ESCUSA
JUIZ NATURAL
IMPARCIALIDADE
INDEFERIMENTO
Sumário


I - São normas gerais e abstratas contidas nas leis processuais penais e nas leis de organização judiciária que pré-determinam o tribunal competente, a sua composição (singular ou coletivo ou júri) e, especificamente, a juíza, o juiz, ou juízes que, em cada fase, intervêm no processo e no julgamento.
II - O princípio do «juiz natural» ou «juiz legal» é uma garantia do processo penal, obstando ao desaforamento das causas criminais.
III - Não basta que o juiz seja imparcial; é também necessário que o pareça.
IV - Quando a imparcialidade da juíza ou juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, não está em condições de «administrar a justiça» no caso concreto.
V - Na ponderação da imparcialidade na sua vertente objetiva, não releva a convicção da juíza ou juiz requerente e também não é suficiente a constatação de um qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a neutralidade da/o julgador/a.
VI - Exige-se que o motivo ou motivos invocados sejam sérios e graves a tal ponto que a intervenção da juíza ou juiz no processo que legalmente lhe está distribuído, olhada do exterior (pelos sujeitos processuais ou pela comunidade), se apresenta ou pode ter-se por suspeita.
VII - O deferimento do pedido de escusa do juiz natural para ser apartado do processo tem de assentar em motivos de suspeição de tal consistência e importância que, por si sós, de qualquer perspetiva objetiva, colocam fundamente em crise a aparência da sua neutralidade e isenção.

Texto Integral


O Supremo Tribunal de Justiça, secção criminal, em conferência, acorda:


I - Relatório:

Os arguidos:

- Lexsegur – Segurança Privada S.A.;

- AA; e

- BB,

julgados no processo comum com intervenção do Tribunal coletivo com o NUIPC 213/12.2TELSB e condenados por acórdão transitado em julgado em 19/12/2019, a primeira na de interdição temporária do exercício de atividade[1] pelo período de 6 anos e 6 meses e os segundos em pena de prisão[2], interpuseram recurso extraordinário de revisão, distribuído no Supremo Tribunal de Justiça, em 10 de março de 2021, à C.ª Juíza Conselheira CC, colocada na ….ª secção criminal.

a) requerimento da C.ª Juíza Conselheira relatora:

A C.ª Juíza Conselheira CC, em requerimento dirigido ao Ex.mº Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, vem pedir escusa de intervir naquele processo, “na qualidade de juiz relator”, aduzindo a seguinte motivação:

1. A requerente conhece pessoalmente a advogada mandatária dos arguidos que interpõem o recurso — DD, com o nome completo de DD.

2. A requerente foi membro do júri das provas de mestrado de DD, onde esta apresentou a tese …, e que se realizaram no dia 28.06.2010, após deliberação do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade…, de 18.05.2010.

3. Assim, a função de avaliadora naquelas provas suscitará facilmente na comunidade o entendimento de que a agora requerente não avaliará o recurso interposto com a isenção e objetividade que se impõe, trazendo consigo os pré-juízos que formulou aquando daquela avaliação.

4. Além disto, o recurso interposto baseia-se, entre outros elementos, em um parecer jurídico apresentado por EE, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade………, onde a aqui requerente exerceu funções, estabelecendo uma relação próxima com EE, com um convívio regular, e tendo sido mesmo convidada para festas pessoais, como a sua festa de casamento (para além de conhecer ambos os Pais, tendo sido visita em casa destes, onde jantou, aquando da sua estadia em Bruxelas).

5. Nestas circunstâncias, entre a aqui requerente e a mandatária dos arguidos estabeleceu-se uma relação que aos olhos da comunidade coloca dúvidas sobre a sua possível isenção; e entre a requerente e o subscritor do parecer jurídico uma relação de amizade e confiança que criará junto, nomeadamente, dos recorrentes, dúvidas sobre a isenção da requerente quanto à apreciação do recurso. Tendo em conta ambos os fatores, o escrutínio da decisão pela mandatária será escrupuloso e esta (e os seus constituintes/recorrentes) facilmente duvidará das condições de objetividade e imparcialidade da requerente.

6. Este contexto, não afetando, embora, a capacidade da signatária de apreciar e decidir a questão colocada no presente processo de uma forma imparcial, constitui, pelo menos no plano das representações da comunidade, motivo sério e grave suscetível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a ser proferida e, nessa mesma medida, desconfiança no sistema da justiça, globalmente considerado.

Em face do exposto, ao abrigo do disposto no art. 43. °, n.º 1, ex vi art. 43.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, requeiro a V. ª Ex.ª que se digne escusar-me de intervir no presente processo.

Com o requerimento não se juntam peças do processo.

Por necessária para o enquadramento, obteve-se informação sobre o tipo de recurso, a data da distribuição, a identidade dos recorrentes e o sentido da decisão recorrida (no caso, do acórdão revidendo).

Dispensados os vistos, o processo foi à conferência.

Cumpre decidir.

II - Fundamentação:


*

a. o direito

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), no art. 14º consagra o direito do acusado a um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei [3].

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), no artigo 6º n.º 1 consagra também o direito da pessoa a que qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela seja examinada “por um Tribunal competente, independente e imparcial estabelecido por lei”.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)Grand Chambre, no Affaire Micallef c. Malte, Arret du 15/10/2009, Reguête n.º 17056/07 – reafirmou o seu entendimento de que “a imparcialidade normalmente denota ausência de pré-juízos ou favoritismos e a sua existência pode ser provada de diferentes formas. De acordo com a jurisprudência constante do Tribunal, a existência de imparcialidade no que se refere ao artigo 6.1 deve ser determinada de acordo a uma valoração subjetiva onde se deve, ter em conta a convicção pessoal e o comportamento do juiz em particular, isto é, se o juiz tem algum pré-juízo pessoal ou favoritismo num caso concreto; e também de acordo com uma valoração objetiva, ou seja assegurando se o tribunal em si mesmo e, entre outros aspectos, a sua composição, oferece suficientes garantias para excluir qualquer dúvida legítima com respeito à sua imparcialidade (ver, inter alia, Fey contra Áustria, 24 de fevereiro de 1993, Series A n.º 255, ap. 27,28 e 30, e Wettstein contra Suíça, n.º 33958/96, ap. 42, TEDH 2000-XII).

No que se refere à valoração subjetiva, o princípio de que deve presumir-se que um tribunal está livre de pré-juízos pessoais ou parcialidade leva muito tempo estabelecido na jurisprudência do Tribunal (ver, por exemplo, Kyprianou contra Chipre [GS], n.º 73797/01, ap. 119, TEDH 2005- ...). O Tribunal sustenta que a imparcialidade pessoal de um juiz deve ser presumida até que haja provas do contrário (ver Wettstein, citado acima, ap.43). No que se refere ao tipo de prova requerida, o Tribunal busca, por exemplo, assegurar se um juiz demostrou hostilidade ou má vontade por motivos pessoais (ver De Cubber contra Bélgica, 26 de outubro de 1984, Series A n.º 86, ap.25).

Na ampla maioria dos casos … o Tribunal centrou-se na valoração objetiva. Todavia, não há una divisão hermética entre a imparcialidade subjetiva e objetiva na medida em que a conduta de um juiz pode não só provocar dúvidas objetivas pela sua imparcialidade desde o ponto de vista de um observador externo (valoração objetiva) como também pode tratar-se de tema das suas convicções pessoais (valoração subjetiva) (ver Kyprianou, citado acima, ap.119). Assim, em alguns casos onde possa ser difícil ter a evidência com a que recusar a presunção de imparcialidade subjetiva de um juiz, o requisito da imparcialidade objetiva proporciona uma garantia mais importante (ver Pullar contra o Reino Unido, 10 de junho de 1996, Realtórios 1996-III, ap.32).

No que se refere à valoração objetiva, deve determinar-se se, aparte da conduta do juiz, há factos verificáveis que possam criar dívidas sobre a sua imparcialidade. Isto implica que, ao decidir se no caso concreto há uma razão legítima para temer a falta de imparcialidade de um juiz em particular (…), o ponto de vista da pessoa interessada é importante mas não decisivo. O que é decisivo é se esse medo pode ser sustentado para ser objetivamente justificado (ver Wettstein, citado acima, ap.44, y Ferrantelli y Santangelo contra Italia, 7 de agosto de 1996, Relatórios 1996-III, ap.58)..

A valoração objetiva refere-se principalmente aos vínculos hierárquicos ou de outro tipo entre os juízes e outros intervenientes nos procedimentos (ver casos do tribunal militar, por exemplo, Miller e Outros contra o Reino Unido, n.ºs. 45825/99, 45826/99 y 45827 /99, 26 de outubro de 2004, ver também casos concernentes ao duplo papel de um juiz, por exemplo, Meznaric contra Croacia, n.º. 71615/01, 15 de julho de 2005, ap. 36 e Wettstein, citado acima, ap. 47, onde o advogado que representa o oponente do demandante posteriormente julga o demandante num conjunto de procedimentos e los procedimentos se sobrepõem respectivamente) nos que objetivamente se justificam essas dúvidas (…). Assim se deve decidir em cada caso individual se a relação em questão é de natureza e grau que possa indicar uma falta de imparcialidade por parte do tribunal (ver Pullar, citado acima, ap.38).

A este respeito inclusivamente as aparências devem ser de certa importância o, por outras palavras, “a justiça não só deve realizar-se, também deve ver-se que se realiza” (ver De Cubber, citado acima, ap.26). O que está em jogo é a confiança que deve inspirar no público um tribunal numa sociedade democrática. Assim, qualquer juiz sobre que recaia uma legítima razão para temer falta de imparcialidade deve retirar-se (ver Castillo Algar contra Espanha, 28 de outubro de 1998, Relatórios 1998-VIII, ap.45).

Ademais, para que o Tribunal possa inspirar publicamente a confiança indispensável, também se devem ter em conta questões de organização interna (ver Piersack, citado acima, ap.30 (d)).

Nesta linha, a Constituição da República, no artigo 32º, nº 9, estabelece: “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.

Consagra-se, assim, entre nós “o direito fundamental dos cidadãos a que uma causa seja julgada por um tribunal previsto como competente por lei anterior”. No ensinamento de J. Figueiredo Diasa tanto vincula a necessária garantia dos direitos da pessoa, ligada á administração da justiça, à exigência de julgamentos independentes e imparciais e à confiança da comunidade naquela administração[4].

Entre as garantias do processo penal está, pois, o princípio do «juiz natural» ou «juiz legal», cujo alcance é o de proibir o desaforamento das causas criminais. Visa garantir a isenção e imparcialidade da/o juíza/juiz e a confiança geral na objetividade da jurisdição.

São as normas gerais e abstratas contidas nas leis processuais penais e nas leis de organização judiciária que pré-determinam o tribunal competente, a sua composição (singular ou coletivo ou júri) e, especificamente, a juíza, o juiz, ou juízes que intervêm no processo e no julgamento.

O princípio do juiz natural comporta exceções, legalmente consagradas precisamente também com a finalidade de garantir a imparcialidade do julgamento e a regular tramitação do processo penal. “Por isso, naqueles casos em que a imparcialidade é, fundadamente, periclitante, o juiz não pode funcionar no processo. O juiz pessoalmente, e não o tribunal, estará então impedido (judex inhabilis) de funcionar ou pode ser considerado suspeito (judex suspectus)”[5].

O juiz pré-constituído pode afastar-se ou ser apartado do processo se a sua intervenção colocar em causa, séria e gravemente, a própria isenção e a imparcialidade do julgamento. A lei estabelece as concretas situações especiais que inabilitam o juiz para funcionar no processo.

No nosso regime processual penal tal ocorre quando e sempre que ocorram circunstâncias especiais que subjetivamente possam influir na sua isenção e neutralidade no caso concreto. São os impedimentos legalmente firmados que devem ser, necessária e imediatamente, declarados pelo próprio juiz inábil independentemente de qualquer iniciativa ou objeção dos sujeitos processuais.

Outras situações podem ocorrer que sejam suscetíveis de criar dúvidas de importância sobre a capacidade do juiz para, com imparcialidade, conduzir um determinado processo ou julgar a questão penal. “As suspeições baseiam-se em factos menos nítidos em que não se revela tão forte a ligação do resultado do processo com o interesse pessoal do juiz, e por isso a capacidade subjectiva deste não é necessariamente excluída. Mas, de toda a maneira a possibilidade de estabelecer uma ligação entre o interesse pessoal do juiz e o processo, ou as pessoas que nele intervêm é suficiente para suscitar o perigo duma relacionação que ofusque ou perturbe a sua imparcialidade.

Não importa, aliás, que na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa sobretudo considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados. É este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adotar para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade por motivos que constituem fundamento de suspeição[6].

A garantia da imparcialidade da jurisdição penal exige que a função processual e judicante do magistrado judicial seja acautelada através de normas legais que o inabilitem sempre que possa ter qualquer interesse pessoal ou de outra ordem, direto ou indireto, com o processo ou o resultado do pleito, permitindo que seja afastado ou que peça para ser apartado do processo e do julgamento de uma causa e, também assim assegurar a sua imparcialidade e a confiança geral na objetividade da jurisdição.

Quando a imparcialidade da juíza ou juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, a juíza, o juiz não está em condições de «administrar a justiça» no caso concreto.

Estabelecendo as causas de recusa do «juiz natural ou legal», o CPP, no art. 43º (recusas e escusas), nº 1 dispõe:

1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Não basta que o juiz seja imparcial; é também necessário que o pareça. Como sustenta Germano Marques da Silva, a imparcialidade “pode apreciar-se de maneira subjectiva e objectiva. Naquela perspectiva, significa que o juiz deve actuar com serenidade, sem paixão, pré-juízo ou interesse pessoal; nesta, na perspectiva objectiva, que nenhuma suspeita legítima exista no espírito dos que estão sujeitos ao poder judicial”, ou seja, “à imparcialidade íntima das pessoas deve juntar-se a imparcialidade aparente do sistema[7]

Regendo sobre a suspeição do juiz o art. 43º citado, no n.º 4 estatui:

4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.

O juiz legalmente pré-constituído no processo não pode recursar-se de intervir, não lhe assiste o direito de se declarar voluntariamente suspeito. Todavia, como assinala J. Figueiredo Dias "é, (…) um verdadeiro princípio geral de direito, (…): o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não – (…)- enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu"[8].

Os motivos que justificam a recusa podem igualmente constituir fundamento para o juiz pedir a sua escusa, designadamente quando considerar que existem razões para gerar nos interessados o risco de a sua intervenção poder ser olhada, legitimamente, com suspeição.

Como assinala Henriques Gaspar, “O juízo prudencial do tribunal na decisão do pedido será da mesma natureza do que decida um pedido de recusa nos casos em que os fundamentos respeitem à imparcialidade objectiva. Mas o juízo será diverso, e por natureza aproximado do pedido do juiz, se nas razões do pedido de escusa estiverem motivos de natureza pessoal e que sejam susceptíveis de pôr em causa as condições de afirmação da imparcialidade subjectiva"[9].

Diversamente dos impedimentos e ao invés do que sucedia no Código de Processo Penal de 1929 (no art. 112º), o CPP em vigor concentrou os fundamentos da suspeição numa cláusula geral, - motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança - encargando o intérprete de a integrar em cada caso concreto. Assim, as razões que possam levar a afastar a presunção de imparcialidade do juiz natural têm de ser de importância.

Sustenta-se no acórdão de 17-04-2008 deste Supremo Tribunal que “o art. 43.°, n.º 1, do CPP não se contenta com um «qualquer motivo»; ao invés, exige que o motivo seja duplamente qualificado, o que não pode deixar de significar que a suspeição só se deve ter por verificada perante circunstâncias concretas e precisas, consistentes, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente reveladoras de que o juiz deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção”[10].

A seriedade e a gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas; não basta, com efeito, o mero convencimento subjectivo por parte do MP, do arguido, do assistente ou da parte civil, ou do próprio juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição, e também não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que o motivo ou motivos ocorrentes sejam sérios e graves.

Em conformidade com o que vem de dizer-se, resulta que a imparcialidade do juiz comporta duas vertentes:

- a visão do requerente (da recusa) sobre a equidistância e neutralidade do juiz relativamente ao caso concreto, ou o convencimento íntimo do próprio juiz (que pede a escusa) de que pode ser influenciado por dados ou circunstâncias da sua vivência enquanto cidadão;

- a perspetiva do homem comum suposto pela ordem jurídica plasmada no adágio «justice must not only be done, it must also be seen to be done».

Assim e em síntese, a escusa do juiz legalmente pré-determinado, cuja imparcialidade subjetiva se presume, só pode prosperar se preencher um ou os dois parâmetros referidos:

- se a juíza ou juiz tem algum motivo pessoal no processo ou manifestou ou guarda em si alguma razão que possa determina-lo a favorecer ou a desfavorecer um dos interessados no resultado da decisão;

- se a comunidade ou os destinatários da decisão têm razões objetivamente justificadas para não confiar na neutralidade da juíza ou juiz, designadamente por correr o risco de poder ser influenciada/o por algum interesse, dado, pré-juízo ou preconceito a favor ou contra um dos intervenientes na causa.

E exige-se também que os motivos da suspeição revistam importância, isto é, sejam de tal modo sérios e graves que, por si sós, de qualquer perspetiva objetiva, colocam em crise a neutralidade do juiz, apontando claramente para que deva ser apartado do processo que, nos termos da lei, lhe está distribuído.

b. a escusa:

Vejamos o vertente pedido de escusa à luz da interpretação exposta:

i. os motivos invocados:

A C.ª Juíza Conselheira, fundamenta o seu pedido invocando dois motivos:

a) brevíssima relação de avaliação formativa, consistente em ter integrado, há cerca de 11 anos, o júri da discussão da tese de mestrado da Advogada Defensora dos recorrentes;

b) constar do processo parecer subscrito por ex-colega na Faculdade de Direito da Universidade de ……, com quem e seus pais, estabeleceu relacionamento de alguma proximidade (nomeadamente, esteve no casamento e na sua estadia na Bélgica jantou em casa dos segundos).

ii. imparcialidade subjetiva:

A C.ª Juíza Conselheira afirma que os relacionamentos que expõe não afetam a sua capacidade “de apreciar e decidir a questão colocada no presente processo de uma forma imparcial”.

Resulta, pois, confessado que na vertente subjetiva, o relacionamento com a Advogada Defensora bem como com o ex-colega académico e os pais deste, não assumiu tal densidade e importância que a tenham levado a pré-juízos por motivos pessoais ou outros de favoritismo por algum dos sujeitos processuais envolvidos no recurso em referência.

Nem podia ser de outro modo. S Juíza, o juiz é – deve ser – também uma cidadã, um cidadão da comunidade social e do seu tempo que naturalmente, no seu percurso vivencial estabelece um amplo leque de relacionamentos mais ou menos persistentes, próximos ou acidentais, mas que sempre haverão de deixar alguma memória. Mas está – deve estar - profissionalmente treinado e, por isso, especialmente habilitado para ser capaz de, ao julgar e decidir, olvidar os conhecimentos e relacionamentos da sua vida pessoal e particular, cingindo-se exclusivamente aos factos demonstrados (ou não) pelas provas produzidas na audiência e assentando rigorosamente naqueles a aplicação do pertinente regime jurídico.

Admite-se que na perspetiva subjetiva da Ex.mª Requerente, ter de relatar e intervir no julgamento do recurso de revisão que lhe foi distribuído, pode causar-lhe algum desconforto. Todavia o facto de ter sido “professora” da causídica que apresenta a peça recursória e do ex-colega na vida académica, subscritor do parecer junto aos autos. não são motivos suficientemente sérios e graves para questionar a presunção de imparcialidade e, desse modo sustentar o deferimento da pretendida escusa.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de não conceder a escusa fundada em relacionamento interpessoal que não seja de amizade muito intensa. Assim, no Ac. de 10-05-2018 entendeu-se: “O Desembargador BB pode estar interessado em não intervir no julgamento do recurso em relação ao qual pede escusa, mas esse não é um interesse legalmente protegido. Só o interesse público, não o particular do juiz que pede escusa, tem aqui protecção”.

“A consideração do alegado relacionamento, algo distante, como fundamento bastante de escusa conduziria ou poderia conduzir à criação de bloqueios insuportáveis para o sistema. Designadamente, seria caso para perguntar quem julgaria o processo por crime cometido por juiz das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, quando esse julgamento é da competência dessas secções e, em virtude da estreita convivência desses juízes entre si, que, além do mais, se reúnem amiúde em pleno, acaba ou pode acabar por se criar entre todos uma relação análoga à que vem alegada[11].

A requerida escusa parece informada por “comportamento escrupuloso e isento necessariamente fundante de um juízo de imparcialidade sobre a atuação” da Ex.mª Juíza Conselheira, cisando “que não existem quaisquer fundamentos sérios e graves” que possam justificar “quaisquer juízos de desconfiança sobre a sua imparcialidade no tratamento da causa que lhe foi distribuída[12].

Consequentemente, não se observando, na situação descrita no requerimento, factos suficientes que possam, em concreto, constituir motivo de especial gravidade que possa suscitar a convicção de que o relacionamento denunciado seja suscetível de condicionar a equidistância e isenção da função judicante da C.ª Juíza Conselheira Requerente para decidir o recurso em causa, conclui-se pela inexistência de evidências que permitam recusar a presunção legal de imparcialidade subjetiva (na expressão do TEDH –vd. supra) e, consequentemente, para derrogar a aplicação, no caso, do principio do “juiz natural ou legal”.

iii. vertente objetiva:

Afastado o risco de falta de isenção na vertente subjetiva impõe-se averiguar se o relacionamento descrito é suficientemente intenso e marcante para criar o risco, também necessariamente sério e grave, do não reconhecimento público da sua imparcialidade. Isto é, se na perspetiva dos arguidos, do Ministério Público e do “bonus cives”, a pretérita relação formativa com a Advogada dos recorrentes e a convivência profissional e pessoal com o Ilustre autor do parecer e seus pais é suficiente para que, justificada e razoavelmente, possa duvidar-se da neutralidade da C.ª Juíza Conselheira para, como relatora, formar parte do coletivo que vai julgar aquele recurso de revisão.

Como se referiu, na ponderação da imparcialidade na sua vertente objetiva, não releva a convicção da juíza ou juiz requerente e também não é suficiente a constatação de um qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a neutralidade da/o julgador/a. Exige-se que o motivo ou motivos sejam tão sérios e graves que a intervenção da juíza ou juiz no processo que legalmente lhe está distribuído, olhada do exterior (pelos sujeitos processuais ou pela comunidade), se apresenta ou pode ter-se por suspeita.

“Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente … a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador[13].

No caso, o relacionamento pretérito da C.ª Juíza Conselheira com a Advogada Defensora não permite aos arguidos recorrentes duvidar que o recurso vai ser julgado e decidido de forma isenta e com equidistância.

Desde logo, aquele relacionamento académico, tal como vem descrito, ademais de já distante – há cerca de 11 anos - e quando a Ex.mª Requerente não era ainda Juíza, foi breve, circunscrito a ato de avaliação para a obtenção de um determinado grau.  Não se elevando ao patamar da amizade pessoal, não vindo referido, por exemplo, que frequentassem reciprocamente o espaço familiar, que partilhassem bens ou interesses, como seja, viagens habitualmente em conjunto, férias, atividades desportivas e de lazer, publicações em coautoria, associativismo cívico, etc. Ou que tenha entre ambas ou com até algum parente em linha reta, tenha havido contratos de mandato ou outros.

Diferentemente haveria que ajuizar se viesse denunciada relação de inimizade pessoal ou funcional com algum dos arguidos ou qualquer outro episódio que demonstrasse “hostilidade ou má vontade por motivos pessoais” (na expressão do TEDH -vd. supra). Nessa hipotética circunstância então sim que os arguidos poderiam razoavelmente duvidar da imparcialidade ou mesmo temer pela não neutralidade da C.ª Conselheira Requerente. Mas não é esse o relacionamento interpessoal descrito.

Relativamente ao Prof. subscritor do parecer – do qual deixou de ser colega há mais de 7 anos – também não é por terem sido docentes no mesmo estabelecimento de ensino superior que os sujeitos processuais têm motivos para, objetivamente e em boa fé, duvidar séria e gravemente, da imparcialidade da Ex.mª Juíza Conselheira Requerente. Na sua vida académica, não se coibiu certamente de assumir posições doutrinárias próprias, concordantes ou discordantes das dos respetivos colegas.

Acresce que a composição plural do Tribunal que vai julgar o recurso, que é exclusivamente circunscrito à aplicação do direito, também oferece garantias de imparcialidade objetiva.

Como se sustenta no Ac. de 24-09-2003[14], deste Supremo Tribunal: “Aliás, no que respeita a uma eventual gestação da desconfiança que se invoca como possível, não se pode de modo nenhum minimizar nem ignorar que a decisão a proferir será do colectivo de Desembargadores, o que natural e consequentemente esboroa, deitando de todo em todo por terra, toda uma eventual e sempre possível desconfiança.

Uma desconfiança que, a aceitar-se como viável, relevante e consequente no caso em concreto, não deixaria de abrir todo um precedente em termos de uma generalização de efeitos incontornáveis, porquanto nos tempos que correm, e no concreto dos dias de hoje, os Magistrados se vêem cada vez mais confrontados com a presença frequente de condiscípulos, de vizinhos, de conhecidos e amigos, com os seus casos e situações de vida, o que natural, normal e humanamente decorre da própria convivência diária e do desenrolar "in fieri" da própria vida, sendo que um Juiz não é necessariamente um eremita em ascese de função. O que de todo em todo se consigna”.

Se a intervenção do Juiz relator é mais densa e relevante na estruturação e fundamentação do acórdão, nenhuma Juíza ou Juiz Conselheiro adjunto acordará numa decisão – máxime quanto ao dispositivo – que não tenha por materialmente justa e juridicamente correta.

Do prisma do «bonus cives», da cidadão ou cidadão suposto pela ordem jurídica, que exige e se revê numa juíza ou juiz objetivo e equidistante, também não se apresentam factos ou razões que possam constituir motivo sério e grave para que, exteriormente, se possa considerar a possibilidade de a intervenção neste processo da Ex.mª Requerente não vai pautar-se pelos cânones da estrita imparcialidade.

Na Ac. de 28/03/2019 citado, relatado pela C.ª Conselheira Requerente, conclui-se que “o relacionamento ocasional, profissional e esporádico que [o Juiz Conselheiro ali Requerentes] manteve com o arguido, mesmo no entendimento do homem médio, não parece adequado a suscitar quaisquer dúvidas sobre a imparcialidade e independência com que irá proceder à análise do recurso que lhe foi distribuído”.

Se assim é com os arguidos não pode ser menos com o respetivo Advogada e com os subscritores de quaisquer pareceres juntos ao processo.

Mais ainda na época presente em que a igualdade de todos e cada cidadã/os perante a lei e a justiça tem sido reafirmada e, se cabe dizer-se, reforçada. Os conhecimentos, os relacionamentos e a condição profissional da/o arguida/o, seja ela qual for, é absolutamente irrelevante e a comunidade tem consciência de que este valor da plena igualdade horizontal perante a justiça penal é sagrado e efetivamente aplicado nos nossos tribunais.

Consequentemente, também pelo lado da vertente objetiva não se deteta a existência de um motivo, sério e grave, que permita considerar que a intervenção neste processo da Ex.mª Requerente possa suscitar nos intervenientes processuais e na generalidade das pessoas da comunidade fundada desconfiança quanto à sua imparcialidade.

Deve observar-se que a hipotética procedência da peticionada escusa com o fundamento aduzido cercearia potencial e talvez drasticamente a judicatura do Requerente na medida em poderia ver-se apartada dos recursos em que advogassem seus ex-alunos que tivesse examinado e de processos nos quais tivesse intervenção qualquer ex-colega docente das Faculdades onde ensinou. E certamente jamais poderia deixar de pedir escusa e acabar apartada de intervir em qualquer processo em que fosse requerente, denunciante, assistente ou simplesmente ofendido ou também denunciado ou arguido qualquer dos colegas Juízes Conselheiros.

Consequentemente, também não se deteta nos fundamentos invocados a existência de motivo, sério e grave, que permita considerar que a intervenção neste processo da Cª Juíza Conselheira Requerente possa suscitar nos intervenientes processuais e na generalidade das pessoas da comunidade, fundada desconfiança quanto à sua imparcialidade.

Não ocorre, pois, no caso concreto, legítimo fundamento para a requerida escusa.


III. DECISÃO

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, na 3.ª Secção, acorda indeferir o pedido da C.ª Juíza Conselheira CC, não a escusando de intervir como relatora no julgamento do recurso de revisão interposto no processo n.º 213/12.2TELSB-U.S1.


Sem custas.


Lisboa 14 de Abril de 2021


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)

Atesto o voto de conformidade da C.ª Juíza Conselheira Maria Teresa Féria de Almeida – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[15].

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira adjunta)

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[1] Pelo período de 6 anos e 6 meses
[2] A arguida Sara na pena única de 4 anos e 2 meses com execução suspensa por igual período:
O arguido Paulo na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.
[3] Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um
Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de
qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus
direitos e obrigações de caráter civil.
[4] Direito Processual Penal, 1º vol. pag322.
[5] M. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, pag. 234.
[6] M. Cavaleiro de Ferreira, ob. cit., pag. 237.
[7] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 2000, página 233.
[8] Ob. cit pag. 320.
[9] Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2ª ed. 2016, pág. 130.
[10] Proc. n.º 1208/08, da 3.a Secção; no mesmo sentido Ac. de 13-04-2016, proc. 324/14.0TELSB-Y.L1-A.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[11] Proc. 4592/13.6TDPRT.P1-A.S1-A, www. dgsi.pt.
[12] Ac. STJ de 28/03/2019 (de que foi relatora a Ex.mª Requerente), proc. 27/16.0YGLSB-B, in www.dgsi.pt.
[13] Ac. STL de 08-11-2017, proc. 27/16.0YGLSB-A, www.dgsi.pt.
[14] Proc. 03P2156, www.dgsi.pt
[15] Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)