RECURSO DE REVISTA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
REQUISITOS
INADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I- O acórdão do Tribunal da Relação que se pronuncia em Conferência sobre a admissibilidade do recurso de apelação, no âmbito do incidente de reclamação do despacho do juiz da 1.ª instancia que não admitiu o recurso interposto (art. 643º, 4, 2.ª parte, 652º, 3, do CPC), julga em definitivo a questão da inadmissibilidade ou da subida do recurso de apelação (únicos resultados decisórios admitidos pelo art. 643º, 4, 1.ª parte, do CPC).

II- A faculdade admitida pelo art. 652º, 5, b), do CPC («recorrer nos termos gerais») não permite admitir recurso de revista desse acórdão da Relação proferido em Conferência, uma vez que não se encontram verificados os pressupostos de admissibilidade elencados para a revista normal (art. 671º, 1 e 2, do CPC).

Texto Integral






Processo n.º 206/14.5T8OLH-W.E1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação ……, …...ª Secção

Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. Nos autos de insolvência em que foi declarada insolvente a «Multitur – Turismo Internacional. S.A.» (antes, «AISO – Sociedade Imobiliária do Algarve, Lda.»), foi proferido, em 17/4/2020, pelo Juiz …. do Juízo de Comércio …… (Tribunal Judicial da Comarca …), despacho com o seguinte teor: “Tendo em consideração o mapa de rateio apresentado pela secção, não havendo controvérsia ou dúvida quanto ao rateio efetuado, com notificação aos credores, decorrido o prazo legal da notificação sem reclamações, homologo o mesmo e determino o pagamento imediato aos credores” (fls. 3494 dos autos principais).

2. Inconformado com o despacho, AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação …. (TR…), argumentando a nulidade processual (art. 195º, 1, CPC) do despacho tendo por base a falta de notificação do recorrente, assim como a sua extemporaneidade.

Por despacho proferido em 20/5/2020, o Juiz …. do Juízo de Comércio decidiu não admitir o recurso interposto (art. 641º, 2, a), CPC), fundamentando: “o recorrente não possui interesse em agir, porquanto estamos nitidamente perante uma situação em que se verifica uma necessidade de satisfação de um mero capricho ou de um puro interesse subjetivo de obter mais uma decisão judicial. (…) não sendo o recorrente credor, não tendo obtido vencimento na ação que corresponde ao apenso S, não tendo sido contemplado no rateio, existe falta de interesse em agir. Equivale a dizer que o presente recurso se traduz num ato inútil” (cfr. fls. 3609-3610, a fls. 13-14 deste apenso).

3. Deduzida Reclamação para o TR…, de acordo com o disposto no art. 643º, 1, do CPC, a Senhora Juíza Desembargadora Relatora proferiu decisão singular em 24/9/2020 a indeferir o despacho reclamado, por ausência de conclusões recursivas (arts. 628º, 2ª parte, 641º, 2, b), 639º, 3, CPC).

4. O Reclamante deduziu então Reclamação para a Conferência, nos termos dos arts. 643º, 4, 2.ª parte, e 652º, 3, do CPC.

5. Na sequência, o TR…. proferiu acórdão, em conferência e com data de 3/12/2020, sustentando a decisão anterior de indeferimento, “por não conter conclusões”, mantendo o despacho reclamado “nos seus precisos termos”.

6. Inconformado, o Reclamante interpôs recurso de revista para o STJ desse acórdão (após convolação: arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), invocando a nulidade do acórdão recorrido (nos termos do art. 615º, 1, b), do CPC) e a desconformidade com a “legislação anterior à Reforma de 2007”, visando que se determinasse o convite ao recorrente a apresentar as conclusões nas alegações da Reclamação.
A Senhora Juíza Relatora do TR…. proferiu despacho de admissão do recurso, como sendo de “revista”, e ordenou a subida dos autos ao STJ.

7. No exercício dos poderes e para os efeitos atribuídos pelo art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, foi proferido despacho pelo aqui Relator, no qual foi decretado que, “[a]inda que o requerimento de interposição se refira à espécie da apelação, o requerimento deve ser convolado para a espécie no STJ de recurso de revista, de acordo com o art. 215º, 1.ª, em conjugação com o art. 671º do CPC (arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC)”, e convidando as partes a pronunciar-se sobre a existência de “circunstâncias processuais que podem obstar à admissibilidade e conhecimento do objecto do recurso de revista”, confrontando-as com “impugnação própria” susceptível de conferir “carácter de definitividade decisória” ao acórdão recorrido.

O Reclamante respondeu, sustentando, em nome da admissibilidade e conhecimento da revista:

“está em causa a impugnação de uma decisão que põe termo ao Apenso W e que, por analogia, pode enquadrar-se no previsto no nº 1 do Artigo 671º do CPC”;

“o fundamento para as impugnações em curso foi o facto do reclamante não ter sido convidado a apresentar as conclusões em falta, como previa o CPC na sua redação anterior, em vigor à data do início do processo principal de falência, tendo o Tribunal optado por aplicar a redação atual, negando ao reclamante a oportunidade de apresentar posteriormente as conclusões”;

“Esta interpretação configura uma má interpretação da lei que consubstancia uma inconstitucionalidade”.

Foram dispensados os vistos nos termos do art. 657º, 4, ex vi art. 679º, do CPC.

Cumpre apreciar e decidir em Conferência.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO

Questão prévia da admissibilidade do recurso

8. O acórdão da Relação proferido em Conferência que confirma o despacho singular do Relator em 2.ª instância de não admissão do recurso de apelação, em sede de Reclamação do despacho do juiz de 1.ª instância que rejeitou esse mesmo recurso de apelação, resulta de uma impugnação própria, constante dos arts. 641º, 6, 643º, 3 e 4, e 652º, 3, 1.ª parte, do CPC. Um acórdão da Relação que confirma a decisão da 1.ª instância e do Relator em 2.ª instância, ligados pelo resultado decisório comum de rejeição do recurso de apelação dessa decisão de 1.ª instância, segue a disciplina e a lógica do regime do incidente de reclamação, estabelecido no art. 643º do CPC, assim como os seus desfechos possíveis e excludentes: “ou o recurso é admitido e o relator requisita o processo ao tribunal recorrido; ou o despacho de não recebimento de recurso é mantido e[,] então, o processo incidental é remetido ao tribunal reclamado, para o processo prosseguir aí os seus termos”[1].

10. Será que, como vem alegar o Recorrente, a decisão recorrida pode ser enquadrada analogicamente no art. 671º, 1, do CPC e essa admissibilidade pode ser encarada como impugnação recursiva pela parte prejudicada com o acórdão proferido nos termos do art. 652º, 3, do CPC, que implique alguma excepção à anterior conclusão?

O STJ, em Decisão Singular de 12/2/2018 (art. 652º, 1, h), ex vi art. 679º, CPC)[2], respondeu negativamente a esta possibilidade, com clareza e argumentação plural que merecem concordância, uma vez que a recorribilidade nos termos gerais prevista nesse normativo – com atendibilidade do art. 671º, 1 e 2, do CPC – não pode ser de todo e aqui admitida.

Atentemos.

“No CPCivil de 1939 a impugnação do despacho de rejeição do recurso era passível de um recurso de queixa a interpor para o Presidente do Tribunal hierarquicamente superior, o qual passou a ser extensível ao despacho que retivesse o recurso, cfr artigo 689º daquele diploma legal, cfr JAReis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, reimpressão, 340/351.    

Posteriormente, com a aprovação do CPCivil de 1961, eliminou-se aquela terminologia, passando a designar-se reclamação, e se o Presidente indeferisse a reclamação, a sua decisão era definitiva, artigo 689º, nº 2; se a deferisse, o processo baixava à instância recorrida para que fosse admitido o recurso ou mandasse subir o recurso retido, embora aquele despacho não fizesse caso julgado formal, podendo o Tribunal de recurso decidir em sentido contrário, artigo 689º, nº 2.      

Na reforma de 2007, manteve-se o nomen juris de reclamação, mas estruturalmente passou a ter uma configuração de recurso: a competência para o conhecimento da reclamação passou a impender sobre o Relator do Tribunal que seria competente para julgar o recurso, artigo 688º, nos 3 e 4; se o Relator admitisse o recurso, solicitava o processo ao Tribunal recorrido, podendo subsequentemente a conferência não o admitir, por sugestão dos Adjuntos, artigo 708º; se o Relator, por despacho singular, não admitisse o recurso, a parte prejudicada por esse despacho podia reclamar para a conferência, nos termos do artigo 700º, nº3, cfr. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, 109/113.      

O CPCivil de 2013 manteve a reclamação com a mesma estrutura de recurso, cfr. artigo 643º.

Assim.
(…)
Esta estrutura de recurso que ora é atribuída à reclamação, porquanto a mesma é julgada pelo Colectivo que julgaria o recurso se o mesmo tivesse sido admitido, obsta à recorribilidade da decisão, sem prejuízo de poder haver recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 75º-A da LTC, cfr. Amâncio Ferreira, ibidem; Armindo Ribeiro Mendes, ibidem; Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, 4ª edição, 121; José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 46; José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, 2ª edição, 72/76.
Ora, não sendo possível a Revista, por o Tribunal da Relação não ter admitido o recurso interposto, o Acórdão produzido em Conferência não se afigura impugnável, nos termos do artigo 671º, nº 1 do CPCivil, por o mesmo não ter conhecido do mérito da causa.
De outra banda, também se não verifica qualquer das situações a que se referem as várias alíneas do nº 2 do artigo 671º, do CPCivil, já que não estamos perante uma decisão interlocutória, de estrita natureza incidental e que verse unicamente sobre a relação processual, mas antes face a uma decisão final proferida no âmbito de procedimento de reclamação.”

11. Estas mesmas razões foram sufragadas pelos recentes Acs. do STJ (nomeadamente desta Secção), de 19/12/2019[3], 19/5/2020[4], 13/10/2020[5] e de 26/1/2021[6]. Julgaram consensualmente que, consistindo o presente objecto recursivo, exclusivamente, na reapreciação do acórdão da Relação de confirmação do despacho singular de não admissão do recurso de apelação, tal objecto está manifestamente excluído de pronúncia nesta sede, nomeadamente por via do art. 671º, 1, do CPC, ao qual se pudesse chegar por via do art. 652º, 5, b), do mesmo CPC, justamente por, independentemente das razões que fundaram a decisão do acórdão recorrido, assumir o carácter jusprocessual da definitividade decisória.

12. Em suma, como se concluiu no Acórdão do STJ de 10/11/2020[7]:


(i) o incidente da reclamação prevista no artigo 643.º do CPC apresenta-se como um expediente de impugnação que versa sobre a não admissão de recurso e visa em exclusivo o efeito adjectivo-processual de modificação pelo tribunal ad quem do despacho de não admissão do recurso pelo tribunal a quo; uma vez proferido acórdão em Conferência, por efeito de nova reclamação da decisão do Relator que confirmara o despacho de 1.ª instância de não admissão do recurso de apelação, de acordo com o previsto nos arts. 643º, 4, 2.ª parte, e 652º, 3, do CPC, estamos perante decisão definitiva e insusceptível de qualquer outra impugnação;

na medida em que também concorre para esta conclusão;

(ii) a esta decisão inserida no incidente de reclamação e tomada a final em Conferência não se aplica a previsão do art. 652º, 5, b), do CPC («recorrer nos termos gerais»), enquanto faculdade de recurso de revista permitida nos termos gerais do art. 671º para as decisões proferidas no âmbito do art. 652º, 3, do CPC, pois nem estamos perante o elenco de decisões da Relação abrangidas pelo n.º 1 – em particular, às que se referem como colocando nesse campo «termo ao processo»[8] –, nem sequer perante uma decisão da Relação que aprecie decisão interlocutória proferida pela 1.ª instância que incida exclusivamente sobre a relação processual – antes uma decisão final e definitiva de 2.ª instância no âmbito restrito do incidente de Reclamação.


14. Tal solução não coloca qualquer vício de inconstitucionalidade, nomeadamente à luz da tutela jurisdicional efectiva que a CRP consagra (art. 20º, 1 e 4), como inúmeras vezes e em oportunidades diversas de discussão processual tem sido reiterado por este STJ.
Com efeito, é entendimento aceite na doutrina e na jurisprudência constitucional que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado aos regimes de impugnação recursiva, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática desses actos (incidente aqui na impugnação recursiva)[9].
Não é aqui o caso. Ao invés, toda a fundamentação aqui aduzida, que concorre para a rejeição de recurso em conformidade com o regime próprio da Reclamação em sede de inadmissibilidade de recurso, não configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito (particularmente o de «respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», tal como prescrito no art. 2º da CRP). A Constituição faculta ao legislador um grande espaço de definição e é desejável que assim o faça nesta matéria da impugnação recursiva (em geral e em especial) e das condições básicas que os interessados têm que conhecer e cumprir para a ela ter acesso, sob pena de frustração dos interessados visados – vistos e compreendidos, numa globalidade sistemática e racional, os arts. 641º, 1 a 3, 5, 6, 643º, 652º, 3 a 5, e 671º, 1 e 2, do CPC.

III. DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso de revista.

Custas pelo Recorrente.

STJ/Lisboa, 28 de Abril de 2021

Ricardo Costa (Relator)

Nos termos do art. 15º-A do DL 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3º do DL 20/2020, de 1 de Maio, e para os efeitos do disposto pelo art. 153º, 1, do CPC, declaro que o presente acórdão, não obstante a falta de assinatura, tem o voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos que compõem este Colectivo.

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] Ac. do STJ de 14/10/2013, processo n.º 7678/11.8TBCSC-A.L1.S1, Rel. OLIVEIRA ABREU, para o regime estabelecido no art. 688º do CPC de 1961, in www.dgsi.pt.
[2] Processo n.º 181/95.7TMSTB-E-E1.S2, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.
[3] Processo n.º 2589/17.6T8VCT-A.G1-A-S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt.
[4]Processo n.º 361/04.2TBSCD-S.C1.S1, Rel. MARIA DA ASSUNÇÃO RAIMUNDO, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:361.04.2TBSCD.S.C1.S1/.         
[5] Processo n.º 4044/18.8T8STS-B.P1, Rel. GRAÇA AMARAL, in www.dgsi.pt, com uma nota decisiva: “a especificidade da situação não se coaduna com as pretensões delineadas pelo Recorrente manifestadas e elencadas nas conclusões do recurso (que o Recorrente pretendia ver conhecidas no recurso de apelação que interpôs e que não foi admitido), uma vez que as mesmas (…) extravasam o âmbito da questão que processualmente se mostra passível de conhecimento nesta sede e que se reconduz, unicamente, em primeira linha (questão prévia) à admissibilidade legal do próprio recurso agora interposto”.

[6] Processo n.º 19477/16.6T8SNT-B.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo 1.º Adjunto o aqui Relator, in www.dgsi.pt.

[7] Processo n.º 2657/15.9T8LSB-S.L1-A.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[8] Concordante, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, nt. 507 – pág. 353.
[9] V., por ex., o Ac. do TC n.º 460/2011, de 11/10/2011, processo n.º 517/11, Rel. JOÃO CURA MARIANO (https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110460.html), e, para a específica matéria do direito ao recurso em processo civil, o Ac. do TC n.º 361/2018, de 28/6/2018, Rel. CATARINA SARMENTO E CASTRO (https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180361.html)