SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
Sumário


I- Se uma servidão de passagem constituída por usucapião se tornou desnecessária, pode ser declarada judicialmente a sua extinção, a requerimento do proprietário do prédio serviente.
II- A desnecessidade tem de ser objetiva e verificar-se em relação ao prédio dominante, não bastando uma desnecessidade subjetiva assente na ausência de interesse, vantagem ou na conveniência pessoal do titular do direito.
III- Constituindo a servidão um direito real que limita seriamente o direito de propriedade do dono do prédio onerado e, sendo tal limitação apenas justificada pela necessidade de obter para o prédio dominante determinadas utilidades que não estariam acessíveis sem a servidão, é manifesto que a encargo deve desaparecer logo que se torne desnecessário, ou seja, quando o prédio dominante possa alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia.
IV- E nada impede que se declare extinta por desnecessidade uma servidão que, apesar da nova acessibilidade, continua a ser usada pelo titular do prédio dominante.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. R. e mulher M. D. deduziram ação declarativa contra M. V. e mulher M. B. pedindo que seja decretada a extinção da servidão de passagem com destino agrícola existente no prédio rústico designado “Lameira …”, sito na Rua ...., ...., Braga, inscrito na respetiva matriz predial no artigo ..º e descrito na CRP de Braga sob o n.º …, a favor do prédio rústico designado por “Campo ....”, sito no lugar ...., freguesia de ...., Braga, inscrito na respetiva matriz predial rústica no artigo ..º e descrito na CRP sob o n.º .... (antiga descrição ….) e que seja restituída pelos réus aos autores a posse plena sobre a parcela de terreno sobre a qual incidia o referido direito de servidão de passagem com destino agrícola, em virtude da decretada extinção da mesma pelo seu não uso e/ou por se ter tornado desnecessária para os réus, concretamente, ao prédio rústico de que são proprietários.

Contestaram os réus, por impugnação e, em reconvenção, pedem que os autores sejam condenados a absterem-se de praticarem quaisquer actos que impeçam ou dificultem o exercício do direito de servidão de passagem através do Campo do ...., propriedade dos autores, para o Campo ...., propriedade dos réus, designadamente, não lavrando nem escavando, por qualquer modo, o seu leito, aparando todas as árvores e arbustos bem como conservando a ramada existentes para impedir que os respetivos ramos e arames dificultem ou impeçam o uso dessa servidão. Mais pedem que os autores sejam condenados no pagamento aos réus de uma prestação pecuniária compulsória de, pelo menos, 150,00 € para cada acto de lavragem do leito do caminho, bem como em igual quantia compulsória por desleixo no cuidado da aparar todas as árvores e arbustos, bem como de desleixo na conservação da ramada e, ainda, uma indemnização por danos morais de, pelo menos, 1.000,00 €. Finalmente pedem que seja fixada a extensão da servidão com o seguinte âmbito: “caminho de servidão para passagem a pé, de máquinas agrícolas e outros veículos automóveis ou motorizados, sendo serviente o prédio rústico denominado “.... ....”, descrito na CRP sob o n.º ..../19870326-...., concelho de Braga, com o comprimento de 32 metros e com a largura de 4,00 metros a contar do muro divisório na extrema poente ao longo de todo o ano, a favor do prédio rústico dominante, denominado “Campo ....”, descrito na CRP com o n.º ..../20880623-...., Braga, destinada a colher quaisquer utilidades que o prédio dominante possa ter para o seu proprietário, futuras ou eventuais, suscetíveis de serem gozadas por intermédio do prédio serviente, utilidades estas que, agora e por enquanto, são de natureza agrícola”.
Os autores replicaram pedindo a improcedência dos pedidos reconvencionais.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a ação procedente, declarando extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem em causa.

Os réus interpuseram recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

a) Os Recorrentes consideraram-se notificados da sentença ora recorrida, na pessoa do seu mandatário, no dia 04 de Janeiro de 2021 e atendendo a que os Recorrentes interpõem recurso da matéria de facto e de direito, o prazo para alegações é de 40 dias.
b) O Tribunal recorrido decidiu julgar a acção parcialmente procedente por provada, condenando os réus em parte dos pedidos contra si formulados nos autos.
c) Os Autores interpuseram uma acção contra os Recorrentes/Réus peticionando, pela sua procedência, que seja declarada extinta a servidão de passagem que onera determinado prédio, que identificam, e que é de sua propriedade, e que se encontra constituída a favor de um outro prédio, que igualmente identificam, propriedade dos RR., com consequente restituição a eles, AA., da propriedade plena incidente sobre o trato de terreno por onde era exercido o referido direito de servidão.
d) Alegam, para tanto, e em síntese, serem donos e legítimos proprietários do prédio rústico denominado “.... ....” e que se situa na Rua ...., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na matriz sob o art. ..º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º ...., prédio este que se encontra onerado com uma servidão de passagem constituída a favor do prédio rústico denominado “Campo ....” situado no Lugar ...., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na matriz respectiva sob o art. ..º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º ...., servidão essa com destino agrícola e para único e exclusivo fim de trânsito de carros de bois e tractores.
e) Mais alegam que quando os RR. adquiriram o prédio dominante a referida servidão já se encontrava constituída, sendo que no início o R. marido utilizava tal prédio (somente) para depósito de plantas e arbustos que empregava na sua actividade profissional de jardineiro. Contudo, aduzem, há mais de 7 anos que o R. marido já não exerce tal actividade, tendo o caminho de servidão deixado de ser utilizado.
f) Prosseguem, que os RR. são igualmente proprietários de um outro prédio, este de natureza urbana, que identificam, que é contíguo ao “Campo ....”, pelo que mal o “Campo .... foi adquirido pelos demandados, aquisição essa que situam em 2003, estes criaram um acesso directo entre o dito “Campo ....” e o prédio urbano, derrubando inclusivamente a vedação que separava os prédios de que eram proprietários, por forma a permitirem o acesso de pessoas tractores, carros de bois e todo o tipo de maquinaria ao seu prédio de natureza rústica sem terem de passar pelo prédio rústico propriedade deles, AA.. Desde 2003, afirmam, que os dois prédios se transformaram num só, sendo como tal utilizado pelos RR.
g) Os Recorrentes/Réus contestaram a acção que lhes foi movida, alegando em suma que reconhecem serem efectivamente proprietários de ambos os prédios identificados na p.i. bem como que onerando o prédio propriedade dos AA. e a favor do prédio rústico de sua propriedade se encontra constituída uma servidão de passagem mas negando tudo o mais, designadamente que há mais de 7 anos que não utilizem o caminho de servidão, que tenham sido eles a derrubar a vedação que separava o prédio urbano de sua propriedade do “Campo ....”, aduzindo ao invés, que foi a X quem o fez, com o consentimento deles, demandados, aquando da realização de umas obras naquele local, ou que os prédio urbano e rústico de sua propriedade representem uma unidade de destinação e fruição, acrescentando que se acedem ao “Campo ....” por aquele é por uma questão de comodidade, permitida pela abertura realizada pela X.
h) Deduziram ainda pedido reconvencional, peticionando, pela sua procedência, por um lado quer a condenação dos AA. reconvindos em absterem-se de praticar quaisquer actos que impeçam ou dificultem o exercício do direito de servidão, quer a condenação dos AA. reconvindos no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de €150 por cada acto de lavragem do leito do caminho ou de abstenção de aparar todas as árvores e arbustos e de conservar a ramada, quer a condenação dos AA. reconvindos no pagamento de uma indemnização de €1.000 a título de danos não patrimoniais; por outro a alteração do conteúdo do direito de servidão, quer alargando a largura do caminho para os 4 m, quer permitindo igualmente a passagem a pé e de quaisquer máquinas agrícolas e de veículos automóveis ou motorizados, quer ampliando-se para “quaisquer utilidades” o destino do caminho de servidão.
i) Alegam, para tanto em em síntese, que os AA. obstaculizam ao exercício do direito de servidão, pois que lavram o leito do caminho várias vezes ao ano, remexem a terra no início do caminho (do lado do acesso à via pública) de forma a que a regueira de água que por ali passa o inunde no inverno, enlameando-o e tornando-o intransitável, destroem os arranjos de conservação que eles, demandados, levam a cabo e estreitaram a distância entre os tranqueiros onde se encontra aposta a cancela que separa o caminho da via pública, diminuindo a largura de acesso ao caminho e desta forma dificultando a entrada até de pequenas máquinas.
j) Aduzem que todos estes actos lhes causaram incómodos, angústias e despesas, reclamando, por isso, o pagamento da quantia de pelo menos €1.000 a título de danos morais. Mais alegam que a largura do caminho de servidão judicialmente reconhecida (2 m) é insuficiente para permitir a passagem de modernos tractores agrícolas ou com mecanismos acoplados destinados à aragem do “Campo ....”, que têm uma largura superior à de um tractor, reclamando, por isso, o respectivo alargamento para os 4 m. Por outro lado, afirmam, pese embora a sentença que reconheceu o direito de servidão o não refira, o certo é que o caminho foi sempre, igualmente, utilizado para passagem a pé, pois que se assim não fosse seria extremamente difícil ou até impossível recolher do prédio todas as suas utilidades.
k) Os Recorridos/Autores, replicaram negando a comissão dos actos que lhe são imputados pelos RR. reconvintes bem como que os demandados alguma vez tivessem praticado qualquer acto de conservação do caminho ou que a largura judicialmente reconhecida seja insuficiente para a passagem de veículos agrícolas, tendo reiterado o não uso do caminho de servidão por banda dos reconvintes.
l) Os Recorrentes entendem que a sentença proferida é nula por omissão de pronuncia, nos termos do disposto na alínea b) do artigo 615.º do Código de Processo Civil, como infra iremos constatar,
m) O artigo 615.º do Código de Processo Civil qualifica como causas de nulidade da sentença, além de outras, a seguinte situação: “b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
n) O ponto 1.2 g) da matéria de facto provado diz o seguinte: “Que há mais de 20 anos que o R. marido cultive no prédio rústico descrito em 1.1.c) arbustos e flores que destina à sua actividade profissional;”
o) Entendemos, que existe omissão na motivação/ fundamentação para que o facto tivesse sido dado como não provado., pois não se vislumbra na motivação da sentença qualquer referência a tal facto, estando elencado como facto não provado mas omitido na motivação; ou seja o tribunal não refere qual a razão ou motivo por quanto considera que o referido facto não se considera provado, inclusive nem “a contrario senso”.
p) Em virtude de tal omissão do tribunal a quo, entendem os Recorrentes, que a sentença ao fazer constar como não provado o facto 1.2 g) e não determinando a razão e/ou o motivo para o assim ter determinado não cumpriu plenamente o preceituado no art.° 607º, nº4, do C.P.C, visto que a omissão da declaração dos fatos não provados é uma circunstância relevante no exame e decisão da causa, como se lhe impunha pelos atrás citados preceitos legais.
q) Prescreve o art.° 607º, n °4, do C.P.C, que: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”
r) Por outro lado, preceitua o art.° 615º do nº1 alínea c) do C.P.C, que “ É nula a sentença quando: Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que tome a decisão ininteligível”.
s) No caso sub judice, verifica-se que a matéria de facto compreendida na sentença recorrida, limitou-se a enumerar o facto não provado sob o ponto 1.2 g), não concretizando os meios de prova que determinaram aquela decisão.
t) Assim, este modo de proceder do tribunal a quo não corresponde à satisfação da exigência estabelecida na lei.
u) Deste modo, com a omissão das formalidades referidas, previstas no art.° 607.°, n.º4, do Código de Processo Civil, cometeu-se uma nulidade processual prevista no art.° 195.°, n.°1, do Código de Processo Civil
v) Além disso, com o devido respeito, que é muito, Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na apreciação da prova, considerando os Recorrentes que foi incorretamente julgado o facto considerado como não provados no ponto 1.2 o), atento o facto de o teor dos articulados, a prova documental e a prova testemunhal produzida em audiência e discussão impor sobre esse concreto ponto da matéria de facto impugnada uma decisão diversa da recorrida, concretamente, o factos supra mencionado e que foi dado como não provado, deveria ter sido dado como provado.
w) Com todos os factos provados e parte da prova produzida não deixam margem para dúvidas que o RR utilizam e sempre utilizaram o caminho de servidão vide factos provados em 1.1 m),
x) Tal como se depreende do senso comum tal utilização fez-se também a pé, sempre que necessidade assim o exigiu, pois seria impensável que o fosse feita através de máquinas e tractores;
y) Tal ficou inclusive provado nos autos pelo reporte fotográfico existe um portão e uma cancela em malha sol em cada extremidade respectivamente e que não se podem abrir que não seja apeado, existindo um trilho bem visível no meio.
z) Tal foi amplamente corroborado pela testemunha dos RR o Sr. A. E., antigo vizinho e cliente dos RR afirmou tal utilização pedreste;
aa) Mas também pela testemunha dos AA, irmã do A. marido M. T..
bb) Pelo exposto, o tribunal recorrido ao ter dado como não provado o facto previsto no pontos 1.2 g) quando o deveria ter dado como facto provado e, ao invés, incorreu num erro de julgamento sobre os aludidos concretos pontos de facto, os quais deverão ser alterados por este Tribunal Superior (cfr. artigo 640.º, n.º 1 als. a) e b) e 662, n.º 1 do C.P.Civil), atento ao facto de a prova produzida, documental junta aos autos e a prova testemunhal, nomeadamente nas passagens de gravação de prova supra devidamente transcritas e assinaladas, as quais por uma questão de brevidade processual se dão aqui por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, imporem decisão diversa.
cc) Entendem ainda os Recorrentes que a decisão proferida padece de erro na determinação das normas aplicáveis.
dd) No enquadramento jurídico da douta sentença, a Meritíssima Juiz a quo entende que provado que ficou que os RR., para além de serem proprietários do prédio dominante (prédio esse que adquiriram em 2003), são igualmente proprietários das duas (únicas) fracções autónomas que compõem o prédio urbano constituído em propriedade horizontal situado na Rua ..., n.º .., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na matriz com o art. ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º ..., sendo este prédio urbano contíguo ao prédio dominante. Igualmente se provou que entre o logradouro desse prédio urbano e o prédio dominante existe uma abertura que permite o trânsito não apenas de pessoas mas igualmente de tractores, carros de bois, automóveis (ligeiros e pesados), abertura essa que os RR. confessaram em sede de depoimento de parte utilizar para acederem ao Campo .....
ee) Determinado a Meritíssima juiz que se encontra assegurada outra acessibilidade ao prédio dominante com igual comodidade, que permitirá eliminar o encargo que incide sobre o prédio serviente.
ff) Considerando a Meritíssima juiz os prédios urbano e rústico propriedade do RR não têm afectações distintas e como tal poderá ser entendido existir uma “unidade de utilização e fruição” que legitime a extinção da servidão. Referindo: “È uma verdade lapalissiana que um prédio urbano onde se encontra construído um edifício de habitação se destina a permitir a habitação de quem lá more e que um rústico não tem essa afectação. Contudo, não é essa distinta afectação que impede que se possa ver entre um rústico e um urbano uma “unidade de utilização e fruição” e que como tal se declare a extinção, por desnecessidade, de uma servidão de passagem.”
gg) “Do exposto se retira que pode afirmar-se verificar-se, in casu, a “unidade de utilização e fruição” legitimadora da extinção da servidão de passagem que actualmente onera o .... ...., até porque, reitere-se, o acesso ao Campo .... através do prédio urbano propriedade dos RR. oferece uma comodidade no mínimo igual àquela que é permitida pelo caminho de servidão.”
hh) “Se eventualmente, num futuro, os prédios rústico e urbano propriedade dos RR. Se vierem a “separar” em termos de domínio, passando a ter proprietários distintos, sempre poderá o proprietário do prédio de natureza rústica reclamar a constituição de uma servidão de passagem, designadamente onerando o .... .....”
ii) “Enquanto tal não suceder, não se mostra razoável e proporcional manter onerado o prédio serviente quando o acesso do prédio dominante à via pública está assegurado por uma via alternativa com a mesma comodidade por propriedade pertença dos mesmos proprietários.”
jj) Pelo que declarou extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem que se processa por um caminho em terra com cerca de 20 metros de comprimento e 2 metros de largura constituída a favor do prédio rústico denominado por “Campo ....” sito no lugar ...., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na respectiva matriz predial rústica no art. ..º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .... (antiga descrição n.º ...) e onerando o prédio rústico denominado de “.... ....”, composto por terreno de lavradio com vides de enforcado, sito na Rua ...., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na respectiva matriz predial no art. ..º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º ....
kk) Contudo, com o devido respeito, entendem os Recorrentes que não assiste razão à Meritíssima Juiz a quo, parecendo até desprovida de senso a possibilidade de nova constituição de servidão quando já existe uma, sendo que no caso em apreço não poderia nunca proceder a extinção da servidão em causa por desnecessidade por errónea aplicação do direito e da doutrina ao caso concreto.
ll) A desnecessidade da servidão deve ser aferida em função do prédio dominante e não do respectivo proprietário. Com efeito, segundo a noção dada pelo supracitado art.º 1543.º, a servidão predial consiste num “encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente”. A desnecessidade tem, ainda, de ser superveniente em relação à constituição da servidão de passagem e decorrer de alterações ocorridas no prédio dominante.
mm) No entanto, também tem sido afirmado que “a precisão de que terá de decorrer de alterações no prédio dominante tem de ser devidamente entendida: são ainda alterações, para o efeito que agora releva, por exemplo, modificações verificadas nos prédios vizinhos ou em vias de acesso próximas ou contíguas, que se repercutam nas condições de acesso do prédio em causa.”. Este requisito da superveniência não é, todavia, consensual.
nn) Porém, a “jurisprudência largamente dominante” vai no sentido de que só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante. No mesmo sentido navega a melhor doutrina.
oo) Como refere Oliveira Ascensão, em Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XVIII, 1964, págs. 239 e segs., pág. 244), escreveu: “A servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta graças a uma utilização, lato sensu, de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante, surge-nos a figura da desnecessidade”.
pp) Também Pires de Lima e Antunes Varela sustentam idêntico entendimento.
qq)Tal como se escreveu no citado acórdão de 16/1/2014, fazendo referência à posição daqueles Professores: «Para além do argumento extraído dos trabalhos preparatórios do Código Civil, no que ao nº 2 do artigo 1569º se refere – em síntese, pretendeu-se manter as causas de extinção constantes do § único do artigo 2279º do Código Civil de 1867, aditado pelo Decreto nº 19.126, de 16 de Dezembro de 1930: ver Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1984, pág. 676 e Pires de Lima, Servidões Prediais, Anteprojecto de um título do futuro Código Civil, Boletim do Ministério da Justiça nº 64, págs. 34-35 –, a verdade é que uma interpretação mais restritiva do requisito, fazendo-o equivaler a indispensabilidade, não se harmoniza com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais (no sentido de poderem ser impostas coactivamente).
rr) Também o Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas no Acórdão 07A091 proferido pelo STJ em 01/03/2007, defende tal posição ao firmar que “A desnecessidade da servidão a que se refere o nº2 do artigo 1569º do Código Civil é apreciada em termos objectivos, ou seja, no cotejo da acessibilidade regular – não excessivamente incómoda ou onerosa – do prédio dominante e o encargo do prédio serviente, buscando-se que, na medida do possível e do razoável, o direito de propriedade possa ser exercido na plenitude da sua função socio-económica. Se o proprietário do prédio dominante adquire um prédio contíguo com acesso directo à via pública a servidão só se extingue por desnecessidade se os prédios representarem uma unidade de utilização e fruição.”
ss) A desnecessidade tem de ser apreciada em termos objectivos, ou seja, abstraindo a situação pessoal do proprietário do prédio dominante.
tt) Tal qual foi decido no Acórdão do STJ de 2 de Junho de 2005 – 05B4254 – que acolhe a jurisprudência largamente dominante: “Só quando a servidão deixou de ter para aquele (proprietário do prédio dominante) qualquer utilidade deve ser declarada extinta (acórdãos de 27 de Maio de 1999, revista nº 394/99, e de 7 de Novembro de 2002, revista nº 2838/02); não interessa, assim, saber se, mediante determinadas obras, o proprietário do prédio encravado pode assegurar o acesso imposto pela normal utilização do prédio.
uu) Se não vejamos no mesmo sentido o que preconiza o acórdão proferido pelo STJ no dia 17/12/2019 no âmbito do processo 797/17.9T8OLH.E1.S1, proferido pelo relator Juiz Conselheiro Fernando Samões que diz o seguinte (DE 21-02-2006, PROCESSO N.º 05B4254, IN WWW.DGSI.PT.):
vv) IV - A desnecessidade susceptível de permitir a extinção judicial de uma servidão de passagem deve ser aferida em função do prédio dominante e não do respectivo proprietário.
ww) V - Em princípio, a desnecessidade deverá ser superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.
xx) VI - Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante.
yy) VII - O ónus da prova da desnecessidade incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão.
zz) VIII - Não é suficiente para essa declaração a aquisição de prédio que confina com o prédio dominante e com o caminho público.” (sublinhado nosso)
aaa) Cumpre assim adoptar um conceito de desnecessidade paralelo ao interesse que justifica a constituição, e que é o da utilidade para o prédio dominante (no domínio do anterior Código Civil, cfr. Oliveira Ascensão, op. cit., pág. 260: “é à inutilidade, e não à dispensabilidade, que a lei se reporta”); cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil citado, vol. cit., pág. 677, por remissão para o acórdão da relação de Coimbra de 25 de Outubro de 1983, in Colectânea de Jurisprudência, ano VIII – 1983, t.4, pág. 62 e segs. Uma servidão pode constituir-se por ser útil ao prédio dominante (não tem de ser indispensável) e pode extinguir-se se essa utilidade desaparecer.»
bbb) A desnecessidade relevante para o efeito que agora releva, observou-se no acórdão de 21 de Fevereiro de 2006 deste Supremo que “tem este Tribunal entendido que o conceito de "desnecessidade da servidão" abstrai da situação pessoal do proprietário do prédio dominante, devendo ser apreciada em termos objectivos. Só quando a servidão deixou de ter para aquele qualquer utilidade deve ser declarada extinta (acórdãos de 27 de Maio de 1999, revista n.°394/99, e de 7 de Novembro de 2002, revista n.°2838/02). Como no primeiro destes acórdãos se observa, não interessa, assim, saber se, mediante determinadas obras, o proprietário do prédio encravado podia assegurar o acesso imposto pela normal utilização desse prédio. O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente. E é nesta perspectiva que também a "necessidade da servidão" deve ser considerada como requisito da sua constituição por usucapião.”
ccc) No acórdão de 5/5/2015, desta Secção, também já citado, escreveu-se: “O conceito da desnecessidade é um conceito necessariamente casuístico e que depende da apreciação da matéria de facto.
ddd) A desnecessidade da servidão deve ser valorada com base na ponderação da superveniência de factos, que, por si e objectivamente, tenham determinado uma mudança juridicamente relevante no prédio dominante, por forma a concluir-se que a servidão deixou de ter qualquer utilidade, por existirem alternativas de comodidade semelhante, sem se chegar ao ponto de exigir um juízo de indispensabilidade da servidão para permitir a sua manutenção.”
eee) Finalmente, no que respeita ao ónus da prova da desnecessidade da servidão, cremos não haver dúvidas de que ele recai sobre o proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil.
fff) Assim, salvaguardadas hipóteses de abuso de direito ou semelhantes, o proprietário do prédio serviente tem de demonstrar a sua desnecessidade, com o alcance que se deixou explicitado atrás
ggg) Ora, no presente caso, a matéria de facto provada não permite concluir pela desnecessidade.
hhh) Lendo e relendo os factos provados – e só esses interessam (repete-se) – não vemos como seja possível sustentar, juridicamente, a desnecessidade susceptível de conduzir à extinção da servidão constituída, como supra se explicitou.
iii) Não é, com certeza, o mero facto de os RR proprietários do prédio dominante serem proprietários de um prédio contíguo a este e o facto de usarem uma forma de passar de um para o outro que determina terem os dois a mesma função quando na realidade são dois prédios com natureza totalmente oposta. Apesar de esses prédios confrontarem os mesmos não se confundem e não é por isso que o prédio dominante da servidão deixar de estar encravado só, por si, não basta.
jjj) O que importa é aferir, objectivamente, em face dos factos provados, da desnecessidade da servidão em função do prédio dominante e não do respectivo proprietário.
kkk)Ora, os factos provados não demonstram que a servidão em causa tivesse deixado de ter qualquer utilidade para o prédio dominante, bem pelo contrário se provou que tal servidão tem ainda ainda toda a utilidade para os RR.
lll) Ainda que o acesso a este prédio dominante da servidão possa ser feito pelos RR através do prédio contiguo, nos termos dados como provados nos pontos 1.1 m), o) da fundamentação de facto, daí não resulta que a servidão deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante, bem pelo contrário.
mmm) Relativamente a esta desnecessidade, nada foi provado, nem sequer foi alegado correctamente. Note-se que os autores nem sequer provaram a matéria que alegaram relativamente à desnecessidade da servidão, na verdade o que ficou provado é que existe uma abertura num prédio contíguo ao prédio identificado no ponto 1.1 c) e que tal abertura permite, eventualmente, a passagem dos RR para o prédio encravado pela mesma.
nnn) Os autores não provaram, pois, como lhes competia, factos demonstrativos da desnecessidade da servidão, ou seja, de que esta deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante.
ooo) Assim sendo, adoptando o conceito de desnecessidade acima enunciado e seguindo a jurisprudência largamente dominante, entendemos que, no caso sub judice, a servidão constituída por usucapião não pode ser declarada extinta por desnecessidade, como foi na sentença agora recorrida, muito menos com fundamento em o prédio dominante ter deixado de estar encravado.
ppp) Assim, o Tribunal ao ter decidido como decidiu violou o disposto nos artigos 607, n.º 3 e 4, , 615, n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil e 1569, n.º 2º do Código Civil.
qqq) Por outro lado os prédios propriedade dos RR/Recorrentes tem natureza distinta dos prédios, sendo o prédio referido no ponto 1.1 h) de NATUREZA URBANA e o prédio referido no ponto 1.1 c) de NATUREZA RÚSTICA.
rrr) E como se refere no acórdão já supra referido proferido por unanimidade pelo STJ com o n.º SJ2007030100911, do processo 07A091, que teve como Relator o Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas e que nos diz o seguinte no ponto de 3.2: “Mas a constituição da superfície afasta, desde logo, o conceito de unidade dos prédios, já que tal implica uma idêntica situação de fruição e exploração pelo mesmo proprietário.
sss) Ora tal unidade no caso sub judice é impossível e assim será pois a natureza do prédios é distinta pelo que em circunstância alguma poderão os RR/Recorrentes criar ou determinar tal unidade.
ttt) Pelo que deve ser dada procedência ao presente recurso e em consequência ser dado como provado todo o pedido reconvencional apresentado pelos RR/Recorrentes na sua contestação/Reconvenção e ser reconhecido aos mesmos reconvintes uma servidão de passagem com 4m de largura em toda a sua extensão, desde a via pública, até ao limite norte do prédio dominante mantendo-se no restante os mesmos exactos termos do provado no ponto 1.1f)

Nestes termos, e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente, e, em consequência, seja decretada a manutenção da servidão de passagem com as legais consequências daí advenientes.
ASSIM FARÃO V.EX.AS INTEIRA JUSTIÇA.

Os autores contra alegaram, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, com a impugnação da decisão de facto e com a questão jurídica da desnecessidade da servidão que conduz à sua extinção.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:
“1.1. Factos Provados
a) Encontra-se registada a favor dos AA. pela Ap. 42 de 29.07.1988 a aquisição, por compra, do prédio rústico denominado de “.... ....”, composto por terreno de lavradio com vides de enforcado, sito na Rua ...., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na respectiva matriz predial no art. ..º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º ....;
b) Há mais de 20 anos que os AA. têm estado no uso e fruição do prédio identificado em a), limpando-o, conservando-o, reparando-o, retirando dele todas as utilidades e suportando os respectivos encargos, nomeadamente pagando os respectivos impostos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma continuada e ininterrupta, sempre na convicção de exercerem um direito próprio e não lesarem o de outrem, em tudo se comportando com seus proprietários e por todos sendo reconhecidos como tal;
c) Os RR são donos e legítimos possuidores do prédio rústico denominado por “Campo ....” sito no lugar ...., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na respectiva matriz predial rústica no art. ..º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .... (antiga descrição n.º ...);
d) Por escritura pública datada de 20.02.2003 F. O. e esposa, F. F., declararam vender ao R. marido o prédio identificado em c);
e) O prédio descrito em c) confronta a Norte com o prédio identificado em a);
f) Por sentença datada de 11.06.1991, proferida no âmbito da acção sumária que sob o n.º 949/90 correu termos pelo extinto 1.º juízo – 1.ª secção do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi declarado que onerando o prédio identificado em a) e a favor do prédio descrito em c) se encontrava constituída uma servidão de passagem, com destino agrícola, para o único e exclusivo fim de trânsito de carros de bois e tractores, durante todo o ano, incidindo sobre uma parcela de terreno que define um caminho com cerca de 20 metros de comprimento e 2 metros de largura;
g) Lê-se na sentença mencionada em f) que “O Campo .... não dispõe de acesso directo e imediato para a via pública.”;
h) Os RR. são proprietários das duas (únicas) fracções autónomas que compõem o prédio urbano constituído em propriedade horizontal situado na Rua ..., n.º .., freguesia de ...., concelho de Braga, inscrito na matriz com o art. ....º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º ...;
i) O prédio descrito em h) confronta com o prédio descrito em c);
j) Entre o logradouro do prédio urbano descrito em h) e o prédio rústico descrito em c) existe uma abertura que permite o trânsito de pessoas, tractores, carros de bois, automóveis (ligeiros e pesados);
k) O logradouro do prédio urbano descrito em h) encontra-se parcialmente coberto com uma placa que tem inseridos pedaços de mármore e parcialmente em terra batida, esta na parte em que foi construído um telheiro;
l) Na restante área, nomeadamente na zona de acesso à via pública, o prédio descrito em h) encontra-se pavimentado a cubos de granito;
m) Os RR. utilizam a passagem referida em j) para acederem ao prédio descrito em c);
n) O R. marido teve a profissão de jardineiro e também se dedicava ao comércio por grosso de flores e plantas;
o) O R. usou o prédio rústico descrito em c) como depósito de plantas e arbustos que empregava na sua actividade profissional;
p) Os RR., pouco tempo após a aquisição do prédio rústico descrito em c), cortaram as videiras que nele existiam e que provinham do tempo dos seus antecessores;
q) Os RR. não exercem no prédio rústico descrito em c) qualquer actividade agrícola.

1.2. Factos não provados

Com relevância para a decisão a proferir não se provaram quaisquer outros factos que não os enumerados em 1.1., designadamente:
a) Que o acesso do prédio descrito em 1.1.c) ao caminho de servidão descrito em 1.1.f) se encontre vedado com uma rede;
b) Que a abertura mencionada em 1.1.j) tenha sido criada pelos RR. em Fevereiro de 2003, por forma a permitir o acesso de pessoas, tractores, carros de bois e todo o tipo de maquinaria ao prédio descrito em 1.1.c);
c) Que há mais de 7 anos que o R. não exerça a actividade profissional mencionada em 1.1.n);
d) Que os RR. tenham deixado de utilizar o caminho mencionado em 1.1.f) para acederem da via pública ao “Campo ....”, nomeadamente a partir de 2003 ou a partir de 2010;
e) Que desde 2003 não exista qualquer separação entre o prédio rústico descrito em 1.1.c) e o prédio urbano descrito em 1.1.h), tendo-se aquele transformado no quintal deste;
f) Que desde 2010 que o prédio rústico descrito em c) se encontre sem utilização, nomeadamente sem qualquer cultivo ou árvores;
g) Que há mais de 20 anos que o R. marido cultive no prédio rústico descrito em 1.1.c) arbustos e flores que destina à sua actividade profissional;
h) Que os AA. lavrem o leito do caminho descrito em 1.1.f);
i) Que os AA. não podem as ramagens das suas videiras situadas no caminho descrito em 1.1.f), a poente, nem prendam os arames que suportam as videiras, dificultando a passagem de pessoas a pé ou em viaturas;
j) Que os AA. mexam a terra junto à entrada do caminho descrito em 1.1.f), fazendo com que no inverno a regueira de água que por ali passa o inundem, enlameando-o e dificultando a passagem de peões e de pequenas máquinas para trabalhos agrícolas;
k) Que os RR., com frequência, procedam ao corte das ramagens das videiras e dos choupos que as seguram bem como à fixação dos arames soltos para poderem passar com segurança;
l) Que os AA. destruam as obras referidas em 1.2.k);
m) Que os AA. tenham estreitado a entrada do caminho de servidão mencionado em 1.1.f);
n) Que o referido em 1.2.h), i), j), k), l) e m) cause nos RR. incómodos e angústias;
o) Que o caminho de servidão descrito em 1.1.f) também fosse utilizado para passagem a pé;
p) Que o caminho de servidão descrito em 1.1.f) não permita a utilização das máquinas agrícolas modernas, mormente as de aragem.

Entendem os apelantes que a sentença é nula por omissão de pronúncia. Contudo, invocam o artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil que se refere à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. E reportam-se ao facto dado como não provado sob a alínea g) - Que há mais de 20 anos que o R. marido cultive no prédio rústico descrito em 1.1.c) arbustos e flores que destina à sua actividade profissional – considerando “que existe omissão na motivação/fundamentação para que o facto tivesse sido dado como não provado”, em violação do disposto no artigo 607.º, n.º 4 do CPC.
Ou seja, não está em causa a omissão de pronúncia, no sentido em que não foi apreciada alguma das questões suscitadas pelas partes, mas sim a falta de fundamentação da matéria de facto relativamente a uma dada alínea em particular.
Conforme vem sendo decidido uniformemente pela jurisprudência, a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, motivo de nulidade da decisão, é a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão. «Uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença» - Acórdão do STJ de 05/05/2005 – “apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão” – Acórdão do STJ de 02/06/2016, ambos em www.dgsi.pt.
Também a doutrina se pronuncia em sentido idêntico. Veja-se Teixeira de Sousa in «Estudos sobre o Processo Civil», pág. 221, «esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208.º, n.º 1 CRP e artigo 158.º, n.º 1 CPC) …o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo (…) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (…); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível».
Lebre de Freitas in «Código de Processo Civil Anotado», vol 2.º, pág. 669, refere que «há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação».
De igual modo Antunes Varela in «Manual de Processo Civil», 2.ª edição, pág. 687, entende que a nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação.

No caso dos autos, a motivação da decisão de facto inclui quatro parágrafos onde a Sra. Juíza expressa a sua convicção relativamente a este facto em concreto:
“Quanto à não prova do facto elencado em 1.2.g), diga-se que não se retirou de qualquer elemento probatório produzido que o R. marido cultive no Campo .... quaisquer arbustos ou flores para utilização na sua actividade profissional, antes se afigurando que se limitará a manter no seu prédio alguns vasos com arbustos ou flores.
Com efeito, das facturas juntas aos autos retira-se que entre 2010 e 2017 a actividade profissional maioritariamente desempenhada pelo R. marido foi a de prestação de serviços e não a de venda de plantas/árvores/arbustos: das 225 facturas juntas aos autos apenas 57 fazem menção ao fornecimento de plantas ou árvores, mas das mesmas não resultando qual a origem de tais plantas/árvores, mormente se de cultivo próprio do R. ou fornecidas por terceiros. A única testemunha que afirmou ter comprado árvores ao R. marido, o depoente A. E., e que se terá dirigido ao Campo .... para escolhê-las, reconheceu que a pereira e a laranjeira que seleccionou (e que já teriam cerca de 1,70 m de altura) estavam plantadas em vasos e não no solo.
Das 57 facturas que fazem menção ao fornecimento de plantas ou árvores apenas 8 referem árvores, podendo dar-se o caso de, à semelhança daquelas que foram vendidas ao A. E., estarem todas semeadas em vasos.
Ante a falta de prova suficiente e bastante, o Tribunal deu como não assente a factualidade consignada em 1.2.g)”.
Tanto basta para que se conclua pela existência de fundamentação da matéria de facto, estando reflectida na sentença o resultado da convicção do juiz relativamente aos meios de prova que foram sujeitos à sua livre apreciação, conforme determina o artigo 607.º, n.ºs 3, 4 e 5 do CPC.
Improcede, assim, a invocada nulidade.

Relativamente, ainda, à matéria de facto, entendem os apelantes que foi incorretamente julgado o facto constante da alínea o) dos factos não provados – “Que o caminho de servidão descrito em 1.1.f) também fosse utilizado para passagem a pé” -, que deveria transitar para os factos provados. Sustentam-se nos depoimentos das testemunhas A. E. e M. T..
Salvo o devido respeito, não têm razão.
O tribunal deu como não provado que os réus tenham deixado de utilizar o caminho de servidão para acederem da via pública ao “Campo ....”, exatamente com base nos depoimentos referidos pelos recorrentes, sendo certo que, se dos mesmos resulta que, com necessidade ou sem necessidade, o réu continua a, esporadicamente, utilizar esse caminho (“por vingação”, como disseram os irmãos do autor ou quando vendeu árvores de fruto a uma testemunha, tendo estas, envasadas, saído por esse caminho ou, ainda, quando outra testemunha forneceu ao réu essas mesmas plantas, tendo utilizado o caminho para as transportar), por nenhuma destas testemunhas foi dito que a passagem foi feita a pé. Por outro lado, consta da sentença que reconheceu o direito de servidão aqui em causa, não só que a mesma tem “como único e exclusivo fim o trânsito de carros de bois e tractores”, como, também, que o acesso de peões para o Campo .... era efetuado através de um cancelo, com 50 cm de largura, existente num muro divisório do prédio urbano e quintal dos ali autores (anteriores proprietários do Campo ....), como, aliás, havia sido alegado pelos próprios na sua petição inicial (artigo ..º).
Assim, não se vê motivo para alterar a matéria de facto, conforme pretendido pelos recorrentes, improcedendo, nessa parte, a apelação.

Apreciaremos, de seguida, a questão da extinção da servidão de passagem por desnecessidade.
Nos termos do disposto no artigo 1569.º, n.º 2 do Código Civil “As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.
Trata-se da consagração da ideia de que, uma vez desaparecidos, ou ultrapassados “a latere”, os factos que deram origem à constituição da servidão, nenhuma reserva se levanta contra a extinção da servidão por desnecessidade que, no entanto, não opera automaticamente, tornando-se necessária uma decisão judicial requerida pelo proprietário serviente – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, pág. 676 e 677.
Deve recordar-se, aqui, que, mesmo na constituição da servidão e quanto à sua extensão – artigo 1565.º, n.º 2 do CC - deve operar o princípio do menor meio, atendendo-se às necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, sem esquecer que, entre as várias formas que possivelmente satisfaçam esse desiderato, escolher-se-á a que menos onerosa se torne para o prédio serviente, que menor dano lhe cause – autores e obra citada, pág. 664 e 665.
Constitui jurisprudência pacífica que a desnecessidade a que alude aquele artigo 1569.º, n.º 2 do CC, tem de ser objetiva e verificar-se em relação ao prédio dominante, não bastando uma desnecessidade subjetiva assente na ausência de interesse, vantagem ou na conveniência pessoal do titular do direito – cfr., por todos, Ac. Relação de Évora de 18/04/2002, CJ 2002, 2.º-272, Ac. Relação de Coimbra de 12/06/2007, CJ 2007, 3.º-24, Ac. Relação de Guimarães de 15/12/2016 e Acs STJ de 25/10/2011, 16/01/2014 e 26/05/2015, estes últimos acessíveis em www.dgsi.pt.
A servidão torna-se desnecessária quando, por razões que se prendem com o prédio dominante, o uso do serviente deixou de ter utilidade para aquele (cfr. Prof. Oliveira Ascensão – “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais”, apud separata da “Revista da Faculdade de Direito de Lisboa”, 1964, 12; e ainda o Parecer da PGR, BMJ147-67;e v.g. Ac STJ de 8/3/63 BMJ 125—504, na vigência do artº2313º CC 1867) – citados no Acórdão do STJ de 26/05/2015, a que já aludimos, processo n.º 22/12.9TCFUN.L1.S1 (Sebastião Póvoas)
Com efeito, constituindo a servidão um direito real que limita seriamente o direito de propriedade do dono do prédio onerado e, sendo tal limitação apenas justificada pela necessidade de obter para o prédio dominante determinadas utilidades que não estariam acessíveis sem a servidão, resulta manifesto que a encargo deve desaparecer logo que se torne desnecessário (desde que a extinção seja requerida), ou seja, quando o prédio dominante possa alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia, sob pena de ferir sem razão válida o acervo dos direitos que integram a propriedade e constam do artigo 1305.º da lei substantiva civil.
De igual modo, deve admitir-se a extinção da servidão por desnecessidade – verificados os seus requisitos – ainda que esta continue a ser usada pelos respetivos titulares (cfr. Ac RE citado).
É que a extinção da servidão por desnecessidade é situação diferente da sua extinção pelo não uso, aliás, situações previstas autonomamente na lei. Consequentemente, nada impede que se declare extinta por desnecessidade uma servidão, que todavia, está a ser usada pelo titular do prédio dominante cfr. Acórdão do STJ de 25/10/2011, processo n.º 277/07.0TCGMR.G1.S1 (Moreira Alves).
“O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente. E é nesta perspectiva que também a “necessidade da servidão” deve ser considerada como requisito da sua constituição por usucapião”.
Tem de perfilar-se um facto superveniente, concreto, objectivo e actual do qual resulte que a servidão deixou de ter justificação por o prédio dominante se ter tornado autónomo em termos de acessibilidade.
É então necessário garantir ao dono do prédio serviente o total exercício do direito de propriedade, na plenitude da sua função socioeconómica, arredando todas as limitações comprovadamente inúteis.
O Prof. Oliveira Ascensão, comentando o artigo 2279º do Código Civil de 1867 referia que a norma tinha por escopo libertar os prédios de servidões desnecessários “que desvalorizam os prédios servientes, sem que valorizem os prédios dominantes”. (in “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais” separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, 1964).
Contrapõe-se a situação de encrave absoluto (ou relativo, nº 1 do artigo 1550º CC) à nova situação permissiva de acesso à via pública não excessivamente oneroso ou gravemente perturbador da comodidade.
O acesso à via pública pode ser feito por terreno próprio, justificando-se então que seja onerado este segundo prédio do mesmo dono, que não o prédio alheio, até aí, então, serviente.
A aquisição do prédio dominante pelo proprietário do prédio serviente extingue a servidão, “ope legis”, por confusão (nº1 alínea a) do artigo 1569º CC); a aquisição de prédio confinante ao dominante pelo dono deste, permitindo, através dele, o acesso à via pública, gera o direito potestativo de extinção do encargo por desnecessidade (“Não é racionalmente defensável que se constitua ou mantenha uma servidão quando o titular dominante pode, por terreno seu, atingir a via pública com idêntica comodidade. Mais genericamente, não é justificável que se constituam ou mantenham servidões inúteis”. – Prof. Oliveira Ascensão, ob. cit., 34)” – Acórdão do STJ de 01/03/2007, in www.dgsi.pt.
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Como bem se salienta na sentença recorrida “deverá, por isso, ser casuisticamente aferido se existe alguma alternativa que, sem prejuízo ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, permite eliminar o encargo incidente sobre o prédio serviente, por estar garantida uma (outra) acessibilidade ao prédio dominante em termos de comodidade e regularidade semelhantes”.
Ora, resulta da matéria de facto provada que os réus, para além de serem proprietários do prédio dominante, são também proprietários de um outro prédio, contíguo àquele, com acesso à via pública e com uma abertura entre eles que permite o trânsito de pessoas, tractores, carros de bois e automóveis (ligeiros e pesados) e que os réus utilizam essa passagem para acederem àquele prédio a favor do qual foi constituída a servidão de passagem. Além do mais, o logradouro do prédio dos réus permite uma melhor passagem para a via pública pois se encontra pavimentado a cubos de granito, enquanto o caminho de servidão é de terra, que se enlameia nos períodos de chuva
Assim, verifica-se que o prédio dominante pode alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia (encontrando-se assegurada, até, uma maior comodidade através desta outra acessibilidade), não obstando à sua extinção, como já vimos, que, ocasionalmente, os réus continuem a usar a servidão.

Quanto à questão da unidade de utilização e fruição entre os dois prédios dos réus, consideramos que, também aqui, não existe obstáculo à extinção da servidão, pois existe – apesar da natureza urbana de um e rústica de outro - idêntica situação de fruição e exploração pelo mesmo proprietário, que utiliza, indistintamente, o logradouro do urbano e o rústico para colocar as plantas, vasos e utensílios que utiliza na sua atividade profissional de jardineiro. O réu não explora o rústico para a atividade agrícola, mas sim como complemento do logradouro do urbano para apoio à sua atividade de jardineiro, existindo assim uma unidade com uma idêntica situação de fruição e exploração pelo mesmo proprietário.
Diga-se, aliás, que os réus não exercem no prédio rústico qualquer atividade agrícola, sendo certo que a servidão foi constituída, “com destino agrícola, para o único e exclusivo fim de trânsito de carros de bois e tractores”, o que sempre conduziria à sua objectiva desnecessidade, atento o concreto título constitutivo a que aqui importa atender. Ou seja, face à sua expressa finalidade e limites, o título constitutivo em causa não permite a convolação da respectiva servidão de passagem numa outra, qualquer que fosse o objetivo que com ela os réus pretendessem alcançar, eliminadas que estão as utilidades inerentes à servidão.

Do exposto resulta que é de confirmar a sentença recorrida, improcedendo, totalmente a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

***
Guimarães, 27 de maio de 2021

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho