PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
NOTA DE CULPA
DESCRIÇÃO CIRCUNSTANCIADA
OMISSÃO
Sumário

I - A descrição circunstanciada, na nota de culpa, dos factos imputados ao trabalhador prende-se com o exercício do direito de defesa do trabalhador e com o princípio da vinculação temática (conforme arts. 353º e 357º, nº 4, do Código do Trabalho).
II - A omissão de tal circunstanciação em relação a alguns dos factos imputados não determina a invalidade total do procedimento disciplinar mas, tão-só, a inatendibilidade dessa concreta imputação para justificar a justa causa do despedimento.

Texto Integral

Processo nº 5418/20.0T8VNG.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B…, residente na Rua …, …, 0.4, Vila Nova de Gaia, patrocinado por mandatário judicial, veio intentar contra C…, S.A, com sede na Rua …, …, nº …, …, a presente acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.
Foi designada e realizada a audiência de partes, não se tendo logrado obter acordo destas.
A ré apresentou articulado motivador, nos termos previstos no artigo 98º-J, do CPT, pedindo que se declare o despedimento do autor regular e lícito.
Alega, em síntese: A ré foi informada existir uma diferença entre o saldo lógico, na aplicação STGV (Sistema de Tratamento e Guarda de Valores), e os valores efetiva e fisicamente guardados pela C… na Delegação do Porto; tendo sido ordenada uma auditoria interna, para efeitos de contagem de valores, ao J… do Porto, em concreto à secção da Conservadoria, onde é guardado o dinheiro dos clientes da C…; no dia 30 de maio, uma equipa de 12 (doze) trabalhadores de diferentes departamentos da C… de Lisboa e do Porto iniciaram a auditoria à Conservadoria do J… do Porto, tendo, no decurso da contagem de valores, encontrado, dentro do cofre, onde estão guardadas as notas pertencentes ao cliente D… (D…), duas caixas de notas de Euro vazias; tendo-se confirmado que no saldo lógico da D… estavam contabilizadas as notas que, supostamente, estariam nas referidas caixas; Concluindo-se que existia uma diferença, na nota, de € 300.000,00 entre os saldos lógicos e os físicos; Por sua vez, aquando da contagem da moeda armazenada em paletes, a referida equipa de trabalhadores que realizava a auditoria, encontrou, dissimuladas entre outras, uma palete vazia e uma palete onde faltavam moedas; Facto que era do conhecimento do Trabalhador visado que, consistentemente e ao longo de muitos anos enganou a C… e o seu Cliente e acionista D…; Informada desses factos, no dia 31 de maio, a Administração da Ré deliberou a instauração de um procedimento disciplinar, com suspensão imediata das suas funções, contra o Autor, a qual foi comunicada ao Autor no dia 03 de junho.
O autor veio contestar e reconvir pedindo:
a) Devem serem julgadas procedentes por provadas, as exceções invocadas pelo Autor;
b) Deve a presente ação de impugnação de regularidade e licitude do despedimento, interposta pelo Autor, nos termos do artigo 98º C e seguintes do Código do Processo do Trabalho, ser 
julgada procedente, por provada, e, em consequência:
c) Ser declarado inválido o Processo Disciplinar, por inobservância do formalismo legal;
d) Em consequência, ser declarado ilícito o despedimento do Autor; [seguramente por lapso consta do pedido “ser declarado lícito”]
e) Deve ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de 33.462,170;
f) Em qualquer dos casos, a essa quantia acrescendo juros devidos, à taxa legal, desde a data de 
vencimento até integral pagamento.
Invoca a nulidade do processo disciplinar, por conter apenas afirmações genéricas sem qualquer concretização, o que impediu o Trabalhador de impugnar de forma especificada os factos alegados, bem como a caducidade e prescrição do mesmo, e impugnou a matéria alegada pela ré. Em sede de reconvenção alega, em síntese: foi contratado a 1 de junho de 2002, mediante a remuneração base mensal de € 841,25, acrescido de um subsídio de refeição no montante de € 6,20 por cada dia de trabalho efetivo, trabalhou para a ré até 7 de agosto de 2020, data em que foi despedido; O despedimento e tendo em conta os factos que estão na base do despedimento levaram a que o Autor ficasse emocionalmente desestabilizado, com uma grande crise de ansiedade; Inevitavelmente o Autor foi olhado de lado e mesmo no seio familiar o despedimento do Autor levantaram grandes problemas.
A ré respondeu, pugnando pela improcedência das excepções, e impugnando a matéria da reconvenção.
Realizou-se audiência prévia, na qual se tentou a conciliação das partes, o que não se concretizou, e durante a qual o autor desistiu do pedido relativo a indemnização por danos não patrimoniais.
Foi proferido despacho saneador/sentença, no qual se julgaram improcedentes as excepções de ineptidão do processo disciplinar e de caducidade do direito de instauração do mesmo, relegando-se para a decisão o conhecimento da prescrição por se prender com a decisão de mérito.
Foi a final proferida a seguinte decisão:
I. decide-se julgar totalmente procedente a presente ação que o Trabalhador B… intentou/deduziu contra a C…, S.A considerando ilícito o seu despedimento.
II. Em consequência, condeno a entidade patronal a pagar ao trabalhador uma indemnização pela antiguidade nos termos do artigo 391o do CT, correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade e que à data do despedimento, se cifrava em € 15.225,47, juros de mora desde a data da prolação da sentença até integral pagamento, bem como as retribuições mensais intercalares devidas desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 390º, nº 1, al. a) do CT, correspondente ao valor mensal de € 841,25, e que a 07.12.2020 se liquida em €3.365, sem prejuízo das deduções a que alude o nº 2 do citado normativo, nomeadamente, o subsidio de desemprego que o trabalhador esteja a auferir.
III. Em face da declaração do trabalhador em sede de audiência prévia, homologo a desistência parcial do pedido reconvencional formulado a título de danos não patrimoniais no montante de € 5.000.00, absolvendo a Ré do pedido.
Fixou-se à acção o valor de € 23.590,47.
Inconformada interpôs a ré o presente recurso de apelação, concluindo:
1. Os autos disciplinares constam todos os elementos essenciais para concluir, como a Ré o fez, que está definitiva e imediatamente comprometida a relação de confiança entre entidade patronal e seu trabalhador em que se deve basear a relação de laboral;
2. Efetivamente existem nos autos disciplinares, mais concretamente na nota de culpa e na decisão, factos concretos dados como assentes que permitem imputar ao Trabalhador ações e omissões que levaram ao seu despedimento;
3. Existem factos que permitem concluir que até ao dia 30 de maio de 2020, o Trabalhador e outros seus colegas sabiam da existência de uma diferença entre o saldo lógico registado na aplicação STGV e o saldo físico de notas efetivamente existentes no cofre da empresa no Porto e nada disseram;
4. Tinham inclusivamente conhecimento de que essa diferença estava camuflada.
5. Constam dos autos disciplinares factos que consubstanciam o seguinte:
a) O Trabalhador tinha a função de controlar os saldos físicos e lógicos do Cliente D… (art. 22º da decisão disciplinar);
b) Sabia que existia uma diferença entre os valores (notas e moedas de Euros) efetivamente guardados pela C… no seu cofre do Porto e os valores registados em STGV e comunicados aos seus Clientes, nomeadamente à D… (art. 17º, 21º, 23º, 34º, 35º da decisão disciplinar);
c) Essa diferença era de € 300.000 (trezentos mil euros), divididos em 10.000 notas novas com o valor facial de 20 euros, ou seja, 200.000 euros e 10.000 notas novas com o valor facial de 10 euros, ou seja, 100.000 euros (art. 11º da decisão disciplinar); e
d) Nos dias 29 e 30 de maio de 2020 essa diferença existia (art. 8º e seguintes da decisão disciplinar).
6. As condutas em análise claramente prejudicam a Entidade Patronal, repercutindo-se negativamente no regular funcionamento da empresa, além de que são suscetíveis de transmitir para o exterior uma ideia de desorganização e negligência.
7. Os factos constantes dos autos disciplinares, sobretudo da decisão, são susceptíveis de comprometer imediata, pratica e definitivamente a relação de trabalho, pois quebram o laço de confiança vital para a sua subsistência.
8. Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo violou, designadamente, as normas dos arts. 351º, 357º, 381º, 387º; todos do CT; art. 342º do CC e art. 53 da CRP.
O autor alegou concluindo:
1. O presente recurso foi interposto pela C…, S.A. (“Sinistrada / Recorrente”) do douta despacho, datado de 15 de dezembro de 2020, que julgou a ação interposta pelo Autor totalmente procedente considerando ilícito o despedimento do Autor, uma vez que se verifica a invalidade do procedimento disciplinar, ao abrigo do artigo 382º, nº 2, al. a) do CT.
2. Em sede de recurso a Recorrente alega, em suma, que a decisão proferida deve ser revogada, uma vez que dos autos disciplinares constam todos os elementos essenciais para concluir que está definitivamente e imediatamente comprometida a relação de confiança entre a entidade patronal e o seu trabalhador e, que consequentemente o Tribunal a quo violou, designadamente, as normas dos artigos 351º, 357º, 381º, 387º, todos do CT; artigos 342º do CC e artigos 53 da CRP.
3. A Recorrente nas suas alegações não explica e como tal não sustenta o porquê de considerar na sua opinião por que motivo o Tribunal a quo violou na sua decisão aqueles normativos.
4. Nas suas alegações de recurso, a Recorrente invoca factos que deverão considerar-se como não escritos, uma vez que tais factos não são objeto da decisão Recorrida, nem cabe a este Venerando Tribunal pronunciar-se sobre tais factos, mas apenas analisar se tal como é sustentado na douta decisão recorrida se o procedimento disciplinar deverá ser considerado inválido por não contiver a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador.
5. A Recorrente não terá compreendido que é na nota de culpa que têm necessariamente que constar os factos que são imputados ao trabalhador e que essas imputações têm de ser feita de forma circunstanciada, o que no caso não aconteceu.
6. Da análise da nota de culpa não há uma única resposta às questões básicas que uma nota de culpa deve responder: Quem? O quê? Quando? Onde? Porquê?
7. Desconhecendo por falta de alegação da(s) data(s) da prática dos factos, o trabalhador fica coartado no exercício dos seus direitos de defesa.
8. A nota de culpa comunicada ao Autor, aqui Recorrido deveria ter a descrição circunstanciada dos factos que lhe são imputados, artigo 353º do Código do Trabalho.
9. A nota de culpa tem de conter a descrição dos factos imputados ao trabalhador, para que este possa apresentar a sua defesa em relação aos factos concretos que lhe são imputados. O que não acontece.
10. Quando em sede de recurso, a Recorrida pretende evidenciar aquilo que na sua opinião está em causa nos autos (veja -se artigo 9. das alegações e 5. das conclusões) remete alegações da decisão disciplinar e não da nota de culpa, laborando num erro durante todas as suas alegações – veja-se a título de exemplo os artigos 10, 12, 38 das alegações. O problema está na nota de culpa.
11. O que origina a invalidade do procedimento disciplinar é a nota de culpa e não a decisão, 
esta estaria sempre inquinada pela invalidade da nota de culpa.
12. Por todo o exposto, entende a Recorrida que a douta Sentença recorrida não violou nenhum 
preceito legal, seja de natureza substantiva, adjetiva ou constitucional.
13. Sendo, pelo contrário, inteiramente justa e acertada, devendo, por isso, ser confirmada. 

Foi fixado ao recurso o efeito suspensivo, por ter a recorrente prestado caução.
O Ilustre Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, parecer a que as partes, devidamente notificadas, não responderam.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A questão colocada consiste em determinar da regularidade ou irregularidade do procedimento disciplinar para despedimento do trabalhador autor.

II. Factos provados:
Consta da decisão: “Em face do despacho proferido em audiência prévia em 24.11.2020, ref. 419619851, sobre a imediata decisão da causa, face à desistência do trabalhador relativamente ao pedido de danos não patrimoniais, considero assentes para o efeito os seguintes factos:
1. No articulado de motivação são imputados ao trabalhador os seguintes factos que consta da nota de culpa/decisão de despedimento:
20º (artigo 7º da decisão de despedimento)
No dia 29 de maio, ao final do dia, depois de fechado o cofre, o referido E… e o Diretor de Segurança, Dr. F…, comunicaram aos superiores hierárquicos do Trabalhador visado G… e H…, que no dia seguinte a C… iria fazer uma auditoria à Conservadoria do Porto.
21º (artigo 8º da decisão de despedimento)
De imediato o superior hierárquico do Trabalhador visado e com quem este trabalhava diretamente, G…, adiantou que se iam realizar a contagem de valores e confrontar essa contagem com as existências registadas em STGV, iriam encontrar uma diferença de € 300.000 (trezentos mil euros).
22º (artigo 9º da decisão de despedimento)
No dia 30 de maio, uma equipa de 12 pessoas, que incluía trabalhadores de diferentes departamentos da C… de Lisboa e do Porto iniciaram a auditoria à Conservadoria do J… do Porto.
23º (artigo 10º da decisão de despedimento)
No decurso dessa contagem de valores, dentro do cofre, onde estão guardadas as notas pertencentes à D…, foram encontradas duas caixas de notas novas de Euro vazias.
24º (artigo 11º da decisão de despedimento)
Estas caixas vêm do Banco de Portugal, devidamente lacradas e deveriam conter no seu interior, respetivamente: (i) 10.000 notas novas com o valor facial de 20 euros, ou seja, 200.000 euros; e(ii) 10.000 notas novas com o valor facial de 10 euros, ou seja, 100.000 euros.
25º (artigo 12º da decisão de despedimento)
Estas caixas estavam dentro do cofre junto de outras caixas semelhantes, mas cheias com as respetivas notas, com o intuito de enganar quem fizesse a contagem física dos valores.
26º (artigo 13º da decisão de despedimento)
Nomeadamente quem pudesse ir fazer a confirmação das existências físicas.
27º (artigo 14º da decisão de despedimento)
De facto, as caixas foram colocadas para que parecessem lacradas, tal como foram recebidas do Banco de Portugal.
28º (artigo 15º da decisão de despedimento)
Mas, na realidade, já tinham sido abertas e estavam vazias.
29º (artigo 16º da decisão de despedimento)
O intuito deste estratagema era o de enganar quem fosse realizar a contagem física dos valores, contabilizando assim notas que, na realidade, não existiam.
30º (artigo 17º da decisão de despedimento)
Confrontado depois o número de notas existentes com os saldos de nota do STGV, confirmou-se que no saldo da D… (D…) estavam contabilizadas as notas que, supostamente, estariam nas caixas.
31º (artigo 18º da decisão de despedimento)
Mas esta diferença estava dissimulada para evitar que alguém que fosse efetuar uma contagem surpresa e que não fosse efetivamente pegar nas caixas (o que seria normal, pois aparentemente estavam seladas), não se aperceberia que os valores que o Trabalhador visado ou o seu colega G… reportavam à D… como saldo de notas não correspondem ao que a C… tinha efetivamente à sua guarda.
32º (artigo 19º da decisão de despedimento)
A C… ficou sem as notas que suportam esse saldo.
33º (artigo 20º da decisão de despedimento)
Assim, foi apurada uma diferença no cofre da nota entre o saldo contabilístico e físico no valor de 300.000 euros.
34º (artigo 21º da decisão de despedimento)
Facto que era do conhecimento do Trabalhador visado que, consistentemente e ao longo de muitos anos enganou a C… e o seu Cliente e acionista D….
35º (artigo 22º da decisão de despedimento)
Efetivamente, após a suspensão, vários dos seus colegas referiram que o Trabalhador visado e a sua chefia G… eram os únicos que controlavam as existências físicas e lógicas da D….
36º (artigo 23º da decisão de despedimento)
Eram estes Trabalhadores que realizavam as contagens de valores físicos da D… e depois comunicava um valor errado àquele Banco.
37º (artigo 24º da decisão de despedimento)
Prática que se arrastou durante anos, sem que nunca o Trabalhador tivesse comunicado fosse a quem fosse.
38º (artigo 25º da decisão de despedimento)
Nomeadamente à auditora que, pelo menos duas vezes por ano, se deslocava ao J… do Porto e a quem o Trabalhador visado sempre escondeu a verdade.
39º (artigo 26º da decisão de despedimento)
Como são habituais as transferências entre as tesourarias do Porto e de Lisboa, tal como anteriormente já se tinha referido, a Administração da C… ordenou a realização de outra auditoria ao J… de Lisboa.
40º (artigo 27º da decisão de despedimento)
Pois existia a remota possibilidade de as notas e as moedas, poderem ter sido transferidas entre delegações e, por alguma razão, tal não ter sido registado no STGV.
41º (artigo 28º da decisão de despedimento)
Seria uma falha estranha e rara de ambas as tesourarias, mas essa possibilidade não podia ser totalmente afastada, sobretudo se existisse conluio entre todos.
42º (artigo 29º da decisão de despedimento)
Foi, assim, realizada uma auditoria no J… de Lisboa semelhante à que foi realizada no Porto.
43º (artigo 30º da decisão de despedimento)
Entre os dias 1 e 4 de junho foram contados todos os valores à guarda no J… de Lisboa e não foi encontrada qualquer diferença significativa entre o saldo físico e contabilístico constante do STGV.
44º (artigo 31º da decisão de despedimento)
Assim, ficou afastada a possibilidade da diferença no Porto estar justificada por transferências entre tesourarias.
45º (artigo 32º da decisão de despedimento)
Apuradas as primeiras conclusões, a Administração da C… mandou abrir procedimento disciplinar ao Trabalhador visado, com suspensão imediata das suas funções.
46º (artigo 33º da decisão de despedimento)
No dia 3 de junho o Trabalhador visado apresentou-se no seu local de trabalho, e confirmou que sabia que os saldos que comunicados à D… não correspondiam à verdade.
47º (artigo 34º da decisão de despedimento)
Efetivamente, o Trabalhador visado há muito que sabia que existia uma diferença entre os valores (notas e moedas de Euros) efetivamente guardados pelo C… no seu cofre do Porto e os valores registados em STGV e comunicados aos seus Clientes, nomeadamente à D….
48º (artigo 35º da decisão de despedimento)
Sabendo dessa diferença, o Trabalhador visado, combinado com a sua chefia G…, diariamente registava em STGV um saldo que sabia ser falso.
49º (artigo 36º da decisão de despedimento)
O qual era também comunicado, pelo menos, à D….
50º (artigo 37º da decisão de despedimento)
O Autor nunca disse à auditora I… que os valores que tinha introduzido na aplicação STGV não correspondiam à verdade.
51º (artigo 38º da decisão de despedimento)
Efetivamente, esta era ludibriada pelos trabalhadores da Conservadoria e nunca deu pela diferença em causa.
52º (artigo 39º da decisão de despedimento)
Independentemente das ordens que poderia, ou não, ter recebido da sua chefia, o Trabalhador visado sabia que estava a enganar a sua entidade patronal e a Cliente desta, a D….
53º (artigo 40º da decisão de despedimento)
Efetivamente o Trabalhador visado durante anos elaborou documentos que enviou à D… que continham informação falsa, pois os saldos que lá iam apresentados não correspondiam aos valores existentes no cofre da empresa.
54º (artigo 41º da decisão de despedimento)
O mesmo se passa com a aplicação STGV, o Trabalhador visado sabia que os saldos que estava a introduzir na aplicação não eram verdadeiros.
2. A Ré é uma sociedade comercial, sob a forma de sociedade anónima, que se dedica à prestação de serviços de segurança privada, estando habilitada para a prestação desses serviços pelo Alvará nº .., alíneas A, B, C e D do MAI (artigo 1º do articulado de motivação do empregador)
3. Um dos serviços de segurança que presta (correspondente à alínea D) é o transporte, guarda e tratamento de valores (artigo 2º do articulado de motivação do empregador)
4. O Autor foi admitido ao serviço da Ré com a categoria de Vigilante em 01 de junho de 2002, prestando os seus serviços na Delegação do Porto, mais concretamente, na Rua …, …/…, em … (artigo 3º do articulado de motivação do empregador)
5. Conforme teor do documento junto a fls. 4 a 12 que se dá por integralmente reproduzido, em 07 de agosto de 2020, a entidade patronal comunicou ao trabalhador o seu despedimento com fundamento em justa causa.
6. À data do despedimento, o trabalhador auferia a retribuição mensal de € 841,25 acrescido de € 6,25 diário a título de subsidio de alimentação (artigo 126º da contestação)”

III. O Direito
Consta da sentença sob recurso:
“Vista a nota de culpa e a decisão de despedimento desde logo importa salientar que a expressão constante do artigo 7º do articulado “(...) no final de maio de 2020, foi alertado pela chefia do tratamento de Valores, H… (...) não consta da nota de culpa nem da decisão disciplinar pelo deverá considerar-se não escrita em face do normativos supra citados.
Não há qualquer concretização temporal sobre o momento em que o diretor da Direção de Logística e Gestão de Numerário, Dr. E… teve conhecimento da possibilidade de existir uma diferença entre o saldo lógico na aplicação STGV e os valores efetiva e fisicamente guardados pela C… no Porto.
No que respeita à imputação ao trabalhador, é referido que: -“(...) a C… procede à recolha de valores ficando estes à sua guarda até que os clientes dêem instruções acerca do seu destino. - Tais saldos são geridos através da supra referida aplicação informática própria, a que se dá o nome de STGV. - O diretor supra referido deu conhecimento à Administração da Ré do que lhe tinha sido transmitido, tendo sido ordenada uma auditoria interna, para efeitos de contagem de valores, ao J… do Porto, em concreto à secção da Conservadoria, onde é guardado o dinheiro dos clientes da C….
Perguntamos: Quando tal ocorreu?
É ainda alegado que: - Em preparação dessa contagem a efetuar no Porto, no dia 29 de maio, o referido E… e o Diretor de Segurança, Dr. F…, comunicaram ao responsável pela Conservadoria, superior hierárquico do Autor e ao responsável pela secção do tratamento do J… do Porto, H…, que no dia seguinte iria ser efetuada uma auditoria à Conservadoria do Porto. - Sucede que nessa sequência o Trabalhador G…, superior hierárquico do Autor, adiantou desde logo que, se iam realizar a contagem de valores e confrontar essa contagem com as existências registadas em STGV, iriam encontrar uma diferença de € 300.000,00 (trezentos mil euros) no cliente D… (D…). - Estranhando tal afirmação, as suas chefias perguntaram ao Trabalhador G… qual a razão para a existência de uma diferença tão grande, em resposta este disse que entregaria um documento a explicar essa diferença. - Assim, no dia 30 de maio, uma equipa de 12 (doze) trabalhadores de diferentes departamentos da C… de Lisboa e do Porto iniciaram a auditoria à Conservadoria do J… do Porto, tendo, no decurso da contagem de valores, encontrado, dentro do cofre, onde estão guardadas as notas pertencentes ao cliente D… (D…), duas caixas de notas de Euro vazias. - Tais caixas, com o selo violado, estavam no meio de outras caixas cheias e seladas e cheias com as respetivas notas. - Estas caixas vêm do Banco de Portugal, devidamente lacradas e deveriam conter no seu interior, respetivamente: (i) 10.000 notas novas com o valor facial de 20 euros, ou seja, 200.000 euros;(ii) 10.000 notas novas com o valor facial de 10 euros, ou seja, 100.000 euros. - as caixas foram colocadas para que parecessem lacradas, tal como foram recebidas do Banco de Portugal - Após tal descoberta, foi confrontado o número de notas existentes com os saldos de nota constantes no STGV, tendo-se confirmado que no saldo lógico da D… estavam contabilizadas as notas que, supostamente, estariam nas referidas caixas. - Concluindo-se, tal como como a chefia do Autor tinha referido no dia anterior, que existia uma diferença, na nota, de € 300.000,00 entre os saldos lógicos e os físicos. - Por sua vez, aquando da contagem da moeda armazenada em paletes, a referida equipa de trabalhadores que realizava a auditoria, encontrou, dissimuladas entre outras, uma palete vazia e uma palete onde faltavam moedas. - Informada desses factos, no dia 31 de maio, a Administração da Ré deliberou a instauração de um procedimento disciplinar, com suspensão imediata das suas funções, contra o Autor, a qual foi comunicada ao Autor no dia 03 de junho.
Até aqui não há qualquer imputação ao A. nem estão circunstanciados temporalmente os factos, nem esclarecido como os mesmos ocorreram, nomeadamente, desde quando existe essa diferença entre o saldo físico e o lógico; em que termos em que ocorreu essa diferença: quem retirou os valores? Quando? Como?
Não está ainda esclarecido relativamente às caixas de notas de euro vazias, desde quando é que tal ocorreu, nem quem retirou os valores que deveriam integrá-las.
É ainda afirmado que uma palete estava vazia. Porém, não é esclarecido o que devia conter, nem que valores.
Do mesmo modo, relativamente à palete onde faltavam moedas. Também não é referido que valores faltavam e que valores deveria conter, nem desde quando tal terá ocorrido.
É ainda referido que: - esta diferença estava dissimulada para evitar que alguém que fosse efetuar uma contagem surpresa e que não fosse efetivamente pegar nas caixas (o que seria normal, pois aparentemente estavam seladas), não se aperceberia que os valores que o Trabalhador visado ou o seu colega G… reportavam à D… como saldo de notas não correspondem ao que a C… tinha efetivamente à sua guarda.
Perguntamos: Que saldo(s) foi(ram) comunicado(s) pelo trabalhador à D…? Quando? Que valores efetivamente existiam no cofre? Quem os retirou? Quando e durante quanto tempo decorreu este processo?
A afirmação de que “Assim, foi apurada uma diferença no cofre da nota entre o saldo contabilístico e físico no valor de 300.000 euros” é totalmente conclusiva.
Relativamente às alegações:“- Facto que era do conhecimento do Trabalhador visado que, consistentemente e ao longo de muitos anos enganou a C… e o seu Cliente e acionista D….- o Trabalhador visado e a sua chefia G… eram os únicos que controlavam as existências físicas e lógicas da D….- Eram estes Trabalhadores que realizavam as contagens de valores físicos da D… e depois comunicava um valor errado àquele Banco- Prática que se arrastou durante anos, sem que nunca o Trabalhador tivesse comunicado fosse a quem fosse- Nomeadamente à auditora que, pelo menos duas vezes por ano, se deslocava ao J… do Porto e a quem o Trabalhador visado sempre escondeu a verdade”
Perguntamos: Como ocorreu esse engano por parte do trabalhador? Em que hiato temporal? Quando foram realizadas essas contagens? Qual o valor alcançado? Quando e que comunicações foram feitas à D…, nomeadamente pelo trabalhador?
Com a afirmação da “alegada prática que se arrastou durante anos, sem que nunca o trabalhador tivesse comunicado fosse a quem fosse”, fica-se ainda sem perceber afinal qual a intervenção do trabalhador. Está em causa uma ação (fez as contagens e as comunicações à D…?) ou uma omissão (não comunicou que havia discrepâncias?) Novamente relativamente ao hiato temporal, nenhuma concretização é feita.
Relativamente às invocadas auditorias: quantas houve? Quando? Que conclusões retiraram? Que verdade em concreto escondeu o trabalhador e em que circunstâncias?
Relativamente à alegação:- Efetivamente, o Trabalhador visado há muito que sabia que existia uma diferença entre os valores (notas e moedas de Euros) efetivamente guardados pelo C… no seu cofre do Porto e os valores registados em STGV e comunicados aos seus Clientes, nomeadamente à D…. - Sabendo dessa diferença, o Trabalhador visado, combinado com a sua chefia G…, diariamente registava em STGV um saldo que sabia ser falso. - O qual era também comunicado, pelo menos, à D…. - Efetivamente o Trabalhador visado durante anos elaborou documentos que enviou à D… que continham informação falsa, pois os saldos que lá iam apresentados não correspondiam aos valores existentes no cofre da empresa.
Não há concretização desses saldos efetivos e comunicados, não há um registo temporal desses registos, donde se possa inferir alguma diferença e um concreto comportamento imputado ao trabalhador. O mesmo se diga para os alegados documentos elaborados pelo trabalhador.
Com estes factos, a entidade patronal concluiu na sua decisão que o arguido não executou as tarefas com zelo e diligência, não guardou lealdade ao seu empregador, não velou pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o trabalho que lhe foram confiados pelo empregador, violando os deveres previstos no artigo 128º, nº 1, al. c), f) e g) do CT.
Não vemos como dos factos supra descritos possa a entidade patronal ter concluído nesse sentido e justificar a aplicação da sanção de despedimento.
Conforme já referimos, da nota de culpa e da decisão de despedimento haverá que extrair-se a totalidade dos factos demonstrativos da violação dos deveres laborais impostos ao trabalhador, nomeadamente, os previstos no artigo 128º do CT. Estas comunicações devem conter expressa e circunstanciadamente, os factos imputados ao trabalhador, sob pena de estes não poderem ser atendidos pelo Tribunal na ponderação da licitude do despedimento.
Saliente-se ainda que, verificado que seja esse circunstancialismo no âmbito de uma acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, não pode o Tribunal formular qualquer convite ao empregador, no sentido de este concretizar ou circunstanciar devidamente a matéria em causa, face à imposição nos artigos 357º nº 3 e 387º nº 3 do Código do Trabalho, já supracitados.
Ora, a mera alegação que o trabalhador tinha a incumbência (que não era exclusivamente sua) de controlar as existências físicas e lógicas da D… e que realizava as contagens de valores físicos da D… e que em dado momento foi constatado uma discrepância entre o valor real e o valor comunicado no sistema, não importa qualquer imputação ao agente violadora dos seus deveres laborais, nem permite a conclusão retirada em sede de avaliação da conduta na decisão proferida.
Fica-se sem perceber, face à confusão de argumentos carreados para a decisão, se o trabalhador teve uma conduta meramente omissiva perante factos praticados por outrem ou um comportamento ativo (no sentido do próprio fazer comunicações dispares e falsas relativamente aos valores reais, comunicando um valor errado àquele Banco), sem qualquer concretização temporal dos factos, sem a determinação de quem terá praticado os factos, o seu modus operandi, indicação dos valores reais/indicação dos valores comunicados e que terão permitido apurar essa diferença de € 300.000,00.
Dos relatórios de auditorias juntos ao processo disciplinar resultam extratos com a indicação de clientes, saldos, datas que de nenhum modo se mostra vertido na nota de culpa nem na decisão de despedimento. De realçar que os documentos apenas servem para demonstrar factos que necessariamente têm que ser alegados e levados ao conhecimento do trabalhador que, apenas desse modo, se poderá defender da imputação que lhe é feita. De outro modo são irrelevantes, sendo inadmissível a mera remissão para os mesmos para justificar uma expressão conclusiva, esvaziada de qualquer conteúdo fático.
Assim, de acordo com a nota de culpa e com a decisão de despedimento apresentada não é possível extrair, ainda que com algum esforço interpretativo, factos que possam consubstanciar alguma infração disciplinar por parte do trabalhador.
Para além disso, não é possível ao trabalhador defender-se relativamente aos factos que não se mostram especificados nem concretizados temporalmente, nomeadamente, não podendo sequer invocar a questão da prescrição do direito a exercer o poder disciplinar.
Tal circunstancialismo determina necessariamente, ao abrigo do artigo 382º, nº 2, al. a) do CT, a consideração do procedimento inválido com a consequente declaração da ilicitude do despedimento promovido pela entidade patronal por não poder esta demonstrar e, nessa medida, não ter demonstrado, qualquer violação dos deveres impostos ao trabalhador, nos termos do artigo 382º, nº 1, parte final do CT.”
Insurge-se a recorrente, alegando:
3. “Efetivamente, constam dos autos disciplinares todos os elementos 
essenciais para concluir, como a Ré o fez, que está definitiva e imediatamente comprometida a relação de confiança entre entidade patronal e seu trabalhador em que se deve basear a relação de laboral.
4. Tal confiança é ainda mais importante na relação laboral dos autos pela atividade da Ré e pelas funções desempenhadas pelo Trabalhador.
5. Independentemente disso, o Tribunal a quo, ao analisar a exceção invocada pelo Trabalhador da prescrição do procedimento disciplinar afirma que não constam dos autos disciplinares, mais concretamente da nota de culpa e da decisão disciplinar, factos concretos que permitam imputar ao Trabalhador ações ou omissões que levam ao seu despedimento.
6. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo carece de razão.
7. Efetivamente, tal como vem transcrito na Sentença recorrida, existem factos na decisão que permitem concluir, tal com a Ré o fez, que até 30 de maio, o Trabalhador e outros colegas sabiam que existia uma diferença entre o saldo lógico (em STGV) e o saldo físico de notas efetivamente existente no cofre da empresa no Porto.
8. É verdade que não consta dos autos disciplinares quando nasceu essa diferença nem quem ou quando foram retiradas as notas, mas a Ré também não acusou o seu Trabalhador de ter retirado as notas do cofre.
9. O que está em causa nos presentes autos é o facto de o Trabalhador:
a) Tinha a função de controlar os saldos físicos e lógicos do Cliente D… (art. 22º da decisão disciplinar);
b) Sabia que existia uma diferença entre os valores (notas e moedas de Euros) efetivamente guardados pela C… no seu cofre do Porto e os valores registados em STGV e comunicados aos seus Clientes, nomeadamente à D… (art. 17º, 21º, 23º, 34º, 35º da decisão disciplinar);
c) Essa diferença era de € 300.000 (trezentos mil euros), divididos em 10.000 notas novas com o valor facial de 20 euros, ou seja, 200.000 euros e 10.000 notas novas com o valor facial de 10 euros, ou seja, 100.000 euros (art. 11º da decisão disciplinar);
d) Nos dias 29 e 30 de maio de 2020 essa diferença existia (art. 8º e seguintes da decisão disciplinar).
10. Assim e ao contrário do que consta da Sentença recorrida, consta de decisão disciplinar as circunstâncias de tempo, modo e lugar da falta imputada ao Trabalhador.”
Respondeu o recorrido: “Com efeito, a aqui Recorrente não terá compreendido que é na nota de culpa que têm necessariamente que constar os factos que são imputados ao trabalhador e que essas imputações têm de ser feita de forma circunstanciada, o que no caso não aconteceu. E não aconteceu, porque como a Recorrente bem sabe tais factos não existem.”
Nos termos do disposto no art. 353º, nº 1, do Código do Trabalho, no caso em que se verifique algum comportamento susceptível de constituir justa causa de despedimento, o empregador comunica, por escrito, ao trabalhador que o tenha praticado a intenção de proceder ao seu despedimento, juntando nota de culpa com a descrição circunstanciada dos factos que lhe são imputados.
Segundo Jorge Leite, em Direito do Trabalho, Da Cessação do Contrato de Trabalho, Revista Electrónica de Direito, 2017, acessível em sigarra.up.pt, pág.
87, “A nota de culpa reveste-se de grande importância porque, além do que se disse, delimita o âmbito fáctico de apreciação da adequação da sanção. A entidade patronal não pode invocar outros factos, posteriores ou anteriores, para justificar o despedimento nem o tribunal pode atender a factos nela não descritos. Mesmo no silêncio da lei, compreende-se que não possa ser de outro modo, sob pena de se tornar praticamente inútil o processo disciplinar e de se frustrarem as normas sobre o direito de defesa do acusado”. Acrescentando: “A nota de culpa, peça essencial do processo, deve conter a descrição fundamentada dos factos imputados ao trabalhador, não podendo, sob pena de nulidade, limitar-se a uma acusação genérica. Os factos devem ser descritos de forma minimamente circunstanciada em termos de o trabalhador os poder “localizar”.”
No mesmo sentido acrescenta Maria do Rosário Palma Ramalho, no Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 4ª edição, 2012, pág. 835, “A nota de culpa é a peça essencial do processo disciplinar para despedimento, uma vez que estabelece o fundamento do mesmo, em moldes que condicionam a actuação do empregador até ao final do processo – neste sentido, o art. 357º nº 4 in fine estabelece que, na decisão disciplina do despedimento, não podem ser invocados factos que não tenham constado da nota de culpa.” Acrescentando na pág. 836: “Da nota de culpa tem que constar a descrição dos factos imputáveis ao trabalhador, susceptíveis de integrar o conceito geral de justa causa, constantes do art. 351º nº 1, e das infracções disciplinares a que tais factos correspondam (art. 353º nº 1, parte final), o que se justifica para assegurar a efectividade do direito de defesa do trabalhador. Deste preceito resulta que a estrutura da nota de culpa deve obrigatoriamente integrar as seguintes indicações: - a descrição completa e detalhada (i.e., circunstanciada) dos factos concretos que consubstanciam a violação do dever do trabalhador, não bastando, pois, uma simples referência ao dever violado pelo trabalhador, nem, muito menos, a remissão para a norma legal que comina tal dever; a referência à infracção a que corresponde o comportamento faltoso do trabalhador; tendo em conta que o comportamento do trabalhador pode ser um comportamento extra-laboral (nos termos acima indicados), é, nestes casos especialmente importante o estabelecimento, na nota de culpa, do nexo entre aquele comportamento e o dever laboral relevante para efeitos do despedimento; - a aferição da gravidade e da culpa do trabalhador na prática de tal infracção, de acordo com os critérios gerais da justa causa para despedimento enunciados no art. 353º nº 1 e nº 3.”
A falta de cumprimento de tal exigência de descrição circunstanciada gera a nulidade do processo e a consequente ilicitude do despedimento, se tal tiver ocorrido (Luís Menezes Leitão, em Direito do Trabalho, 3ª edição, 2012, pág. 404). Conforme disposto no art. 382º, nº 2, al. a) do Código do Trabalho, o procedimento é inválido se faltar a nota de culpa, ou se esta não for escrita ou não contiver a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador.
Compete, porém, à jurisprudência a densificação do conceito de descrição circunstanciada, em função das situações concretas que lhe são colocadas.
João Leal Amado, em Contrato de Trabalho, À luz do novo Código do Trabalho, 2009, pág. 381, acrescenta: “no plano procedimental, trata-se, afinal, de dar adequada expressão ao princípio do contraditório, autêntica chave-mestra do direito disciplinar.” Conforme consta do sumário do acórdão do STJ de 14 de Novembro de 2018, processo 94/17.0T8BCL-A.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt, “A nota de culpa deve conter a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador, em termos de modo, tempo ainda que aproximado, e de lugar, de forma a permitir que aquele organize, de forma adequada, a sua defesa, sob pena de invalidade do procedimento disciplinar.” Daí que igualmente “Se a resposta à nota de culpa revelar que o arguido compreendeu a acusação e exercitou o seu direito de defesa, mostrando pleno conhecimento do circunstancialismo da infracção disciplinar e opondo argumentos idóneos a contrariar a inculpação, a finalidade da referida exigência legal apresenta-se cumprida e a nota de culpa não enferma do vício de insuficiência que, a existir, determinaria a invalidade do processo disciplinar”, conforme sumário do acórdão do STJ de 27 de Fevereiro de 2008, processo 3523/07, acessível em www.stj.pt.
A propósito considerou-se no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 10 de Setembro de 2012, processo 448/11.5TTVFR-A.P1, ainda acessível em www.dgsi.pt: “A necessidade de descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador prende-se com o exercício do direito de defesa, sendo que tal descrição deverá ser apta a dar a conhecer ao trabalhador os concretos comportamentos que justificam, segundo o empregador, a justa causa invocada. E, por isso e conquanto não exista uma fórmula “sagrada” para tal circunstanciação, se tem entendido que ela envolve, por regra, a necessidade de indicação das circunstâncias de tempo, modo e lugar dos factos. Não obstante, a imposição da circunstanciação temporal não é, todavia, absoluta, podendo não ter necessariamente que ocorrer se a restante factualidade constante da nota de culpa permitir ao trabalhador, de forma segura, conhecer e situar no tempo o concreto (e não genérico) comportamento que lhe é imputado e, assim, defender-se adequadamente, como por exemplo demonstrando que a prática dos factos, na data da sua ocorrência, não seria possível ou invocando a caducidade do exercício da ação disciplinar ou prescrição da infração disciplinar. Se a acusação imputada estiver, em termos concretos e não genéricos, circunstanciada de modo a que permita ao trabalhador saber a que concreta situação se reporta o empregador, dá este cumprimento à exigência legal na medida em que não é posto em causa o exercício do direito de defesa, este o desiderato da norma.”
Analisando o caso dos autos, começaremos por referir que a nota de culpa é, efectivamente, uma peça deficiente, com factos genéricos e pouco concretizados. Mas daí não se retira necessariamente que mesma seja completamente omissa de factos que possam justificar a aplicação ao trabalhador da pena disciplinar de despedimento, como veio a ocorrer.
Foram imputados ao trabalhador recorrido, além do mais, o seguinte:
22º (artigo 9º da decisão de despedimento)
No dia 30 de maio, uma equipa de 12 pessoas (...), iniciaram a auditoria à Conservadoria do J… do Porto.
23º (artigo 10º da decisão de despedimento)
No decurso dessa contagem de valores, dentro do cofre, onde estão guardadas as notas pertencentes à D…, foram encontradas duas caixas de notas novas de Euro vazias.
24º (artigo 11º da decisão de despedimento)
Estas caixas vêm do Banco de Portugal, devidamente lacradas e deveriam conter no seu interior, respetivamente: (i) 10.000 notas novas com o valor facial de 20 euros, ou seja, 200.000 euros; e(ii) 10.000 notas novas com o valor facial de 10 euros, ou seja, 100.000 euros.
33º (artigo 20º da decisão de despedimento)
Assim, foi apurada uma diferença no cofre da nota entre o saldo contabilístico e físico no valor de 300.000 euros.
34º (artigo 21º da decisão de despedimento)
Facto que era do conhecimento do Trabalhador visado (...).
35º (artigo 22º da decisão de despedimento)
(...) o Trabalhador visado e a sua chefia G… eram os únicos que controlavam as existências físicas e lógicas da D…s.
36º (artigo 23º da decisão de despedimento)
Eram estes Trabalhadores que realizavam as contagens de valores físicos da D… e depois comunicava um valor errado àquele Banco.
37º (artigo 24º da decisão de despedimento)
Prática que se arrastou durante anos, sem que nunca o Trabalhador tivesse comunicado fosse a quem fosse.
38º (artigo 25º da decisão de despedimento)
Nomeadamente à auditora que, pelo menos duas vezes por ano, se deslocava ao J… do Porto e a quem o Trabalhador visado sempre escondeu a verdade.
47º (artigo 34º da decisão de despedimento)
(...) o Trabalhador visado há muito que sabia que existia uma diferença entre os valores (notas e moedas de Euros) efetivamente guardados pelo C… no seu cofre do Porto e os valores registados em STGV e comunicados aos seus Clientes, nomeadamente à D….
48º (artigo 35º da decisão de despedimento)
Sabendo dessa diferença, o Trabalhador visado, combinado com a sua chefia G…, diariamente registava em STGV um saldo que sabia ser falso.
49º (artigo 36º da decisão de despedimento)
O qual era também comunicado, pelo menos, à D….
50º (artigo 37º da decisão de despedimento)
O Autor nunca disse à auditora I… que os valores que tinha introduzido na aplicação STGV não correspondiam à verdade.
54º (artigo 41º da decisão de despedimento)
O mesmo se passa com a aplicação STGV, o Trabalhador visado sabia que os saldos que estava a introduzir na aplicação não eram verdadeiros.
Ou seja, o que consta da nota de culpa é o seguinte:
- que, em 30 de Maio de 2020 [ano da instauração do procedimento disciplinar], foi constatada a existência uma diferença entre os valores em notas do Banco de Portugal existente nos cofres da entidade patronal e os valores registados no sistema informático STGV pelo trabalhador recorrido, no montante de € 300.000,00;
- que o trabalhador recorrido tinha conhecimento dessa diferença, pelo menos há um ano, com referência à referida data de 30 de Maio de 2020. Pelo menos há um ano, uma vez que consta da nota de culpa que esta foi uma “Prática que se arrastou durante anos”, sem que, porém, se concretize desde quando, sequer aproximadamente;
- que o trabalhador recorrido não alertou a entidade patronal, ou a auditora, de tal facto;
- e introduziu diariamente dados no STGV, durante, pelo menos um ano, com valores que incluíam os aludidos € 300.000,00 como estando no cofre, sabendo que tal não correspondia à verdade.
Esta é a leitura que um declaratário normal faz dos aludidos pontos da nota de culpa, não se afigurando, não obstante as apontadas deficiências, qualquer dificuldade de entendimento da trabalhador visado na interpretação da mesma. Assim, não fazem sentido as interrogações do autor, aceites na sentença sob recurso.
Refere-se nesta:
“Não há qualquer concretização temporal sobre o momento em que o diretor da Direção de Logística e Gestão de Numerário, Dr. E… teve conhecimento da possibilidade de existir uma diferença entre o saldo lógico na aplicação STGV e os valores efetiva e fisicamente guardados pela C… no Porto.” Tirando a questão da eventual caducidade do direito de instaurar o procedimento disciplinar, excepção invocada pelo recorrido, mas que foi julgada improcedente, não se vislumbra a relevância da questão.
“Quando tal ocorreu?” [O diretor supra referido deu conhecimento à Administração da Ré do que lhe tinha sido transmitido, tendo sido ordenada uma auditoria interna, para efeitos de contagem de valores] Mais uma vez, trata-se de matéria instrumental sem relevância essencial para a decisão do procedimento disciplinar.
“não há qualquer imputação ao A. nem estão circunstanciados temporalmente os factos, nem esclarecido como os mesmos ocorreram, nomeadamente, desde quando existe essa diferença entre o saldo físico e o lógico; em que termos em que ocorreu essa diferença: quem retirou os valores? Quando? Como?” [refere-se aqui a sentença aos factos que antecedem a auditoria do dia 30 de Maio e resultados da mesma] E a resposta continua a ser que se tratam de factos instrumentais, nada de facto se imputando aqui ao trabalhador recorrido, sendo no entanto a auditoria temporalmente indicada, bem como a conclusão da mesma, e sendo o demais irrelevante, uma vez que, como alega a recorrente, não foi imputado ao trabalhador a apropriação de tais valores.
“Perguntamos: Que saldo(s) foi(ram) comunicado(s) pelo trabalhador à D…? Quando? Que valores efetivamente existiam no cofre? Quem os retirou? Quando e durante quanto tempo decorreu este processo?” De facto, a comunicação à D… não se encontra minimamente esclarecida, ou individualizada, ou concretizada. Assim, essa referencia não se poderá considerar na decisão a proferir (conforme acórdão do STJ de 9 de Outubro de 2019, processo 2123/17.8T8LRA.C1.S1, ainda acessível em www.dgsi.pt). Mas isso não invalida que possam ser conhecidos os demais factos da nota de culpa. E, mais uma vez, não se vislumbra a relevância do conhecimento de quem retirou o dinheiro.
“A afirmação de que “Assim, foi apurada uma diferença no cofre da nota entre o saldo contabilístico e físico no valor de 300.000 euros” é totalmente conclusiva.” Assim será. Mas é conclusão dos outros factos constantes da nora de culpa, nomeadamente da descrição dos resultados da auditoria realizada a 30 de Maio.
“Perguntamos: Como ocorreu esse engano por parte do trabalhador? Em que hiato temporal? Quando foram realizadas essas contagens? Qual o valor alcançado? Quando e que comunicações foram feitas à D…, nomeadamente pelo trabalhador?” Como resulta dos restantes factos supra enunciados o engano resulta da circunstância de o trabalhador recorrido ter conhecimento da diferença entre a existência física das notas e o valor declarado no sistema STGV, e continuar a declarar neste o valor resultante da consideração das notas como existentes no cofre. Quanto ao hiato temporal consta da nota de culpa anos, sem concretização, o que não impede que se considere pelo menos um ano, face a tal imprecisão. A contagem, como consta circunstanciado da nota de culpa, foi efectuada a 30 de Maio e o valor alcançado foi de falta de, pelo menos, € 300.000,00. Pelo menos porque, como se refere na sentença, nada se concretiza em relação às moedas que se diz igualmente desaparecidas. Também as comunicações à D… são de desconsiderar como já se referiu.
“fica-se ainda sem perceber afinal qual a intervenção do trabalhador. Está em causa uma ação (fez as contagens e as comunicações à D…?) ou uma omissão (não comunicou que havia discrepâncias?) Novamente relativamente ao hiato temporal, nenhuma concretização é feita.” Como já se deixou expresso, segundo a nota de culpa, o trabalhador recorrido omitiu a comunicação da falta do dinheiro à sua entidade patronal, mas também introduziu no sistema STGV valor errado, que incluía como existente aquele valor de € 300.000,00.
“Relativamente às invocadas auditorias: quantas houve? Quando? Que conclusões retiraram? Que verdade em concreto escondeu o trabalhador e em que circunstâncias?” Assim é, de facto. Porém, trata-se de matéria irrelevante, uma vez que também consta da nota de culpa que o trabalhador recorrido nunca transmitiu a falta do dinheiro à sua entidade patronal, assim como poderia ter comunicado tal facto à auditora fora do âmbito, ou em momento distinto, das auditorias realizadas no seu local de trabalho.
Quanto aos factos efectivamente relevantes, consta ainda da sentença: “Não há concretização desses saldos efetivos e comunicados, não há um registo temporal desses registos, donde se possa inferir alguma diferença e um concreto comportamento imputado ao trabalhador. O mesmo se diga para os alegados documentos elaborados pelo trabalhador.” Sem razão, porém. Uma coisa é a descrição dos factos na nota de culpa, outra coisa é a prova desses factos, e essa não tem que constar da nota de culpa. Existe, efectivamente, alguma falta de concretização temporal, mas sem relevância, uma vez que se refere que a introdução dos dados errados no sistema STGV era feita pelo trabalhador recorrido diariamente.
Ora, desconsiderando-se a matéria que se aceita ser genérica ou conclusiva, ainda assim, restam factos suficientes, suficientemente circunstanciados, que podem permitir, se provados, o eventual despedimento do trabalhador recorrido com justa causa, com os fundamentos constantes da decisão disciplinar, ou seja, por violação dos deveres de zelo e diligência, lealdade, conservação e boa utilização dos bens relacionados com o trabalho, previstos no art. 128º, nº 1, als. c), f) e g), do Código do Trabalho.
Conforme refere António Monteiro Fernandes, em Direito do Trabalho, 14ª edição, 2009, pág. 615, “A tonalidade «para-jurisdicional» que a lei confere ao processo de despedimento desvirtua-o em vários sentidos: retira-lhe a simplicidade e a celeridade que, nas circunstâncias, os interesses de qualquer das partes muitas vezes reclamariam, provocando o alongamento das crises disciplinares; cria a mistificação de que a decisão disciplinar é uma decisão «de terceiro», legitimada pela objectividade de uma apreciação processualizada e «para-judicial», como se de uma 1ª instância se tratasse; gera uma fonte de nulidades «artificiais», susceptível de conduzir à invalidação de despedimentos materialmente justificados. Na realidade, a tramitação preparatória do despedimento disciplinar serve apenas para delimitar o motivo da ruptura – possibilitando a posterior impugnação judicial – e permitir que o trabalhador se defenda antes da consumação dela, obrigando à ponderação das suas razões pelo empregador. Não se trata, pois, de um procedimento que vise o “apuramento da verdade” ou a “realização da justiça” (a decisão será sempre a que melhor convenha ao empregador) e não faz, por isso, nenhum sentido invocar, como que por analogia, as garantias do processo criminal a que alude, nomeadamente, o art. 32º CRP. A hipertrofia procedimental do regime do despedimento disciplinar não tem, decerto, contribuído para que deixem de ocorrer despedimentos injustificados (ou para a salvaguarda de trabalhadores inocentes), mas forneceu seguramente pretextos para a inutilização de um bom número de despedimentos com verdadeira justa causa.”
Acrescenta Pedro Romano Martinez, no Direito do Trabalho, 3ª edição, 2006, pág. 973, a propósito da reabertura do procedimento disciplinar: “impõe-se esclarecer que o procedimento disciplinar, tanto na legislação actual como no Código do Trabalho, é excessivamente complexo, por motivos relacionados com a segurança do trabalhador, em particular no que se refere à segurança no emprego. A complexidade do procedimento disciplinar não tem paralelo na maior parte dos ordenamentos jurídicos e nem sempre os empregadores, em particular no caso de pequenas empresas, se encontram suficientemente assessorados por juristas conhecedores da realidade jurídica ou dispondo da experiência necessária para efectuarem correctamente um procedimento disciplinar. A mencionada complexidade procedimental, associada à impossibilidade de permanente assessoria jurídica adequada determina a frequente declaração de invalidade do despedimento, mesmo que possa existir justa causa.”
Assim se conclui pela procedência da apelação.

IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, e determinando-se o prosseguimento do processo para julgamento, se nenhuma outra excepção o impedir, conhecendo-se a final, com base nos factos de que se possa conhecer, nos termos supra apontados.
Custas do recurso pelo recorrido.

Porto, 17 de Maio de 2021
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nélson Fernandes