NULIDADE DA DECISÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
EXAME POR JUNTA MÉDICA
PERITOS MÉDICOS
REGIME DE IMPEDIMENTOS E SUSPEIÇÕES
Sumário

I - É nula por falta de fundamentação de direito a decisão que não faz qualquer menção às normas legais que o Tribunal a quo terá ponderado para suportar a decisão recorrida, nem permite perceber quais os princípios, as regras, as normas em concreto que se entendeu justificarem-na.
II - O exame por junta médica previsto no art.º 139.º do CPT, inscreve-se no âmbito da denominada prova pericial, regendo-se para além do disposto naquela norma, mormente no que concerne ao regime de impedimentos e suspeições, relativamente ao qual aquele diploma é omisso, pelas normas do Código de Processo Civil [art.º 1.º n.º 2, al. a), do CPT].
III - O regime dos impedimentos e suspeições dos juízes consta dos artigos 115.º a 117.º e 119.º a 126.º do CPC. Assim, por força da remissão daquela disposição, deles têm aplicação aos peritos, com as necessárias adaptações, os artigos que tratam dos respetivos fundamentos, nomeadamente, 115.º, 117.º e 120.º. Os restantes contêm normas procedimentais e de prazo, às quais se sobrepõe o disposto no art.º 471.º do CPC, ou então respeitam especificamente à função judicial, por isso não tendo aplicação aos peritos.
IV - Como resulta do n.º1, do art.º 471.º, CPC, mais precisamente da parte final, as causas de impedimento, suspeição e dispensa legal do exercício da função de perito “[só] podem ser oficiosamente conhecidas até à realização da diligência».

Texto Integral

APELAÇÃO n.º 5434/16.6T8VIS-B.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I.RELATÓRIO
I.1 Na acção especial emergente de acidente de trabalho, na qual é sinistrado B… e entidade responsável a C… – Companhia de Seguros, S.A., que corre os seus termos na Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia - Juiz 2, realizada a tentativa de conciliação não foi possível alcançar o acordo entre as partes, em razão do sinistrado ter discordado com a Incapacidade Permanente Parcial de 10%, arbitrada no exame médico singular.
Reclamou, ainda, “uma importância referente a despesas com medicamentos, consultas e exames complementares de diagnóstico mas neste caso não sabe precisar o seu montante”.
A seguradora aceitou o acidente como de trabalho, o nexo causal entre as lesões constantes do boletim de alta e o acidente, a transferência da responsabilidade infortunística pelo valor do salário reclamado pelo sinistrado, o resultado do exame médico e a IPP de 10%, bem assim pagar ao sinistrado a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, de € 1.612,80, calculada com base naquele salário e a aquela IPP, desde o dia seguinte ao da alta.
O sinistrado deu início à face litigiosa através da apresentação de petição inicial, conjuntamente requerendo exame por junta médica e apresentando quesitos.
A seguradora apresentou contestação.
Na fase de saneamento, o Tribunal a quo procedeu a fixação dos factos assentes e à elaboração de base instrutória e determinou o desdobramento do processo, nos termos do art.º 131º, nº 1, al. e), e 132º do Cód. Proc. Trabalho, para ser esclarecido o seguinte:
1º O sinistrado apresenta lesões/sequelas ao nível sexual e psiquícas? Quais?
2º As mesmas são consequência do acidente invocado nos autos?
3º As lesões decorrentes do acidente, incluindo as descritas na alínea D) dos factos assentes, originaram alguma incapacidade permanente?
4º Em caso de resposta afirmativa ao quesito anterior, qual a I.P.P. a atribuir face à T.N.I.?».
No apenso para fixação da incapacidade, em 28 de Novembro de 2018, foi realizada junta médica de psiquiatria, constando do respectivo auto o seguinte:
Os peritos médicos reunidos em Junta Médica de Psiquiatria, e após consulta do processo judicial e entrevista com o sinistrado, respondem por unanimidade aos quesitos de fls. n.º2.
1. Do ponto de vista psiquiátrico não apresenta sequelas do sinistro em apreço. A sintomatologia psicopatológica é anterior ao sinistro. Não tendo havido alteração da terapêutica instituída, tanto a nível de fármacos, como de dosagem dos mesmos.
2. Não.
3. A responder por ortopedia.
4. Prejudicada».
Em 31 de Maio de 2019, no apenso de fixação da incapacidade, o Tribunal a quo proferiu decisão fixando a incapacidade ao sinistrado, pronunciando-se nos termos seguintes:
No presente apenso para fixação da incapacidade para o trabalho da acção em que é A. B… e Ré C… – Companhia de Seguros, S.A., tendo em conta o parecer, por unanimidade, da junta médica, que não merece qualquer reparo e se mostra fundamentado na Tabela Nacional de Incapacidades, e atento o disposto no art. 132º, nº 1, do Cód. Proc. Trabalho, decido que o A. se encontra afectado de uma incapacidade permanente parcial de 3% por virtude do acidente a que se reportam os autos principais.
Notifique».
I.2 O processo principal seguiu os seus termos, vindo o Tribunal a quo, em 02-12-2020, a proferir a decisão seguinte:
É do meu conhecimento profissional – conforme termo de nomeação de peritos na junta de psiquiatria realizada no âmbito do processo de acidente de trabalho com o nº 6375/18.8T8VNG, J3, do Juízo de Trabalho de Vila Nova de Gaia (documento cuja junção se ordenou ao presente processo)- que a Dra. D…, aqui nomeada perita do Tribunal, interveio na junta supra citada como perita nomeada pela Seguradora responsável, Companhia de Seguros E…, S.A, Ré também neste processo.
É manifesto o conflito de interesses e a impossibilidade de intervenção de um perito representando o Tribunal, com a inerente isenção que lhe é pedida, quando noutros processos intervenção a representar os interesses de uma das partes, circunstancialismo agravado pelo facto de nesta ação, a Ré responsável ser a mesma que a nomeou no processo supra indicado.
Pelo exposto, anulo a junta médica realizada nos autos, devendo a Sra. Perita ser notificada de imediato e do modo mais expedito para não comparecer na continuação da junta para hoje agendada na parte da tarde.

-
Porque já contatados telefonicamente os demais intervenientes, antecipo a realização de uma nova junta médica de psiquiatria para as 14.30h de hoje.
Nomeio como perito do Tribunal, o Sr. Dr. F…, perito de psiquiatria forense (já contatado telefonicamente e que se disponibilizou para a realização da junta).
-
Considerando todo o exposto, com cópia dos termos da nomeação de peritos para a junta de psiquiatria realizada em 28.11.2018 neste processo e da realizada no processo nº 6375/18.8T8VNG, J3 bem como do presente processo, bem como do presente despacho, comunique à Ordem dos Médicos para os fins tidos por convenientes.
Notifique».
I.3 Inconformada com aquela decisão, a seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido e fixado o modo de subida e efeito adequados.
As alegações de recurso mostram-se sintetizadas nas conclusões seguintes:
1 – A decisão recorrida que anula uma junta médica realizada dois anos antes sem indicar a norma jurídica onde baseia o fundamento para a anulação é nula por manifesta falta de fundamentação de direito;
2 – A decisão proferida, por incongruência entre os fundamentos de factos e a decisão que a tornam incompreensível e é ainda nula, quando anula uma junta médica realizada dois anos antes, num apenso que já teve sentença final, também nela baseada e de que nenhuma das partes recorreu, baseando-se no facto de nela ter intervindo uma médica perita nomeada pelo Tribunal que agora, dois anos depois, noutro processo que nada tem a ver com este, veio a ser nomeada pela seguradora;
3 – A douta decisão recorrida é ilegal, por extemporânea, quando se traduz na anulação oficiosa de uma junta médica, dois anos depois da realização da mesma, com base na alegada existência de um conflito de interesses de um dos peritos que interveio nessa junta médica atento o disposto no art. 471.º n.º1 parte final do CPCiv ex vi art. 1.º n.º 2 a) do CPT;
4 – A douta decisão recorrida é ilegal, quando invoca um “conflito de interesses” de um perito que não se subsume a nenhuma das situações para as quais o art.º 470.º n.º 1 do CPCiv remete quanto ao regime dos impedimentos s suspeições dos Juízes;
5 – Não há nenhum “conflito de interesses” na intervenção – indicado pelo Tribunal – de um perito numa junta médica realizada em Novembro de 2018, pelo simples facto de, dois anos depois, vir o mesmo perito a ser nomeado, noutro processo de acidente de trabalho diferente, que corre em Juiz diferente por então ser indicado pela seguradora;
6 – Os peritos, independentemente, de quem os nomeia, devem ser isentos e honestos, reconhecidos e nomeados pela sua capacidade profissional, apreciando com objectividade e rigor as questões técnico-periciais que lhes são colocadas, nada obstando que uma seguradora venha dois anos depois a nomear, noutro processo, um perito que havia sido interveniente, nomeado pelo Tribunal, numa junta médica em que era responsável, dois anos antes;
7 – E muito menos que isso possa importar uma reetroactiva anulação da junta médica dois antes realizada sem o alegado “conflito de interesses” que apenas se vem a verificar dois anos depois;
8 - Violou, por isso, a decisão recorrida, o disposto nos arts. 115. n.º1, 154.º, 195.º, 470.º, 471.º n.º1 parte final do CPCiv ex vi art. 1.º n.º 2 a) do CPT.
Dando cumprimento ao disposto no artigo 646.º, nº 1, do CPC, a Apelante indica, com vista a que se extraia a competente certidão electrónica para instruir o presente recurso, as seguintes peças dos autos:
1. Auto de junta médica de 28/11/2018 refª 399249757;
2. Sentença proferida em 31/5/2019 refª 404699156;
3. Despacho recorrido proferido em 02/12/2020 refª 419823744;
NESTES TERMOS E NOS DE DIREITO, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO À PRESENTE APELAÇÃO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER DECLARADO NULO O E DE NENHUM EFEITO O DESPACHO RECORRIDO, OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, O MESMO REVOGADO NA ÍNTEGRA, POR SER DE INTEIRA
I.4 O Recorrido apresentou contra alegações, mas sem as finalizar com conclusões.
No essencial acompanha a decisão recorrida e pugna pela procedência do recurso.
I.5 O Digno Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso. Refere, no essencial, não se verificar a arguida nulidade, para prosseguir como segue:
[..]
5. Como se vê dos autos, em 28.11.2018 teve lugar junta médica de psiquiatria em que interveio pelo Tribunal perita médica que cerca de 2 anos depois, num outro processo de acidente de trabalho completamente distinto, teve também intervenção numa junta médica da mesma especialidade, desta vez por indicação da Seguradora C… que nos presentes autos também é parte interessada.
6. Salvo melhor opinião, não vemos razões de substância para concluir, pelos motivos apontados, pela existência de um conflito de interesses que impedisse a Senhora Perita de exercer a função que lhe foi cometida, de forma conscienciosa, com a objetividade, a imparcialidade e segundo os conhecimentos técnicos e científicos que lhe são exigíveis.
7. Não se descortina como a situação descrita no despacho recorrido possa adequar-se a qualquer disposição do regime de impedimentos ou suspeições aplicáveis aos juízes [cfr. art. 470º do CPC]. Nem antes nem depois, nos prazos prevenidos legalmente, foi levantado qualquer obstáculo à sua nomeação.
8. Ou seja, a nomeação da perita médica em causa e a conclusão da perícia teve lugar sem o levantamento de qualquer obstáculo que, a existir, tinha de ser invocado nos prazos a que alude o n.º 1 do art. 471º do CPC.
9. O Código de Processo de Trabalho também não tem qualquer disposição específica que constitua entrave à participação da Senhora Perita na perícia colegial em causa.
10. Assim, não cremos que a situação descrita seja motivo para invalidar a junta médica de 28.11.2018.
11. Por isso, somos de parecer que o recurso deverá proceder, mantendo-se a validade da perícia iniciada e concluída no dia 28.11.2018.
[..]»
I.6 Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil, determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas pela recorrente para apreciação consistem em saber o seguinte:
i) Se a decisão é nula por falta de fundamentação de direito e por incongruência entre os fundamentos de factos e a decisão que a tornam incompreensível [conclusões 1 e 2];
ii) Se a decisão “é ilegal, por extemporânea, quando se traduz na anulação oficiosa de uma junta médica, dois anos depois da realização da mesma, com base na alegada existência de um conflito de interesses de um dos peritos que interveio nessa junta médica atento o disposto no art. 471.º n.º1 parte final do CPCiv ex vi art. 1.º n.º 2 a) do CPT [Conclusões 3 a 8].
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para apreciação do recurso são os que resultam do relatório.
II.2 NULIDADE da SENTENÇA
A recorrente seguradora vem arguir a nulidade da decisão por falta de fundamentação de direito e por incongruência entre os fundamentos de factos e a decisão que a tornam incompreensível [conclusões 1 e 2].
Refere, no essencial, que independentemente do mérito (ou não) da decisão, não há nenhuma indicação da sustentação legal para a decisão tomada. Por imposição do disposto no art.º 154.º do CPCiv ex vi art. 1.º n.º 2 alínea a) do CPT, as decisões judiciais são obrigatoriamente fundamentadas. E, o dever legal de fundamentação das decisões judiciais, resulta da consagração de uma garantia constitucional e do direito internacional das partes a um processo equitativo (art.º20.º n.º 4 do CRP e artigos 6.º da CEDH, 14.º do PIDCP e 10.º da DUDH).
A falta de fundamentação jurídica da decisão importa a sua nulidade (art.º 615.º n.º 1 b) do CPT).
Mais alega, que a decisão judicial em causa é ainda nula por via do disposto na alínea c) do mesmo preceito. No caso, nem sequer se entende, como pode a indicação efectuada por uma seguradora em Novembro de 2020 de uma concreta senhora médica especialista, para uma junta médica num outro processo, por si só, justificar a existência de um “conflito de interesses” que justifique a anulação de uma outra junta médica, realizada dois anos antes nestes autos, só porque a Senhora Perita então foi aqui nomeada pelo Tribunal.
A decisão, quanto aos fundamentos de facto, é também nula por manifesta incongruência dos fundamentos de facto com a decisão que a tornam ininteligível.
Tendo presente o conteúdo acima transcrito da decisão, vejamos se lhe assiste razão.
As nulidades da sentença só ocorrerão, como causa invalidante típica, nas diversas hipóteses taxativamente contempladas no n.º 1 do art.º 615º do CPC.
Importando assinalar, como é pacificamente entendido, que as causas de nulidade constantes do elenco do n.º1, do art.º 615.º, não incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” [Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Almedina, 1985, pp. 686].
O artigo 154.º n.º1, do CPC, sob a epígrafe “Dever de fundamentar a decisão”, dispõe no seu n.º1, que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
Por seu turno, o art.º 607.º do CPC, que rege sobre a elaboração da sentença, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final” (n.º3).
Decorrendo depois, do art.º 615.º, no n.º1 al. b), do mesmo CPC, que a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão”.
A propósito do sentido e alcance desta norma, provinda do CPC de 1939 e mantendo o mesmo conteúdo, o Professor Alberto dos Reis, elucidava “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” [Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, pp. 140].
Esse mesmo entendimento vem sendo acolhido, unânime e pacificamente, pela doutrina e jurisprudência.
Assim, na mesma linha e apoiando-se em Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça, de 5-1-1984 (BMJ 333, 398] o Professor Antunes Varela escreve o seguinte:
- “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
(..)
Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na decisão.
Relativamente aos fundamentos de direito, dois pontos importa salientar.
Por um lado, o julgador não tem que analisar todas as questões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes; a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador.
Por outro lado, não é indispensável, conquanto seja de toda a conveniência, que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão: essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia” [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 667 a 669].
O mesmo autor esclarece, ainda, que a necessidade de fundamentação da sentença assenta em duas ordens de razões. A primeira, tem em vista a persuasão das partes sobre a legalidade da solução encontrada, procurando convencer a parte vencida através da argumentação. A segunda, prende-se directamente com a recorribilidade das decisões: “(..) para que a parte lesada com a decisão que considera injusta a possa impugnar com verdadeiro conhecimento de causa, torna-se de elementar conveniência saber quais os fundamentos de direito em que o julgador se baseou” [Op. cit., ibidem].
Na mesma linha de entendimento pronuncia-se José Lebre de Freitas, escrevendo que “[H]á nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”, assinalando igualmente que “[A] fundamentação da sentença é, além do mais, indispensável em caso de recurso: na reapreciação da causa, a Relação tem de saber em que se fundou a sentença recorrida” [A Acção Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, p. 332]
Revertendo ao caso, a decisão recorrida não faz qualquer menção às normas legais que o Tribunal a quo terá ponderado para chegar à decisão recorrida.
Mas para além disso, salvo o devido respeito, a fundamentação, ao referir que “É manifesto o conflito de interesses e a impossibilidade de intervenção de um perito representando o Tribunal, com a inerente isenção que lhe é pedida, quando noutros processos intervenção a representar os interesses de uma das partes, circunstancialismo agravado pelo facto de nesta ação, a Ré responsável ser a mesma que a nomeou no processo supra indicado”, não permite sequer perceber quais os princípios, as regras, as normas em concreto que o Tribunal a quo entendeu exigirem a sua intervenção oficiosa e justificarem aquela decisão.
Com efeito, dispondo o art.º 470.º, n.º1, do CPC, que “É aplicável aos peritos o regime de impedimentos e suspeições que vigora para os juízes, com as necessárias adaptações”, desde logo, coloca-se a dúvida sobre se o Tribunal a quo teve em mente o disposto neste normativo e, se assim aconteceu, se no entendimento subjacente à decisão entendeu estar perante um impedimento ou uma suspeição, bem assim enquadrando o caso concreto em que norma legal, designadamente, dos art.º 119.º e seguintes do CPC, onde se encontram regulado o regime de impedimentos e suspeições dos juízes.
Assim sendo, independentemente de ser ou não acertada, é forçoso concluir que a decisão não se mostra devidamente fundamentada e, logo, que assiste razão à Recorrente.
Consequentemente, declara-se a decisão nula, por violação do disposto no na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Fica, assim, prejudicada a apreciação do segundo fundamento invocado para arguir a nulidade da decisão.
II.3 Declarada a nulidade da decisão, cabe a este Tribunal ad quem apreciar o mérito da decisão, para tanto atendendo aos fundamentos invocados pela recorrente, nomeadamente, com vista a evidenciar o erro de julgamento na aplicação do direito [Conclusões 3 a 8].
Argumenta a recorrente que a decisão é ilegal, por extemporânea, quando se traduz na anulação oficiosa de uma junta médica, dois anos depois da realização da mesma, atento o disposto no art.º 471.º n.º1 parte final do CPC.
Mais refere o “conflito de interesses” da Senhora Perita Médica, invocado na decisão recorrida, “não se subsume a nenhuma das situações para as quais o art.º 470.º n.º 1 do CPCiv remete quanto ao regime dos impedimentos s suspeições dos Juízes”, não se verificando relativamente à intervenção numa junta médica realizada em Novembro de 2018 - nomeada pelo Tribunal - “pelo simples facto de, dois anos depois, vir o mesmo perito a ser nomeado, noutro processo de acidente de trabalho diferente, que corre em Juiz diferente por então ser indicado pela seguradora”. Nada obsta que uma seguradora venha dois anos depois a nomear, noutro processo, um perito que havia sido interveniente, nomeado pelo Tribunal, numa junta médica em que era responsável, dois anos antes; e, muito menos que isso possa importar uma retroactiva anulação da junta médica dois antes realizada sem o alegado “conflito de interesses” que apenas se vem a verificar dois anos depois.
Vejamos então.
O exame por junta médica previsto no art.º 139.º do CPT, inscreve-se no âmbito da denominada prova pericial, regendo-se para além do disposto naquela norma, mormente no que concerne ao regime de impedimentos e suspeições, relativamente ao qual aquele diploma é omisso, pelas normas do Código de Processo Civil [art.º 1.º n.º 2, al. a), do CPT].
Cabe, pois, atentar no art.º 470.º do CPC, com a epígrafe “Obstáculos à nomeação de peritos”, onde se estabelece, no que aqui releva, que «[1] É aplicável aos peritos o regime de impedimentos e suspeições que vigora para os juízes, com as necessárias adaptações».
O regime dos impedimentos e suspeições dos juízes consta dos artigos 115.º a 117.º e 119.º a 126.º do CPC. Assim, por força da remissão daquela disposição, deles têm aplicação aos peritos, com as necessárias adaptações, os artigos que tratam dos respetivos fundamentos, nomeadamente, 115.º, 117.º e 120.º. Os restantes contêm normas procedimentais e de prazo, às quais se sobrepõe o disposto no art.º 471.º do CPC, ou então respeitam especificamente à função judicial, por isso não tendo aplicação aos peritos.
Como acabámos de referir, no que concerne aos procedimentos e prazos do regime de impedimentos e suspeições dos peritos há norma específica, nomeadamente, o art.º 471.º, com a epígrafe “Verificação dos obstáculos à nomeação”, interessando aqui atentar no seu n.º1, onde se dispõe o seguinte:
As causas de impedimento, suspeição e dispensa legal do exercício da função de perito podem ser alegadas pelas partes e pelo próprio perito designado, consoante as circunstâncias, dentro do prazo de 10 dias a contar do conhecimento da nomeação ou, sendo superveniente o conhecimento da causa, nos 10 dias subsequentes; e podem ser oficiosamente conhecidas até à realização da diligência».
Feito o enquadramento legal, importa agora atentar nos factos relevantes. Assim:
i) No apenso para fixação da incapacidade, em 28 de Novembro de 2018, foi realizada junta médica de psiquiatria, tendo os senhores peritos respondido aos quesitos por unanimidade nos termos transcritos no relatório.
ii) Em 31 de Maio de 2019, no apenso de fixação da incapacidade, o Tribunal a quo proferiu decisão fixando a incapacidade ao sinistrado.
iii) Em 02-12-2020, o Tribunal a quo proferiu a decisão sob recurso, com o teor seguinte:
É do meu conhecimento profissional – conforme termo de nomeação de peritos na junta de psiquiatria realizada no âmbito do processo de acidente de trabalho com o nº 6375/18.8T8VNG, J3, do Juízo de Trabalho de Vila Nova de Gaia (documento cuja junção se ordenou ao presente processo)- que a Dra. D…, aqui nomeada perita do Tribunal, interveio na junta supra citada como perita nomeada pela Seguradora responsável, Companhia de Seguros E…, S.A, Ré também neste processo.
É manifesto o conflito de interesses e a impossibilidade de intervenção de um perito representando o Tribunal, com a inerente isenção que lhe é pedida, quando noutros processos intervenção a representar os interesses de uma das partes, circunstancialismo agravado pelo facto de nesta ação, a Ré responsável ser a mesma que a nomeou no processo supra indicado.
Pelo exposto, anulo a junta médica realizada nos autos, devendo a Sra. Perita ser notificada de imediato e do modo mais expedito para não comparecer na continuação da junta para hoje agendada na parte da tarde».
Em, suma entendeu o Tribunal a quo que o facto da Senhora Perita Médica ter intervindo num exame por junta médica, nomeada pela Seguradora aqui responsável e recorrente, mas num outro processo e recentemente, numa data próxima da prolação do despacho, evidencia um “manifesto o conflito de interesses e a impossibilidade de intervenção de um perito representando o Tribunal, com a inerente isenção que lhe é pedida”, que se repercute naquele exame médico deste processo, realizado há cerca de 2 anos.
Com o devido respeito, não logramos apreender o sentido lógico deste raciocínio, desde logo, para afirmar um conflito de interesses que se repercute, como refere a recorrente, rectroactivamente, relativamente a um exame pericial que foi realizado e concluído há cerca de 2 anos.
Em termos de coerência lógica, para que houvesse um eventual conflito de interesses, era necessário, desde logo, que o exame por junta médica que foi anulado tivesse tido lugar depois daquele que foi realizado num outro processo, aí intervindo a Senhora Perita médica por nomeação da Seguradora.
Daí que, logo por essa razão de base e fulcral, como refere o Digno Magistrado do Ministério Público, não se descortina como a situação descrita no despacho recorrido possa adequar-se a qualquer disposição do regime de impedimentos ou suspeições aplicáveis aos juízes.
Mas para além disso, como resulta do n.º1, do art.º 471.º, mais precisamente da parte final, as causas de impedimento, suspeição e dispensa legal do exercício da função de perito “[só] podem ser oficiosamente conhecidas até à realização da diligência».
Ora, descurando esse comando imperativo, o Tribunal a quo entendendo existir um obstáculo à intervenção da Senhora perita médica, que qualificou de manifesto conflito de interesses, resolveu proferir a decisão sobre recurso, que suscitou oficiosamente dois anos depois da realização e conclusão da perícia médica.
Neste quadro, não se vendo que se justifiquem outras considerações, é forçoso concluir que o Tribunal a quo errou e, logo, que o recurso procede, devendo a decisão recorrida, anulando a junta médica realizada em 28 de Novembro de 2018, ser revogada.
II. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso procedente, em consequência revogando a decisão que anulou a junta médica realizada em 28 de Novembro de 2018.

Custas do recurso a cargo do recorrido, atento o decaimento (art.º 527.º CPC), mas sem prejuízo do apoio judiciário que beneficie.

Porto, 17 de Maio de 2021
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira