PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PERICULUM IN MORA
CONVITE AO SUPRIMENTO DE INSUFICIÊNCIAS DO REQUERIMENTO INICIAL
Sumário


I- Tanto a gravidade da lesão como a sua difícil reparabilidade são aferidas pela respetiva repercussão na esfera jurídica do requerente do procedimento cautelar.
II- Tendo sido alegados factos concretizadores da lesão e do montante dos danos, apenas faltando factos relativos ao reflexo na esfera patrimonial do requerente, de modo a permitir apreciar da sua alegada difícil reparação, não é possível concluir logo pela não verificação do requisito do periculum in mora.
III- A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre os quais figura a falta da causa de pedir, a qual não se confunde com uma causa de pedir deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta.
IV- No caso de serem suscetíveis de sanação, a existência de deficiências no requerimento inicial não implica rejeição liminar, caso em que o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido artigo 590º.
V- Uma deficiência suscetível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento não constitui motivo legal para o indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. B. B., Lda., instaurou procedimento cautelar comum contra X – Comércio de Automóveis, SA, pedindo «a admissão do presente procedimento cautelar comum com inversão do contencioso, na medida do aqui alegado, e, em consequência, sejam decretadas as seguintes providências:
A) declarar a nulidade dos cinco contratos de compra e venda celebrados entre a requerente e a requerida cujo objeto foram as cinco viaturas com as matrículas SV-08, SV-18, SV-09, SV-07, VU e, consequentemente, condenar a requerida a restituir à requerente a quantia de €127.857,88 (cento e vinte e sete mil oitocentos e cinquenta e sete euros e oitenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa prevista no § 5º do artigo 102º do Código Comercial, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
B) para o caso do pedido formulado na alínea A) não ser julgado procedente, deverão os cinco contratos de compra e venda celebrados entre a requerente e a requerida, acima identificados, ser objeto de redução ou de conversão, nos termos dos artigos 292º e 293º, ambos do Código Civil, sendo a requerida condenada a:
- transformar as cinco viaturas vendidas à requerente em viaturas de cabine dupla com 7 (sete) lugares, incluindo o condutor, distribuídos por 3 (três) lugares na fila da frente e 4 (quatro) lugares na fila de trás, seguindo-se o espaço com caixa de carga, e respetivos taipais em alumínio com piso anti-derrapante, até aos limites exteriores e posterior da cabine dupla, tudo devidamente homologado junto do IMT;
- restituir à requerente os valores pagos a título de “Custo preparação cabine tripla” que se fixou, para as viaturas com as matrículas SV-08, SV-18, SV-09, SV-07 na quantia global de € 17.220,00 (€ 4.305,00 x 4 viaturas), IVA incluído, e para a viatura com a matrícula VU a quantia de € 5.045,50, IVA incluído, e ainda os “Custos de transporte e legalização” que se fixaram, para as cinco viaturas, na quantia global de € 4.612,50 (€ 922,50 x 5 viaturas), IVA incluído, todas acrescidas de juros de mora à taxa prevista no §5º do artigo 102º do Código Comercial, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
- a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento da quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) por dia, desde o dia do trânsito em julgado da sentença que de-termine as providências até ao dia em que a requerida entregue à requerente as cinco viaturas transformadas em viaturas de cabine dupla com 7 (sete) lugares, incluindo o condutor, distribuídos por 3 (três) lugares na fila da frente e 4 (quatro) lugares na fila de trás, seguindo-se o espaço com caixa de carga, e respetivos taipais em alumínio com piso antiderrapante, até aos limites exteriores e posterior da cabine dupla, tudo devidamente homologado junto do IMT.

Outrossim, e independentemente de ser o pedido formulado na alínea A) ou na alínea B) o julgado procedente, deverá a requerida ser condenada a:
- entregar à requerente duas viaturas da categoria “N1”, uma com cabine dupla, com sete lugares, incluindo o condutor, e outra com cabine única, com três lugares, ambas em estado de novo e com as mesmas características das cinco viaturas vendidas à requerente, ao nível de equipamento e motor, ou semelhantes, caso aquelas não sejam possíveis, e com caixa de carga e respetivos taipais em alumínio com piso antiderrapante, até aos limites exteriores e posteriores das cabines, tudo devidamente homologado no IMT;
- pagar à requerente a quantia de € 110.493,88 (cento e dez mil quatrocentos e noventa e três euros e oitenta e oito cêntimos), correspondente aos custos de manutenção (aqui se incluindo mão-de-obra), seguros, impostos (IUC), combustível e inspeções periódicas que a requerente suportará durante o período de 17 (dezassete) anos na utilização de duas viaturas da categoria “N1”, uma com cabine dupla, com sete lugares, incluindo o condutor, e outra com cabine única, com três lugares, acrescida de juros de mora à taxa prevista no § 5º do artigo 102º do Código Comercial, contados desde o trânsito em julgado da sentença e até efetivo e integral pagamento;
- pagar à requerente os custos suportados com o aluguer de viaturas nos meses de novembro e dezembro de 2020 e no mês de janeiro de 2021, na quantia de € 12.931,19 (doze mil novecentos e trinta e um euros e dezanove cêntimos, na medida do alegado nos artigos 91º, 100º e 103º, acrescida de juros de mora à taxa prevista no § 5º do artigo 102º do Código Comercial, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
- pagar à requerente os custos vincendos que esta suporte com o aluguer de viaturas da categoria “N1” de modo a transportar até 45 (quarenta e cinco) trabalhadores, tudo até ao cumprimento integral dos pedidos formulados nas precedentes alíneas a) ou b), acrescida de juros de mora à taxa prevista no §5º do artigo 102º do Código Comercial, contados desde o vencimento de cada uma das faturas emitidas pela locadora e até efetivo e integral pagamento;
- pagar à requerente os prémios dos contratos de seguro das viaturas com as matrículas SV-08, SV-18, SV-09, SV-07, VU e os respetivos IUC, desde o dia 31/10/2020 até ao trânsito em julgado da sentença.
C) Para o caso dos pedidos formulados nas alíneas A) e B) não serem julgados procedentes, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, sempre deverá V. Exa. condenar a requerida a:
- pagar à requerente os custos suportados com o aluguer de viaturas nos meses de novembro e dezembro de 2020 e no mês de janeiro de 2021, na quantia de € 12.931,19 (doze mil novecentos e trinta e um euros e dezanove cêntimos, na medida do alegado nos artigos 91º, 100º e 103º, acrescida de juros de mora à taxa prevista no § 5º do artigo 102º do Código Comercial, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
- pagar à requerente os custos vincendos que esta suporte com o aluguer de viaturas da categoria “N1” de modo a transportar até 45 (quarenta e cinco) trabalhadores, tudo até ao cumprimento integral dos pedidos formulados nas precedentes alíneas a) ou b), acrescida de juros de mora à taxa prevista no §5º do artigo 102º do Código Comercial, contados desde o vencimento de cada uma das faturas emitidas pela locadora e até efetivo e integral pagamento; ou, em alternativa, - disponibilizar à requerente um número suficiente de viaturas da categoria “N1”, com caixa de carga apta ao transporte de materiais, ferramentas e máquinas de pequeno e médio porte, em número não superior a oito, tudo de modo a que possam ser transportados 45 (quarenta e cinco) trabalhadores».

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1.2. Por despacho 02.03.2021, foi o procedimento cautelar indeferido liminarmente.
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1.3. Inconformada, a Requerente interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«A – A recorrente alegou e evidenciou no requerimento cautelar os requisitos do fumus boni juris, o periculum in mora, e a ponderação de interesses;
B - A recorrente comprou à recorrida 5 (cinco) viaturas, em estado de novo, todas da categoria “N1”, ligeiro de mercadorias, todas com cabine tripla com 9 (nove) lugares, incluindo o condutor, com caixa aberta, pelo valor global de €156.500,04, IVA incluído, pago a pronto pagamento;
C – A recorrida sempre garantiu à recorrente, antes e após a conclusão dos cinco contratos de compra e venda, que as viaturas seriam homologadas junto do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P.;
D – As viaturas não foram homologadas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P.;
E - Por força do disposto no número 5 do artigo 114º do Código da Estrada a recorrente está proibida de circular na via pública com as 5 (cinco) viaturas adquiridas à recorrida;
F - A alínea a) do número 3.5 da parte A do anexo I do Regulamento (EU) 2018/858 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de maio de 2018, dispõe que o número de lugares sentados nas viaturas da categoria “N1” não pode ser superior a 6 (seis), excluindo o condutor;
G - As viaturas vendidas pela recorrida à recorrente não foram, nem vão ser, homologadas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., pois o referido Regulamento é diretamente aplicável na ordem jurídica interna de cada um dos estados membros, por força, entre o mais, do artigo 288º do Tratado do Funcionamento da União Europeia, sobrepondo-se a qualquer diploma nacional, em obediência ao primado do direito comunitário, previsto no número 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa;
H – A recorrente, não tendo outra forma de transportar os 45 (quarenta e cinco) dos seus 89 (oitenta e nove) trabalhadores, antes de partir para o aluguer de viaturas que lhe permitissem ultrapassar a proibição de circular com as 5 (cinco) viaturas adquiridas à recorrida, deu oportunidade de esta lhe colocar à disposição viaturas de substituição;
I – A recorrida recusou colocar à disposição da recorrente viaturas de substituição, vendo-se esta obrigada a recorrer ao aluguer de viaturas que tem implicado um custo médio mensal de € 4.465,47;
J – A recorrida recusa pagar à recorrente os custos dos alugueres de viaturas que permitam ultrapassar a proibição de circulação das 5 (cinco) viaturas que aquela lhe vendeu;
K - Em pouco mais de 6 (seis) meses de aluguer a recorrente assumirá um custo equivalente ao preço de uma das primeiras viaturas adquiridas à recorrida;
L - É totalmente expectável que uma ação declarativa de condenação com processo comum no âmbito dos presentes autos demore bem mais do que 3 (três) anos a transitar em julgado, sendo certo que o valor da ação permitirá o recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça ao até mesmo ao Tribunal de Justiça da União Europeia, pois também se trata da aplicação da disposição de um Regulamento, a qual, apesar de ser claríssima, poderá ser colada sob o escrutínio das instâncias europeias pela recorrida;
M - Não discutir o objeto da presente ação na via cautelar, remetendo a discussão para a ação declarativa de condenação com processo comum, faz com que o risco que a situação implica seja manifestamente excessivo relativamente ao risco normal associado à pendência de uma ação declarativa comum;
N - Para a recorrente é muito grave que tendo comprado à recorrida, a pronto pagamento, 5 (cinco) viaturas novas esteja proibida de com elas circular;
O - Mais grave ainda é o facto de ter as 5 (cinco) viaturas pagas, mas paradas por imposição legal, e ter que alugar viaturas numa rent a car, por inexistência de alternativa para transportar os seus trabalhadores, sendo certo que a cada 6 (seis) meses de aluguer estará a pagar o custo equivalente ao preço de uma das primeiras viaturas adquiridas à recorrida;
P - É manifesto que a recorrente está a sofrer lesões muito graves e continuará a sofrer caso as providências requeridas não sejam decretadas;
Q – No requerimento cautelar a recorrente alega, e prova documentalmente, a total e absoluta dificuldade na reparação dos danos alegados, cujo ressarcimento foi, e continua a ser, expressamente negado pela recorrida à recorrente;
R - A recorrente está a sofrer lesões graves e irreparáveis ou de difícil recuperação, as quais merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum;
S - Se as lesões graves e irreparáveis ou de difícil recuperação só o forem em função da situação económica e financeira do/a requerente de um procedimento cautelar, a via cautelar estaria só ao alcance daqueles que infelizmente se encontrassem na indigência financeira; T - O que parece querer transparecer a sentença recorrida é que aqueles que por fortuna se encontrem robustos financeiramente, jamais poderão ser afetados por lesões graves e irreparáveis ou de difícil recuperação, o que, de facto, não é nem de longe, nem de perto, o espírito da lei;
U - A recorrente alegou que o aluguer das viaturas acarreta um elevado esforço para a sua tesouraria;
V - Para a hipótese de se entender que a recorrente teria o ónus de alegar a situação económica e financeira da recorrida para se poder concluir que existe dificuldade na reparação dos prejuízos alegados no requerimento cautelar, ainda assim está-se perante um caso claro de impossibilidade do cumprimento desse ónus, pois as informações sobre a situação económica e financeira da recorrida estão sujeitas a importantes deveres de sigilo por quem as poderia prestar à recorrente;
W - Caso se entenda que pelo facto de não ter sido alegada a situação económica e financeira da recorrida, nenhum problema existe no facto da recorrente ter que continuar a alugar viaturas durante três, quatro, cinco ou mais anos, pagando duas ou três vezes o custo das 5 (cinco) viaturas que a recorrida lhe vendeu, é beneficiar e privilegiar de forma desproporcionada, abusiva e frontalmente chocante a recorrida/inadimplente;
X – Não há qualquer fundamento para indeferir liminarmente o requerimento cautelar.
Pelo exposto e com o douto suprimento de V. Exas. deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada sentença recorrida, tudo com as legais consequências, assim se fazendo JUSTIÇA».
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Cumprido o disposto no artigo 641º, nº 7, do CPC, a Recorrida não apresentou contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. Questões a decidir

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões nele insertas, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se, em face do quadro factual alegado pela Requerente, se justificava o indeferimento liminar do procedimento cautelar com fundamento na sua manifesta improcedência. Trata-se no fundo de apurar se é (ou não) de concluir, face ao alegado no requerimento inicial, pela verificação do segundo requisito das providências requeridas: o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da Requerente.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

Os factos que relevam para a apreciação do objecto do recurso são os que resultam do precedente relatório, para os quais se remete, e ainda os seguintes, emergentes de actos praticados no processo:

2.1.1. No requerimento inicial, no que respeita ao requisito do “justo e fundado receio de lesão grave e de difícil reparação”, a Requerente alegou:

«(…) 100º
Por comunicação com data de 28/01/2021, enviada pela requerente à requerida por carta registada com aviso de receção com o código RH … 3395 4 PT, recebida a 03/02/2021, foi solicitado à requerida o pagamento da quantia de €4.251,30 (quatro mil duzentos e cinquenta e um euros e trinta cêntimos), correspondente ao aluguer à “Y” das viaturas com as matrículas 42-AD, 50-AD, ZJ-20, XH-49 e XM-47, todas da categoria ligeiro de mercadorias, com 6 (seis) lugares, incluindo condutor, no período compreendido entre as 10h00 do dia 30/11/2020 e as 10h00 do dia 30/12/2020, e ainda o pagamento da quantia de € 159,78 (cento e cinquenta e nove euros e setenta e oito cêntimos), referente ao custo suportado pela requerente com a deslocação de BR. às instalações da “Y” no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, Porto, para a troca da viatura com a matrícula XM-47 pela viatura com a matrícula ZJ-09 e com a deslocação de BR. às instalações da “Y”, na Rua ..., cidade do Porto, para a troca da viatura com a matrícula XH-49 pela viatura com a matrícula ZA-14, tudo conforme se comprova pelo documento que aqui se juntam sob o número 109.
101º
A requerente pagou à “Y” o valor de € 4.213,34 (quatro mil duzentos e treze euros e trinta e quatro cêntimos), correspondente ao aluguer das viaturas com as matrículas 42-AD, 50-AD, ZJ-20, XH-49 e XM-47, entre as 10h00 do dia 30/11/2020 e as 10h00 do dia 30/12/2020, conforme se comprova pelo documento que aqui se junta sob o número 110.
102º
A requerente suportou um custo de € 159,78 (cento e cinquenta e nove euros e setenta e oito cêntimos), com a deslocação de BR. às instalações da “Y” no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, Porto, para a troca da viatura com a matrícula XM-47 pela viatura com a matrícula ZJ-09 e com a deslocação de BR. às instalações da “Y”, na Rua ..., cidade do Porto, para a troca da viatura com a matrícula XH-49 pela viatura com a matrícula ZA-14, tudo conforme se comprova pelo documento que aqui se junta sob o número 111.
103º
A requerente pagou à “Y” o valor de € 4.212,85 (quatro mil duzentos e doze euros e oitenta e cinco cêntimos), correspondente ao aluguer das viaturas com as matrículas 42-AD, 50-AD, ZJ-20, XH-49 e XM-47, entre as 10h47 do dia 30/12/2020 e as 10h47 do dia 29/01/2021, conforme se comprova pelo documento que aqui se junta sob os números 112 a 117.
104º
A requerente alugou à “Y” as viaturas identificadas no artigo 103º para os meses de fevereiro e março de 2021, conforme se comprova pelos documentos que aqui se juntam sob os números 118 e 119.
105º
Com o aluguer das cinco viaturas identificadas nos artigos 81º e 101º, a requerente ficou com um défice no transporte de 15 (quinze) trabalhadores, resultante da diferença entre o número de lugares das cinco viaturas que a requerida lhe vendeu (5 viaturas x 9 lugares) e o número de lugares das viaturas que a requerente conseguiu alugar (5 viaturas x 6 lugares).
106º
Situação que causou, e causa, grande transtorno operacional à requerente que se viu, e vê, na necessidade de perder significativos períodos de tempo no transporte desses 15 (quinze) trabalhadores, períodos de tempo que deveriam ser consumidos no desenvolvimento da sua atividade empresarial.
107º
Sem contar com o gasto excecional que suportou, e suporta, em despesas de combustível e, muitas vezes, em portagens, pois para transportar esses 15 (quinze) trabalhadores precisou, e precisa, de mobilizar duas vezes três das carrinhas alugadas.
108º
O que implicou, e implica, vários “vai e vem” entre a sede da requerente e os locais das obras que está a executar em cada momento.
109º
Tudo isto num necessário, mas desmedido esforço na gestão das equipas de trabalho da requerente.
110º
Desde o dia em que a requerida entregou à requerente as viaturas com as matrículas SV-07, SV-08, SV-09, SV-18 e VU, até ao dia 31/10/2020, sempre com elas circulou, transportando trabalhadores, máquinas e materiais.
111º
E assim sucedeu pois ignorava por completo as possíveis consequências de com elas circular na via pública.
112º
No dia 31/10/2020 a requerente tomou conhecimento que estava proibida, por força de disposição legal imperativa, de circularem com as cinco viaturas que adquiriu à requerida.
(…)
193º
A requerente está a suportar uma média mensal de € 4.465,47 (artigos 92º, 93º, 101º, 102º e 103º) a título de custos com o aluguer de viaturas que lhe permitam suprir a proibição de circular com as viaturas que a requerida vendeu, e apenas para o transporte de trinta trabalhadores.
194º
Aluguer que ainda assim é deficitário, pois só permite o transporte, de uma só vez, de 30 (trinta) trabalhadores, com as consequências já alegadas nos artigos 107º a 110º.
195º
O aluguer das viaturas acarreta um elevado esforço de tesouraria para requerente que se encontra há três meses a suportar os elevados custos de aluguer de viaturas.
196º
A requerida, não obstante a requerente a ter notificado atempadamente que outra solução não teria que não fosse o aluguer de viaturas, dando-lhe ainda a oportunidade de colocar à disposição viaturas de substituição, ousou devolver a primeira comunicação enviada com as despesas suportadas pela requerente com o primeiro mês de aluguer, declinando qualquer responsabilidade pelo seu pagamento.
197º
Os contratos de aluguer, porque vitais para a manutenção da estrutura produtiva da requerente, a continuarem a ser celebrados, rapidamente implicarão, em pouco mais de 6 (seis) meses, a assunção de um custo equivalente ao preço de uma das primeiras quatro viaturas adquiridas à requerida.
198º
O tempo que uma ação declarativa de condenação com processo comum demora a transitar em julgado, jamais permitirá à requerente fazer valer o seu direito ameaçado.
199º
É imperioso e urgente que o tribunal declare a nulidade dos cinco contratos de compra e venda celebrados entre a requerente e a requerida ou, em alternativa, declare que os referidos contratos sejam objeto de redução ou de conversão, nos termos acima alegados e, num ou noutro caso, condene a requerida no pagamento dos custos de aluguer vencidos e vincendos até definitiva resolução do presente pleito.
200º
Daí que só o presente procedimento cautelar seja apto a evitar a “lesão grave e dificilmente reparável” do direito da requerente.
201º
Está suficientemente demonstrado o periculum in mora, previsto no número 1 do artigo 362º do CPC».
2.1.2. A decisão recorrida, com a referência 172052511, proferida em 02.03.2021, na parte relevante para a apreciação dos fundamentos da apelação, tem o seguinte teor:
«Os procedimentos cautelares constituem um instrumento processual privilegiado para proteção eficaz de direitos subjetivos e de outros interesses juridicamente relevantes.
A sua importância prática advém não da capacidade de resolução autónoma e definitiva do conflito de interesses, mas da utilidade na prevenção de violação grave ou dificilmente reparável de direitos, na antecipação de determinados efeitos das decisões judiciais e na prevenção de prejuízos que podem advir da demora na decisão do processo principal.
A principal função da tutela cautelar consiste, pois, em neutralizar os prejuízos a suportar pelo interessado que tem razão, derivados da duração do processo declarativo ou executivo e que não sejam absorvidos por outros institutos de direito substantivo ou processual com semelhante finalidade.
Da leitura dos arts. 362º e 368º, ambos do C.P.C resulta que os requisitos da providência cautelar não especificada são: a) a possibilidade séria da existência do direito; b) o justo e fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação; c) a adequação da providência solicitada a evitar a lesão; d) e não ser o prejuízo, resultante da providência, superior ao dano que com ela se quer evitar.
No decretamento das providências cautelares, há que ter presente que nem a prova da existência e da violação do direito do requerente, nem a da demonstração do perigo de dano que o procedimento se propõe evitar, exige o mesmo grau de convicção que naturalmente se requer na prova dos fundamentos da ação. A lei contenta-se com a emissão de um juízo de probabilidade ou verosimilhança, não obstante exigir-se que tal probabilidade seja séria – fumus boni juris - art. 368º, nº 1, do C.P.C.
Relativamente ao segundo requisito - o justo e fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora) – não basta um qualquer simples receio, que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade num exame precipitado das circunstâncias. O requerente deverá demonstrar ser fundado, no sentido de compreensível ou justificado o receio de lesão grave ou de difícil reparação do seu direito. Significa, pois, que o receio para ser fundado tem de ser apoiado em factos que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. De acordo com as circunstâncias, nada obsta que a providência seja decretada quando se esteja perante simples ameaças não materializadas, advindas do requerido, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efetivas lesões.
Porém, como já se referiu, não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm virtualidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão.
A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado. Pela proteção cautelar não se abarcam apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular. Porém, quanto aos prejuízos materiais, o critério deve ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.
Note-se que o facto de o legislador ter ligado as duas expressões com a conjunção copulativa “e”, em vez da dijuntiva “ou” deve significar que não é apenas a gravidade das lesões previsíveis que justifica a tutela provisória, do mesmo modo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil.
Assim, apenas as lesões graves e irreparáveis ou de difícil reparação merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum.
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No caso sub iudice, a requerente B. B., Ld.ª fundamenta a sua legitimidade para propor o presente procedimento cautelar não especificado no seu direito de requerer a nulidade de cinco contratos de compra e venda que tiveram por objeto os cinco veículos identificados no requerimento inicial, subordinados a uma condição contrária à lei, ou no direito de redução ou conversão de tais contratos, bem como no direito de ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos com a celebração de tais contratos.
Assim sendo, a alegação do primeiro dos pressupostos das providências cautelares não especificadas - a possibilidade séria da existência do direito - foi efetuada.
Mas o que dizer relativamente ao requisito enunciado sob a alínea b) - periculum in mora -?
O carácter grave e dificilmente reparável da lesão remete para uma situação de perigo na mora relativamente à decisão definitiva do litígio. A providência visa remover o periculum in mora e assegurar a efetividade do direito ameaçado.
A gravidade da iminente lesão deve aferir-se em função da sua repercussão na esfera jurídica do requerente. Não merecem acolhimento as lesões de gravidade reduzida, nem aquelas que, sendo embora graves, sejam facilmente reparáveis.
Para se aquilatar do caráter dificilmente reparável da lesão iminente (futura), importa verificar se o risco que a situação implica é excessivo relativamente ao risco normal associado à pendência de uma ação normal visando a composição definitiva do litígio ou a sua realização coerciva e se o decretamento da providência implica prejuízo superior ao dano que visa evitar.
Assim e desde logo não se afigura que o tempo relativo ao decurso de uma ação declarativa sob a forma de processo comum ponha em risco a efetividade do direito da requerente à nulidade e/ou à redução ou conversão dos contratos de compra e venda celebrados com a requerida, que aquela pretende sejam de imediato apreciados e decididos.
Por outro lado, e relativamente ao direito da requerente ao ressarcimento de prejuízos sofridos com a celebração dos contratos de compra e venda e daqueles que poderão decorrer da nulidade e/ou redução ou conversão dos mesmos, a mera alegação dos valores referentes aos gastos realizados com vista a ultrapassar a situação decorrente da não homologação dos veículos adquiridos à requerida – valores relativos ao aluguer de viaturas que permitem à requerente suprir a proibição de circular com aquelas que foram objetos dos cinco contratos de compra e venda celebrados com a requerida – ou a outros valores despendidos na sequência da celebração dos contratos ou a mera invocação de que “o tempo que uma ação declarativa de condenação com o processo comum demora a transitar em julgado, jamais permitirá à requerente fazer valer o seu direito ameaçado” - art. 198º do requerimento inicial-, não são claramente suficientes para concluir pelo carácter grave das lesões aparentemente sofridas pela requerente, sendo certo que esta omitiu por completo qualquer alusão à dificuldade de reparação de tais danos.
A alegação e prova de que o dano é de “difícil reparação”, nos casos de danos materiais, deve ser, conforme já foi salientado, mais exigente, isto é, o critério da “irreparabilidade” deve ser bem mais restrito em comparação com o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física e moral. Isto porque estes (os materiais) são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.
No caso presente, os valores alegados pela requerente não traduzem por si só o caráter grave das lesões necessário ao preenchimento dos requisitos indispensáveis à decretação do procedimento cautelar. Acresce que nenhuma referência foi efetuada quanto à dificuldade de reparação dos prejuízos sofridos pela requerente. Impunha-se que esta tivesse alegado factualidade relativa à sua situação económica e financeira de modo a poder aferir-se da gravidade das lesões alegadas, bem como da situação económica e financeira da requerida para se poder concluir que existe dificuldade na reparação dos prejuízos decorrentes da nulidade ou redução/conversão dos contratos de compra e venda celebrados entre as partes.
Ora, não tendo sido alegados factos que permitam concluir (de forma indiciária) a existência de previsíveis lesões “graves e dificilmente reparáveis” decorrentes da eventual atuação da requerida e que só possam ser evitadas mediante o decretamento das providências cautelares requeridas, conclui-se que o presente procedimento cautelar é manifestamente improcedente, sendo inequívoca a inviabilidade das pretensões da requerente.
Face ao exposto, indefere-se liminarmente o requerimento inicial, ao abrigo do disposto nos arts. 226, nº 4, al. b) e 590º, nº 1, do C.P.C.».
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2.2. Do objecto do recurso

Estamos perante um procedimento cautelar comum, pelo que releva, desde logo, a norma do artigo 362º, nº 1, do CPC, onde se dispõe que «sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência, conservatória ou antecipatória, concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado». Porém, nos termos do seu nº 3, «não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte», isto é, as providências previstas nos procedimentos cautelares nominados ou especificados e que aí podem ser tomadas.
O artigo 368º, nº 1, do CPC acrescenta que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão». No nº 2 deste preceito é estabelecido um limite ao seu decretamento: «a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar».

Da conjugação das duas apontadas normas resulta que o decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da verificação dos seguintes requisitos fundamentais, sendo os dois primeiros fundamentos do pedido de providência:

a) Probabilidade séria da existência do direito invocado;
b) Fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora);
c) Inexistência de providência específica que acautele aquele direito (a tutela requerida pode ser obtida através de procedimentos cautelares tipificados).
d) O prejuízo resultante da providência não exceder o valor do dano que com ela se pretende evitar.

No caso dos autos, o procedimento cautelar foi liminarmente indeferido por se ter considerado que os factos alegados não consubstanciavam fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito invocado.
Portanto, no âmbito deste recurso, atenta a impugnação daquela decisão, tudo se resume em apurar se o quadro factual alegado preenche o requisito supra enunciado sob a alínea b), isto é, se é fundado o receio de que a Requerida cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da Requerente.
Deve ainda ponderar-se a verificação de uma situação de deficiência alegatória e se a mesma é susceptível de aperfeiçoamento.

O indeferimento liminar do procedimento cautelar só é admissível nas situações previstas no artigo 590º, nº 1, do CPC (conjugado com o artigo 226º, nº 4, alínea b), do mesmo diploma), isto é, quando «o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente».
Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (2), «os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal forma graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição».
Acrescentam os referidos autores que «mesmo quando, na intervenção liminar, o juiz se deparar com falhas de inferior gravidade, não está afastada a possibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento». Referem ainda que nas «situações em que se verifique imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência de algum articulado, o juiz profere o despacho de convite ao aperfeiçoamento (…). O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos» (3).
Para Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (4), o apuramento sobre se o pedido é manifestamente improcedente faz-se casuisticamente, em função do pedido e dos seus fundamentos de facto e de direito e «sê-lo-á seguramente nos casos de caducidade de conhecimento oficioso do direito que se pretende fazer, bem como quando não possa haver dúvida sobre a inexistência dos factos que o constituiriam ou sobre a existência, revelada pelo próprio autor, de factos impeditivos ou extintivos desse direito».

No despacho recorrido considerou-se preenchido o primeiro pressuposto necessário ao decretamento das providências requeridas, mas não o segundo.
Portanto, no âmbito deste recurso, atenta a impugnação daquela decisão, importa apreciar se o quadro factual alegado torna fundado o receio de que a Requerida cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da Requerente.
Quanto a este requisito, refere Abrantes Geraldes (5) que, «não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contra-parte. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade de permitir ao tribunal, mediante solicitação do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto da previsível lesão (…) o juiz deve convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de danos futuros. A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado», acrescentando mais adiante (6) que «[a] protecção cautelar não abarca apenas os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação, mas ainda os efeitos que possam repercutir-se na esfera patrimonial do titular. Quanto aos prejuízos materiais o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva. (…) Apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil reparação».
Portanto, tanto a gravidade da lesão como a sua difícil reparação são aferidas pela sua repercussão na esfera jurídica do requerente do procedimento cautelar.
Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.11.2020, proferido no processo 7692/20.2T8LSB-A.L1-7, relatado por José Capacete, «a providência cautelar comum, ao pressupor designadamente que haja fundado receio de que outrem antes de proferida a definitiva decisão de mérito cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito ameaçado, implica, estando tão só em causa lesões que gerem meros prejuízos materiais, que o grau de dificuldade deva ser encontrado entre o montante desses prejuízos e a possibilidade do seu ressarcimento.
Verifica-se tal requisito (o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação), caso estejam em causa danos de avultado montante».

Na decisão recorrida começa-se por referir que o tempo relativo ao decurso de uma acção declarativa não é susceptível de pôr «em risco a efetividade do direito da requerente à nulidade e/ou à redução ou conversão dos contratos de compra e venda celebrados com a requerida».
Porém, a lesão invocada pela Requerente respeita a danos de natureza patrimonial, em especial os que decorrem da circunstância de estar impedida de circular com os cinco veículos adquiridos à Requerida.
Nessa parte, argumenta-se que os factos alegados «não são claramente suficientes para concluir pelo carácter grave das lesões aparentemente sofridas pela requerente, sendo certo que esta omitiu por completo qualquer alusão à dificuldade de reparação de tais danos».
Quanto a este argumento, verifica-se que a Requerente alegou nos artigos 92º, 93º, 101º, 102º, 103º e 193º o prejuízo concreto que está a sofrer mensalmente, pois afirma que suporta, descriminando todos os pagamentos feitos entretanto, «uma média mensal de € 4.465,47 (artigos 92º, 93º, 101º, 102º e 103º) a título de custos com o aluguer de viaturas que lhe permitam suprir a proibição de circular com as viaturas que a requerida vendeu, e apenas para o transporte de trinta trabalhadores». Além disso, alega que, com o aludido recurso ao aluguer de viaturas, ainda se verifica uma situação deficitária, «pois só permite o transporte, de uma só vez, de 30 (trinta) trabalhadores, com as consequências já alegadas nos artigos 107º a 110º» - v. art. 194º.
Portanto, o alegado prejuízo seguramente não é insignificante ou de pouca monta.
Quanto à difícil reparabilidade da lesão, que, segundo o alegado, tem carácter de continuidade e é previsível que prolongue no futuro face ao alegado, não se pode ignorar que estão alegados os concretos prejuízos que a situação causa à Requerente, que tem de suportar os custos com o aluguer de outras viaturas e os transtornos operacionais gerados. Se suporta tais custos, a lesão tem repercussões na sua esfera jurídica, pelo que apenas faltam os factos que permitiriam avaliar a respectiva dimensão relativa, o que é decisivo para apurar da alegada difícil reparabilidade da lesão.
Partindo de tal constatação, mesmo que se admita que os factos relativos à lesão carecem de ser complementados ou desenvolvidos, quanto à dimensão do reflexo patrimonial face à situação económica da empresa, isso sempre podia ser viabilizado mediante a formulação de convite ao aperfeiçoamento. Tal convite ao aperfeiçoamento da petição permitiria à Requerente alegar novos factos que melhor explicitem os já invocados, mormente, para a afirmação do requisito que se considerou insuficientemente plasmado.
Concorde-se ou não, foi intenção do legislador estabelecer no nosso ordenamento jurídico positivo uma acentuação dos poderes do juiz de direcção do processo (7), que encontra expressão no artigo 590º, nºs 2 a 4, do CPC, o que conduz a que a existência de deficiências da petição não implica rejeição liminar, pois, se as deficiências forem susceptíveis de sanação, o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido artigo 590º.
Dito de uma forma mais incisiva: se a deficiência for susceptível de sanação através de aperfeiçoamento, o requerimento inicial não pode ser liminarmente indeferido. Por isso, perante uma concreta deficiência, o essencial não está em saber as consequências da manutenção da deficiência, mas sim se esta é ou não susceptível de sanação. Se o for, deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento.
A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre eles a falta da causa de pedir, não uma causa de pedir que seja apenas deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta, por isso aperfeiçoável, sendo evidente naquele código a adopção de mecanismos demonstrativos de séria preocupação com a realização da justiça material e concreta.
É por isso que na doutrina se defende, de forma quase uniforme, que o pedido é manifestamente improcedente quando «a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a doutrina e a jurisprudência» (8). Portanto, a pretensão formulada é manifestamente improcedente quando a lei a não comporta ou os factos apurados – face ao direito aplicável – a não justificam.
Como salienta Salvador da Costa (9), em consonância com a generalidade da doutrina, «ideia de manifesta improcedência corresponde à de ostensiva inviabilidade o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso a que a lei se reporta».
Daqui decorre que qualquer deficiência, independentemente da sua gravidade e relevância, se for susceptível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento, obsta a que o juiz considere que essa falta conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.
Alinhando por esse mesmo diapasão, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (10) circunscrevem as hipóteses de indeferimento liminar do requerimento inicial de um procedimento cautelar a quatro casos: «por manifesta inexistência do direito, manifesta impossibilidade de a situação receada causar lesão do direito, manifesta inadequação da providência pretendida para afastar a ameaça, não podendo ter aplicação a 1ª parte do art. 376-3, ou a ocorrência de falta de pressuposto insuscetível de sanação».
Nenhum dessas situações se verifica no requerimento inicial da Requerente: as duas últimas hipóteses não ocorrem nem foram invocadas na decisão recorrida, não é caso de manifesta inexistência do direito, pois deu-se por adquirido que foi feita prova sumária do mesmo, e não é impossível a situação receada causar lesão ao direito, na medida em que a Requerente alegou os concretos prejuízos que a actuação da Requerida lhe causou, causa e causará no futuro.
No caso dos autos a causa de pedir está suficientemente exposta na petição (não só a causa de pedir existe como é perceptível) e apenas carecem de explicitação os factos relativos ao periculum in mora, circunscritos à questão da difícil reparabilidade da lesão (reparação dos prejuízos decorrentes dos concretos actos alegados no requerimento inicial), que é a pedra de toque de qualquer procedimento cautelar (11), e justifica a possibilidade de recorrer logo ao procedimento ao invés de intentar a inerente acção declarativa. Mesmo numa situação em que não são alegados todos os factos que compõem a causa de pedir, desde que esta exista e seja perceptível, é admissível o aperfeiçoamento, carreando o demandante para os autos todos os elementos fácticos que a integram. Por isso, parece-nos que uma tal deficiência dificilmente constitui fundamento ou justificação para o indeferimento liminar do requerimento inicial, pois não é evidente, face aos poderes actualmente concedidos ao juiz, que o prosseguimento do processo não seja susceptível de conduzir a qualquer resultado, independentemente de qualquer consideração sobre o mérito da pretensão ou da dificuldade da prova dos factos em que se alicerça.
Por tudo o que ficou dito, não se sufraga a tese da rejeição liminar perfilhada pelo Mmo. Juiz a quo, pelo que a decisão deve ser revogada.
Destarte, procede a apelação.
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2.3. Sumário

1 – Tanto a gravidade da lesão como a sua difícil reparabilidade são aferidas pela respectiva repercussão na esfera jurídica do requerente do procedimento cautelar.
2 – Tendo sido alegados factos concretizadores da lesão e do montante dos danos, apenas faltando factos relativos ao reflexo na esfera patrimonial do requerente, de modo a permitir apreciar da sua alegada difícil reparação, não é possível concluir logo pela não verificação do requisito do periculum in mora.
3 – A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre os quais figura a falta da causa de pedir, a qual não se confunde com uma causa de pedir deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta.
3 – No caso de serem susceptíveis de sanação, a existência de deficiências no requerimento inicial não implica rejeição liminar, caso em que o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido artigo 590º.
4 – Uma deficiência susceptível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento não constitui motivo legal para o indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que convide a Requerente a suprir a assinalada deficiência do requerimento inicial.
As custas da apelação serão suportadas pela parte vencida a final (arts. 527º, nºs 1 e 2 e 539º, nº 2, do CPC).
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Guimarães, 27.05.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 674.
3. Ob. cit., pág. 679.
4. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 623.
5. Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3ª Edição, Almedina, pág. 35.
6. Pág. 101.
7. Consta expressamente do preâmbulo da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o actual CPC: «Mantém-se e reforça-se o poder de direcção do processo pelo juiz e o princípio do inquisitório (de particular relevo na eliminação das faculdades dilatórias, no activo suprimento da generalidade da falta de pressupostos processuais, na instrução da causa e na efectiva e activa direcção da audiência). (…) cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais».
8. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 162.
9. A Injunção e as Conexas Acção e Execução, Almedina, 5ª edição, págs. 95 e 96.
10. Ob. cit., pág. 26.
11. A necessidade da composição provisória decorre do prejuízo que a demora na decisão da causa e na composição definitiva provocaria na parte cuja situação jurídica merece ser acautelada ou tutelada. A finalidade específica das providências cautelares é, por isso, a de evitar a lesão grave e dificilmente reparável proveniente da demora na tutela da situação jurídica, isto é, obviar ao chamado periculum in mora – Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 232.