ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
ARTICULADO SUPERVENIENTE
ACTUALIDADE DA SENTENÇA
Sumário

I.– No contexto de um acidente de viação, o STJ tem assumido que os princípios da economia processual, da instrumentalidade do processo relativamente ao direito material e da atualidade da decisão, aconselham a absorção da multiplicidade de potenciais litígios no âmbito de um só processo.

II.– Os danos sofridos pelo lesado inscrevem-se num processo, isto é, numa dinâmica cujo preenchimento se vai desenrolando no tempo, podendo cessar pela cura clínica, agravar-se e reclamar novos tratamentos, com as decorrentes despesas ou, pura e simplesmente, estabilizar.

III.– O ordenamento jurídico, por seu turno, mostra que há uma componente dos danos que pode efetivamente não estar revelada ou estabilizada, aquando da propositura da ação. Por isso, dentro de certas balizas, é admissível que o A. amplie o pedido.

IV.– A causa de pedir complexa pode ainda ser considerada a mesma, sempre que haja agravamento médico que justifique a superveniente valorização pelo lesado dos danos ocorridos (ainda que em momento anterior) mas que só assumem o seu verdadeiro significado mercê daquele agravamento/estabilização.

V.– Ponderando que: a ação foi proposta em 30.03.2016; a avaliação final pelo INML,IP dos anos de que a A. ficou a padecer em resultado do acidente ocorreu apenas em 23.08.2019 e, nos termos alegados, apenas em Maio de 2019 foi aposentada e passou a receber duas pensões, não é de descartar a alegação da A. no sentido de que, quando propusera a ação estava convencida de que as lesões de que ficou a padecer em consequência do acidente iriam ter uma evolução positiva.
Assim, e verificando-se que a A. não fez uma ampliação arbitrária dos factos alegados na PI., antes complementando as várias vertentes do dano por ela sofrido, correlacionando-as com o evento alegadamente causador, isto é, com o facto ilícito de onde emerge o pedido que formulou na PI., verifica-se uma conexão factual intrínseca entre a causa de pedir complexa e o pedido complementar formulado no articulado superveniente. Por isso, deve ser admitido o articulado superveniente e viabilizada a prova requerida.

Texto Integral

Acordam na Relação de Lisboa.



Apelante/A.: GMC.
Apelada/R.: “Seguradora…”.


I.– Relatório:


1.–Pretensão sob recurso: substituição da decisão recorrida por outra que admita in totum a ampliação do pedido, bem como a produção da prova requerida.

Em 20.07.2020, a A. apresentou o requerimento de fls. 775-785, que qualificou “articulado superveniente", no qual termina pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de € 298.297,52 a título de danos patrimoniais, € 200.000,00 a título de danos não patrimoniais e juros legais a contar da citação até integral pagamento.

Alega, em síntese, que:
- à data do acidente auferia o montante de € 10.597,16, decorrente do vínculo laboral que mantinha com o centro HospS; em 10.10.2018. foi-lhe atribuída pela CGA uma incapacidade geral e absoluta; em Maio de 2019 foi aposentada, tendo passado a receber duas pensões líquidas, uma no valor de € 623,58 e outra no valor de € 225,16; à data do acidente, além de trabalhar para o CH…, trabalhava por turnos no HospM, auferindo a quantia anual de € 6.343,14 e desenvolvia uma atividade comercial por conta própria, onde auferia a quantia indicada, nos anos que refere, atividade que estava em desenvolvimento e que lhe permitia auferir a quantia de € 2.748,00; mercê do estado em que ficou não consegue desenvolver qualquer atividade remunerada, seja por conta própria ou por conta de outrem; ficou, pois, privada de auferir a quantia anual de € 7.867,38;
- em virtude do acidente deixou de conseguir efetuar refeições em casa quando está sozinha e tem de as comprar já confeccionadas ; uma vez que não consegue levantar o braço esquerdo precisa que lhe entreguem as compras em casa, o que implica o gasto de um valor mínimo; abaixo desses valores a A. tem de trazer as compras penduradas nas canadianas; percorrer os corredores sem cadeira de rodas elétrica começa a ser impossível; teve de suportar despesas com canadianas e ponteiras; vivia num 3º andar, o que implicava subir um lanço de escadas, entrar e sair sozinha do elevador, esperar de pé enquanto o elevador subia até ao 3° andar; o elevador avariava frequentemente e tinha de subir as escadas; por isso, teve necessidade de procurar um andar localizado mais perto da porta de saída do prédio; arrendou um r/c por € 600,00, quando antes pagava € 325,00; necessita, até ao final da sua vida, da assistência de terceira pessoa, bem como de ser assistida em consultas de psiquiatria e medicada; para pagar a uma terceira pessoa 2/3 horas por dia tem de despender € 242,00; teve um acréscimo de € 75,00 em despesas com refeições já feitas, aquisição e manutenção de muletas e impossibilidade de se deslocar para comprar bens de valor mais económico; em face do exposto a A. viu agravadas as suas despesas em € 7.104,00;
- a A. gostava de ir às compras, passear na praia, ir ao cinema, caminhar na rua, o que, devido ao acidente, já não poderá fazer, nem cozinhar, passar a ferro, limpar o pó, antes do acidente; a A. mantinha um relacionamento amoroso há mais de 20 anos; devido ao acidente deixou de poder ter relações sexuais, pelo que o seu companheiro terminou o relacionamento; a A. esteve inscrita no ano de 2008/2009 no curso universitário de economia; sempre teve intenção de retomar tal inscrição e licenciar-se em economia; em virtude do seu atual estado físico e psicológico, a A. não tem vontade nem coragem de voltar à universidade, o que lhe causa revolta; anteriormente ao acidente, a A. não tinha tido qualquer patologia psiquiátrica ou tomado psicofármacos.
No requerimento sobre o qual incidiu a decisão recorrida, a A. motiva a alegação de tais danos na circunstância de que: “Quando (…) intentou a presente ação estava convencida que o seu estado físico e psíquico teriam um desenvolvimento positivo e poderia ter um tipo de vida muito aproximado do tipo de vida que tinha antes do acidente que a vitimou. Com efeito,
Antes do acidente que a vitimou a A. praticava desporto, designadamente, judo, boxe francês, musculação e natação” (artigos 45º e 46º - fls. 782)
A R. pronunciou-se, impugnando os factos e os documentos juntos; não resulta do requerimento apresentado a alegação de factos que tenham ocorrido posteriormente ou o conhecimento posterior à apresentação da petição inicial; a A. veio fundamentar e desenvolver factos já alegados em sede de petição inicial, de modo a justificar a ampliação do pedido, com base nos alegados factos novos; todos os factos já eram do conhecimento da A.; a ampliação do pedido em consequência da alegação do facto de a A. necessitar de ajuda de terceira pessoa, bem como das demais despesas mensais que suporta, não configura qualquer desenvolvimento do pedido primitivo; a A. já alega na petição inicial que tem necessidade de ajuda de terceira pessoa até ao fim da vida e que as compras lhe sejam entregues em casa, mas não peticiona qualquer indemnização a este título; a A. não alega em que medida os danos morais são superiores aos que foram inicialmente previstos, relega-se para a audiência de julgamento os factos alegados no articulado superveniente.

Foi proferida decisão, do seguinte teor:
“Em síntese: admite-se a ampliação do pedido com exceção da matéria relativa ao facto de alegadamente trabalhar no HospM e fazer trabalho de engomadoria (artigos 14 a 18 essencialmente), à necessidade de comprar refeições confecionadas, à necessidade de uma cadeira de rodas elétrica, à necessidade de uma casa de r/c e à factualidade alegada nos artigos 47 a 62.
Finalmente e na medida em que estamos perante uma ampliação do pedido, não tem cabimento o oferecimento de provas a produzir, como e, no caso, as declarações de parte e inquirição de testemunha, que não se admitem.
Custas do incidente por A. e Ré que se fixam no mínimo legal para cada uma
das partes.
Notifique-se.”.

1.1.–Inconformada com aquela decisão, a A. apelou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1.ª-Nos presentes autos, a apelante apresentou nos autos a peça processual denominada de “articulado superveniente” (com a referência CITIUS 36119533), na qual terminou pedindo a condenação da ré: a) Na quantia de € 298.297,52 (…), a título de danos patrimoniais; b) Na quantia de € 200.000,00 (…), a título de danos não patrimoniais; e c) No pagamento dos juros legais contados a partir da citação e até integral e efetivo pagamento.
2.ª-Por douta decisão recorrida não foi admitida a ampliação do pedido formulada pela ora recorrente na referida peça relativamente a determinados danos ali vertidos, por considerar que, nuns casos, os danos e os factos que os sustentam não são novos e, noutros casos, embora os danos sejam novos (no sentido de não estarem invocados na petição), não foi invocado qual o(s) novo(s) facto(s) que o(s) determina (e respetivo(s) elemento(s) probatório(s) em que o(s) mesmo(s) se sustenta(m)).
3.ª-A ora recorrente não se conforma com tal decisão pois considera que a ampliação do pedido não tem que se subsumir obrigatoriamente a factos supervenientes, seja essa superveniência considerada num sentido puramente objetivo, ou também num sentido subjetivo.
4.ª-Na verdade, uma interpretação das normas de direito adjetivo aplicáveis, sejam as relativas a ampliação do pedido -  art.ºs 260°, 264°, 265°, 564°, al. b), 609°, n°1 do CPC - sejam as relativas ao incidente dos articulados supervenientes – art.ºs 5°, 552°, 572°, 573°, 588° do CPC, regimes que em muitos casos não é possível dissociar, não poderá nunca deixar, em ações de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, como é o caso vertente, de levar em linha de conta a “lei especial” substantiva constante no art.º 569º do CC.
5.ª-A referida norma de direito substantivo, de acordo com a corrente jurisprudencial dominante nesta matéria, em casos como o presente, que estão em causa ações de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, é que será sempre de admitir, até ao encerramento da discussão em 1.ª instância, a alegação de novos factos e de novos danos, sejam eles essenciais (art.º 5°, n°1 do CPC), ou instrumentais, notórios, ou que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (art.º 5°, n°2 do CPC), esteja essa ampliação contida ou não no pedido inicial, e verifique-se, ou não, a sua superveniência, seja em termos objetivos, seja em termos subjetivos.
6.ª-Assim, não assiste razão ao MM.º Juiz a quo quando decide não ser totalmente admissível a ampliação do pedido formulado pela A. devendo, ao invés, ser admitido in totum o pedido formulado pela apelante, bem como a produção da prova requerida.
7.ª-Pelo exposto, a recorrente entende que no caso vertente, e s.m.o., deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que admita in totum o pedido formulado pela apelante, bem como a produção da prova requerida, já que a mesma erra por violação de lei, ao não ter considerado a legislação vigente, entre o plano das normas e princípios constitucionais e o da aplicação concreta, violando, entre outras (…), as normas contidas nos art.ºs 3°, 4°, 5°, 6°, 260°, 264°, 265°, 552°, 564°, al. b), 572°, 573°, 574°, 588°, 609°, n°1 e 611°, n°1, todos do Código de Processo Civil; e no art.º 569° do Código Civil.

Não houve contra-alegações.

1.2.–Como é sabido, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes, importando, assim, decidir as questões nelas colocadas e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso, excetuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, nos termos dos arts. º 608.º, 635.º/4 e 639.º/1, do CPC.
Assim, considerando as conclusões da apelante, as questões essenciais a decidir no âmbito do presente recurso, consistem em saber se é de admitir a ampliação do pedido e produção da prova requerida, tal como pretende a apelante.

II.– Fundamentação
II.1.– Circunstancialismo a ter em conta
Importa ponderar o circunstancialismo constante do precedente relatório.

II.2.–Apreciando:
Sobre a questão acima equacionada seguimos aqui a doutrina do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.06.2019, relatado pelo Exm.º Conselheiro Oliveira Abreu.
Na decisão recorrida, deferiu-se a ampliação do pedido, excetuando-se algumas das matérias que fundamentam a requerida ampliação.
Cotejando a decisão recorrida, o requerimento sobre a qual incidiu e a P.I., constata-se que essas matérias, que foram alvo de exclusão expressa da decisão recorrida, não chegaram a ser objeto de alegação na P.I.. Concretizando, não vem alegado que, em consequência direta do acidente, a A.:
- tenha sofrido perda de ganho relativamente ao trabalho por ela desempenhado por turnos no HospM, pelo qual auferia a quantia anual de €6.343,14 e perda de ganho relativamente à atividade comercial por conta própria que exerceu nos anos que indica, somando à quantia que ganhava pelo trabalho que desenvolvia no HospS, a importância anual de €7.867,38;
- tenha deixado conseguido efetuar refeições por não as poder confecionar, tendo de as comprar já confecionadas;
- tenha deixado de conseguir fazer compras pelo que tem que as encomendar para que as lhe entreguem em casa;
- as dificuldades de locomoção mesmo com canadianas torna-se de tal modo penosa que necessita de cadeira de rodas elétrica;
- devido às dificuldade de locomoção e face às sucessivas avarias do elevador do prédio, onde vivia no terceiro andar, teve de procurar e arrendar um r/c, o que lhe agravou as despesas em €7.104;
- a A. gostava de fazer tarefas e desfrutar de lazer (ir às compras, passear na praia, ir ao cinema, caminhar, cozinhar, passar a ferro, limpar o pó), o que depois do acidente deixou de poder fazer;
- igualmente deixou de poder relacionar-se sexualmente com o seu companheiro que pela situação provocada pelo acidente terminou o relacionamento;
- devido ao seu estado físico e psicológico deixou de poder alimentar a esperança de vir a tirar a licenciatura em Economia, curso no qual esteve inscrita em 2008/2009, o que lhe causa revolta.
Todavia, no requerimento sobre o qual incidiu a decisão recorrida, a A. motiva a alegação de tais danos na circunstância de que: “Quando (…) intentou a presente ação estava convencida que o seu estado físico e psíquico teriam um desenvolvimento positivo e poderia ter um tipo de vida muito aproximado do tipo de vida que tinha antes do acidente que a vitimou. Com efeito,
Antes do acidente que a vitimou a A. praticava desporto, designadamente, judo, boxe francês, musculação e natação” (artigos 45º e 46º - fls. 782).

Vejamos, então.

Nos termos do artigo 588º nº.1 do CPC, os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito e que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior até ao encerramento da discussão da causa.

Importa ter presente que a ampliação do pedido não é confundível com o articulado superveniente.

O artigo 265º nº.2 do CPC, estabelece que: “O A. pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em primeira instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”.
O nº.5 do referido preceito contém o que o aresto em referência designa como particular previsão ao estatuir que: “Nas ações de indeminização fundadas em responsabilidade civil, pode o A. requerer, até ao encerramento da audiência final em primeira instância, a condenação do R. nos termos previstos no artigo 567º do Código Civil, mesmo que inicialmente tenha pedido a condenação daquele em quantia certa”.
No dizer do mesmo aresto, estabelece-se, assim, uma “modificação do pedido que extravasa as condições estatuídas nos nº.s 1 e 2 do consignado artigo 265º do Código de Processo Civil”.
Diz-se, ainda, no mesmo acórdão que conformando-se a ação dos autos como “uma ação declarativa de indemnização por responsabilidade civil, em razão de acidente de viação sofrido pelo demandante, cuja causa de pedir é complexa, temos de convir que não é qualquer alteração dos factos alegados que importa uma modificação da causa de pedir da ação, pois ao ter-se alegado factos concretos no articulado inicial com vista a demonstrar o danos causados pelo ato ilícito, cuja indemnização se reclama, temos a causa de pedir como definida, não se alterando, de todo, se o demandante se limita, em momento posterior aos articulados, e até à audiência final a acrescentar novos danos, reconhecendo-se, claramente, estes novos factos, enquanto factos destinados apenas a concretizar o danos decorrentes do facto ilícito, como facto que complementam os facto jurídicos de onde emerge a pretensão jurídica deduzida, como factos que acrescentam outras dimensões do danos decorrente do ato ilícito que serve de fundamento à ação, sem que se possa afirmar, por isso, qua demanda passa a ter uma dissemelhante causa de pedir ou passa a estar sustentada em fundamento que antes não possuía”[1].
E, acrescenta-se no mesmo acórdão que: “Tendo (…) a A. (…) aduzido na petição inicial os danos resultantes do acidente ao nível dos lucros cessantes, limitando-se agora a alegar danos superiores em consequência do facto ilícito, temos que a correspondente ampliação até ao encerramento da audiência final em primeira instância (… podendo o A.) requerer (…) a condenação do demandado em indemnização em forma de renda”.
Neste caso o acórdão entende que se prescinde dos requisitos adjetivos estabelecidos em regra uma vez que a causa de pedir não é alterada, mas apenas são aditados “danos complementares aos inicialmente” alegados, dentro da baliza do nº.6 do artigo 265º do CPC que estabelece que: “é permitida a modificação do pedido e da causa de pedir, desde que tal não implique convolação para relação jurídica da controvertida”.

No presente caso, tal como no caso relatado no acórdão que aqui se segue, os princípios da economia processual, o da instrumentalidade do processo relativamente ao direito material e o da atualidade da decisão, aconselham a absorção da multiplicidade de potenciais litígios no âmbito de um só processo. Note-se que aqui também a A. se limita a acrescentar, isto é, a complementar as várias vertentes do dano por ela sofrido decorrentes do ato ilícito que server de fundamento à ação, de modo a “garantir que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão – artigo 611º nº. 1 do Código de Processo Civil” (vide artigos 564º sob a epígrafe cálculo da indemnização e 569º sob a epígrafe indicação do montante dos danos, ambos do Código Civil.
Como vemos, o ordenamento mostra que há uma componente dos danos que pode efetivamente não estar revelada aquando da propositura da ação e, por isso, dentro de certas balizas, é admissível que o A. amplie o pedido. No caso vertente, a A. refere que, quando intentou a presente ação, estava convencida de que o seu estado físico e psíquico teria um desenvolvimento positivo. Note-se que a presente ação foi proposta em 30.03.2016, sendo certo que a avaliação final pelo INML, IP dos danos de que a A. ficou a padecer em resultado do acidente ocorreu apenas em 23.08.2019 e, nos termos alegados, apenas em Maio de 2019 foi aposentada e passou a receber duas pensões, o que torna verosímil a afirmação da A. a que acima se fez referência: aquando da P.I. a A. estava convencida de que iria beneficiar de uma evolução positiva. Note-se também que a A. não faz uma ampliação arbitrária dos factos alegados na PI. Ela correlaciona esses factos com o evento alegadamente causador, isto é, o facto ilícito de onde emerge o pedido que formulou na PI. Há assim uma conexão factual intrínseca entre a causa de pedir complexa e o pedido complementar formulado no articulado superveniente. Não se trata de factos desgarrados, mas de factos que integram a vida corrente da A. e que foram alegadamente afetados pela ocorrência do mesmo facto ilícito.
Importa reter que, quando falamos de danos pessoais emergentes na sequência de um acidente de viação, falamos de um processo, isto é, de uma dinâmica cujo preenchimento se vai desenrolando no tempo, podendo cessar pela cura clínica ou agravar-se e reclamar novos tratamentos com as decorrentes despesas.
No contexto desta dinâmica, pode ocorrer que o lesado apenas valorize certos danos pela evolução, melhor dito, em função do agravamento das lesões, entretanto ocorrida.
A causa de pedir complexa pode ainda ser considerada a mesma, sempre que haja agravamento médico que justifique a superveniente valorização pelo lesado dos danos ocorridos (ainda que em momento anterior) mas que só assumem o seu verdadeiro significado mercê daquele agravamento. Daí que nos revejamos no entendimento de que no caso de indemnização civil por acidente de viação “não é qualquer alteração dos factos alegados que importa uma modificação da respetiva causa de pedir da ação, pois, ao ter[em]-se alegado factos concretos no articulado inicial com vista a demonstrar os danos causados pelo ato ilícito, cuja indemnização se reclama, temos a causa de pedir como definida, não se alterando, de todo, se o demandante se limita, em momento posterior aos demandados, e até à audiência final, a acrescentar novos danos, reconhecendo-se, claramente, estes novos factos, enquanto factos destinados apenas a concretizar os danos recorrentes do facto ilícito, como factos que complementam os facto jurídicos de onde emerge a pretensão jurídica deduzida, como factos que acrescentam outras dimensões do dano recorrente do ato ilícito que serve de fundamento à ação, sem que se possa afirmar, por isso, que a demanda passa a ter uma dissemelhante causa de pedir ou passa a estar sustentada em fundamento que antes não possuía”.

Como se viu, no caso dos autos, a decisão recorrida reconhece que a parte do pedido admitida no articulado superveniente exclui a matéria relativa ao facto de a A. alegadamente trabalhar no HospM e fazer trabalho de engomadoria (artigos 14º a 18º essencialmente), à necessidade de comprar refeições confecionadas, à necessidade de uma cadeira de rodas elétrica, à necessidade de uma casa de r/c e à factualidade alegada nos artigos 47º a 62º (lesões/sequelas relacionadas com evento e consultas e exames e tratamentos de ai decorrentes).

Mantém-se assim, o pedido relativo à assistência de terceira pessoa, à assistência às consultas de psiquiatria e medicação, à aquisição e manutenção de muletas, à impossibilidade de cozinhar, passar a ferro e limpar o pó, à cessação do relacionamento sexual com o companheiro cuja relação terminou, à impossibilidade de frequência do curso Superior Economia, aos sentimentos de revolta que isso lhe provoca e à alteração da patologia psiquiátrica e os psicofármacos tomados nesse contexto.

Como vemos, o essencial daquilo que a A. pede acaba por ser efetivamente negado pela primeira instância.

Porém, pelas razões que acima se deixam expressas é de integrar o demais pedido no contexto da causa de pedir, por exigência, como se disse, do principio da atualização da decisão (artigo 611º/1 do CPC), tendo em conta que o princípio da plenitude conduza à ponderação não apenas dos prejuízos causados, mas também, da cessação de benefícios em decorrência da lesão (artigo 564º CC). O mesmo deriva dos princípios da instrumentalidade do direito processual face ao direito material e da economia processual, de modo a que, sem quebra das regras, seja possível dirimir o conflito, prevenindo futuros litígios.

Note-se, aliás, em alinhamento com a orientação jurisprudencial aqui seguida e, ao que tudo indica em consonância com o entendimento da recorrida, que: “no que respeita aos articulados supervenientes, o artigo 588º nº.1 do CPC” abarca não apenas os factos ocorridos posteriormente aos articulados, mas também “os factos anteriores de que a parte só tomou conhecimento [ou que valorizou em função do processo de agravamento das lesões, diríamos nós] depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência” – “superveniência subjetiva”.

Em ambas as situações pode ter lugar o articulado superveniente em que a parte a quem o facto é favorável o alegará”.

Nesta conformidade não resta senão acolher a pretensão recursória.

III.–Decisão

Pelo exposto, e de harmonia com as disposições legais citadas, concedendo provimento à apelação, altera-se a decisão recorrida e, consequentemente, determina-se a viabilização da totalidade da ampliação do pedido, com a pertinente produção de prova.
Custas pelo vencido a final.



LISBOA, 25.05.2021

Amélia Alves Ribeiro
Ana Resende
Dina Monteiro


[1]Sublinhado acrescentado.