, que os honorários do arguido, enquanto agente de execução nomeado no Processo nº 3015/10.7TBVFR, nunca ascenderiam ao montante de € 10.000,00 (tendo o próprio arguido assumido que este valor é excessivo, como já foi salientado) e, por outro lado, a provisão (ou adiantamento) de honorários nunca poderia ter sido feita da forma que o foi.
Ainda numa outra vertente, cumpre analisar sucintamente a matéria das contas-cliente.
O agente de execução deve ter, pelo menos, duas contas-cliente à sua ordem, uma com a menção da circunstância de se tratar de uma conta-cliente dos exequentes e a outra com a menção de se tratar de uma conta-cliente dos executados, nas quais obrigatoriamente deposita: a) Nas contas-cliente dos exequentes, todas as quantias destinadas a taxas de justiça, despesas e honorários; b) Nas contas-cliente dos executados, todas as quantias recebidas e destinadas ao pagamento da quantia exequenda e aos demais encargos com o processo.
As quantias depositadas nas contas-cliente não constituem património próprio do agente de execução, mas antes patrimónios autónomos.
A verificação de falta de provisão nas contas-cliente, de existência de indícios de irregularidade na respectiva movimentação, bem como a falta de registo dos valores recebidos e pagos nas contas-cliente, constitui fundamento para a instauração de processo disciplinar.
No caso da execução em análise, o documento junto a fls. 412 a 417 (print do histórico do Processo nº 3015/10.7TBVFR existente no sistema GPESE), a par do depoimento da testemunha F… (antiga funcionária do escritório do arguido, com entrada em funções em data posterior aos factos relevantes para o Processo nº 3015/10.7TBVFR, mas cujo nome surge associado a este processo porque fez a conciliação bancária dos movimentos a crédito e a débito) evidenciam que, a partir de 12/07/2010, existem movimentações anormais (ou com registo anormal no GPESE, visto que pode ser dada uma ordem de pagamento/transferência sem ser registada e pode ser registada uma operação no sistema sem correspondência com a realidade), nomeadamente, no que respeita a pagamentos ao exequente (e/ou “entrega de resultados”) e no que respeita à movimentação entre contas-cliente dos exequentes e dos executados.
Perante o exposto, fácil é concluir que o arguido praticou um ilícito ao transferir o montante de € 10.000,00 da conta-cliente exequentes para uma sua conta bancária particular (quando o arguido admite ou assume que aquela quantia é excessiva para os honorários devidos ou potencialmente devidos, está a admitir a prática de um acto ilícito; de igual modo, os procedimentos adoptados pelo arguido para a transferência da dita quantia evidenciam a prática de um ilícito.(…) Ora, analisada a prova (e os indícios dela resultantes), nos termos a concretizar de seguida, a convicção do tribunal é no sentido da inexistência de resolução de apropriação por parte do arguido, verificando-se, no entanto, o uso indevido pelo arguido da referida quantia monetária.
Se a ausência de intenção de apropriação surge claramente afirmada pelo arguido nas suas declarações (referindo o arguido, a título complementar, que tal quantia se destinava a honorários, apesar de reconhecer ser exagerada tal quantia face aos honorários a que tinha direito, e que Inspecção da CPEE não viu qualquer irregularidade no processo físico da acção executiva nº 3015/10.7TBVFR existente no seu escritório, conforme resulta, aliás, da prova documental junta aos autos), a credibilidade de tais declarações obtém corroboração na circunstância de a transferência por este efectuada corresponder a uma parte da quantia penhorada (se o arguido pretendesse a apropriação da quantia penhorada, certamente teria transferido a totalidade de tal quantia; a transferência de uma parte da quantia penhorada obtém aderência com a tese da movimentação ter como fundamento a garantia dos honorários, o que exclui a intenção de apropriação).
Contudo, porque ficou demonstrado (e reconhecido pelo arguido) que a quantia transferida era excessiva, face aos honorários (e despesas) que seriam devidos, porque os procedimentos adoptados pelo arguido para a transferência da dita quantia surgem desviados do programa legal aplicável e porque o arguido afirmou pretender fazer um encontro de contas no momento próprio do processo (mas entretanto ficou suspenso de funções e ficou privado do acesso aos processos e á movimentação das constas-cliente), entende o tribunal ter ficado provada uma situação de uso indevido da quantia monetária em análise (no quadro de um crime de peculato de uso).
É certo que não ocorreu a restituição pelo arguido da quantia monetária em análise (€ 10.000,00), elemento típico implícito do crime de peculato de uso.
Contudo, se tal restituição está relacionada com o encontro de contas a fazer (i.e., o arguido terá direito a receber honorários pelo desempenho da função de agente de execução), há que dizer que, a partir de certa altura, tal encontro de contas deixou de ser possível (dada a situação de suspensão de funções pelo arguido e falta de acesso às contas – cliente, sendo certo que estas contas possuem fundos monetários, conforme resulta dos documentos juntos aos autos).
Donde mais uma vez, o tribunal a quo explica na sua ótica porque considerou o uso e não a apropriação, considerando o encontro de contas a final que ainda não fora possível concretizar com a suspensão de funções do arguido e o facto do agente de execução poder, para além dos honorários, adiantar cerca de 20% do valor da execução para eventuais despesas, ou seja, 5.395,67.A diferença para o que movimentou é excessiva, como foi admitido. Mas só a final é que se saberá se as despesas serão maiores ou menores e o montante a restituir.
Refere o M.P. que a cobrança, adiantamento ou garantia de honorários é incompatível com o propósito de utilização temporária do dinheiro e de restituição conforme dado como provado em 21. Não o é na ótica do tribunal a quo na medida em que no acerto final de contas, se for necessário o agente de execução poderá ou não ter de restituir aquilo de que se adiantou. De facto a Portaria estabelece também a obrigação do Exequente provisionar o Agente de Execução, no início de cada fase, com uma verba a título de honorários e despesas (art. 15º nº2), que será depositada na conta-cliente do exequente (art. 16º nº2). Tal provisão é uma quantia que se destina a acautelar a verba devida a título de honorários e despesas (art. 15º nº2) que previsivelmente será suportada no final da fase correspondente. Ou seja, no final de cada fase, o Agente de Execução cobra-se dos atos praticados, deduzindo os mesmos da provisão paga e depositada na conta-cliente do exequente, revertendo o eventual excesso de provisão para a fase seguinte ou para reembolso a final (art. 15º nº6 e 17º nº2). Na verdade, nos termos do art. 11º nº 1 da referida Portaria “o agente de execução tem direito a receber honorários pelos serviços prestados, bem como a ser reembolsado das despesas que realize e que comprove devidamente”, sendo que estes honorários apenas são devidos ao agente de execução, após a prática do ato ou procedimento e apenas são pagos no final da fase respetiva em que se encontre a execução (art. 19.º, n.º 1). Com o acerto a final visa-se que os honorários do solicitador sejam apurados no fim de qualquer assunto jurídico, pela contabilização de todas as despesas de escritório implicadas nessa mesma resolução, do valor do trabalho do solicitador tendo em conta o número de horas que dispensou para o processo, o valor das taxas de justiça e das custas processuais que o solicitador tenha liquidado por conta do cliente, o desconto das provisões que o cliente tenha entregue e, por fim, o apuramento do saldo final da conta de honorários, acrescido da aplicação das respetivas taxas legais. Uma vez efetuadas as referidas operações, obter-se-á a final a remuneração do solicitador pelo serviço que prestou. Contrariamente ao solicitador, o agente de execução encontra-se limitado, considerando que apenas pede provisões por conta de despesas e, eventualmente, por conta de honorários, de forma faseada, de acordo com o estipulado na respetiva Portaria e consoante as fases do processo executivo, conforme já se verificou, cobrando apenas os seus honorários a final, isto é, através da aplicação das tarifas que constam da respetiva Portaria, para apuramento dos seus honorários finais. Em suma, significa que o agente de execução apenas tem disponível a modalidade do acerto a final, com as devidas adaptações, considerando que apenas pode cobrar a sua remuneração no final, sem prejuízo de eventuais levantamentos de honorários através de provisões.
Não se divisa, pois a alegada contradição, mas sim interpretação diferente da realidade.

Relativamente à ação executiva n º 39/13.6 TBVLF

Diz o M.P. que o facto dado como provado em 33 é insuficiente pra que se pudesse concluir pela improcedência do crime de peculato, porquanto um conjunto de dívidas que o arguido pudesse ter face à massa insolvente não se menciona quais aquelas que concreta e efetivamente possuía.
Diz o facto 33º ” Após várias transferências do arguido para o Administrador de Insolvência da Exequente (Massa Insolvente da sociedade K…, Lda.) e solicitações de pagamento das suas várias notas de despesas e honorários em dívida (pois o arguido era Agente de Execução em várias execuções em que a K…, Lda. era exequente), sem que aquele Administrador de Insolvência liquidasse as referidas notas de despesas e honorários enviadas, o arguido comunicou telefonicamente ao Administrador de Insolvência que não iria transferir qualquer quantia exequenda enquanto não fossem pagas as notas de despesas e honorários em dívida.”
O tribunal a quo baseou-se, entre outros nos docs. de fls.636 a 663 e declarações do arguido e do administrador da massa insolvente que admitiu conversas sobre honorários do arguido e acertos de contas por fazer em face dos vários processos para cobrança que a massa detinha e haviam sido entregues ao arguido, cfr. o refere na motivação. Analisando tal documentação comprova-se a troca de e mails e a menção dos créditos, não de dívidas, que o arguido alegava possuir a título de despesas e honorários. Poderiam ter sido especificados, mas a eles se chega ao analisar-se a documentação supramencionada. Portanto, os elementos de prova existem e suportam o facto dado como provado. O próprio administrador afirma não se ter empenhado no pagamento de eventuais honorários por já ter notícias de processos disciplinares instaurados contra o arguido. Este facto por si, conjugado com os demais é suficiente para sustentar a interpretação que o tribunal a quo fez. Improcede, pois, o alegado vício da insuficiência ou qualquer contradição já que o tribunal a quo não se contradiz, sabendo que não estavam em causa os honorários da ação n º 39/13.6 que já haviam sido cobrados, mas os honorários doutras ações por pagar e por sua vez mesmo questionando da bondade da retenção, explica na fundamentação porque considerou não haver intenção de apropriação.
Em suma, da leitura da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se deteta qualquer falha lógica evidente, qualquer interferência no percurso lógico do texto que seja patente à leitura pelo cidadão mediano e que leve a concluir pela existência que uma qualquer inconsistência ou incoerência lógica, ou mesmo uma contradição de raciocínio.
No fundo, a invocação destes conceitos que no recurso se faz está ligada à ideia de que ocorreu uma errada avaliação da prova e não a uma imputação de verdadeiros erros de lógica da decisão.
Na verdade, na motivação que o recorrente apresenta, não são quaisquer falhas de lógica nos termos configurados pelo art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPPenal que constem da decisão impugnada que o mesmo pretende suscitar perante o Tribunal da Relação. O que o recorrente pretende é substituir a valoração que o Tribunal a quo efetuou pela sua própria valoração.
Ou seja, o recorrente não se centra na imputação de falhas lógicas – as previstas nas alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPPenal – ao “texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, antes fundamenta a sua impugnação na apreciação de prova produzida no decurso da audiência de discussão e julgamento

Ora, o erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria[4], agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exatamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal: «3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas».
Posto isto, da leitura do acórdão recorrido não pode dizer-se que o tribunal tenha deixado de investigar toda a matéria com interesse para a decisão final.
O tribunal a quo investigou tudo o que podia e conseguiu investigar, sendo que se não vislumbra que a prova produzida em audiência justificasse qualquer outra investigação suplementar.

O recurso em matéria de facto é entendido como um meio de reparar os vícios do julgamento em primeira instância não visando a obtenção de uma nova convicção assente em novo julgamento a realizar pelo tribunal superior, ou seja, e em resumo, não é admissível fazer-se o julgamento do julgamento.
O recorrente entendeu igualmente que a prova foi mal apreciada procedendo á impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o art.º 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e não agarrar-se ao vício do erro notório- Ac. da RL de 18/07/2013, proc. nº 1/05.2JFLSB.L1-3.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ªinstância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.° do C.P.P.).

Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412° do C.P.P.). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.°, nº 4. do C.P.P.” (Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28).
No caso destes autos, o recorrente diz quais são os pontos de facto que julga incorretamente julgados.
O recurso relativo à matéria de facto visa apreciar ou suprir hipotéticos vícios da sua apreciação em 1ª instância, e não encontrar uma nova convicção, mas tão só apurar se a convicção expressa pelo tribunal recorrido tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação pelo tribunal de recurso.
Parece-nos, por conseguinte, que deve o recurso improceder nesta pare, até por se tratar de matéria sujeita à livre apreciação da prova[5].
Como decidiu o Ac. Rel. Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos (carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ªinstância».
Para terminar este excurso, citamos um trecho do Ac. da R. G de 18.06.2012 (proc. nº 507/05.3GAEPS.G1): “À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.
Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado (Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
Conforme tem sido repetidamente afirmado, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não se destina a assegurar a realização de um novo julgamento, de um melhor julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância (Prof. Germano Marques da Silva, Código de Processo Penal, vol. II, Lisboa 1999, pág. 65; Cunha Rodrigues, Recursos, in O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, 1989, pág. 393; José Manuel Damião da Cunha, A estrutura dos recursos na proposta de Revisão do CPP - Algumas Considerações, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 8º, fasc. 2, Abril/Junho 1998, págs. 259-260; Vínicio Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra, 2008, págs. 848-849; na jurisprudência, os Acórdãos do TC n.º 59/2006, 677/99, 322/93, 124/90, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt e, entre outros, os Acórdãos do STJ de 11-11-2004, Proc.º n.º 04P3182, de 17-2-2005, Proc.º n.º 04P4324, de 17-3-2005, Proc.º n.º 05P129, 15/12/2005, Proc. 2951/05, de 23-3-2006, Proc.º n.º 06P547, de 20-7-2006, Proc.º n.º 06P2316, de 10/1/2007, Proc. 06P3518, de 31-5-2007, Proc.º n.º 07P1412, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e de 18-10-2006, in CJ, ACSTJ, ano XIV, tomo 3, pág. 210.) ( - «(…) O julgamento em 2ª instância não o é da causa, mas sim do recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa, em que estão presentes, face ao Código actual, alguns apontamentos da imediação (somente na renovação da prova, quando pedida e admitida) e da oralidade (através de alegações orais, se não forem pedidas e admitidas alegações escritas)» - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 59/2006, de 18/01/2006.).
Sendo certo que o tribunal a quo alcançou a sua convicção ponderando de forma conjugada e crítica toda a prova produzida em audiência de julgamento, debalde se encontra no recurso em causa alegação que infirme a formação de tal convicção, sendo que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova e outra é detectar-se no processo de formação da convicção do julgador erros claros de julgamento, posto que o recurso da matéria de facto deve incidir sobre provas que imponham decisão diversa e não simplesmente sobre provas que permitam decisão diferente.
Na verdade, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”( - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004.).
No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”( - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/3/2002, CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44; No mesmo sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 19/6/2002, 4/2/2004 e 16/11/2005, in www.dgsi.pt/jtrp. ).
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” (Prof. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, pág. 211.).
Conforme resulta da análise da motivação de facto acima transcrita, o tribunal a quo recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma objectiva e motivada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.
Através da motivação da decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido fica-se ciente do percurso efectuado pelo tribunal colectivo onde seguramente a racionalidade se impõe mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, espelhando aquela decisão a apreciação crítica da prova produzida, explicitando o resultado dessa apreciação e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum.
Por isso, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura há-de merecer, nesta parte, o juízo valorativo acolhido em 1ª instância” – fim de citação
No caso que aqui nos ocupa, a análise que o recorrente faz de alguma da prova produzida em audiência, por muito respeitável, douta, certeira e conveniente que seja, para o que aqui importa, não tem significado: a pretendida modificação da decisão de facto, só pode dar-se se e quando as provas por especificadas impuserem decisão diversa da recorrida, não bastando para o efeito, que apenas permitam decisão diversa, sob pena de inutilização da atividade do julgador.

Posto isto imporá a prova indicada pelo recorrente M.P. a mudança da matéria fáctica dada como provada e não provada?
Constata-se que o M. P faz uma interpretação diferente da prova, considerando que a convicção criada pelo tribunal a quo contraria as regras da experiência, de alguma forma invocando o vício do erro notório. Como atrás referimos este vício da lógica tem de ser patente e pode também ser detetado quando a argumentação contrarie as regras do bom senso.
Começando desde logo pelos factos referentes ao proc. 39/13.6TBVLG, a questão centra-se na intenção de apropriação.
Ora, ouvida e analisada a prova, nada impõe que se encontre outra versão diferente da encontrada pelo tribunal a quo. Este entende, versão que não contraria as regras da experiência, que o arguido aprovisionou-se dos honorários atinentes da ordem dos 750,00, obteve o pagamento da quantia exequenda de 7.500,00€, em 25.07.14 e levantou a penhora e só não entregou valor daquela quantia exequenda porque a massa insolvente exequente, não havia pago outras despesas e honorários doutros processos de execução que haviam sido entregues ao arguido. Invocando este um direito de retenção.
Ora, independentemente de ser lícito ou não recorrer ao instituto da retenção por parte de um agente de execução e não desconhecendo dúvidas e haver dissertações doutrinárias e jurisprudenciais sobre a temática o que sugere haver quem pudesse defendê-la, no domínio da intenção é possível poder concluir-se que o arguido ao invocar tal instituto - não entregar a quantia exequenda enquanto não se acertar contas com outros processos-, mantendo a quantia consigo, não quisesse apropriar-se de tal quantia até porque não se provou que o mesmo tivesse encaminhado tal quantia para outros fins de interesse próprio ou de terceiros. O que é certo é que em face da suspensão do arguido, as contas continuam por acertar, ver o depoimento da testemunha administrador da massa insolvente, pelo que é perfeitamente plausível pensar-se que o arguido convencido das suas razões achasse razoável nada mais entregar enquanto não lhe pagassem o que considerava devido. Ora este sentimento pode tirar-lhe a intenção de querer apropriar-se da quantia em questão.
De facto, mostra-se plausível e não contrária às regras da experiência a versão encontrada pelo tribunal segundo a qual o Arguido nunca se apoderou ou fez coisa sua ou utilizou e gastou em seu proveito a quantia total de € 7.500,00 que lhe haviam sido entregues por E… e por M… em representação daquele, o seu pai.
Tanto que, face aos pagamentos supramencionados, o Arguido informou a extinção da execução e o levantamento da penhora do imóvel conforme consta a fls. 320 a 322 dos presentes autos.
Sucede que, após várias transferências do Arguido para o Administrador da Insolvência da Exequente, a massa insolvente da K…, Lda., e solicitações de pagamento das suas várias notas de despesas e honorários em dívida (pois o Arguido era Agente de Execução em mais de 40 execuções em que a K… era Exequente), sem que aquele Administrador de Insolvência liquidasse qualquer uma das referidas notas de despesas e honorários enviadas, o Arguido comunicou telefonicamente ao Administrador de Insolvência que não iria transferir qualquer quantia exequenda enquanto não fossem pagas as notas de despesas e honorários em dívida.
O Administrador de Insolvência da massa insolvente de K… admitiu a existência da necessidade de acertos de conta e honorários por eventualmente por pagar ao Arguido e que o Arguido comunicou ter o valor de “cerca de € 7.000,00” a entregar. O arguido referiu “só lhe entregaria caso o Administrador de Insolvência lhe pagasse os honorários” devidos.
O Arguido referiu que já havia transferido quantias exequendas com a promessa do Administrador de Insolvência de que após as mesmas lhe pagaria o valor das notas de despesas e honorários em dívida, sem que das duas vezes o tivesse feito.
Assim, o arguido justificou a ausência de entrega daquele valor à exequente K…, Lda., ou à respetiva massa insolvente, com a existência, a seu favor, de um crédito sobre a exequente (e/ou respetiva massa insolvente), relativo a despesas e honorários da função de agente de execução desempenhada em vários processos em que aquele sociedade foi exequente, sendo ainda certo que as notas de honorários foram enviadas ao Administrador de Insolvência e este, após ter recebido transferências do arguido, não liquidou as referidas notas, razão pela qual o arguido lhe comunicou que não iria transferir qualquer quantia exequenda enquanto não fossem pagas as notas despesas e honorários em dívida. Refutou assim o arguido a existência de qualquer apropriação daquele valor (como afirma a acusação), afirmando que a sua atuação estava coberta por uma retenção lícita, na sua perspetiva, daquele valor.
Face ao exposto, é plausível a versão acolhida pelo tribunal a quo quanto a inexistência de resolução de apropriação por parte do arguido (ou resolução de uso indevido pelo arguido da referida quantia monetária). Se a ausência de intenção de apropriação surge claramente afirmada pelo arguido nas suas declarações, a credibilidade que o Tribunal a quo lhe conferiu adveio dos vários meios de prova juntos aos autos, a que acresceu o teor dos depoimentos das testemunhas E… e C….
Desde logo, o arguido, apesar de ter recebido em dinheiro a quantia em análise (€ 7.500,00), logo emitiu ao executado (ou seu filho) declarações de recebimento de tais quantias, depositou tal quantia na conta-cliente executado e promoveu o levantamento da penhora do imóvel junto da conservatória do registo predial, tanto bastando para infirmar a tese da intenção de apropriação (se o arguido pretendesse a apropriação da quantia em causa, não tinha adotado estes procedimentos).
Depois, a existência do crédito que o arguido invocou para não entregar a quantia em causa à exequente, nem a depositar à ordem da massa insolvente, encontra suporte em vários documentos juntos aos autos (notas de honorários e troca de emails com o Administrador de Insolvência - fls. 636 a 663 dos autos), desvalorizando o teor do depoimento da testemunha D… (o qual, de resto, afirmou várias vezes não se recordar dos factos) e valorizando as declarações do arguido. E ainda que se possa discutir, in casu, a bondade jurídica da invocação de um direito de retenção ou a invocação de um direito de compensação, o certo é que as apontadas circunstâncias contribuem para infirmar a tese da intenção de apropriação, como bem sustentou o Tribunal a quo.
Vejam-se as notas de despesas e honorários do Arguido apresentadas ao Administrador de Insolvência da massa insolvente da K… … a fls. 636 a 663, o que indicia demonstrar, o alegado crédito que o Arguido diz ter sobre a K….
Afirma o recorrente que o arguido não restituiu a quantia em causa, o que significa que se apropriou. Mas se o mesmo justifica a não restituição com um alegado crédito, tendo ou não tendo juridicamente razão para o invocar, o certo é que no domínio intencional, pode defender-se que o arguido não possuía intenção de apropriação ou do uso daquele dinheiro.
Não vislumbramos, pois, que tenha havido nesta ação executiva erro notório ou interpretação factual desconforme com as regras da experiência. A versão encontrada é uma das possíveis, como a do M.P., sendo que no confronto prevalece a encontrada pela convicção do coletivo a quo.
Relativamente à ação executiva 3015/10.7TBVFR.
A questão prende-se sobretudo sobre o uso ou apropriação do dinheiro.
Imporá a prova indicada pelo M.P o entendimento de que se tratou de uma efetiva apropriação ilícita de dinheiro?
A interpretação da prova por parte do tribunal a quo poderá ser contrária às regras da experiência?
Em síntese, numa execução que ainda não estará extinta, o arguido ainda antes da suspensão das suas funções de agente de execução, penhorou um saldo de conta bancária no valor de €33.500,00, destes transferiu para a conta cliente €20.000,00 e destes transferiu €10.000,00 para uma conta sua particular sua em 4 tranches de 3.000,00 1000,00 3.000,00 e 3.000,00€, a primeira em 31.01.11, depois em 09.02.11, 18.02.11 e 11.03.11. Em junho de 2010 havia ainda cobrado provisão por despesas e honorários a quantia de € 250,92.
Diz o arguido que aquelas 4 tranches se destinavam a aprovisionar despesas.
Temos presente que o arguido não podia ultrapassar os 20 % previstos no art. 735º, n º 3 do CPC, ou seja, € 6.700,00 tendo em conta o valor da execução. O próprio admitiu que excedeu, exagerou no montante do aprovisionamento. E é com base nesta admissão que o tribunal conclui que houve uso indevido, na medida em que o mesmo justifica com o futuro encontro de contas a final. Só que entretanto o arguido foi suspenso, deixou de ser agente de execução sendo substituído por outro naquele processo e a ação executiva ainda não terminou, não tendo, portanto o arguido restituído qualquer quantia com o argumento do encontro de contas a final, ainda não possível, altura em que se fará um acerto, invoca ausência de intenção apropriativa.
Importa referir que o excesso confessado é da ordem do 4.604,33, na medida em que o arguido fez constar no campo respeitante ao limite da penhora que as despesas ascenderiam ao montante de €5.395,67, doc. de fls. 135vº e 136 dos autos.
Temos presente que o procedimento adotado, como bem referiu o tribunal a quo não foi o adequado, fugindo ao legal previsto, aliás como uma das testemunhas o referiu.
Temos ainda presente não compreender por que razão o arguido não pediu logo a quantia total, optando por quatro tranches ocorridas entre finais de janeiro e inícios de março de 2011.
Por sua vez, admitido o excesso, o arguido podia e devia logo após ter sido suspenso ter feito chegar ao agente de execução a quantia em excesso e não o fez, independentemente de não ter acesso à conta cliente, justificando-se com o acerto de contas a final.
Temos ainda presente que tendo sido substituído, não acompanhando toda a execução até final, muito provavelmente terá de restituir muito mais do que o excesso.

Para afirmar a intenção não apropriativa referiu o tribunal “Ora, analisada a prova (e os indícios dela resultantes), nos termos a concretizar de seguida, a convicção do tribunal é no sentido da inexistência de resolução de apropriação por parte do arguido, verificando-se, no entanto, o uso indevido pelo arguido da referida quantia monetária.
Se a ausência de intenção de apropriação surge claramente afirmada pelo arguido nas suas declarações (referindo o arguido, a título complementar, que tal quantia se destinava a honorários, apesar de reconhecer ser exagerada tal quantia face aos honorários a que tinha direito, e que Inspecção da CPEE não viu qualquer irregularidade no processo físico da acção executiva nº 3015/10.7TBVFR existente no seu escritório, conforme resulta, aliás, da prova documental junta aos autos), a credibilidade de tais declarações obtém corroboração na circunstância de a transferência por este efectuada corresponder a uma parte da quantia penhorada (se o arguido pretendesse a apropriação da quantia penhorada, certamente teria transferido a totalidade de tal quantia; a transferência de uma parte da quantia penhorada obtém aderência com a tese da movimentação ter como fundamento a garantia dos honorários, o que exclui a intenção de apropriação).
Contudo, porque ficou demonstrado (e reconhecido pelo arguido) que a quantia transferida era excessiva, face aos honorários (e despesas) que seriam devidos, porque os procedimentos adoptados pelo arguido para a transferência da dita quantia surgem desviados do programa legal aplicável e porque o arguido afirmou pretender fazer um encontro de contas no momento próprio do processo (mas entretanto ficou suspenso de funções e ficou privado do acesso aos processos e á movimentação das constas-cliente), entende o tribunal ter ficado provada uma situação de uso indevido da quantia monetária em análise (no quadro de um crime de peculato de uso).
É certo que não ocorreu a restituição pelo arguido da quantia monetária em análise (€ 10.000,00), elemento típico implícito do crime de peculato de uso.
Contudo, se tal restituição está relacionada com o encontro de contas a fazer (i.e., o arguido terá direito a receber honorários pelo desempenho da função de agente de execução), há que dizer que, a partir de certa altura, tal encontro de contas deixou de ser possível (dada a situação de suspensão de funções pelo arguido e falta de acesso às contas – cliente, sendo certo que estas contas possuem fundos monetários, conforme resulta dos documentos juntos aos autos). “

Haverá que ter presente que para se chegar à intenção de apropriação do dinheiro, torna-se necessário se prove a existência de atos próprios e inequívocos da mesma.
O tribunal não apurou um fim específico que tenha sido dado àquele excesso, vg, uma aplicação financeira, como aliás retrata o exemplo de acórdão dado pelo MP nas suas motivações.
E constatou que o arguido tinha saldo bastante na sua conta.
No elemento subjetivo no peculato de uso, o dolo, em qualquer uma das suas formas, dir-se-á que a intenção do agente não é a de fazer seu o bem, mas a de o usar temporariamente, ou de permitir o seu uso, tendo que existir ab initio a intenção de restituição.
Por sua vez, são elementos típicos do crime de peculato:
a) Que o agente seja um funcionário para efeitos do Art.º 386.º do Código Penal;
b) Que tenha a posse do bem (dinheiro ou coisa móvel) em razão das suas funções;
c) Que se passe a comportar como se fosse proprietário do dinheiro, o que deve revelar-se por atos objetivamente idóneos e concludentes que traduzam a «inversão do título de posse ou detenção»;
d) Que o agente faça seu o dinheiro, com consciência de que se trata de bem alheio do qual tem a posse em razão das suas funções e que tenha consciência e vontade de fazer seu o bem para seu próprio benefício ou de terceiro.

A consumação ocorre quando o agente inverte o título de posse, passando a agir como se fosse proprietário da coisa que recebeu e detinha precariamente.

Ora, o arguido sabia que os montantes depositados na referida conta-cliente apenas lhe eram acessíveis em razão das suas funções profissionais de solicitador de execução e que estava obrigado a entrega-los aos credores para satisfação do seu crédito e, na parte sobrante, ao executado.

Por outro lado, resulta da documentação junta aos autos e ficou provado que o arguido fez várias transferências bancárias da conta-clientes de solicitador de execução, para uma sua conta pessoal, perfazendo a quantia global de € 10,000.00.
Para além de não ter devolvido o aludido remanescente, retendo-o na sua posse, o arguido não apresentou qualquer justificação plausível para o facto, não demonstrou que lhe deu qualquer fim lícito, ou seja, que foi utilizado para os fins da execução em causa, nem invocou razões com base nas quais se possa sustentar que lhe foi dado um fim lícito ou que, pelo menos, faça crer que assim possa ter acontecido.

Antes pelo contrário, os argumentos invocados pelo arguido para a não devolução do dinheiro não têm sustentação possível, nem constituem justificação para tal atitude, pois bastava-lhe dirigir-se ao agente de execução que o substituiu e devolver esse excesso.
Com o dinheiro a monte na sua conta bancária pessoal, a movimentação diária da mesma e os levantamentos sucessivos de dinheiro permitiriam ao longo do tempo a sua dissipação, ou melhor, gastá-lo em proveito próprio.
Aliás, o momento da formulação do propósito é absolutamente irrelevante para o preenchimento do tipo criminal em causa.

Quer para o crime de abuso de confiança, quer para o de peculato, o que releva é a apropriação, não o propósito de apropriação. Aquela consuma-se com a atitude de o arguido dissipar o dinheiro, que lhe foi entregue para determinados fins, em seu próprio proveito ou de terceira pessoa ou, simplesmente, dar-lhe um destino diverso daquele que lhe deveria dar. Qualquer dessas atitudes revela que o arguido agiu como se o dinheiro fosse dele, usou-o como se fosse o respetivo dono, apropriando-se do mesmo. É esse o momento da inversão do título da posse, pois, enquanto até ali, o agente possuía em nome de terceiro – tendo aquele recebido o bem por título não translativo da propriedade -, a partir de então agiu como dono da coisa que lhe foi entregue.

Aquela apropriação, implicando a aludida inversão do título de posse, extrai-se da prática de atos concludentes de que resulte a intenção de o agente fazer sua a coisa, sendo exemplo de tal apropriação «a recusa de restituição ou a omissão da recusa de interpelação para o efeito», ou ainda, a «mera omissão da devolução decorrido um tempo razoável» e, tratando-se de coisa fungível, como o dinheiro, «ocorre quando o agente não a restitui no tempo e sob a forma combinada com o seu proprietário ou dispõe dele de forma injustificada» - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal …”, pág. 568, citando vários autores e jurisprudência atinente.

É inquestionável que o arguido dispôs daquela quantia em excesso de forma injustificada e durante um período de tempo exagerado, e nem mesmo depois de ter sido destituído do cargo devolveu tal montante, sem que se conheça qualquer justificação plausível para tal comportamento, pois a indicada pelo arguido não colhe. E, note-se, já decorreram quase 10 anos desde que transferiu o dinheiro para a sua conta pessoal e cinco anos desde a sua suspensão.

A não entrega desse valor é manifestamente ilícita, porque não justificada. Estando suspenso de funções era sua obrigação entregar o dinheiro à agente de execução que o substituiu e não o fez. Sendo um valor excessivo e tendo sido suspenso, é evidente jamais poderia ter despesas que pudessem atingir aquele montante. A forma como solicitou as diferentes e várias tranches de dinheiro, acima do que o próprio já havia calculado, não respeitando os procedimentos permite concluir que aquela não entrega não pode deixar de traduzir uma verdadeira apropriação do dinheiro por parte do arguido, que lhe deu um destino diferente daquele a que se destinava, que era pagar ao exequente.
E também não resulta da prova produzida que o arguido tivesse ab initio a referida intenção de restituição e esta tem de se demonstrar logo no início do desvio.

Pelo que, o tribunal recorrido não devia ter declarado como não provado que o arguido se apropriou de tal montante.
Mais ao retirar o dinheiro daquela primeira conta o arguido impediu que os respetivos juros fossem contabilizados, no referido período, a favor da execução respetiva - o que beneficiaria o executado.

Que o arguido agiu consciente e voluntariamente, não suscita quaisquer dúvidas, pois não foi coagido por ninguém, nem consta que estivesse incapacitado de pensar e agir no desempenho das respetivas funções de solicitador de execução.

Assim como, não merece contestação a afirmação de que o arguido agiu contra a vontade e sem o conhecimento dos interessados – executado e credores - na execução em causa, tal como alegado pelo recorrente.
Ao contrário do que afirma o tribunal a quo a restituição não está relacionada com o encontro de contas a fazer a final. A suspensão do arguido e sua substituição implicava que o mesmo restituísse junto do atual agente de execução, pelo menos, aquilo que ele admitiu ter retirado em excesso, até porque este valor já era muito superior ao que o próprio considerou necessário para despesas, sendo que a intenção de restituição teria de ter existido ab initio, o que não resulta da prova produzida, sendo que as declarações do arguido a este respeito revelam incongruência com a sua atuação.
Embora se não verifique um erro notório que ressalte do texto da decisão consideramos haver neta matéria erro de julgamento.

Consequentemente, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto, devendo considerar-se provados, para além dos demais factos considerados provados pelo tribunal coletivo, os seguintes:
1.O arguido formulou a resolução de se apoderar de parte deste dinheiro e gastá-lo em seu proveito.
2. Este dinheiro ficou definitivamente na posse do arguido, que dele se apoderou, fazendo-o coisa sua e gastando-o em seu proveito.
3. O arguido atuou com o propósito concretizado de se apoderar e fazer sua aquela quantia monetária, que ilegitimamente integrou no seu património e que utilizou em benefício e proveito próprio, ciente, portanto, de que não o podia fazer coisa sua.
4. O arguido, ao se apropriar da quantia que se apropriou, violou os deveres funcionais de probidade e fidelidade a que, enquanto agente de execução e funcionário, estava vinculado no exercício do cargo, atentando contra a integridade do exercício dessas funções, contra o bom andamento e imparcialidade da Administração Pública e contra a administração da Justiça, ao mesmo tempo que atentou contra a tutela de bens patrimoniais de terceiros.
5. Tais transferências naqueles montantes da conta cliente exequentes para a sua conta bancária particular (do arguido) têm fundamento na garantia dos seus honorários e despesas efectuadas nos autos.
Mais deve dar-se como provado que o arguido teve um incremento patrimonial de €4.604,33 (10.000.00-5.395,67-montante inicialmente indicado a título de despesas prováveis):
10.O arguido obteve um incremento patrimonial correspondente à quantia de € €4.604,33.

Alterando-se, assim a matéria fáctica quanto ao elemento subjetivo na ação executiva n º 3015/10.7TBVFR no ponto 16., 19., 21. e 22 quanto ao carácter temporário da posse e pretensão de restituição.

Do erro julgamento quanto à perda ampliada no que se refere à liquidação do património incongruente.
Relativamente a esta matéria o tribunal a quo deu como provado:
37. Nos movimentos/entradas a crédito (no total de € 477.813,79) verificados nas contas bancárias do arguido e na conta bancária da sociedade G…, Unipessoal, Lda., estão incluídos depósitos/pagamentos da empresa da qual o arguido é sócio (N…, Lda.), no montante de € 95.876,24, depósitos respeitantes a acordos de pagamento com devedores, relativos à mesma empresa, no montante de € 30.115,00, depósitos da mesma empresa, que no extracto constam com a menção “honorários N1…” ou “Transf de honorários”, no montante de € 50.786,82, depósitos respeitantes a honorários da actividade de agente de execução e solicitador, no montante de € 19.484,30, depósito respeitante a uma indemnização recebida pelo arguido, no montante de € 1.400,00, depósitos respeitantes a duas transferências realizadas pela irmã do arguido, no montante total de € 1.450,00, depósito respeitante a uma indemnização recebida pelo arguido de uma companhia aérea, no montante de € 1.200,00, estorno de uma quantia relativa a um processo judicial, no montante de € 5.000,00 (duas transferências de € 2.500,00), transferência entre contas do arguido, no montante de € 5.000,00, troca de notas na máquina do balcão do O…, no montante de € 2.200,00, transferências do Instituto de Gestão Financeira relativas a pagamentos de honorários, no montante total de € 523,44, e entrada do valor de € 120.000,00, através de cheque, respeitante ao produto da venda de um imóvel em que o arguido interveio no exercício da actividade de solicitador, tudo no montante global de € 333.136,15.
O M.P. refere que” Obtendo, assim, nas contas bancárias do arguido e da referida sociedade, infra id., foram verificados, naquele período temporal, os movimentos/entradas a crédito, no total de 477,813,79 €, resultantes de depósitos de cheques e valores em numerário e transferências;
Daí que o património incongruente relevante do arguido, tal como considerado pelo art.7º da Lei 5/2002, seja constituído por ativos no valor g1obal de 477,813,79 €, e durante os 5 anos que antecederam a constituição como arguido e até 31-12-2018, arguido auferiu rendimentos lícitos no valor global de 56.516,15 €;
Possuindo, o arguido possui um património incongruente, no valor de 421.297,64 €, obtido mediante a dedução do seu rendimento lícito à totalidade do seu património, de acordo com o estatuído no referido preceito legal.
Como melhor se poderá aferir de toda a prova documental junta aos autos e que acompanhou a acusação publica, bem como do depoimento do inspetor da PJ/GRA, H…, conforme melhor se poderá constatar do trecho que a seguir se expõe e que o arguido não conseguiu ilidir a sua proveniência incongruente como tratando-se de património licito.”
Ora, durante os 5 anos que foram objeto da investigação, o arguido auferiu rendimentos lícitos no valor global de 56.516,15€.
E o património relevante do arguido, tal como considerado pelo artº 7º da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro, é constituído por ativos de valor global de 477.813,89€.
Fazendo a respetiva dedução, considerou-se o património incongruente no montante de 421.297,64€.
Analisados os extratos bancários e diversa documentação junta aos autos resulta não poder considerar-se apenas o somatório dos valores de depósitos bancários e não os pagamentos, levantamentos, devoluções, indemnizações que auferiu.
Do que resulta de depósitos da empresa da qual é sócio, N…, ldª, só aí constam 95.876,24€ de depósitos no extrato da conta nº ………………… do O….
De acordos de pagamento com devedores, relativos à mesma empresa, e que igualmente constava o referido nib nos mesmos, resultam no extrato depósitos no valor de 30.115,35€.
De outros depósitos da empresa N…, Ldª, que no extrato constam com a menção “honorários N1…” ou Transf de honorários”, resultam depósitos no valor de 50.786,82€.
Da atividade de agente de execução e solicitador, o arguido tem vários depósitos, identificados como tais, e dos quais foram emitidos os competentes recibos. A saber:
- S… ------------------------------------------------------ 1.125€
- S… ------------------------------------------------------ 1.256€
- T… -------------------------------------------------- 1.355,71€
- U… -------------------------------------------------- 2.007,36€
- V… ---------------------------------------------------- 635,17€
- W… ---------------------------------------------------- 929,73€
- W… ---------------------------------------------------- 624,30€
- X… ---------------------------------------------------- 400,00€
- Y… ---------------------------------------------------- 250,47€
- Z… ------------------------------------------------------ 1.000€
- Z… ----------------------------------------------------- 426,59€
- AB… -------------------------------------------------- 392,82€
- AC… -------------------------------------------------- 500,00€
- AD… -------------------------------------------------- 862,96€
- AD… ---------------------------------------------------- 1.175€
- AE… -------------------------------------------------- 581,99€
- AE… -------------------------------------------------- 222,58€
- AE… -------------------------------------------------- 215,75€
- AE… -------------------------------------------------- 243,79€
- outros honorários (no extrato não identifica o cliente) ------ 1.100€
- outros honorários (no extrato não identifica o cliente) -- 1.179,08€
- outros honorários (no extrato não identifica o cliente) ------ 3.000€
TOTAL honorários solicitador/agente de execução ---- 19.484,30€
Da investigação realizada, resultam mais depósitos bancários que a investigação considera / conclui como incongruente.
Ora, em 19/05/2015, como consta no extrato da conta do arguido, este recebeu uma indemnização do Dr. AF…, no valor de 1.400,00€, resultante de um processo judicial que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Valongo, no qual o referido advogado foi condenado por difamação.
Nos dias 8/06/2016 e 8/09/2016 constam dois depósitos de 1.000€ e de 450€ respetivamente, com a denominação “AC…”, são duas transferências realizadas pela irmã do Arguido, relativas a contas existentes entre ambos.
No dia 14/10/2016 consta do extrato o montante de 1.200€, com a menção “AH…, SA”, relativo a uma indemnização da companhia aérea espanhola com o mesmo nome.
Em 6/04/2015, relativamente a um processo judicial, houve um estorno de um valor de 5.000€ (duas transferências de 2.500€), que tinham sido transferidos por lapso para um cliente, e que o mesmo devolveu nessa data, cliente esse, AI…, que devolveu esse valor em 6/04/2015 e no dia seguinte, 7/04/2015, foi totalmente transferido para a mandatária Dra. AK…, conforme consta no extrato desse dia.
Situação idêntica, com uma transferência entre contas do arguido, em que são transferidos 5.000€ da sua conta pessoal para a conta da sociedade G…, os quais são devolvidos de novo para a sua conta particular, não podendo ser considerados como lucro.
Outra situação ocorrida é quando o arguido se desloca ao balcão do O… na …, no Porto, e devido a ter na sua posse uma quantidade grande de notas de 20€, pretender trocá-las por notas de 500€ e 200€ na máquina existente nesse balcão do O…, sendo o total depositado de 2.200,00€.
Os depósitos, vários e sucessivos, das notas de 20€ ficam registados na conta, assim como as saídas no mesmo dia e hora. A entrada desses depósitos não pode ser considerada lucro, por se ter tratado de uma troca.
Do Instituto de Gestão Financeira, de onde são pagos aos advogados e solicitadores (e agentes de execução) honorários provenientes do apoio judiciário, o aqui arguido recebeu duas transferências, de montantes de 306,00€ e de 217,44€, que totalizam 523,44€.
Relativamente a um processo judicial em que o arguido estava presente numa escritura em Aveiro, na sua atividade de solicitador e em que recebeu da Ilustre Notária desse Cartório Notarial, produto de uma venda de um imóvel, em 18/12/2015, um cheque bancário no montante de 120.000,00€ (cento e vinte mail euros), constata-se, que uns dias depois, mais propriamente no dia 21/12/2015, foi feita a transferência de 110.000,00€ (cento e dez mail euros) para a conta do Dr AJ…, advogado/mandatário e cliente desse processo, encerrando-se assim o referido processo.
A diferença de 10.000,00€ era relativa aos honorários do arguido dos quais foi emitido recibo e demais despesas do processo (há faturas dessas despesas processuais). Logo não houve incremento patrimonial dos 120.000,00€.
Concluindo, feito o somatório dos depósitos e transferências para as contas bancárias do Arguido e realizadas as devidas substrações a título de pagamentos de salários, pagamentos de taxas de justiça, transferências de honorários a mandatários, pagamentos pessoais e de serviços essenciais, ficam a constar;
- Depósitos/pagamentos N…, Ldª. -------------- 95.976,24€
- Acordos de pagamento N…, Ldª. -------------- 30.115,35€
- Honorários N…, Ldª. ---------------------------- 50.786,82€
- Honorários solicitador/agente de execução --- 19.484,30€
- Dr AF… indemnização --------------------------- 1.400,00€
- AG… ------------------------------------------------ 1.450,00€
- Indemnização AH…, SA ------------------------- 1.200,00€
- Estorno Proc. Dra AK… ------------------------- 5.000,00€
- Transferência entre contas ----------------------- 5.000,00€
- Trocas de notas na máquina --------------------- 2.200,00€
- Instituto de Gestão Financeira --------------------- 523,44€
- Proc. Venda imóvel Dr. AJ… -----------------120.000,00€
TOTAL -------- 333.136,15€
Face ao exposto, conclui-se que bem andou o tribunal a quo relativamente a esta matéria, justificando-se igualmente nas declarações do arguido que lhe mereceram credibilidade e demais documentação, veja-se docs., entre outros, de fls. 755 e ss.
A prova indicada pelo M.P. não apresenta nem discorre sobre eventuais justificações para o património existente apurado, pelo que não impõe versão contrária.
Nesta parte improcede parcialmente o recurso.


Do direito.

Subsumindo os factos provados ao direito, não podemos deixar de concluir que os mesmos são subsumíveis ao disposto no art. 375.º, n.º 1, do Código Penal, preenchendo a prática de um crime de peculato, pois, o arguido, exercendo as funções de solicitador de execução, no exercício dessas funções apropriou-se ilegitimamente, em seu proveito, de dinheiro que lhe foi entregue em razão das suas funções e que se destinava ao pagamento do credor exequentes, o qual, por isso, não viu o seu crédito integralmente satisfeito.
Ao transferir para a sua conta pessoal o 10.000,00 em várias tranches, com procedimento anormal e de forma excessiva, tendo em conta aquilo que previu para as despesas o arguido fez seu aquele excedente.

O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que estava a agir na qualidade de solicitador de execução e relativamente a dinheiro afeto à execução que estava a seu cargo, tendo, por isso, uma profunda consciência da ilicitude da sua conduta, a qual é típica, ilícita e culposa, na medida em que não se vislumbra a existência de qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, ou que aquele tenha agido sob qualquer tipo de erro.
A qualidade de funcionário por parte do arguido, quando no exercício das funções de solicitador de execução, é inquestionável, tal como o refere a decisão recorrida, face ao disposto no art. 386.º, n.º 1 al. d), do CP.

A imputabilidade do arguido não oferece dúvidas.

Estão, assim, preenchidos todos os pressupostos da punição, não podendo aquele, pois, deixar de ser punido pelo crime efetivamente cometido.
*
O arguido constituiu-se autor material de um crime de peculato, por que se encontra acusado.

Assim, impõe-se a condenação do arguido, pela prática, em autoria material de um crime de peculato, previsto e punido pelos arts. 375º, n.º 1 do C. Penal.

Determinação da medida da pena:

O crime de peculato, previsto e punido pelos arts. 375 n.º 1 do Código Penal é punido com pena de prisão de 1 (um) ano a 8 (oito) anos.

Quanto à determinação da medida concreta da pena, de acordo com o disposto no n.º 1 do art. 71º do Código Penal, far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, quer geral positiva ou de reintegração, relacionadas com a necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e com a estabilização das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida, quer de prevenção especial de sociabilização.
Com relevância quer para a culpa quer para a prevenção, surgem as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art. 71º do Código Penal que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências; a intensidade do dolo; as condições pessoais do agente e a sua situação económica e, a conduta anterior ao facto e a posterior a este.
Aplicando as considerações anteriormente formuladas ao caso em apreço, considerando nomeadamente:
- as elevadas exigências de prevenção geral, tendo o crime praticado pela arguida impacto fortemente negativo em termos comunitários.
- o grau de ilicitude dos factos, que se considera médio, tendo em conta o valor do prejuízo causado, no montante que não ultrapassou os 10.000,00€ relativo à quantia de que se apoderou de modo ilícito e indevido, o período de tempo em que perdurou a atuação ilícita criminal e a forma como o ilícito foi praticado, nomeadamente o número de transferências ordenadas, usando procedimento ínvio e os seus conhecimentos profissionais, que lhe impunha uma maior responsabilização e atuação em conformidade com os deveres profissionais, deveres esses que o arguido violou com o seu comportamento ilícito.
Acresce ainda que a conduta do arguido fragiliza a imagem da gestão pública, descredibiliza as instituições democráticas e pelo que é merecedora de uma veemente censura penal, não só devido ao elevado número de condutas similares, o que se traduz em intensa necessidade de reprovação ao nível da prevenção geral e especial, que necessariamente se terá de traduzir na pena a aplicar.
- a intensidade dolosa, tendo o crime sido cometido na modalidade de dolo direto.
- as consequências resultantes da atuação do arguido, atendendo ao valor global das quantias monetárias de que se apropriou, com o correspondente prejuízo causado à exequente.
- a ausência de demonstração de interiorização do desvalor da sua atuação por parte do arguido.
- as condições sociais do arguido, a qual encontra-se socialmente inserida.
- a existência de antecedentes criminais, 06 condenações, tendo sido já condenado por peculato de uso.

Afigura-se assim adequada a aplicação ao arguido da pena de 02 (dois) anos e 03 (três) meses de prisão pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelos arts. 375º, n.º 1 do Código Penal, sendo absolvido do outro.
*
Nos termos do art. 50º, nºs. 1 e 2 do Código Penal, o Tribunal pode suspender a execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão, realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, suspensão essa que podia ser subordinada ao cumprimento de certos deveres impostos ao arguido destinados designadamente a facilitar a sua readaptação social.
Assenta tal possibilidade num juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, fundado na expectativa de que este, sentindo a condenação como uma advertência, não volte a cometer novos ilícitos.
No caso dos presentes autos, não obstante serem por demais evidentes as necessidades de prevenção geral bem como as necessidades de prevenção especial face à ausência de demonstração de interiorização do desvalor da respetiva atuação ilícita criminal por parte do arguido e seus antecedentes criminais, determinadas circunstâncias relacionadas com a inserção social do arguido, e o período de tempo decorrido desde a data da prática dos factos, legitimam a formulação de um juízo de prognose favorável no comportamento futuro do arguido, considerando-se a ameaça de cumprimento efetivo da pena de prisão adequada e suficiente à realização das finalidades da punição, estimulando-se assim a autorresponsabilização do arguido, proporcionando em simultâneo uma reintegração social em liberdade.
Assim, face às considerações anteriormente formuladas, ao abrigo do disposto no art. 50º, nºs. 1 e 5 do Código Penal, decide-se suspender a execução da pena única de 02 (dois) anos e 03 (três) meses de prisão aplicada à arguido, por um período que se fixa em 02 (dois) anos e 03 (três), a contar do trânsito em julgado da presente decisão.
Considerando a medida concreta da pena e o período de suspensão fixado, não se mostra necessário proceder à concretização do regime penal mais favorável em face das alterações legislativas ao C. Penal, no que tange ao Instituto da suspensão da pena.
Por força do disposto nos arts. 53º, n.º 3 e 54º do Código Penal, a suspensão será subordinada à condição do arguido proceder à reposição na conta cliente de onde foi retirada, através da atual agente de execução, até ao final do período de suspensão da execução da pena decretado, da quantia de 6.000,00 o que contribuirá seguramente para uma maior eficácia no processo de reintegração social do arguido.

Da sanção acessória de proibição de exercício de função.

Requereu ainda o MºPº a aplicação da sanção acessória de proibição de exercício de funções.
Estabelece o artigo 66.º do Código Penal que:

“1 - O titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, que, no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer crime punido com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido do exercício daquelas funções por um período de 2 a 5 anos quando o facto:
a) For praticado com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes; b) Revelar indignidade no exercício do cargo; ou
c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função.
2 - O disposto no número anterior é correspondentemente aplicável às profissões ou actividades cujo exercício depender de título público ou de autorização ou homologação da autoridade pública.
3 - Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.
4 - Cessa o disposto nos nºs 1 e 2 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação de medida de segurança de interdição de actividade, nos termos do artigo 100.º
5 - Sempre que o titular de cargo público, funcionário público ou agente da Administração, for condenado pela prática de crime, o tribunal comunica a condenação à autoridade de que aquele depender”.
Para aplicação do retro mencionado preceito legal, são dois os pressupostos exigidos, um de natureza formal e outro, de natureza material.

O primeiro diz respeito à condenação numa determinada pena: 3 anos de prisão; o segundo relaciona-se com a conexão do crime praticado com as funções exercidas, ou por o crime ter sido cometido com flagrante e grave abuso da função ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes (alínea a), ou por o crime praticado, apesar de cometido fora da função, revelar indignidade no exercício do cargo, ou implicar a perda da confiança necessária ao exercício da função (alíneas b) e c).
Como anota Figueiredo Dias, em Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, p. 168, o que faz desencadear a pena acessória é a violação grave de deveres relativos à função exercida pelo agente ou a consequência que a prática do crime acarreta do ponto de vista funcional, pela indignidade manifestada na prática do crime ou pela perda de confiança necessária ao exercício da função que dele deriva.
Analisando-se no reflexo produzido na função, o aludido pressuposto acresce à prática do crime propriamente dito, sendo aquele o determinante autónomo da aplicação da pena acessória, que assim se distingue da sanção correspondente ao crime – sanção principal, embora pressupondo-a.
Por outro lado, existe um mínimo e um máximo – limites dentro dos quais deve ser doseada a pena acessória -, conferindo, assim, a esta uma mais vincada natureza de pena (e não já de medida de segurança), pena essa a ser doseada de acordo com critérios ligados ao facto praticado e à culpa do agente.
Ora, desde logo quanto ao pressuposto formal ele não se verifica, não há dúvida de que tendo sido aplicada ao arguido uma pena de 02 anos e 03 meses de prisão pela prática do crime de peculato não está preenchido o pressuposto formal, pois, foi o mesmo punido com pena de prisão inferior a 3 anos.

Tudo isto não obstante se verificar o pressuposto material, dado que o crime foi praticado no exercício das funções.
Atendendo à factualidade dada por assente, não pode deixar de se reconhecer que o arguido colocou seriamente em causa os pilares éticos, deontológicos e jurídicos em que assenta o exercício da sua função. Do que se trata é de fazer refletir na pena a fixar que quem desempenha cargos públicos relevantes, como era o do arguido, deve, mais do que qualquer outra pessoa, abster-se da prática de atos contrários aos seus deveres funcionais, e em obediência ao princípio da legalidade, o respeito pelas regras, procedimentos e rigor na utilização e aproveitamento dos dinheiros que lhe são confiados por ação do Estado.

O arguido bem conhecia e sabia os deveres que se lhe impunham no exercício das suas funções.
Acresce referir que a arguida estava sujeito aos deveres de isenção, transparência, rigor e honestidade na prática dos seus deveres funcionais.

A atuação do arguido implica a perda da confiança necessária ao exercício da função, sendo particularmente lesiva dos deveres inerentes ao cargo, sendo adequada a produzir a tal perda de confiança no exercício da função, para além de revelar indignidade, sendo que, como referem Simas Santos e leal Henriques no seu Código Penal Anotado, Editora Rei dos Livros, em anotação ao artigo 66.º “é indigno tudo o que for desprezível, indecoroso, impróprio, inadequado ao prestígio e elevação que o exercício do cargo exige dos seus servidores.”
Por todo o exposto, e não obstante falece o pressuposto formal, logo não pode punir-se o arguido com a pena acessória de proibição de exercício das funções de cargo público.

Perda de vantagem patrimonial € 4.604,33.

O Ministério Público requereu (no âmbito da perda de vantagens) a condenação do arguido a pagar ao Estado o valor de € 17.500,00, correspondente ao valor da vantagem por aquele obtido com a prática do facto ilícito típico, nos termos do atual artigo 110º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal.
Deu-se como provado que o arguido apenas teve uma vantagem no seu património da quantia de €4.604,33.
Como bem refere o tribunal a quo “O modelo (processual) penal português do confisco (ou da perda de bens) assentava numa trilogia: perda de instrumentos ou produtos do crime, perda de vantagens e perda alargada.
Com a alteração introduzida ao Código Penal pela Lei nº 30/2017, de 30-05, a perda clássica passou a estar dividida entre a perda de instrumentos (art. 109º do CP) e a perda de produtos e vantagens (art. 110º do CP).
Independentemente da nomenclatura, cada um dos referidos mecanismos tem objectivos, campos e pressupostos diferentes, de forma a abranger um vasto leque de situações.
Interessa-nos agora a análise do mecanismo da perda de vantagens.
De acordo com o disposto no art. 110º, nº 1, al. b), do Código Penal (na redacção da Lei nº 30/2017, de 30-05), “são declarados perdidas a favor do Estado as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem”.
Dispõe o nº 4 do mesmo artigo que “se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112º-A”.
A comprovada vinculação entre o objecto e a prática do crime constituiu, durante muito tempo, o fundamento para a declaração de perda de bens a favor do Estado.
A posição do objecto perante a actividade criminosa é, ainda hoje, o elemento que permite determinar em qual das categorias sistemáticas ele se integra, ou seja, se se trata de um “objecto”, “instrumento” ou “vantagem” da prática do facto ilícito típico (cfr. Hélio Rodrigues e Carlos Rodrigues, «Recuperação de Activos na Criminalidade Económico-Financeira», SMMP, 2013, pags. 175 e ss.).
Ora, a perda de vantagens, tal como está estabelecida no art. 110º do Código Penal, abrange os designados “efeitos patrimoniais” do crime.
Neste conceito estão incluídas quer as vantagens obtidas “com o crime”, numa visão tradicional de “fruto”, quer aquelas que são obtidas “pela prática do crime”, ou seja, tudo aquilo que possa ser considerado preço ou recompensa de carácter económico que alguém entrega a outrem para que cometa um ilícito penal.
Faz-se pois apelo à ideia de benefício ou enriquecimento patrimonial resultante ou alcançado através da prática do facto ilícito típico, podendo tal benefício consistir num aumento do activo, numa diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisas ou direitos alheios ou na mera poupança ou supressão de despesas (cfr. João Conde Correia, «Da proibição do confisco à perda alargada», INCM, 2012, pags. 80 e ss.).
A vantagem patrimonial pode ser instantânea, continuada ou diferida.
O legislador nacional subdividiu as vantagens do crime em duas categorias, distinguindo entre as recompensadas dadas ou prometidas e as restantes vantagens.
E prevê a lei nacional (art. 110º, nº 4, do CP), a possibilidade de substituir a perda das vantagens pelo seu valor.
Ora, estando demonstrado aquele incremento na esfera patrimonial do arguido declara-se a perda a favor do Estado daquela quantia de € 4.604,33, quantia que se condena a pagar.

Da liquidação do património incongruente- Perda alargada.

O Ministério Público apresentou liquidação com vista à perda alargada de bens a favor do Estado contra o arguido, ao abrigo do disposto nos arts. 1º, al. g), 7º e 8º, nº 1, da Lei nº 5/2002, de 11-01, apresentando o valor de € 421.297,64 como o montante que deve ser declarado perdido a favor do Estado.
O modelo (processual) penal português do confisco (ou da perda de bens) assentava numa trilogia: perda de instrumentos ou produtos do crime, perda de vantagens e perda alargada.
Cada um destes mecanismos tem objetivos, campos e pressupostos diferentes, por forma a abranger um vasto leque de situações.
Interessa-nos a análise do último dos citados mecanismos.
O legislador português consagrou na Lei nº 5/2002, de 11-01 (que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira), um regime de perda alargada, baseado na diferença entre o património do arguido e aquele que seria compatível com o seu rendimento lícito.
Na síntese legal: “presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito” (art. 7º, nº 1, da Lei nº 5/2002, de 11-01).
Quer dizer, com base em determinados pressupostos (condenação por crime de catálogo, património, incongruente com o rendimento lícito), para efeitos de confisco, o legislador presume que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito provém de atividade criminosa.
O valor da presunção é, assim, [muito] limitado.
Ela não permite concluir que o arguido cometeu o crime pressuposto ou qualquer outro (semelhante ou não).
Em causa está apenas o património do visado, que, em virtude daquela condenação e da sua incongruência com os seus rendimentos lícitos, se presume proveniente de atividade criminosa.
É claro que o arguido pode ilidir a presunção legal, demonstrando que, afinal, apesar de todas as aparências, o património não tem nada de incongruente.
A primeira forma de ilidir a presunção será, obviamente, demonstrar que os bens resultam de rendimentos de atividades lícitas (art. 9º, nº 3, al. a), da Lei nº 5/2002, de 11-01).
Depois, o arguido poderá também ilidir a presunção demonstrando que os bens “estavam na sua titularidade há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido” (art. 9º, nº 3, al. b), da Lei nº 5/2002, de 11-01).
Finalmente, o arguido poderá ilidir a presunção demonstrando que os bens foram adquiridos com rendimentos adquiridos com rendimentos obtidos há mais de cinco anos (art. 9º, nº 3, al. c), da Lei nº 5/2002, de 11-01).
Desta forma, utilizando uma destas três opções, o condenado pode ilidir a presunção, eximindo-se ao confisco.
Para ilidir a presunção, o arguido poderá utilizar todas as provas válidas em processo penal (art. 9º, nº 2, da Lei nº 5/2002, de 11-01) (cfr. João Conde Correia, «Da proibição do confisco à perda alargada», INCM, 2012, págs. 100 e ss.).
A aplicação do mecanismo de “perda alargada” de bens, previsto na Lei nº 5/2002, de 11-01, assenta na verificação dos seguintes requisitos:
a) Condenação pela prática de um crime do catálogo (art. 1º da Lei nº 5/2002, de 11-01).
b) Património do condenado.
c) Incongruente com o seu rendimento lícito.
Uma vez verificados os pressupostos atrás elencados (condenação por crime de catálogo, património, incongruente com o rendimento lícito), o legislador presume, para efeitos de confisco, que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o rendimento lícito do arguido provém de atividade criminosa.
Quer dizer, o conhecimento daqueles factos permite afirmar, com a necessária segurança, um facto desconhecido: a verdadeira origem dos bens.
É nisto que se traduz a presunção da proveniência do património desconforme.
Como já foi referido, o arguido pode ilidir a presunção legal, demonstrando que, afinal, apesar de todas as aparências, o património não tem nada de incongruente.
Revertendo para o caso dos autos, importa, em primeiro lugar, averiguar da prática, pelo arguido sujeito ao regime da perda alargada de bens, de crimes do catálogo referido no art. 1º da Lei nº 5/2002, de 11-01.
Importa aqui vincar que se não estiver em causa um desses ilícitos, por mais grave, rentável ou vantajoso que ele seja e avultado o património acumulado pelo condenado, este mecanismo processual ablativo não poderá ser desencadeado, sob pena de violação do princípio da legalidade, plasmado no art. 29º, nº 1, parte final, da Constituição da República Portuguesa.
O arguido B… encontrava-se acusado/pronunciado pela prática de dois crimes de peculato, p. e p. pelo art. 375º do CP (crime que se inclui no referido catálogo).
Contudo, de acordo com os factos provados e respetivo enquadramento jurídico, vai se condenado por um crime de peculato, p. e p. pelo art. 375º do CP e absolvido de outro da mesma natureza.
Tal crime insere-se no catálogo, cfr. al.g) do art. 1º da citada lei.

Artigo 1.º
Âmbito de aplicação
1 - A presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativa aos crimes de:
a) Tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;
b) Terrorismo, organizações terroristas, terrorismo internacional e financiamento do terrorismo;
c) Tráfico de armas;
d) Tráfico de influência;
e) Recebimento indevido de vantagem;
f) Corrupção ativa e passiva, incluindo a praticada nos setores público e privado e no comércio internacional, bem como na atividade desportiva;
g) Peculato;
h) Participação económica em negócio;
i) Branqueamento de capitais;
j) Associação criminosa;
l) Pornografia infantil e lenocínio de menores;
m) Dano relativo a programas ou outros dados informáticos e a sabotagem informática, nos termos dos artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e ainda o acesso ilegítimo a sistema informático, se tiver produzido um dos resultados previstos no n.º 4 do artigo 6.º daquela lei, for realizado com recurso a um dos instrumentos referidos ou integrar uma das condutas tipificadas no n.º 2 do mesmo artigo;
n) Tráfico de pessoas;
o) Contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda;
p) Lenocínio;
q) Contrabando;
r) Tráfico e viciação de veículos furtados.
2 - O disposto na presente lei só é aplicável aos crimes previstos nas alíneas p) a r) do número anterior se o crime for praticado de forma organizada.
3 - O disposto nos capítulos ii e iii é ainda aplicável aos demais crimes referidos no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro.
4 - O disposto na secção ii do capítulo iv é ainda aplicável aos crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, quando não abrangidos pela alínea m) do n.º 1 do presente artigo.
Por sua vez, no capítulo sobre Perda de bens a favor do Estado
SECÇÃO I, refere-se:
Perda alargada
Artigo 7.º Perda de bens
1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.

E o Artigo 12.ºDeclaração de perda preceitua:
1 - Na sentença condenatória, o tribunal declara o valor que deve ser perdido a favor do Estado, nos termos do artigo 7.º
2 - Se este valor for inferior ao dos bens arrestados ou à caução prestada, são um ou outro reduzidos até esse montante.
3 - Se não tiver sido prestada caução económica ou esta não for suficiente, o arguido pode pagar voluntariamente o montante referido no número anterior, ou o valor remanescente, nos 10 dias subsequentes ao trânsito em julgado da sentença, extinguindo-se o arresto com esse pagamento.
4 - Não se verificando o pagamento, são perdidos a favor do Estado os bens arrestados.
5 - Não havendo bens arrestados ou não sendo suficiente o seu valor para liquidar esse montante, havendo outros bens disponíveis, o Ministério Público instaura execução.

1 - A presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativa aos crimes de:
a) Tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;
b) Terrorismo, organizações terroristas, terrorismo internacional e financiamento do terrorismo;
c) Tráfico de armas;
d) Tráfico de influência;
e) Recebimento indevido de vantagem;
f) Corrupção ativa e passiva, incluindo a praticada nos setores público e privado e no comércio internacional, bem como na atividade desportiva;
g) Peculato;
h) Participação económica em negócio;
i) Branqueamento de capitais;
j) Associação criminosa;
l) Pornografia infantil e lenocínio de menores;
m) Dano relativo a programas ou outros dados informáticos e a sabotagem informática, nos termos dos artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e ainda o acesso ilegítimo a sistema informático, se tiver produzido um dos resultados previstos no n.º 4 do artigo 6.º daquela lei, for realizado com recurso a um dos instrumentos referidos ou integrar uma das condutas tipificadas no n.º 2 do mesmo artigo;
n) Tráfico de pessoas;
o) Contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda;
p) Lenocínio;
q) Contrabando;
r) Tráfico e viciação de veículos furtados.
2 - O disposto na presente lei só é aplicável aos crimes previstos nas alíneas p) a r) do número anterior se o crime for praticado de forma organizada.
3 - O disposto nos capítulos ii e iii é ainda aplicável aos demais crimes referidos no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro.
4 - O disposto na secção ii do capítulo iv é ainda aplicável aos crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, quando não abrangidos pela alínea m) do n.º 1 do presente artigo.
Por sua vez, no capítulo sobre Perda de bens a favor do Estado
SECÇÃO I, refere-se:
Perda alargada
Artigo 7.º Perda de bens
1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.
2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.

E o Artigo 12.ºDeclaração de perda preceitua:
1 - Na sentença condenatória, o tribunal declara o valor que deve ser perdido a favor do Estado, nos termos do artigo 7.º
2 - Se este valor for inferior ao dos bens arrestados ou à caução prestada, são um ou outro reduzidos até esse montante.
3 - Se não tiver sido prestada caução económica ou esta não for suficiente, o arguido pode pagar voluntariamente o montante referido no número anterior, ou o valor remanescente, nos 10 dias subsequentes ao trânsito em julgado da sentença, extinguindo-se o arresto com esse pagamento.
4 - Não se verificando o pagamento, são perdidos a favor do Estado os bens arrestados.
5 - Não havendo bens arrestados ou não sendo suficiente o seu valor para liquidar esse montante, havendo outros bens disponíveis, o Ministério Público instaura execução.

Tendo presente que do total dos ativos apurados €477.813,79, haverá que deduzir o montante de 56.516,15€ auferidos a título lícito, restando por consequência € 421.297,64 e destes mostram-se justificados €333.136,15, a título incongruente fica o saldo de € 88.161,49.
Assim, sem necessidade de maiores considerações, procede parcialmente o incidente de perda alargada de bens em análise declarando-se perdida a favor do Estado a quantia de € 88.161,49. (art. 12º da Lei nº 5/2002, de 11-01), devendo o valor do arresto ser reduzido a tal montante.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo M.P. e, em consequência:
1. Confirmar a absolvição do arguido quanto a um dos crimes de peculato.
2. Alterar a matéria fáctica relativamente ao elemento subjetivo dos factos atinentes ao processo executivo 3015/10.7TBVFR e perda de vantagem respetiva nos termos supraexpostos, condenando o arguido B… pelo cometimento de um crime de peculato p.e.p. pelo art. 375º do Código Penal na pena de dois anos e três meses de prisão.
3. Suspender o cumprimento da pena de prisão por igual período de dois anos e três meses.
4. Condicionar a sua suspensão à entrega durante aquele período ao atual agente de execução do processo executivo 3015/10.7TBVFR da quantia de € 6.000,00 (seis mil euros).
5. Declarar perdida a favor do Estado a vantagem económica obtida com a prática do ilícito típico em apreço e, na impossibilidade da sua apropriação em espécie, condenar o arguido no pagamento ao Estado do respetivo valor (art. 111º, nºs 1, 2 e 4 do CP na versão em vigor à data da prática dos crimes em apreço/ art. 110º, nº 1, alínea b) e nº 4, do Código Penal na redação atual), no valor de € 4.604,33 (quatro mil, seiscentos e quatro euros e trinta e três cêntimos).
6. Julgar parcialmente procedente, porque parcialmente provado, o incidente de declaração de perda deduzido pelo Ministério Público nos termos da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece um regime especial de perda de bens relativamente a um conjunto de crimes de catálogo, entre os quais se inclui o crime de peculato, declarando perdido a favor do Estado o valor de € 88.161,49 (oitenta e oito mil, cento e sessenta e um euros e quarenta e nove cêntimos).
7. Não aplicar sanção acessória de proibição de exercício de função.

Sem custas por não serem devidas pelo M.P.

Sumário:
(Da exclusiva responsabilidade do relator)
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………………………………
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Porto, 12 de maio de 2021
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-09-2016, Proc. n.º 405/14.0JACBR.C1 - 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de acórdãos).
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-06-2018, Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de acórdãos).
[4] O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto "não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas".(cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763, www.dgsi.pt ).
[5] no nosso ordenamento jurídico-processual vigora o princípio da livre apreciação da prova, sendo esta valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador – art. 127º do C.P.P. – tendo como pressupostos valorativos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, supostos pela ordem jurídica – Maia Gonçalves, C.P.P., ant. 10ª ed., pág. 322.
O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa como em prova indiciária, não afastada a possibilidade do julgador valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção – Ac. Rel. Coimbra, 06.03.96, CJ XXIII, II, 44.
Quanto ao art. 127º do C.P.P., refere o Ac. de 09.11.95 do TC, citado no Ac. 197/97, de 11.03.97, do mesmo Tribunal, publicado no DR, IIª Série de 29.12.98, que o juiz aí pressuposto pelo legislador é o juiz responsável e livre, capaz de por o melhor da sua cultura, inteligência e conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório que lhe é fornecido.
O sistema da livre apreciação da prova não comporta, todavia, o subjectivismo ou a emotividade, antes exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência, como decidiram os Acs. n.º 464/97 do Tribunal Constitucional e do STJ de 07.01.2004 (Proc. n.º 03P3213).
A prova processual, ao invés do que acontece com a demonstração no campo da matemática ou com a experimentação, no campo das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta, mas apenas a convicção essencial às relações práticas da vida social – Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 407- sendo a liberdade do juiz na respectiva apreciação “uma liberdade para a objectividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros” – Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967 – 68, p. 50.”.
E, como não existe prova tarifada, “sendo o julgador livre de apreciar e relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado; pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só. Como se escreveu no Ac. do STJ de 11.07.2007, a prova produzida mede-se pelo seu peso e não pelo seu número”- Ac. da RL de 14.12.2010, proc. nº 518/08.7PLLSB. L1-5 –.
A única limitação à discricionaridade do julgador, é imposta pelas regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, pelo que a exposição sobre os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão (art. 374º nº 2/CPP) não pode colidir com as regras da experiência: ou seja, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções meritórias, plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, por ter sido proferida em obediência à lei, que impõe que o juiz julgue em conformidade com a sua livre convicção.