AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONSTITUIÇÃO
REQUISITOS
FRAÇÃO AUTÓNOMA
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO
USUCAPIÃO
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
COMPROPRIEDADE
PARTES COMUNS
Sumário


I. A autoridade de caso julgado é hoje reconhecida à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas.
II. Assim, não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo.
III. A única forma reconhecida pelo nosso direito de fazer incidir, sobre o mesmo edifício, direitos de propriedade individualizados sobre frações distintas do prédio, é a propriedade horizontal.
IV. Para que a propriedade horizontal possa ser constituída por decisão judicial impõe-se que, a par dos requisitos civis previstos nos art.ºs 1414º e 1415.º do Código Civil, se verifiquem os correspondentes requisitos administrativos.
V. É possível a aquisição, por usucapião, de uma fracção autónoma desde que se preencham ou verifiquem os pressupostos atinentes à propriedade horizontal enunciados nos artigos 1414º e 1415º, do CCiv.
VI. … para além de que, para se adquirir uma fracção autónoma de prédio em propriedade horizontal, por usucapião, é preciso não apenas a existência da posse relativamente ao direito de propriedade sobre essa fracção, mas igualmente a actuação com corpus e animus de comproprietário (com a convicção de ser comproprietário das partes comuns, nos termos e para os efeitos do artigo 1420.º do Código Civil).
VII. Reconhecida e confirmada numa acção (em que A pede o reconhecimento da aquisição do  direito de propriedade por usucapião sobre uma fracção) a existência de posse, com todas as características imprescindíveis à afirmação daquela forma originária de aquisição de direitos, tal matéria possessória, por força da autoridade de caso julgado, pode ser usada em posterior acção entre as mesmas partes e em que o mesmo A peticiona a aquisição daquele direito de propriedade sobre aquela fracção, mas em termos de propriedade horizontal.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível



I – RELATÓRIO


AA, BB e CC, intentaram acção declarativa, com processo comum, contra DD, formulando os seguintes pedidos:

«(a) Declarar-se o 1º e 2º Autores como proprietários e o 3º Autor como usufrutuário do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial …. sob o nº …13 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº ….92, da freguesia ......., e a ocupação da respectiva mansarda por parte da Ré como sendo ilegítima e abusiva;

(b) Condenar-se a Ré a reconhecer os referidos direitos dos Autores sobre o prédio identificado no alínea anterior e a restituir-lhes a respectiva mansarda livre e devoluta de pessoas e bens;

(c)  Condenar-se a Ré a pagar ao 3º Autor as seguintes quantias:

a.  € 12.500,00, correspondentes aos meses de Janeiro a Outubro de 2019;

b.  € 1.250,00 por cada mês decorrido após Outubro de 2019 e até efectiva desocupação do imóvel;

c.  Os juros de mora à taxa legal, vencidos e que se venham a vencer desde o final de cada mês e até efectivo e integral pagamento».

Para tanto, alegaram, em síntese, que os 1.º e 2.º AA. são proprietários e o 3.º A. usufrutuário do prédio referido, sendo que a R. ocupa indevidamente a mansarda (4.º andar) desse prédio e recusa-se a desocupá-la, impedindo o 3.º A. de obter o rendimento decorrente do arrendamento da mesma.

Referiram, ainda, que a R. interpôs uma acção contra os AA. (Proc. n.º 14588/16...... do Juízo Central Cível …. – J..), pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre a referida mansarda (4.º andar), por o ter adquirido por usucapião, tendo tal acção sido julgada improcedente por sentença de 19.12.2018, transitada em julgado.


A R. contestou, pronunciando-se pela improcedência da acção, e deduziu reconvenção contra os AA., formulando os seguintes pedidos:

«I - Reconhecido e declarado que:

a) a Reconvinte exerce sobre o 4o andar do prédio sito na Rua do ......., n° ..., em ….., desde abril de 1975, posse não titulada (1259. ° do CC), de má-fé (artigo01260. ° n.°s 1 e 2), pacífica (artigo0 1261.°) e pública (artigo0 1262.°), posse essa adquirida nos termos da ai. a) do artigo0 1263. ° do CC, e que o avô dos Io e 2o AA. e pai do 3°A. perdeu decorrido um ano após o início da da A. (artigo01267. °n.° l ai. d) e n.° 2);

b) a Reconvinte adquiriu a titularidade do correspondente direito de propriedade horizontal, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse referido no n.° anterior (artigos 1287.°, 1288.°, 1296.°do CCiv.);

c) o prédio sito na Rua do ......., n° ..., em ….., descrito na Conservatória do Registo Predial ..... sob a ficha … da freguesia ......... e inscrito na matriz predial urbana da freguesia ............... sob a ficha …, tem a área total de 441,10m2, sendo a área coberta (correspondente à de implantação do edifício) de 163,856m2 e a área descoberta de 277,244 m2;

d) e é constituído por cinco pisos e cinco fogos, um por cada piso, que constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para a escada comum e para o hall com porta de acesso à via pública, sem prejuízo do que vier a apurar-se em face da requerida e protestada juntar certidão do MOD. 1 do IMI n° ….532 de ...12.2012, com a ficha de avaliação ….223 e de quanto venha a resultar da certificação requerida à Câmara Municipal ..... em conformidade com o disposto nos artigos 4o e 62º a 66º do RJUEU, aprovado pelo DL 555/99 de 16/12, alterado pelo DL 177/2001 de 4 de Junho.

Pelo que,

e) em resultado da conjugação dos referidos artigos 1414º, 1415º e, também, do 1418º, todos do CCiv. - cujos requisitos se deixaram supra alegados e demonstrados e aqui se consideram reproduzidos - e, bem assim, da comprovação dos requisitos técnicos e administrativos, deverá ser declarada a constituição da propriedade horizontal, com a constituição de cinco fracções autónomas, todas com entrada pelo n.º … da Rua do ......., assim constituídas:

Fracção “A” Correspondente ao rés-do-chão, destinada a habitação, com a área de 139 m2, a permilagem de 200,000 e o valor de € 102.230,80

Fracção “B” Correspondente ao Io andar, destinada a habitação, com a área de 148,50m2, a permilagem de 200,000 e o valor de € 103.398,05

Fracção “C” Correspondente ao 2 o andar, destinada a habitação, com a área de 148,50m2, a permilagem de 200,000 e o valor de € 103.398,05

Fracção “D” Correspondente ao 3oandar, destinada a habitação, com a área de 149,50m2, a permilagem de 200,000 e o valor de € 104.047,65

Fracção “E” Correspondente ao 4 o andar, com a área de 138m2, a permilagem de 200,000 e o valor de € 96.597,55

Sendo as partes comuns as referidas no artigo 1421º, nº 1, CCiv.

II. Serem os AA. condenados a reconhecer que a Reconvinte adquiriu, relativamente à fracção “E” (com a configuração, área e permilagem acima descritas e sem prejuízo das eventuais alterações que decorram da certificação camarária por que se aguarda), correspondente ao 4º andar do prédio sito na Rua do ......., nº …, em ….., a titularidade do correspondente direito de propriedade horizontal, por usucapião.

III. Ordenados os actos registrais decorrentes desses reconhecimento e declaração e o cancelamento de todas as inscrições registrais e matriciais que se mostrem contrárias ou incompatíveis com essa titularidade».

Para tanto, alegou, em suma, que:

-     O acórdão do Tribunal da Relação ….., proferido no âmbito do processo identificado pelos AA., concluiu já que: «(...) a A. exerceu sobre o aludido 4o andar, desde abril de 1975, posse não titulada (1259.° do CC), de má fé (artigo0 1260.°n.°sl e 2), pacífica (artigo 1261.°) e pública (artigo 1262. °), posse essa adquirida nos termos da ai. a) do artigo01263. ° do CC, e que o pai do 1. °R. perdeu decorrido um ano após o início da da A. (artigo01267. °n° 1 ai. d) e n.° 2)» e que «poderia, assim, a A. adquirir a titularidade do correspondente direito, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse e reportada ao seu início (artigos 1287.°, 1288.°, 1296."do CC)», o que está abrangido pela força de caso julgado do referido acórdão;

-  a improcedência da acção mencionada pelos AA. decorreu, apenas, da circunstância de se ter entendido que deveria ter sido peticionado o reconhecimento da titularidade da mansarda em termos de reconhecimento de um direito de propriedade horizontal e em termos de ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o artigo 1418.º n.º 1, do CC, como sejam a individualização de cada fracção e o seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem do valor do prédio;

-    estão reunidos os pressupostos dos arts. 1414.º e 1415.º do CC, nada impedindo a constituição da propriedade horizontal, estruturada em cinco fracções autónomas.


Os AA. apresentaram réplica, onde aproveitaram para se pronunciarem sobre as excepções deduzidas pela R. na contestação, defendendo que:

-   os factos julgados provados na sentença proferida no Proc. n.º 14588/16........ e confirmamos pelo acórdão do TR.. não impedem, antes sustentam, os direitos dos AA., sendo que as considerações feitas nesse acórdão a respeito da posse da R. são jurídicas e não vinculativas, sobre elas não recaindo a força do caso jugado;

-    os pedidos reconvencionais deduzidos ofendem o caso julgado formado no processo referido, uma vez que o pedido que a ora R. formulou naquele processo é o mesmo que ora formula de reconhecimento do direito de propriedade sobre ao 4.º andar do prédio sub judice, sendo também as mesmas as partes e a causa de pedir (usucapião), pedido esse que já foi julgado improcedente;

- os pedidos reconvencionais sempre deverão improceder, por inexistência de posse por parte da R. e por não estarem preenchidos os requisitos civis e administrativos da constituição da propriedade horizontal.


Por despacho de 14.07.2020 (fls. 1038), foi dada oportunidade à R. de se pronunciar sobre as excepções deduzidas pelos AA. aos pedidos reconvencionais, o que fez, defendendo que o caso julgado incide sobre a decisão e seus fundamentos, sendo que a improcedência do pedido deduzido no Proc. n.º 14588/16........ apenas obsta à formulação do mesmo pedido, mas não impede a R. de formular, nestes autos, o pedido reconvencional que formulou.


Por se entender que o processo continha todos os elementos necessários para conhecimento da excepção do caso julgado deduzida por ambas as partes e prolação de uma decisão de mérito no despacho saneador, foi realizada audiência prévia e facultada às partes a respectiva discussão de facto e de direito, vindo a sentenciar-se a causa nos seguintes termos:

Em face de todo o exposto, decido:

4.1.  julgar a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo a R. dos pedidos contra si formulados;

4.2.  julgar a reconvenção totalmente procedente, por provada e, em consequência:

4.2.1. Reconheço e declaro que:

a) a R. exerce sobre o 4.° andar (mansarda) do prédio urbano sito na Rua do ......., letras ..., n.° …, freguesia de ........., concelho ….., descrito na CRP ….. sob o n.° …13 e inscrito, actualmente, na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia........, desde abril de 1975, posse não titulada (1259.° do CC), de má-fé (artigo0 1260.°, n.°s 1 e 2), pacífica (artigo0 1261.°) e pública (artigo0 1262.°), posse essa adquirida nos termos da ai. a) do artigo0 1263.° do CC, e que o avô dos Io e 2o AA. e pai do 3o A. perdeu decorrido um ano após o início da da A. (artigo01267.° n.° 1 ai. d) e n.° 2);

b) a R. adquiriu a titularidade do correspondente direito de propriedade horizontal, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse referida na alínea anterior (artigos 1287.°, 1288.°, 1296.° do CCiv.), ou seja, em abril de 1995;

c) o prédio identificado na al. a) tem a área total de 441,10m2, sendo a área coberta (correspondente à de implantação do edifício) de 163,856m2 e a área descoberta de 277,244 m2;

d) o prédio identificado na ai. a) é constituído por cinco pisos e cinco divisões ou fogos, um por cada piso (rés-do-chão, 1.°, 2.° e 3.° andares e mansarda) e estes constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para a escada comum e para o hall com porta de acesso à via pública;

4.2.2. Declaro a constituição da propriedade horizontal do prédio urbano sito na Rua......., letras ..., n.º …, freguesia........, concelho….., descrito na CRP….. sob o n.º …13 e inscrito, actualmente, na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia ..............., com cinco fracções autónomas, todas com entrada pelo n.º … da Rua  ......., sendo:

Fracção “A”, correspondente ao rés-do-chão, Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 4; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 277,2440m2; Área bruta privativa: 139,0000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 102.230,80 Determinado no ano: 2018

Fracção “B”, correspondente ao 1.º andar, Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 5; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 148,5000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 103.398,05 Determinado no ano: 2018

Fracção “C”, correspondente ao 2.º andar, Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 5; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 148,5000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 103.398,05 Determinado no ano: 2018

Fracção “D”, correspondente ao 3.º andar, Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 5; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 149,5000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 104.047,65 Determinado no ano: 2018

Fracção “E”, correspondente ao 4.º andar, Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 1; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracçã0: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 138,0000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 96.597,55 Determinado no ano: 2018;

4.2.3. Condeno os AA. a reconhecer que a R. adquiriu a titularidade do direito de propriedade horizontal, por usucapião, da supra referida fracção autónoma designada “E”;

4.2.4. Determino que sejam efectuados todos os actos registais decorrentes dos reconhecimentos e declarações constantes do dispositivo desta sentença, bem como o cancelamento de todas as inscrições registrais e matriciais que se mostrem contrárias ou incompatíveis com esses reconhecimentos e declarações e que não sejam necessárias para assegurar o trato sucessivo.”.


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Os Autores AA, BB e CC interpuseram recurso de revista per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça (artº 678º CPC), tendo apresentado alegações que rematam com as seguintes


CONCLUSÕES:

1. Vem o presente recurso do despacho-saneador sentença de 20.1.2021 que julgou, por um lado, improcedente a acção de reivindicação, com pedido de indemnização, instaurada pelos ora Recorrentes relativa ao prédio situado em …. e melhor identificado nos autos, e, por outro lado, julgou procedente o pedido reconvencional apresentado pela aqui Recorrida, para reconhecimento do direito de propriedade sobre o 4º andar desse mesmo prédio, por usucapião.

2. Como fundamento dessa decisão, o Tribunal a quo indicou a força ou autoridade do caso julgado dos fundamentos, quer de direito, quer de facto, vertidos no acórdão de 10.10.2019 proferido pelo Tribunal da Relação ….. em anterior acção instaurada pela aqui Recorrida contra os aqui Recorrentes (Proc.º 14588/16........), o qual, confirmando a decisão ali proferida em primeira instância, rejeitou o pedido da Recorrida, então Autora, de reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo 4º andar, com fundamento em usucapião.


[Do caso julgado]


3. A força do caso julgado decorrente do referido acórdão de 10.10.2019 não tem, porém, a extensão e os efeitos preconizados na sentença recorrida, que violou o artigo 621º do Código de Processo Civil,

4. até porque, conforme o Prof. Miguel Teixeira de Sousa começa por alertar no seu parecer junto a este recurso, seria estranho que, de duas decisões desfavoráveis proferidas contra a então Demandante (e agora Demandada), pudesse resultar afinal um caso julgado desfavorável aos então Demandados (e agora Demandantes).

5. Interpretando o referido artigo 621º do Código de Processo Civil, a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores entende que a autoridade do caso julgado abrange os fundamentos que constituem o antecedente lógico e necessário dessa mesma decisão.

6. Por outras palavras, e na esteira do referido parecer, para além da parte decisória propriamente dita, a força do caso julgado, apenas incluirá as questões preliminares que constituam antecedente lógico e indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, isto é, aquelas que a sentença tenha tido necessariamente de resolver como premissa da conclusão firmada, não abrangendo as que não tenham esse carácter de antecedente e necessidade

7. Ora, na anterior acção instaurada pela aqui Recorrida, enquanto que a sentença de primeira instância teve como antecedentes lógicos da decisão de improcedência quer a falta de posse pública, quer a falta de posse por correspondência ao direito de compropriedade sobre as partes comuns do edifício, já o acórdão da Relação….., teve como antecedente lógico da decisão da improcedência da acção a circunstância de a Recorrida, então Autora, não ter formulado o pedido de constituição da propriedade horizontal do imóvel.

8. Assim, conforme refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, “não pode deixar de ter de se concluir que apenas a falta da formulação do pedido de constituição do imóvel no regime da propriedade horizontal fica abrangida pelo caso julgado da decisão de improcedência proferida pela Relação…... A decisão proferida pela Relação  ….. foi uma decisão de improcedência e o seu fundamento ou antecedente lógico necessário foi a falta de formulação desse pedido” (cf. pág. 8 do parecer junto com estas alegações).

9. Ou seja, não ficam abrangidas pelo caso julgado as considerações vertidas no referido acórdão de 10.10.2019 a respeito da posse da Recorrida, por não constituírem fundamento da decisão de improcedência, sendo que só esta solução garante a protecção das partes contra formulações aleatórias dos Tribunais e efeitos inesperados das decisões judiciais.

10. Com efeito, e por um lado, uma vez que face à ausência de formulação daquele pedido para constituição da propriedade horizontal, o Tribunal da Relação podia nem sequer ter apreciado a existência de posse por parte da Recorrida, por se tratar de questão prejudicada (artigos 608º, nº2 ex vi 663º, nº2 do Código de Processo Civil), importa concluir que se o caso julgado abrangesse todos os fundamentos da decisão, como acabou por erradamente preconizar a sentença recorrida, e não apenas aquele ou aqueles que são antecedente lógico e indispensável da decisão, as partes ficariam sujeitas à aleatoriedade de o tribunal ter, sem o dever, conhecido de determinadas questões que ficaram prejudicadas relativamente a outras.

11. Por outro lado, não tendo os Recorrentes legitimidade para reagir para o Supremo Tribunal de Justiça contra as considerações vertidas a respeito da posse da Recorrida do acórdão de 10.10.2019 por serem vencedores dessa decisão (cf. artigo 631º do Código de Processo Civil), não podem agora ser surpreendidos e vinculados por uma fundamentação contra a qual não puderam reagir e que extravase do fundamento de improcedência utilizado por essa Relação” (pág. 12 do parecer), no limite sob pena de violação do princípio de tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

12. Não tendo os fundamentos, quer de direito, quer de facto, o alcance de caso julgado que lhe é apontado pela sentença recorrida, importa agora concluir que, mesmo que fossem verdadeiros todos os factos articulados pela Recorrida na sua reconvenção, o pedido reconvencional não tem condições de procedência e que, face aos documentos autênticos juntos com os articulados, o pedido de reivindicação formulado pelos Recorrentes deve proceder,

13. conclusões que igualmente se imporiam à luz da factualidade vertida no acórdão de 10.10.2019 para que remete o Facto nº2 da sentença recorrida, caso se entendesse que essa factualidade ficou abrangida pela força do caso julgado decorrente desse acórdão.

[Da ausência de posse relativa a um direito de compropriedade sobre as partes comuns por falta de corpus e de animus]

14. Atento o disposto no artigo 1420º, nº 1 do Código Civil e conforme jurisprudência consolidada e citada nestas alegações, tanto a constituição da propriedade horizontal por usucapião, como a aquisição de fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal, dependem da situação possessória correspondente ao exercício de um direito de propriedade sobre fracção autónoma de um edifício em propriedade horizontal e de um direito de compropriedade sobre as partes comuns e da sua invocação pelo possuidor.

15. A actuação correspondente ao direito de propriedade horizontal implica,assim, necessariamente, não só exercício de poderes sobre uma ou mais fracções e sobre as partes comuns, mas também, no caso de as fracções não pertencerem todas à mesma pessoa, o estabelecimento e manutenção de relações condominiais.

16. Ora, compulsado o pedido reconvencional, verifica-se, desde logo, que as poucas actuações descritas pela Recorrida sobre as partes comuns reportam-se unicamente a pequenas manutenções, e quase todas, muito sintomaticamente, realizadas no último piso do prédio, designadamente na clarabóia e na cobertura, isto é, no exclusivo interesse da mesma enquanto ocupante do 4.º andar, directamente exposta àquelas partes do prédio, e nunca como comproprietária das partes comuns (cf. artigo 62º da contestação).

17. Mais ainda, a Recorrida pura e simplesmente não alegou que fez as poucas reparações e limpezas que indica na convicção ou no animus de ser comproprietária das partes comuns.

18. Para além de não ter invocado o exercício de poderes sobre partes comuns com a convicção de ter actuado enquanto de comproprietária, acresce ainda que, e não menos relevante, a Recorrida também não alegou ter estabelecido ou tido intervenção em relações condominiais, designadamente reuniões ou quaisquer outros contactos para administração das partes comuns, com os proprietários dos outros andares, isto é, o pai e avô dos Recorrentes e posteriormente os próprios Recorrentes.

19. Mais: a Recorrida também não alegou um único facto sobre os encargos relativos às partes comuns, omitindo assim outro traço essencial de actuação enquanto condómino, isto é, o de pagar, nos termos do artigo 1424.º do Código Civil, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e os serviços de interesse comum em proporção do valor da sua fracção. 

20. De resto, tão pouco da factualidade dada como provada no acórdão de 10.10.2019a queserefereoFacton.º2 da “II– FUNDAMENTAÇÃODEFACTO” da sentença recorrida resulta demonstrada a existência do corpus e animus da Recorrida relativos a um direito de compropriedade sobre as partes comuns.

21. Bem pelo contrário, dessa factualidade resulta, não só, que as sucessivas obras e várias intervenções de manutenção, transformação e recuperação da totalidade do edifício, incluindo o 4º andar, pátios e jardins, foram sempre decididas e suportadas, ao longo dos últimos 70 anos, pelo avô do 1º e 2º Recorrentes e pai do 3º Recorrente que desembolsaram vários milhares de euros (alíneas vv) a yy) e bbb) a jjj) do acórdão), mas também que todos os encargos com as partes comuns sempre foram suportados pelo avô do 1º e 2º Recorrentes e pai do 3º Recorrente e igualmente por estes (cf. alíneas zz) e iii) do acórdão).

22. Em síntese, nem da factualidade alegada pela Recorrida na reconvenção (ainda que fosse verdadeira) nem da factualidade vertida no acórdão de 10.10.2019 (ainda que tivesse força de caso julgado) resulta a existência de posse da Recorrida em termos de direito de compropriedade sobre as partes comuns do prédio dos autos, tudo conforme os Recorrentes invocaram em sede de defesa ao pedido reconvencional, sem prejuízo da alegação de novos factos, designadamente nos artigos 114º a 120º da réplica, o que a sentença recorrida pura e simplesmente desconsiderou, com o que violou o citado artigo 1420º do Código Civil.

23. Quando muito a conduta da Recorrida e da sua mãe corresponderia a uma a um «direito de habitação» (cf. artigo 1484º do Código Civil), o qual não é susceptível de usucapião, conforme decorre do artigo 1293º, alínea b) do Código Civil.

[Da ausência de posse relativa ao direito de propriedade sobre o 4º andar por falta de animus]

24. Atento o disposto nos artigos 1251º e 1253º Código Civil, a posse exige, para além do exercício de poderes de facto sobre essa coisa, a convicção de se agir enquanto titular de um direito real sobre a mesma.

25. Ora, outro aspecto totalmente ignorado pela sentença recorrida, apesar de expressamente alegado na defesa do pedido reconvencional (cf., designadamente, artigos 98º e 99º da réplica) prende-se com o facto de tanto quanto resulta da própria alegação da Recorrida, não ter sido esta, mas a sua mãe quem, após regresso forçado de Angola, ocupou o 4º andar do prédio dos autos para aí se instalar com a Recorrida (cf. artigos 152º a 161º da contestação),

26. que, na altura, era menor de idade e, como tal, carecia de capacidade de exercício de direitos (cf. assento de nascimento de fls. 1030), sem que tenha sido invocado qualquer facto a respeito de como adquiriu a convicção de passar a agir enquanto proprietária, concretamente a cedência da posse pela sua mãe a seu favor.

27. Tão pouco da factualidade dada como provada no acórdão de 10.10.2019 a que se refere o Facto n.º2 da sentença recorrida resulta que a Recorrida tenha actuado com o necessário animus de proprietária relativa ao 4.º andar do prédio dos autos, desde logo porque a invocada detenção do 4º andar pela Recorrida com origem na ocupação que a sua mãe fez em Abril de 1975, estando o imóvel ocupado por outra pessoa (cf., em especial, alíneas k) a m) dos factos vertidos no acórdão), não permite gerar qualquer consciência ou intenção de ser proprietária.

28. Acresce que, efectivamente, e nos termos que resultam das alíneas g), qq), rr) e kk) da factualidade dada como provada no acórdão de 10.10.2019, em Fevereiro de 1975, o avô do 1º e 2º Recorrentes e pai do 3º Recorrente, deu de arrendamento o4º andar do  prédio dos autos a EE, contrato no qual veio a suceder, na posição de locador e por morte do primitivo locador, o 3º Recorrente (cf. alínea jj) da factualidade assente) que, mais tarde fez cessar o referido arrendamento por sentença decretada em Janeiro de 2011 (alínea kk).

29. Ora, nos termos dos artigos 1252º, nº 1 e 1253º alínea c) do Código Civil, o referido inquilino é havido como detentor ou possuidor a título precário do 4º andar, em nome do senhorio, isto é, primeiro em nome do pai e avô dos Recorrentes e depois em nome do 3º Recorrente, em cuja esfera jurídica se produzem os efeitos da posse,

30. pelo que é forçoso considerar que os actos materiais contemporâneos praticados pela Recorrida e pela sua mãe sobre o mesmo imóvel configuram um mera detenção, dada a impossibilidade haver duas posses em simultâneo sobre o mesmo imóvel, pelo menos até ao ano de 2011 em que cessou o referido contrato de arrendamento.

31. Além disso, e sem prejuízo da factualidade alegada na réplica e nos artigos 142º e 145º a 147º da petição inicial, sabendo a Recorrida (e a sua mãe) quem era o proprietário do andar que ocupava, o qual arcava com todas as despesas associadas a essa propriedade e às partes comuns (cf. alíneas nn), oo), tt), vv) a zz), bbb) a lll) dos factos dados como provados no acórdão de 10.10.2019), é manifesto que, também por estas razões, aquela nunca poderia ter agido na convicção de exercer um direito próprio (de proprietária do 4º andar) e de que não prejudicava terceiros,

32. até porque sendo a Recorrida proprietária de uma moradia em ……., implementada num terreno com a área de 360m2 (cf. alínea mm) conhece bem as formalidades e responsabilidades bem onerosas associadas à aquisição da qualidade de proprietário.

33. Em síntese, nem da factualidade alegada pela Recorrida na reconvenção (ainda que fosse verdadeira), nem da factualidade vertida no acórdão de 10.10.2019 (ainda que tivesse força de caso julgado), resulta que tenha actuado com convicção ou animus de proprietária relativa ao 4º andar do prédio dos autos, nos termos do artigo 1251º do Código Civil,

34. sendo, quando muito, uma mera detentora ou possuidora a título precário que não pode adquirir por usucapião, conforme disposto na alínea a) do artigo 1253º e no artigo 1290º do Código Civil,

35. tudo conforme os Recorrentes invocaram em sede de defesa ao pedido reconvencional, sem prejuízo da alegação de novos factos, designadamente nos artigos 142º, 145º a 147.º e 98º e 99º da réplica, o que a sentença recorrida pura e simplesmente desconsiderou, com o que violou os citados artigos 1251º, 1253º e 1290º do Código Civil.

[Da ausência de posse pública em termos de direito de propriedade e em termos de direito de compropriedade]

36. Nos termos do artigo 1262.º do Código Civil, «posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados», sendo que por força do artigo 1297.º do mesmo diploma apenas a posse pública releva para efeitos de usucapião.

37. Interpretando as referidas disposições legais, a jurisprudência e a doutrina vêm defendendo que “os interessados”, mais do que o público em geral, são aqueles que são prejudicados pela nova posse, maxime os anteriores possuidores, pelo que, no caso dos autos não é o facto de a Recorrida ter constituído a sua habitação no 4º andar do prédio dos autos que torna a sua posse pública, mas antes se a exerceu de forma que pudesse ser conhecida pelos Recorrentes e anteriores proprietários e possuidores.

38. Ora, sem prejuízo dos factos que, por cautela, os Recorrentes apresentaram nos seus articulados (artigos 152º a 160º da petiçãoinicial e125º, 126º, 135º, 136º réplica) a respeito do carácter oculto dessa alegada posse, mesmo admitindo, novamente por mera hipótese, que a Recorrida exerce, há mais de vinte anos, poderes de facto sobre a mansarda na qualidade de sua exclusiva proprietária, a verdade é que nem a reconvenção nem a factualidade vertida no acórdão de 10.10.2019, ao qual alude o Facto nº2 da sentença recorrida, permitem concluir, mas antes infirmam, que a Recorrida tenha exercido uma posse pública, seja em termos de direito propriedade sobre o 4º andar, seja em termos de direito de compropriedade sobre as partes comuns.

39. Com efeito, a Recorrida nunca abordou os Recorrentes ou os anteriores proprietários, apesar de bem saber quem eram, designadamente para tratar de assuntos relativos à administração ou manutenção das partes comuns ou para participar dos respectivos encargos,

40. comportando-se de forma clandestina ao ponto de não ter tido qualquer reacção quando foram retiradas as escadas de acesso ao 4º andar localizadas nas traseiras do prédio e selada a porta do andar que ocupava, bem sabendo que haviam sido os “donos do prédio” a praticar tais actos.

41. A primeira vez que a Recorrida se arrogou da qualidade de proprietária, concretamente contra o proprietário do imóvel, foi com o procedimento cautelar que requereu no ano de 2015 na sequência da execução da sentença de despejo promovido pelo 3º Recorrente, a que aludem as alíneas i) e j) e kk) da matéria de facto vertida no acórdão de 10.10.2019, pelo que, ainda quê seadmitisse existir posse da Recorrida, o prazo para usucapião só poderia contar-se a partir daquele ano de 2015.

42. Em face do exposto, e sem prejuízo dos factos que, por cautela, os Recorrentes apresentaram nos seus articulados (artigos 152º a 160º da petiçãoiniciale125º, 126º, 135º, 136º réplica), ainda que se concluísse haver posse da Recorrida a mesma ter-se-ia de considerar oculta até 2015, pelo que ao concluir de forma diferente, a sentença recorrida violou os referidos artigos 1262º e 1297º do Código Civil.

[Da falta de requisitos da propriedade horizontal]

43. Para efeitos de constituição da propriedade horizontal, a Recorrida tinha não só o ónus de alegar e provar que, à data em que o peticiona, se encontram verificados os requisitos civis da constituição do prédio em propriedade horizontal, como o ónus de alegar os respectivos requisitos administrativos, devidamente certificados pela câmara municipal, tal como resulta do artigo 66º, nº 3 do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (cf. ainda artigo 59º, n.º 1 do Código do Notariado), ónus que não cumpriu.

44. Concomitantemente, a sentença recorrida limitou-se a fazer referência aos requisitos civis da propriedade horizontal, transcrevendo as informações constantes na certidão matricial ou caderneta predial, que é um documento meramente fiscal, além do mais carecido do necessário rigor e de elementos essenciais, como se depreende desde logo do facto de atribuir mesma permilagem a todos os andares, inclusive à mansarda, apesar de expressamente nem sequer possuírem a mesma área,

45. e ignorando os requisitos administrativos, que, efectivamente, não resultam da factualidade dada como provada ou da documentação junta aos autos, até porque a referência vertida certidão de fls. 987 a um “auto de vistoria homologado em 1978” não só não corresponde à certificação a que respeita o apontado artigo 66.º, n.º 3 do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação, como é datada de há mais de 40 anos (!), desconsiderando necessariamente as várias transformações ocorridas no prédio, conforme factualidade oportunamente alegada nos artigos 110º da petição inicial e 116º e 126º da réplica e que inclusive consta das alíneas ff), vv) e eee) do acórdão de 10.10.2019 para que remete o Facto nº 2 da sentença recorrida.

46. De resto, sendo a sentença, nesta parte, meramente declarativa é contraditório que a Recorrida admita no artigo 199º da contestação que podem não estar reunidos os requisitos administrativos, comprometendo-se a assegurá-los, pelo que deve a sentença recorrida, também por estas razões, ser revogada.

[Do pedido de reivindicação formulado pelos Recorrentes]

47. Estando odireitodepropriedadedo1º e2º Recorrentes e o direito de usufruto do 3º Recorrente sobre a totalidade do prédio dos autos comprovados pela escritura pública de fls. 177 a 188 e pela certidão do registo predial de fls. 56 a 57, juntas com a petição inicial, e não tendo a Recorrida título para ocupar o 4º andar desse prédio, importa concluir que, ao julgar improcedente a  acção, a sentença recorrida violou ainda o artigo 1311º do Código Civil e o próprio direito de propriedade privada consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa. 

48. De resto, sem prejuízo da factualidade alegada nos artigos 24º e 25º da petição inicial que o Tribunal a quo deixou de conhecer, dir-se-á ainda, por cautela de patrocínio, que, para o caso de se entender que a factualidade para que remete o acórdão de 10.10.2019 referido no Facto nº 2 da sentença recorrida está abrangida pelo caso julgado, dessa mesma factualidade resulta, ao contrário do concluído naquela decisão, que são os Recorrentes, e não a Recorrida, quem tem a posse do prédio dos autos, incluindo do 4º andar.

49. Desde logo, conforme resulta das alíneas d) e e) da matéria de facto vertida no referido acórdão, FF, avô e pai dos Recorrentes, adquiriu o imóvel em 28.11.1948, por compra, tendo-se mantido, até à data da sua morte, em 4.10.1998, como seu o único e exclusivo proprietário, gozando, enquanto tal, “(…) de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição (…)” do prédio (cf. artigos 1305º, 1316º do Código Civil), e beneficiando da presunção de propriedade por ter registado a seu favor a referida aquisição.

50. Ora, sem prejuízo do alegado na petição inicial no sentido que o referido FF também recebeu as chaves do prédio (traditio ficta) (cf. artigos 24º e 25º da petição inicial), resulta da matéria provada no referido acórdão de 10.10.2019 que o mesmo comprou, em venda judicial, o imóvel (traditio longa manu), pelo que a posse exercida pelo mesmo é uma posse titulada, de boa-fé, pacífica e pública, nos termos dos artigos 1259º a 1262º do Código Civil,

51. estando verificados os elementos característicos da posse, isto é, o corpus e o animus, conforme factualidade a que aludem as alíneas nn) e seguintes da matéria de facto indicada no referido acórdão (cf. artigos 1251.º e 1257.º, n.º 1, ambos do Código Civil).

52. Foi precisamente na  qualidade de proprietário e possuidor e no pleno exercício dos direitos inerentes a essas qualidades que, tal como provado nas alíneas g), qq) e rr) do acórdão de 10.10.2019, que o avô e pai dos Recorrentes celebrou com o referido EE, nos termos do artigo 1022.º do Código Civil, um contrato de arrendamento, tendo por objecto o 4º andar, através do qual aquele lhe cedeu o respectivo uso, mediante o pagamento de uma contrapartida, contrato esse em que o 3º Recorrente viria a suceder na posição de senhorio.

53. Com efeito, como resulta da factualidade vertida nas alíneas jj), ss) e seguintes da matéria de facto provada vertida no acórdão de 10.10.2019, após o falecimento de FF e de GG – pais do 3º Recorrente e avós do 1º e 2º Recorrentes –, respectivamente em 4.10.1998 e em 5.4.1995, a propriedade do imóvel transmitiu-se para o 3º Recorrente por sucessão, também ao abrigo do artigo 1316º do Código Civil, na parte em que prevê que “o direito de propriedade adquire-se por […] sucessão por morte (…)”, transmissão que foi também registada.

54. Paralelamente, também por morte do seu pai, a posse por este exercida sobre o prédio continuou no 3º Recorrente, nos termos dos artigos 1255º e 2050º do Código Civil, que continuou a cuidar de todo o prédio, conforme demonstrado nas alíneas tt) e seguintes da matéria de facto provada no referidoacórdãode10.10.2019, sobre ele exercendo poderes de facto(corpus) com animus de proprietário, ao abrigo dos artigos 1251º e 1257º, nº 1, do Código Civil.

55. Adicionalmente, e nos termos do artigo 1057.º do Código Civil, o 3.º Recorrente sucedeu na posição de locador quanto aos contratos de arrendamento tendo por objecto o 1º, 2º, 3º e 4º andares do imóvel, tendo feito cessar o contrato de arrendamento celebrado com o referido EE por sentença decretada em Janeiro de 2011, conforme facto provado na alínea kk) da factualidade dada como provada pelo acórdão de 10.10.2019.

56. Ora, tendo o referido contrato de arrendamento sido dado como provado, não se pode ignorar os efeitos, quanto a esta matéria de tal contrato, incluindo contra a Recorrida, fazendo desta (pela impossibilidade de existência de duas posses) uma mera detentora do4º andar, pelo menos até à sentença da acção de despejo de 2011 que fez cessar o referido arrendamento.

57. Por fim, conforme resulta da alínea a) da matéria de facto provada vertida no acórdão de 10.10.2019, o 3º Recorrente doou o prédio ao 1º e 2º Recorrentes, por escritura pública outorgada em 17.11.2015, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 947º do Código Civil, para quem se transmitiu também a respectiva posse, tendo os mesmos promovido o registo da aquisição a seu favor.

58. Conforme resulta das alíneas bbb) e seguintes dos factos provados incluídos no acórdão de 10.101.2019, também a par dos anteriores possuidores do prédio, o 1º e 2º Recorrentes promoveram diversas obras de manutenção e conservação de todo o prédio, incluindo do 4º andar, e suportaram os custos  com as demais despesas correntes do imóvel, assim actuando por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade do prédio, de modo ininterrupto e contínuo, atento o disposto nos artigos 1251º e 1257º, nº 1 do Código Civil.

59. Em face do exposto, a sentença recorrida ao rejeitar a posse dos Recorrentes também sobre o 4º andar do prédio dos autos violou as disposições legais citadas nas conclusões nº 48 a nº 58, pelo que deve ser revogada.

60. Relativamente ao pedido de indemnização formulado pelo 3º Recorrente, que a sentença recorrida rejeitou com fundamento na (inexistente) posse da Recorrida, deve o processo baixar à primeira instância, a fim de aí, observada a necessária tramitação processual se proceder ao respectivo julgamento, designadamente dos factos alegados nos artigos 162º a 165º da petição inicial.

61. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que:

A. Relativamente à reconvenção da Recorrida e pedido de revindicação dos Recorrentes:

i. Julgue improcedente o pedido reconvencional e procedentes os pedidos de reconhecimento e de reivindicação formulados na petição inicial, reconhecendo os direitos de propriedade e usufruto sobre o prédio dos autos a favor dos Recorrentes e condenando a Recorrida a reconhecê-los e a restituir aos Recorrentes o 4º andar, livre de pessoas e bens;

ii. Por cautela, para o caso de se entender que os autos não reúnem todos os elementos para uma decisão de mérito no que se refere ao pedido reconvencional (da Recorrida) e de reivindicação (dos Recorrentes), sempre deverá ser ordenada a respectiva baixa ao tribunal de primeira instância, a fim de aí se proceder ao julgamento de todos factos articulados na petição inicial e na réplica (por via de excepção) relativos aos pedidos principais e reconvencional, incluindo nos artigos 24º, 25º, 110º, 142º, 145º a 147º, 152º a 160º da petição inicial e nos artigos 98º, 99º, 114º a 120º, 125º, 126º, 135º e 136º da réplica.

B. Relativamente ao pedido de indemnização formulado pelo 3º Recorrente:

i. determine a baixa do processo à primeira instância a fim de se proceder ao respectivo julgamento, designadamente dos factos alegados nos artigos 162º a 165º da petição inicial, com o que

V. Exas. farão a habitual JUSTIÇA!

Foram apresentadas contra-alegações, pela Recorrida DD, ali pugnando pela improcedência do recurso, “mantendo-se a decisão recorrida, nos seus exactos termos”.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.


*


II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são as seguintes:

·Da força ou autoridade do caso julgado (para o presente caso) dos fundamentos vertidos no acórdão proferido em 10.10.2019 pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos processo nº 14588/16……, anteriormente instaurado pela aqui Ré/Recorrida contra os aqui AA/Recorrentes (acórdão esse que, confirmando a decisão proferida em primeira instância, rejeitou o pedido da Recorrida, então Autora, de reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo 4º andar com fundamento em usucapião);

·Da ausência de posse da Recorrida quer em termos de direito de propriedade sobre o 4º andar, por falta de animus, quer em termos de direito de compropriedade sobre as partes comuns, por falta de corpus e de animus e respectivas consequências para o mérito da demanda.

·Da falta dos requisitos da propriedade horizontal e suas consequências.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. Foi a seguinte a factualidade considerada provada (por acordo, confissão e documentos) na sentença recorrida, “com relevância para a apreciação do mérito do recurso”:

1. Correu termos pelo Juízo Central Cível …. – J.… uns autos de acção de processo comum, registados sob o n.º 14588/16........, em que era A. DD, réu CC, e intervenientes principais passivos BB e AA, no âmbito dos quais foi proferida sentença em 19.12.2018, da qual foi interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação ……, que proferiu acórdão em 10.10.2019, transitado em julgado no dia 18.11.2019, conforme certidão cuja cópia consta de fls. 1068 a 1143, que se dá por reproduzida;

2. No referido acórdão foram considerados provados os seguintes factos:

a) Por escritura pública outorgada em 17.11.2015 no Cartório da Notária HH o 10 Réu doou aos seus dois filhos - os aqui 20 e 30 Réus - um conjunto de imóveis, incluindo, na proporção de metade para cada um, o prédio urbano sito na Rua do ......., n0… em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob o no ……13, edifício composto por rés-do-chão, 10, 20, 30 andares e mansarda.

b) O direito de propriedade a favor do 20 e 30 Réus encontra-se definitivamente registado a seu favor na competente conservatória, mediante a Apresentação no … de 12.01.2016, com reserva de usufruto revertido no caso de o doador sobreviver aos donatários.

a) A propriedade do prédio - ao qual corresponde o artigo matricial no …, com um valor patrimonial de € 502.140,00 - incluindo do rés-do-chão, 10, 2º, 3º andares e mansarda encontra-se também inscrita a favor do 20 e 30 Réus, na respectiva matriz predial.

d) FF, pai do 10 Réu e avô do 20 e do 30 Réus, adquiriu o imóvel, em 28.11.1948, por compra no âmbito do processo de arrematação em hasta pública para liquidação dos legados pios deixados em testamento de II, que era a anterior proprietária e possuidora do prédio, inscrita nessa qualidade desde 28.6.1935 na Conservatória do Registo Predial ....., conforme inscrição no ….., a fls. 97 do livro G-14.

e) Tendo arrematado para si a totalidade do imóvel, o referido FF, casado com GG (mãe do 10 Réu e avó do 20 e 30 Réus), procedeu ao pagamento do respectivo preço, pagou o imposto de SISA devido pela transmissão, tendo sido requerido o registo da propriedade a seu favor.

f) Os identificados FF e GG - avós do 20 e 30 Réus - morreram, respectivamente, em 04.10.1998 e em 5.04.1995, tendo a propriedade do prédio sido transmitida para o seu filho, o 10 Réu desta acção, que sucedeu aos seus Pais na propriedade do imóvel, tudo conforme resulta da escritura de partilha outorgada em 21.12.2006.

g) Em 18.02.1975, o avô do 20 e 30 Réus, "na qualidade de proprietário do prédio", celebrou um contrato de arrendamento com EE, "na qualidade de inquilino", tendo por objecto o quarto andar, pelo prazo de seis meses, com início a 01.02.1975.

h) A A. reside há mais de 40 anos na Rua do ......., n. ° …, 40 andar, em …...

i) No dia 9 de Junho de 2015 foi impedida de entrar em casa quando regressava do trabalho, por, cerca das 20 horas, ter encontrado um edital colado na porta de casa, trocadas as fechaduras da porta da sua residência e da entrada principal do edifício e dois seguranças para a impedirem de entrar.

j) Aquele auto de entrega foi realizado no âmbito de processo de execução que correu na ...a Secção de Execução de ….. / J.. com o n.o 4178/11......., no qual era exequente o aqui R. e executado EE, na sequência de acção declarativa que com o no 1885/10....... que correu termos no ... Juízo Cível ...a Secção e no qual foram partes CC e EE.

k) A A. nasceu em Angola, de onde foi forçada a regressar, com a sua mãe, JJ, e irmãos, em 1975.

l) Em Abril de 1975, JJ procurou alguém que, por algum dinheiro, lhe arranjaria alojamento para si e para os filhos.

m) É nessa data (Abril de 1975) que lhes é indicada a casa da Rua do ......., n. ° …, 40, em ….., que estava ocupada por outra pessoa, e que a A. e a sua família ocupam.

n) As divisões desse piso continham entulho, para além de não existirem portas interiores, nem instalação eléctrica, nem armários de cozinha ou lava-loiças, nem sanitários.

o) JJ e os filhos removeram o entulho que puderam e acomodaram-se, durante longos meses, como podiam.

p) JJ foi conseguindo reorganizar a sua vida e trabalhar, com o que foi compondo a casa, consertou as canalizações e refez a instalação eléctrica, contratando, posteriormente, o fornecimento de água e electricidade.

q) Esses serviços continuam, aliás, a ser prestados e facturados em seu nome, não obstante pagos pela ora A.

r) Também o serviço de telefone fixo foi por JJ contratado em 9 de Agosto de 1976.

s) No final dos anos 70 do século passado, DD casou e também o seu marido passou a residir na Rua ......., n.o …, 40.

t) Aí viriam a manter a casa de morada de família, incluindo a menor KK que adoptaram e criaram

u) DD está recenseada pela freguesia……………. (a do imóvel, entretanto extinta e passando à correspondente freguesia ............ - ……) desde 12 de Dezembro de 1978

v) Em 1980, a sua inscrição como contribuinte fiscal está igualmente associada à Rua do ......., no …, 40 andar, …...

w) A licença de aprendizagem e carta de condução têm, desde meados de 1980 até hoje, associada a morada da Rua do ......., n.o …, 40 andar, em …….

x) O mesmo sucedendo com seguros, cartões de utente, recibos médicos e com o contrato de trabalho.

y) Nesta casa, a A. realizou, ao longo de mais de três décadas, obras de reparação e recuperação.

z) Ao longo dos anos, a expensas suas, arranjou os pavimentos, paredes e tectos nas várias divisões, instalou sanitários, colocou portas, reparou janelas, reparou o sistema eléctrico e de saneamento de forma a tornar a casa habitável.

aa) Aí criou e mantém o núcleo familiar e os seus bens.

bb) Aí recebe e convive com amigos e familiares,

cc) E recebe correspondência.

dd) Dessa casa, do seu recheio e de todos os seus bens pessoais esteve privada desde o dia 09 de Junho de 2015 até ao dia 5 de Fevereiro de 2016, data em que, já no âmbito da ação com o no 1327/16...... — Comarca ….. / …… / Instância Central / Secção de Execução — J.., lhe foi devolvida a posse efectiva da casa e do respectivo recheio.

ee) O 40 andar, à semelhança dos demais fogos, constitui unidade independente, distinta e isolada das demais, com saída própria para a escada comum e para o hall com porta de acesso à via pública.

ff) Durante todos os anos, o Pai do R e posteriormente o R, enquanto proprietários, asseguraram os serviços gerais, este último fez reparações na porta de entrada do prédio, instalou (há quase 20 anos) uma coluna nova de electricidade, pagou todos os impostos e taxas (ex. contribuição predial, depois contribuição autárquica, depois IMI, taxas de esgotos e taxa municipal de protecção civil), bem como, procedeu a diversas obras, nomeadamente:

Obras de fundo na fachada de tardoz,

Eliminando-se as escadas de acesso;

Procedeu-se sempre ao pagamento da eletricidade das escadas;

Limpou-se as chaminés;

Procedeu-se recentemente à limpeza e pintura de toda a fachada etc,

gg) O terceiro andar do referido prédio foi arrendado a LL em 1957 por 1.400$00.

hh) O primeiro andar do referido prédio foi arrendado a MM em Maio de 1975 por dois mil e novecentos e dez escudos;

ii) O segundo andar do referido prédio foi arrendado a NN em Dezembro de 1975 por três mil trezentos e dez escudos.

jj) No dia 4 de Outubro de 1998 faleceu FF, pai do 10 R e a partilha dos bens que compunham a herança deste e de sua mulher foi realizada a 21 de Dezembro de 2006;

kk) Em Outubro de 2010, porque o R. constatou a existência do acima referido contrato de arrendamento, intentou uma ação de despejo contra o inquilino, EE, por falta de pagamento de rendas, tendo a sentença sido decretada em Janeiro de 2011;

ll) Em 1975, os 10 e 20 andares foram também ocupados, mas os seus ocupantes, que se identificaram, celebraram os contratos mencionados supra.

mm) A Autora é proprietária de uma moradia sita na Rua ......, ...…, implementada num terreno com área de 360m2,

nn) Desde o momento em que pagou o preço e os impostos devidos pela aquisição e recebeu as chaves do imóvel, o referido FF realizou a suas expensas várias obras para reabilitação e melhoramento do mesmo, tanto nas zonas de utilização comum, incluindo escadas, porta e hall de entrada, fachada exterior, como nas divisões de utilização independente.

oo) Também a partir da data da aquisição, passou a pagar a contribuição predial devida anualmente pela totalidade do imóvel.

pp) O pai do 10 R recebeu as rendas referentes aos andares do referido prédio;

qq) O avô do 20 e 30 Réus, pai do 10 R, deu abrigo na mansarda do prédio ao ali identificado EE no período pós-revolução do 25 de Abril de 1974, que, como contrapartida pela utilização daquela divisão, pagava "100$00 quando calhava",

rr) Tendo ido em 1978 para o Canadá, sempre que se deslocava a Portugal, procedia a esse pagamento.

ss) Desde a morte do seu pai, o 10 Réu, em 18.06.1999, participou ao serviço de finanças o falecimento do seu pai e apresentou a respectiva relação dos bens, tendo ainda pago o imposto sobre as sucessões e doações.

tt) O 10 Réu mandou, a suas expensas, proceder à "reparação do encanamento e substituição do cano de 2 metros de chumbo - Rua do ......., …", com o que desembolsou a quantia de 24.000$00;

uu) Ainda a partilha da herança do seu pai não havia sido formalizada, o 10 Réu, em conjunto com a sua irmã, OO, mandou proceder à "execução de uma coluna montante desde a portinhola até ao quarto andar" e à instalação de "serviços comuns e campainhas com intercomunicação", com a necessária "abertura de roços e tapas", com o que desembolsou a quantia de 1.023.750$00, conforme factura datada de 21.08.2001.

vv) Em 2009 e 2010, o 10 Réu ordenou a realização de obras na fachada de tardoz, incluindo a eliminação das escadas de acesso, desde o rés-do-chão até, inclusivamente, à mansarda (localizada no quarto andar) e o encerramento das respectivas portas de entrada e a limpeza das chaminés do prédio, com o que desembolsou o montante global de € 44.697,48, conforme facturas datadas de 27.10.2009, 22.12.2009, 04.02.2010 e 14.06.2010.

ww) Além do mais, em 2004 mandou efectuar diversas obras na caixa de escada, incluindo "picar paredes e tectos que estavam em mau estado, reparar e estucar", "pintura geral das paredes e tectos a tinta plástica"; "arranque dos degraus em mau estado e sua substituição por novos em madeira de pinho, incluindo espelhos, a reparação geral de todas as escadas incluindo patins", a "reparação e pintura de portas e rodapés e caixa da escada a esmalte incluindo grades e corrimão" e a "abertura de alçapão de acesso ao telhado no tecto do patim incluindo fornecimento de escada"; a "afinação e colocação de mola nova e borrachas de batente" na porta de entrada; instalação de uma "coluna de gás nova, incluindo abertura de roços e tapamento dos mesmos" e de uma "coluna de água, incluindo abertura de roços e tapamento dos mesmos".

xx) Em 2015, o 10 Réu mandou efectuar novas obras na fachada principal e na fachada de tardoz do prédio, incluindo "montagem e desmontagem de andaime incluindo rede de protecção", "lavagem da fachada até ao osso e salpico, emboço rei afagamento com massas finas", "pintura com uma demão de isolamento e duas demãos de tinta acrílica nas fachadas", "limpeza das cantarias e socos, reparação das mesmas e aplicação de verniz incolor", "reparação, tratamento e pintura de gradeamentos, incluindo porta de entrada", "limpeza e isolamento de caixilharias pelo exterior" e "demolição de palas na zona das antigas portas em mau estado "; 58. 0

yy) Com as referidas obras que mandou realizar o 10 Réu desembolsou o montante de € 12.408,00, conforme facturas de 23.03.2015 e 02.072015.

zz) Também à semelhança do que fez o seu pai, o 10 Réu continuou a proceder ao pagamento das despesas gerais da totalidade do imóvel, designadamente o imposto municipal sobre imóveis, incluindo da mansarda, a tarifa de conservação de esgotos, também referente a todos os andares do prédio, incluindo da mansarda, e os gastos de electricidade.

aaa) O 10 Réu passou a receber as respectivas rendas enquanto os contratos de arrendamento permaneceram em vigor e retomou a ocupação dos andares à medida que os contratos foram cessando.

bbb) Também os 20 e 30 Réus desde 17.11.2015, promoveram, a suas expensas ou através do 10 Réu, na qualidade de usufrutuário do prédio, a realização de novas obras de conservação do imóvel, incluindo na mansarda.

ccc) A porta de entrada, que se encontrava muito degradada e com vidros partidos, foi substituída por outra, de maior dimensão e por onde passaram a caber os caixotes do lixo do prédio, para transporte e recolha do mesmo, tendo sido entregues as chaves a cada um dos moradores dos andares do imóvel.

ddd) O 20 e 30 Réus solicitaram ainda o fabrico de novas caixas de correio, que foram recolocadas na porta de entrada do prédio, tendo também facultado as respectivas chaves de acesso a cada um dos moradores do imóvel.

eee) Procederam à remodelação total, ainda em curso, da parte exterior do prédio, dos pátios e do jardim, acessíveis a partir do rés-do-chão e do 10 e 20 andares;

fff) Instalaram um novo vídeo porteiro na entrada do prédio e telefones porteiro no interior de cada um dos andares do prédio.

ggg) Foram também pintadas as portas de acesso a cada um dos apartamentos.

hhh) Com as referidas obras o 20 e 30 Réus desembolsaram o montante de €11.566,52, conforme facturas datadas de 08.11.2016 e 22.12.2016

iii) Os 20 e 30 Réus, procederam ao pagamento das despesas gerais da totalidade do imóvel, designadamente o imposto municipal sobre imóveis; e os gastos de água e electricidade.

jjj) Os 20 e 30 Réus passaram a cuidar da manutenção diária do prédio, designadamente através da colocação e recolha diária do caixote do lixo de uso comum do prédio e da limpeza semanal das escadas.

kkk) Depois de se terem introduzido no referido 40 andar, nem a Autora, nem a sua mãe, se identificaram, ou se deram a conhecer junto do avô, ou do pai ou do 20 e 30 Réus, seja pessoalmente seja indirectamente, invocando qualquer qualidade.

lll) A Autora, ou a sua mãe, nunca questionaram os RR ou os seus antepassados quanto aos actos por estes praticados no imóvel e quanto à sua qualidade, ou fizeram qualquer diligência ou abordagem no sentido de participar nesses encargos»;

3. Ainda no referido acórdão, sob o capítulo “O Direito”, fez-se constar o seguinte:

«No caso dos autos, provou-se que em 1975 o edifício a que se reportam os autos era pertença de BB, pai do ora 10 R. e avô dos 2º e 3º RR., que o tinha adquirido em 1948, por compra em hasta pública, sendo a anterior proprietária II (alíneas d) e e) da matéria de facto). O edifício, não constituído em propriedade horizontal, é composto por rés-do-chão, 1º, 2º, 3º andares e mansarda (ou "4º andar" - alíneas a), c), g), h), etc). O 3º andar foi dado de arrendamento em 1957 (al. gg)). Os 1º e 2º andares foram ocupados, em 1975, mas os ocupantes vieram a celebrar contrato de arrendamento com o proprietário (alíneas hh), ii) e II)). Quanto ao 4.º andar, foi também celebrado, em fevereiro de 1975, o contrato de arrendamento referido na alínea g) da matéria de facto, outorgado pelo pai e avô dos RR. e por EE. Tal contrato formalizou a cedência de um espaço para EE se abrigar no período pós-revolução do 25 de abril, pagando EE, como contrapartida daquela utilização, "100$00 quando calhava" (al. qq)).

De resto, em 1978 EE foi para o Canadá, procedendo ao aludido pagamento tão só quando se deslocava a Portugal (al. rr).

Ora, o certo é que em abril de 1975 a A. e a sua família, refugiados de Angola, ocuparam o 4º andar do prédio supra identificado. Tal ocupação não foi efetuada por intermediação do proprietário do andar nem do suposto inquilino, EE (cfr. alíneas k) a m)). De resto, o mencionado 4º andar estava inabitável, isto é, as suas divisões continham entulho, não existiam portas interiores, nem instalação elétrica, nem armários de cozinha ou lava-loiças, nem sanitários (al. n)). A mãe da A. e os filhos removeram o entulho e, aos poucos, tornaram a casa habitável, compondo a casa, consertando as canalizações, refazendo a instalação elétrica, contratando o fornecimento de água e eletricidade (alíneas o) e p)) e telefone fixo (alínea r)). E é nessa casa que a A. tem a sua residência, como tal estando recenseada, inscrita nas Finanças, identificada perante a autoridade rodoviária, seguradoras, serviços de saúde, entidade patronal (alíneas u) a x)). No referido 4.º andar, ao longo dos anos, a expensas suas, a A. arranjou os pavimentos, paredes e tectos nas várias divisões, instalou sanitários, colocou portas, reparou janelas, reparou o sistema elétrico e de saneamento de forma a tornar a casa habitável (al. z)).

Os factos provados demonstram que em 1975 a A. e a sua família se apossaram do aludido 4º andar, ocupando-o, dando-lhe a utilização própria da sua finalidade económica, no seu próprio interesse, sem subordinação a ninguém (…).

A posse assim constituída foi, como não podia deixar de ser, pública. Não se passa a habitar permanentemente um local no centro ……, aí se fazendo obras de vulto, de forma a tornar habitável o que não o era, aí se fixando, perante todos, residência e domicílio, e, simultaneamente, permanece em segredo o exercício desse poder de facto (…).

Ora, conforme decorre do supra exposto, a presença da A. e da sua família no 4.º andar não era clandestina, mas operava à luz do dia. Se o pai do 1º R. e este não se aperceberam da sua presença, ou se ignoravam as circunstâncias em que ela operara, tal só pode ser imputado a grosseira negligência da sua parte. Não podia deixar de ser notório que quem ocupava e usava a casa não era EE, que ainda por cima só pagava renda de vez em quando, mas outras pessoas, que aí, além do mais, faziam obras. A A. e os seus familiares, que nada tinham acordado com o pai do 1.º R., ou com este, acerca da utilização do andar, não careciam de proceder à inversão do título da posse (art. ° 1265.º). Mais, até 2005 o pai do 10 R. nem sequer figurava no registo predial como proprietário do aludido edifício. A sua aquisição só foi inscrita, a favor de BB, pela apresentação 12 de 2005/01/31 (cfr. doc. 7, junto a fls 187 v. 0 e 188 dos autos).

Conclui-se, assim, que a A. exerceu sobre o aludido 4º andar, desde abril de 1975, posse não titulada (1259º do CC), de má-fé (art.° 1260° n.°s 1 e 2), pacífica (art.° 1261º) e pública (art.° 1262º), posse essa adquirida nos termos da al. a) do art.° 1263. ° do CC, e que o pai do 1º R. perdeu decorrido um ano após o início da da A. (art.° 1267. ° n.° 1 al. d) e nº 2).

Poderia, assim, a A. adquirir a titularidade do correspondente direito, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse e reportada ao seu início (artigos 1287. °, 1288º, 1296. ° do CC). Porém, a A. peticionou a aquisição da propriedade do 4º andar do edifício supra identificado.

É certo que se provou que "o 40 andar, à semelhança dos demais fogos, constitui unidade independente, distinta e isolada das demais, com saída própria para a escada comum e para o hall com porta de acesso à via pública" (al. ee) dos factos provados).

Porém, o edifício em causa constitui uma coisa única, sobre a qual recai um único direito de propriedade. A única forma reconhecida pelo nosso direito de fazer incidir, sobre o mesmo edifício, direitos de propriedade individualizados sobre frações distintas do prédio, é a propriedade horizontal (...).

Por conseguinte, a declaração da titularidade do aludido 4º andar só poderia ser efetuada em termos de reconhecimento de um direito de propriedade horizontal.

Ora, como bem se notou na sentença recorrida, tal não foi peticionado pela A.. Esta pediu que fosse "reconhecido e declarado o direito de propriedade sobre o 4º andar do prédio sito na Rua do ......., no …, em …. na titularidade exclusiva da A., por o ter adquirido por usucapião." Como se disse, a titularidade, por usucapião ou de outra forma, de um direito de propriedade sobre o aludido 4º andar, nos termos do art.° 1344° n.° 1 do CC, não é admissível. Por outro lado, o reconhecimento de um direito de propriedade horizontal sobre o aludido 4º andar, por usucapião, careceria de pedido expresso nesse sentido, e "em termos de ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o art° 1418º nº 1, do CC, como são a individualização de cada fracção, o seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem do valor do prédio" (STJ, 04.10.2018, processo 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1).

Assim, sendo certo que o tribunal não pode condenar em algo diverso do peticionado, sob pena de nulidade (artigos 609.° nº 1 e 615.° n.° 1 al. e) do CPC), o pedido formulado tinha de improceder, como improcedeu»;

4. O prédio sito na Rua do ......., letras ..., n.º …, freguesia ........., concelho …, encontra-se descrito na CRP ..... sob o n.º …, com área total de 441,1 m2, com a área coberta de 163,856m2 e com a área descoberta de 277,244 m2, sendo composto de edifício de rés-do-chão, 1.º, 2.º e 3.º andares, mansarda e quintais, conforme certidão de fls. 56 e 57, que se dá por reproduzida;

5. Tal prédio mostra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de ..............., como sendo um prédio em propriedade total com 5 pisos e 5 andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, composto de R/C, 1.º, 2.º, 3.º andares, mansarda e quintais, com o valor patrimonial total de € 509.672,10, com área total de terreno de 441,1000 m2, com a área implantação do edifício de 163,8560m2, com a área bruta privativa total de 128,0000 m2 e com a área de terreno integrante das fracções de 277,2440 m2, conforme documento de fls. 58 a 62, que se dá por reproduzido;

6.   Ainda de acordo com a referida matriz, são os seguintes os andares ou divisões com utilização independente:

Mansarda - Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 1; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracçã0: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 138,0000m2; Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 96.597,55 Determinado no ano: 2018;

RC - Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 4; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 277,2440m2; Área bruta privativa: 139,0000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 102.230,80 Determinado no ano: 2018;

1 - Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 5; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 148,5000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 103.398,05 Determinado no ano: 2018;

2 - Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 5; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 148,5000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 103.398,05 Determinado no ano: 2018;

3 - Afectação: habitação; Tipologia/divisões: 5; Permilagem: 200,000; N.º de pisos da fracção: 1; Área do terreno integrante: 0,0000m2; Área bruta privativa: 149,5000m2 Área bruta dependente: 0,0000m2; Valor patrimonial actual (CIMI): 104.047,65 Determinado no ano: 2018;


7.  No dia 03.03.2020, a Câmara Municipal ……. certificou, relativamente ao prédio sito na Rua......, n.º …, que:

- existe auto de vistoria para habitação datado de 27.03.1935, onde consta que o prédio tem licença para habitação para cinco fogos habitacionais;

- existe a referência à licença para habitação n.º …, que foi emitida de acordo com o projecto de construção do prédio (do rés-do-chão ao 4.º andar);

-    existe um auto de vistoria de constituição de propriedade horizontal,
homologado em 03.05.1978, onde consta que “...trata-se de um prédio com cerca de quarenta e quatro anos de existência constituído por rés-do-chão e quatro andares, onde
existem cinco fogos (5), cujas composições se discriminam: Fracções autónomas: 1) rés-do-chão - um fogo (1) com cinco divisões assoalhadas; 2) 1.º ao 4.º andar - quatro andares -
são quatro fogos (4), um por andar com seis (6) divisões assoalhadas cada fogo”;

-    a licença para habitação n.º … de 1935 continua a vigorar para a fracção habitacional situada no 4.º andar, que faz parte integrante da mesma, tudo conforme certidão de fls. 987, que se dá por reproduzida;

8. Relativamente ao prédio sito na Rua......., n.º …, inscrito, actualmente, sob o artigo … da freguesia ..............., foi apresentada a declaração Modelo 1 do IMI, com o número de registo ….532, de 31.12.2012, cuja cópia consta de fls. 1057 e 1058 e se dá por reproduzida;

9. O prédio referido foi avaliado em 30.03.2013, tendo sido emitida a ficha de avaliação n.º ….223, cuja cópia consta de fls. 1055 e 1056 e se dá por reproduzida.


III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Antes de mais, consigna-se que nada obsta à admissibilidade do recurso: a decisão recorrida é recorrível (art. 644.º, n.º 1, al. a)), o recurso é tempestivo (art. 638.º), os recorrentes dispõem de legitimidade (art. 631.º) e apresentaram as devidas alegações (com as necessárias conclusões - art. 637.º). E o recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça é legalmente admissível, sendo de revista (678.º, n.º 3), sendo o correcto o regime de subida e efeito atribuído (arts. 645.º, n.º 1 al. a)) e 647.º) – são do NCPC todos os artigos ora citados.

Apreciando.

Como visto, na sentença recorrida julgou-se procedente a reconvenção deduzida pela Ré, declarando-se que esta adquiriu, por usucapião, a titularidade do direito de propriedade sobre o 4º andar (mansarda) do prédio urbano sito na Rua......., letras ..., n.° …, freguesia ......, concelho …, descrito na CRP..... sob o n.° … e inscrito, actualmente, na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia ......., tendo, ainda, sido declarado constituída a propriedade horizontal do mesmo prédio urbano, cabendo ao referido 4º andar a letra “E” da mesma propriedade horizontal – tudo com as legais consequências.

DA AUTORIDADE DO CASO JULGADO

·Atentemos na força ou autoridade do caso julgado (para o presente caso - mais precisamente no que tange à reconvenção aqui deduzida pela Ré) no que respeita aos fundamentos vertidos no acórdão proferido, em 10.10.2019, pelo Tribunal da Relação de Lisboa em anterior acção instaurada pela aqui Ré/Recorrida contra os aqui AA/Recorrentes - Proc.º 14588/16........ (o qual confirmou a decisão ali proferida em primeira instância e rejeitou o pedido da Recorrida, então Autora, de reconhecimento do direito de propriedade sobre o mesmo 4º andar, com fundamento em usucapião).

A questão do caso julgado é matéria que tem sido alvo de trato abundante e nem sempre em sentido coincidente, maxime (no que aqui mais importa) no que respeita autoridade do caso julgado – que se diferencia, como melhor salientaremos, da excepção de caso julgado.

Nos termos do disposto no art. 619º, nº 1 do vigente CPC, “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos arts. 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos arts. 696º a 702º” (referentes ao recurso extraordinário de revisão).

Por outro lado, nos termos preceituados pelo art. 673º, “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.”.

Aquele art. 619º, nº 1 refere-se ao caso julgado material, ou seja, ao efeito imperativo atribuído à decisão com trânsito (art. 628º) que tenha recaído sobre a relação jurídica substancial, consistindo, pois, em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades), quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação): todos têm de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão[1].

Essencialmente, a força obrigatória reconhecida ao caso julgado material repousa na necessidade de assegurar estabilidade às relações jurídicas, não permitindo que litígios, entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, se repitam indefinidamente, em prejuízo da paz jurídica, que ao Estado, como defensor do interesse público, compete assegurar. Sendo, precisamente, pela imposição, aos litigantes, desse comando jurídico indiscutível – a decisão transitada sobre o mérito da causa – que o Estado prossegue essa finalidade, assegurando o prestígio dos tribunais e garantindo a certeza e segurança jurídicas nas relações interpessoais.

Conforme refere ALBERTO DOS REIS[2], “A razão da força e da autoridade de caso julgado é a necessidade da certeza do direito, da segurança nas relações jurídicas. Desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações jurídicas, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, que não lhe possam ser tiradas por uma sentença posterior. Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação e da anarquia.”.

Nestes termos o caso julgado material (único que nos interessa para o caso em apreço) forma-se mediante uma sentença de mérito, que conheça da relação jurídica substancial.

Também CASTRO MENDES[3], a propósito do efeito preclusivo do caso julgado, escreveu que «O que se converte em definitivo com o caso julgado não é a definição de uma questão, mas o reconhecimento ou não reconhecimento de um bem»”.

O instituto do caso julgado encerra em si duas vertentes, que, embora distintas, se complementam: uma, de natureza positiva, quando faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; a outra, de natureza negativa, quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal[4].

Importa, assim, “diferenciar a autoridade do caso julgado (efeito positivo do caso julgado) de sentença e a excepção do caso julgado da mesma sentença (efeito negativo), pois que constituem efeitos diversos da mesma realidade jurídica.

Assim, fala-se em excepção de caso julgado quando a eadem quaestio se suscita no processo ulterior como thema decidendum do mesmo processo; fala-se em autoridade de caso julgado quando a eadem quaestio se suscita no processo ulterior como questão de outra índole (fundamental ou mesmo tão somente instrumental). Assim, portanto, “o instituto do caso julgado material é analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para a apreciação do objecto processual posterior”[5].

“ […] Quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado no processo posterior, ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalente um efeito vinculativo, a autoridade do caso julgado material, e a identidade entre os objectos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a excepção do caso julgado material”. […] “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (…), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica. “Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a “repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente”[6]-[7].


**

·Da autoridade do caso julgado relativamente aos fundamentos da decisão

Em princípio, segundo alguma doutrina, os limites objectivos do caso julgado confinam-se à parte injuntiva da decisão, não constituindo caso julgado os fundamentos da mesma[8].

Assim, no que respeita aos fundamentos da decisão, temos que em regra o caso julgado (a autoridade de caso julgado) cobre apenas a parte dispositiva da sentença. Isto é, “em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão. Ou melhor, esses fundamentos não adquirem o valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial”[9].

No que tange à autoridade de caso julgado[10], durante algum tempo, dominou a posição de que apenas tinha autoridade de caso julgado a conclusão ou dispositivo do julgado.

Hodiernamente, porém, tem-se por mais equilibrado um critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas[11].

Desta forma, nomeadamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem adoptando um critério moderador do rígido princípio restritivo dos limites objectivos do caso julgado. E, embora não considerando que a eficácia do caso julgado da sentença se possa ou deva estender a todos os motivos objectivos da mesma, porém, já abrange ou deve abranger as questões preliminares que constituíram as premissas necessárias e indispensáveis à prolação do juízo final, da parte injuntiva (ou seja, abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado), contanto que se verifiquem os outros pressupostos do caso julgado material, abrangendo, pois, todas as excepções aí suscitadas por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor, solução que permite evitar a incoerência dos julgamentos, respeita os princípios da justiça e da estabilidade das relações jurídicas, propicia a economia processual e corresponde ao alcance do caso julgado contido no artº 621º do CPC[12].

Como ensina TEIXEIRA DE SOUSA[13], reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão. “A nós afigura-se-nos, ponderadas as vantagens e os inconvenientes das duas teses em presença, que a economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportado à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidos por aquele critério eclético, que sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado.”[14].

Os fundamentos da decisão “possuem valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objeto decidido e outro objeto (ou entre o efeito produzido e outro efeito)”[15].

“Relativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo - problema dos limites objectivos do caso julgado -, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada[16].

Assim, portanto, a autoridade do caso julgado importa a aceitação de uma decisão anterior que se insere no objecto da segunda, tornando inadmissível qualquer posterior indagação sobre a relação material controvertida, dispensando em princípio aquela tríplice identidade de sujeito, causa de pedir e pedido

Deve, porém, não deixar de se ter presente que, como já há muito ensinava MANUEL DE ANDRADE[17], «o caso julgado só se destina a evitar uma contradição prática de decisões e não já a sua colisão teórica ou lógica». Pouco lhe interessa que possam ser resolvidas diversamente pelo tribunal questões cujos elementos de direito, ou mesmo de facto, sejam idênticos, pois «o caso julgado, por sua parte, só pretende obstar a decisões concretamente incompatíveis (…)»[18].


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·Da autoridade do caso julgado no caso sub judice

Voltando ao caso sub judice, em causa está saber se a factualidade que no anterior Ac. da Relação foi considerada provada (processo em que era Autora a ora Ré/Reconvinte e onde a Autora peticionara a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, sobre o 4º andar (mansarda) do prédio referenciado nos autos) – mais concretamente, o que ficou provado relativamente à posse da ali Autora/aqui ré sobre esse mesmo 4º andar, factualidade essa provada e que a Relação considerou preencher os requisitos bastantes para a aquisição do direito de propriedade por usucapião – pode ser aproveitado nesta (posterior) acção, em que a Ré/reconvinte – ali Autora – vem peticionar essa mesma aquisição do propriedade por usucapião e bem ainda (visto que pela Relação, naquele aresto, foi entendido ser essencial para a procedência desse pedido) que se reconheça a constituição da propriedade horizontal sobre o prédio e que a posse exercida sobre o 4º andar (o corpus e o animus) o foi em termos de propriedade horizontal[19].

Questão diferente (eventualmente, até, prévia à acabada de referir) consiste em saber se a aqui Ré/Reconvinte pode, em nova acção e aproveitando factualidade relevante provada naquela outra demanda, vir suprir ou complementar nesta falta ou deficiência notada ou anotada naquela primeira demanda, qual seja, vir, agora, para além do pedido com base na usucapião, invocar e peticionar a propriedade horizontal relativamente ao mesmo imóvel de que o 4º andar que pretende usucapir faz parte.

Sobre este aspecto voltaremos mais à frente.

Relativamente à matéria possessória dada como provada naquela anterior demanda, consideramos que a autoridade do caso julgado se estende à mesma factualidade, com aproveitamento para os presentes autos.

Como vimos, o caso julgado abrange a decisão e os seus fundamentos, logicamente, necessários ou a decisão e as questões solucionadas na sentença conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor. A expressão “limites e termos em que julga”, a que se reporta o artigo 621.° do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou dos pedidos formulados na acção.

Ora, há decisões de questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares ao thema decidendum que estão tão, lógica e necessariamente, conexas com o segmento decisório, que este não pode delas ser dissociado na definição do quadro substantivo envolvente, só ganhando sentido quando inter-conexionados.

Nestes casos, por razões de economia processual, de prestígio das instituições judiciárias e de certeza das relações jurídicas, terá de concluir-se no sentido da extensão do caso julgado material à decisão dessas questões.

Pode perguntar-se, assim, se o que naqueles autos se deu como provado a respeito da posse (da ali Autora e aqui Ré) sobre a fracção em causa (a mansarda - 4º andar) está relacionado ou corelacionado com a parte dispositiva do que ali ficou julgado (parte decisória).

Cremos que sim, pois, se é certo que aquela primeira acção apenas não procedeu por, paralelamente ao pedido de reconhecimento da propriedade da fracção por usucapião, não foi peticionado, também, que esse direito de propriedade o era em termos de propriedade horizontal e que a mesma deveria ter sido ali declarada, não deixa de ser certo, também, que a matéria da posse (nos termos ali provados) sobre a fracção é matéria sem o qual a demanda também nunca podia proceder. Um pedido (aquisição da propriedade por usucapião, sustentada na posse) o outro (propriedade horizontal) estão interligados, ou intrinsecamente ligados. A posse é (afinal) um pressuposto para a pretendida aquisição pela Ré/Reconvinte da propriedade da fracção por via da usucapião em termos de propriedade horizontal. A diferença estará essencialmente no animus com que exercita o corpus, não tanto neste último.

Trata-se, afinal, de se vir complementar nesta segunda demanda o que na primeira foi (insuficientemente) peticionado. Aqueles factos provados na anterior acção (posse…) são absolutamente essenciais para a procedência desta posterior (aquisição da propriedade da fracção, mas… em termos de propriedade horizontal).

Como visto, o alcance e autoridade do caso julgado não se pode limitar aos estreitos contornos definidos nos arts. 580º e segs. do CPC para a excepção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que, apesar da ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela figura jurídica esteja notoriamente presente.

Ora, vir impedir-se à Autora a instauração desta demanda (diríamos, como visto, complementar daquela), com aproveitamento do que, de relevante ou essencial para o mérito desta segunda, ali ficou provado, seria uma “machadada” na autoridade do caso julgado dos fundamentos de facto que ali ficaram provados por amplamente discutidos, os quais, repete-se, (também) são absolutamente essenciais ou cruciais para o mérito desta segunda demanda.

É certo que a aludida factualidade reconhecida na primeira acção não consta do dispositivo da sentença. Mas não deixa de ser matéria factual crucial na economia desta acção e que está, como dito, lógica e necessariamente, conexa com o segmento decisório (seja aquele, seja o que vier a ser proferido nesta posterior acção).

Embora aludindo aos direitos reconhecidos na sentença, cremos que o princípio que segue de que fala MANUEL DE ANDRADE igualmente aqui se aplica: “…seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu; que nem sequer a estes bens pudesse chamar seus, nesta base organizando os seus planos de vida; que tivesse de constantemente defendê-los em juízo contra reiteradas investidas da outra parte..”[20]. “Adaptando” ao que ora importa, não se compreenderia que, depois da “posse” da Ré (nos termos plasmados nos factos dados como provados no anterior acórdão da Relação) ter sido dada como assente, absolutamente firmada, em várias e sucessivas demandas (processo cautelar e acções comuns), pudesse ser aqui de novo questionada ou posta em causa, obrigando a Ré a começar ab initio todo o “calvário probatório”, visando (repete-se) lograr provar essa mais que solidificada matéria de facto!

Assim, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas[21], seria incompreensível que aquela factualidade, para aqui absolutamente relevante (mesmo que não bastante – pois há ainda a atinente à propriedade horizontal), não pudesse ser aqui “aproveitada”. A autoridade do caso julgado não o aceitaria, nem o compreenderia.

Atente-se no que se escreveu no dito acórdão da Relação, depois de nele se consignar toda a factualidade provada no que respeita à posse da Autora/aqui Ré, relativamente ao andar que ocupa:

Conclui-se, assim, que a A. exerceu sobre o aludido 4º andar, desde abril de 1975, posse não titulada (1259º do CC), de má-fé (art.° 1260° n.°s 1 e 2), pacífica (art.° 1261º) e pública (art.° 1262º), posse essa adquirida nos termos da al. a) do art.° 1263. ° do CC, e que o pai do 10 R. perdeu decorrido um ano após o início da da A. (art.° 1267. ° n.° 1 al. d) e nº 2).Poderia, assim, a A. adquirir a titularidade do correspondente direito, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse e reportada ao seu início (artigos 1287. °, 1288º, 1296. ° do CC).”.

Apenas e só não foi ali dado ganho de causa à Autora por não ter formulado o pedido na parte relativa à propriedade horizontal. Apenas por isso! Porque quanto à “posse da Recorrida em termos de direito de propriedade sobre o 4º andar (que os Recorrentes alegam inexistir, por, a seu ver, não funcionar, quanto a tal matéria de facto, a autoridade do caso julgado), o essencial dos factos necessários e pertinentes (em especial os integrantes do corpus) ficaram provados naquele processo e que aqui vingam, precisamente por força da autoridade do caso julgado.

É certo que o que respeita à verificação dos requisitos (propriamente ditos) da propriedade horizontal e, outrossim, à existência, ou não, da posse da Recorrida em termos de direito de compropriedade sobre as partes comuns (sustentando os Recorrentes que falta o corpus e o animus neste segmento), é matéria de facto (essa, sim) que extravasa da aludida autoridade do caso julgado. Só que tal em nada afecta a autoridade do caso julgado no segmento que expusemos.

Simplesmente, tendo tal outra matéria sido alegada por ambas as partes e carecendo de ser esclarecida/provada, não é neste Supremo Tribunal (de Revista) que tal desiderato pode ser levado a cabo, impondo-se, por isso, a baixa dos autos à primeira instância (o presente recurso é …per saltum) para aí prosseguirem os ulteriores termos (e – caso se venha a justificar) também ali serem apreciados os pedidos dos AA/Recorrentes.

Assim, portanto, embora se não verifique a tríplice identidade de partes, de causa de pedir e de pedido nas duas demandas (assim  não se preenchendo a excepção do caso julgado entre a presente acção e a anterior), tal não impede que a autoridade do caso julgado possa aqui ser trazida à colação para efeitos de nesta demanda se considerar (desde já) provada a factualidade que naquela outra se deu como assente relativamente à posse conducente à usucapião da fracção. Sendo, porém, certo que ainda falta complementar essa posse, por forma a poder ser considerada ou configurada em termos de propriedade horizontal (posse sobre as partes comuns, etc.).

Como se observa na decisão recorrida, no caso vertente, temos que, no âmbito do Processo n.º 14588/16........, foi proferido acórdão, transitado em julgado, que julgou improcedente o pedido de declaração e reconhecimento do direito de propriedade da ora R. sobre o 4.º andar do prédio sito na Rua do ......., n.º …, em …, por o ter adquirido por usucapião.

Tal improcedência assentou, exclusivamente, no facto de a única forma reconhecida pelo nosso direito de fazer incidir, sobre o mesmo edifício, direitos de propriedade individualizados sobre frações distintas do prédio, ser a propriedade horizontal e de a A. (ora R.) não ter formulado esse pedido, não podendo o tribunal condenar em algo diverso.

Ou seja, a improcedência do pedido da Autora (aqui Ré/reconvinte) não decorreu da circunstância de a A. não ter logrado provar a existência de uma situação de posse usucapível e/ou do decurso do prazo necessário para a aquisição da titularidade do direito.

Pelo contrário: no acórdão concluiu-se e decidiu-se, de forma clara e inequívoca, que «a A. exerceu sobre o aludido 4º andar, desde abril de 1975, posse não titulada (1259º do CC), de má-fé (art.° 1260.° n.°s 1 e 2), pacífica (art.° 1261º) e pública (art.° 1262º), posse essa adquirida nos termos da al. a) do art.° 1263.° do CC, e que o pai do 1.0 R. perdeu decorrido um ano após o início da da A. (art.° 1267.° n.° 1 al. d) e nº 2). Poderia, assim, a A. adquirir a titularidade do correspondente direito, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse e reportada ao seu início (artigos 1287.°, 1288º, 1296.° do CC)».

Assim, quanto à questão da existência da posse usucapível e do decurso do prazo, emergiu do acórdão referido uma autoridade de caso julgado que impede que se discutam, novamente, estas questões, que são antecedente lógico, premissa ou requisitos substantivos do reconhecimento do direito de propriedade por usucapião, sendo indiferente o desfecho da acção (improcedência), que, como se viu, se deveu a questões formais decorrentes da formulação do pedido e dos limites da condenação (ut art. 609.º do NCPC).

A existência de posse prescricional por parte da R., as suas características, o seu início e o prazo decorrido são, assim, matérias resolvidas no âmbito do Proc. n.º 14588/16........ e que, por via da autoridade do caso julgado, se impõem, necessariamente, em todas as acções que venham a correr entre as partes, ainda que incidindo sobre objecto diverso.

Percute-se: não faria qualquer sentido que, transitado em julgado o acórdão de 10.10.2019, proferido no Proc. n.º 14588/16........, que reconheceu, expressamente, a existência da posse da ora R. e do decurso do prazo da usucapião, pudesse ser renovada na presente acção, ou noutra, a discussão em torno dessas questões, que ficaram definitivamente cobertas pela autoridade de caso julgado.

E não se diga que assim entender é aceitar a existência de um qualquer factor surpresa. É que se trata de factualidade que já vem sendo reconhecida e aceite nas instâncias desde 2015 e por várias vezes (providência cautelar que com o nº 17801/15.….. correu na Instância Local da Secção Cível do Tribunal da Comarca ….. – J..; acórdão que a confirmou; acção que, com o nº 14588/16........, correu termos no Juízo Central Cível ….. – J..; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.2019; e, agora, esta demanda)!

Não há, nem houve, qualquer factor surpresa – note-se, aliás, que esta factualidade atinente às características da posse é a mesma que foi apresentada no processo nº 14588/16........ e que os ora Recorrentes ali contestaram (sem “surpresa”, portanto).

Em conclusão: a autoridade de caso julgado inerente à decisão final proferida no Proc. n.º 14588/16, impõe que se tenha por certo e definitivamente assente a factualidade acima descrita e que naqueles autos ficou provada e que aqui nos dispensamos de repetir, que permitiu ao mesmo aresto concluir:

- que a ora R. exerceu sobre a mansarda (4º andar do prédio dos autos), desde abril de 1975, posse não titulada (1259º do CC), de má-fé (art.° 1260.° n.°s 1 e 2), pacífica (art.° 1261º) e pública (art.° 1262º), posse essa adquirida nos termos da al. a) do art.° 1263.° do CC, e que o pai do aqui 3º A. perdeu decorrido um ano após o início da da R. (art.° 1267.° n.° 1 al. d) e nº 2);

- que a R. poderia adquirir a titularidade do correspondente direito, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse e reportada ao seu início (artigos 1287.°, 1288º, 1296.° do CC), ou seja, em abril de 1995.

Percute-se que o que apenas restou fazer na outra acção (processo nº 14588/16........) relativamente a este processo – só por isso aquela demanda não terá procedido – foi formular o pedido de constituição do imóvel em regime de propriedade horizontal.

Estava ali (como aqui está – por força da autoridade do caso julgado) reconhecida e confirmada a existência de posse com todas as características imprescindíveis à afirmação da forma originária de aquisição de direitos que é a usucapião.

O que quer dizer que a prévia afirmação (como foi pela Relação, naquele outro processo) da existência de posse bastante para a aquisição do direito de propriedade por usucapião não pôde, como não pode, deixar de ser o pressuposto lógico e essencial para a decisão tomada e não questão prejudicada pela improcedência do pedido.

Ou seja, a procedência do pedido da Autora (naquela, como nesta acção – aqui por via reconvencional) só era e é possível caso as características da posse se verifiquem, agora apenas importando aferir se as mesmas se verificaram relativamente ou em termos de propriedade horizontal, isto é, averiguar/provar se, para além da verificação da posse usucapível (sem a qual, repete-se – seja lá, seja aqui – , a procedência do pedido da aqui Ré e lá Autora sempre seria inviável), estão verificados os pressupostos enunciados nos artigos 1414º e 1415º, do CCiv., pois que é aceite pela jurisprudência a aquisição, por usucapião, de uma fracção autónoma desde que também se preencham aqueles pressupostos atinentes à propriedade horizontal.

Assim, portanto, se confirma a verificação da autoridade de caso julgado relativamente àquela factualidade possessória considerada provada no (outro) citado acórdão da Relação. É que (como bem salienta a decisão recorrida), estamos diante de questões fáctico-jurídicas prévias ou preliminares ao thema decidendum que estão tão, lógica e necessariamente, conexas com o segmento decisório, que este não pode delas ser dissociado na definição do quadro substantivo envolvente, só ganhando sentido quando inter-conexionados.

Parece-nos, portanto, claro que, considerando que as questões possessórias foram apreciadas e decididas quase exaustivamente naqueles vários processos, o prestígio das instituições judiciárias e certeza das relações jurídicas impõe a aceitação aqui, da extensão do caso julgado material à decisão dessas mesmas questões. Se assim não fosse, assistiríamos à desconsideração – ou antes, à negação –  por um tribunal superior daquilo que foi apreciado e decidido anteriormente por outro tribunal superior, qual seja o reconhecimento da posse da Ré nos sobreditos termos e decurso do prazo exigido por lei para a aquisição da propriedade por usucapião.

O mesmo é dizer que a autoridade de caso julgado emergente do decidido naquele Proc. n.º 14588/16, leva a que tenha de aceitar-se aqui como assente a verificação dos actos possessórios da aqui Ré/Reconvinte sobre o 4º andar do prédio (a mansarda), nos termos já plasmados supra, deles se extraindo as devidas conclusões e operando as  necessárias subsunções jurídicas em termos de suficiência, ou não, para a aquisição pela Ré da “titularidade do correspondente direito, por usucapião”- suficiência essa que a Relação, naquele anterior aresto, teve como segura.

Veja-se, aliás, que são os próprios recorrentes a aceitar que a factualidade considerada provada no acórdão proferido no processo 14588/16........ é vinculativa para ambas as partes, como se vê, desde logo, do que verteram no artº 9 da petição inicial.

Com efeito, escreveram ali: “Assim, e tendo em vista o respeito pelo caso julgado e o aproveitamento da prova já produzida, os Autores farão, ao longo do presente articulado, referência ao ali decidido, nomeadamente aos factos julgados provados, e remeterão para a respectiva prova produzida.”!

Enfim, não pode haver autoridade de caso julgado apenas…quando lhes convém!

Embora com risco de excessiva repetição, não podemos deixar de salientar que não podem deixar de resultar assentes, por via da factualidade provada naquela outra acção e para aqui “transportada” por força da autoridade do caso julgado, todos os actos de posse da Ré/Recorrida, que preenchem uma posse não titulada, de má-fé, pública e pacífica, exercida desde Abril de 1975 e, portanto, bastante para conduzir à aquisição da titularidade do direito de propriedade por usucapião.

E é assim, mesmo que se não verifique nesta acção e relativamente à outra o concurso dos requisitos ou pressupostos necessários à verificação da excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae). É que, ainda assim, não aceitar a autoridade do caso julgado relativamente àqueles elementos da posse, poria, como dito, em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais, estando-se na posterior demanda a dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto dadecisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta.

Como bem se escreveu no acórdão da Relação de Coimbra, de 28-09-2010 (JORGE ARCANJO),

I - A excepção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova acção, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objecto e pedido.

II - A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em acção anterior, que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade prevista no artº 498° do CPC.».


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Nestes autos importará, então – deduzido que foi, por via reconvencional, o respectivo pedido (constituição da propriedade horizontal) – complementar o pedido efectuado naquele outro processo. Complementaridade essa que parece perfeitamente possível, e necessária para que a constituição da propriedade horizontal sobre a fracção (4º andar) se efective.

Como dispõe o acórdão do STJ de 04.10.2018, tirado no processo 4080/16.9T8BRG-A.G1.S1, «… no âmbito do recurso de apelação interposto pelos A.A., o Tribunal da Relação, divergindo desse entendimento, considerou que era admissível adquirir por usucapião parte de uma fração autónoma, desde que, no caso concreto, para além desse instituto, se verificassem também os pressupostos enunciados nos artigos 1414.ºe 1415.º do CC.

[…]

Ora, face ao disposto do artigo 1417.º, n.º 1, do CC não sofre dúvida que a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas, à luz dos ensinamentos expostos, tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou porventura parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos artigos 1414.º e 1415.º do CC, mormente sobre frações constituídas de facto em unidades independentes, distintas e isoladas entre si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

O mesmo é dizer que a posse usucapível, para tal efeito, deve ser exercida sobre coisa que detenha já todas essas características, em termos de ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o artigo 1418.º, n.º 1, do CC, como são a individualização de cada fração, oseu valor relativo, expresso em percentagem oupermilagem, do valor totaldoprédio. (…)».

Assim, para adquirir uma fracção autónoma de prédio em propriedade horizontal, por usucapião, é preciso não apenas a existência da posse relativamente ao direito de propriedade sobre essa fracção, mas igualmente que a posse seja correspondente ao direito de compropriedade relativamente às partes comuns.

Assim, v.g., acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.04.2016[22]: “a constituição da propriedade horizontal, por usucapião, resulta directamente da situação possessória correspondente ao exercício de um direito de propriedade sobre fracção autónoma de um edifício em propriedade horizontal e de um direito de compropriedade sobre as partes comuns e da sua invocação pelo possuidor (…)”.

Aqui importará, portanto – complementarmente da prova já feita naquela acção – , provar se a posse que ali já ficou assente (corpus e animus) o foi em termos da propriedade horizontal, necessário para que a pretendida aquisição do direito sobre a mansarda (4º andar) se concretize juridicamente. Ou seja, saber se esse animus (e corpus, diga-se também) o era em termos de propriedade horizontal, tendo em conta, designadamente, a existência de partes comuns – ou seja, se a Recorrida agiu com o corpus e com o animus de comproprietária (com a convicção de ser comproprietária das partes comuns, nos termos e para os efeitos do artigo 1420.º do Código Civil).

Esta questão da possibilidade de uma segunda acção em que se alegue e vise provar um facto que possa sustentar a pretensão material que havia sido deduzida na acção anterior, ausência de facto esse que motivou a improcedência da anterior acção, já foi apreciada por este Supremo Tribunal.

Assim, no Ac. do STJ de 22.09.2016, Proc. 106/11,0TBCPV.P2.S1 (ARANTES GERALDES), foi decidido (sumário) que “I. julgada improcedente determinada pretensão por falta de verificação de um facto (…), o caso julgado formado pela sentença não obsta a que seja interposta nova acção na qual seja alegada a verificação desse facto para sustentação da mesma pretensão material (artº 621º do CPC).

II. Ainda que em tal situação não seja configurada a excepção de caso julgado (artº 581º, nº 1, do CPC), aquela sentença projecta-se na segunda acção através da autoridade de caso julgado relativamente às demais questões que nela tenham sido especificamente apreciadas”.

Justifica, assim, o aresto:

«É o que decorre explicitamente do art. 621º do CPC, no segmento reportado à inverificação de um determinado facto considerado determinante para a procedência da acção. Sendo em tais circunstâncias permitida a instauração de nova acção sem que o A. corra o risco da excepção de caso julgado, nesta segunda acção devem ser dados como adquiridos os pressupostos do direito cuja verificação já tenha sido apreciada na primeira acção. De outro modo correr-se-ia o risco de obter julgados contraditórios, com o rol de consequências negativas em termos de eficácia dos instrumentos processuais e no que concerne à certeza do direito e valor jurídico das sentenças.”[23].

Cita-se neste aresto abundante e pertinente jurisprudência do mesmo STJ, a corroborar a posição que já acima sustentámos.

Assim, designadamente:

- O Ac. do STJ de 23-11-11:

«1. A força do caso julgado material abrange, para além das questões directamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário da predita parte do julgado.

2. A função negativa do caso julgado é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (art. 497º, nºs 1 e 2, do CPC), implicando a tríplice identidade a que se reporta o art. 498º, nº 1, do CPC.

3. A autoridade do caso julgado, por via da qual é exercida a função positiva do caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da aludida tríplice identidade, pressupondo, todavia, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida”».

- Ac. do STJ, de 26-6-12, no mesmo sentido:

1. A figura jurídico-processual do caso julgado pressupõe a existência de uma decisão que resolveu uma questão que entronca na relação material controvertida ou que versa sobre a relação processual, e visa evitar que essa mesma questão venha a ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal.

2. Na análise do caso julgado há que ter em conta duas vertentes que não se confundem: uma, que se reporta à excepção dilatória do caso julgado, cuja verificação pressupõe o confronto de duas acções – contendo uma delas decisão já transitada – e uma tríplice identidade entre ambas: de sujeitos, de causa de pedir e de pedido; a outra, respeitante à força e autoridade do caso julgado, decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão, que se prende com a sua força vinculativa.

3. A força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado”.

- Ac. do STJ, de 12-7-11:

“…

2. Para além do caso julgado, que constitui um obstáculo a uma nova decisão de mérito, há igualmente que atender à autoridade do caso julgado, a qual tem antes o efeito positivo de impor a decisão.

3. A expressão “limites e termos em que julga”, constante do art. 673º do CPC, significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ele define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção.

4. Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado.

5. Relativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada.

6. A autoridade do caso julgado caracteriza-se pela insusceptibilidade de impugnação de uma decisão em consequência do carácter definitivo decorrente do respectivo trânsito, designadamente por via de recurso. Se essa autoridade vem a ser posteriormente colocada numa situação de incerteza, pelas mesmas partes, seja em processos diferentes, seja no mesmo processo, então será possível ocorrer ofensa do caso julgado formado na acção anterior.

7. Definido em acção anterior entre as mesmas partes quem fora o responsável pelo acidente de viação, a questão, uma vez decidida, ficou a ter força obrigatória dentro e fora do processo, não podendo contrariar-se a autoridade do caso julgado”.

“Como refere Lebre de Freitas, na anot. ao art. 673º do anterior CPC, a admissibilidade de instauração de nova acção, malgrado a improcedência da anterior, por falta de preenchimento de uma condição e, o necessário respeito pelos pressupostos que na primeira acção já tenham sido apreciados, é de aplicar também aos casos de “verificação, posterior ao encerramento da discussão de facto em 1ª instância, de facto em cuja falta se tenha fundado a absolvição do pedido”.

Portanto, nada parece impedir que a Ré/Reconvinte (Autora na anterior demanda) venha, na reconvenção, alegar e procurar fazer a prova do facto ou factos que na anterior demanda não carreou e que foi, ou foram, decisivo(s) para a improcedência da mesma: que a sua (já ali provada) posse sobre o 4º andar do prédio o foi em termos de propriedade horizontal (direito de propriedade sobre a fracção que aqui também peticiona seja declarado), designadamente, que exerceu os provados actos possessórios (corpus e de animus) em termos de direito de compropriedade sobre as partes comuns do prédio dos autos.


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A apreciação desta matéria, porém – tal como a matéria factual atinente aos pedidos deduzidos pelos Autores, caso aquela questão reconvencional não tenha ganho de causa – , impõe, necessariamente, a baixa dos autos à 1ª instância, pois há abundante matéria factual alegada que carece se ser sujeita ao “crivo” probatório (com especial enfoque para a vertida na réplica).

Efectivamente, tendo, embora, como assente a autoridade do caso julgado relativamente aos factos supra elencados (que aqui, como tal, se terão de manter como provados), parece evidente que os autos não reúnem já todos os elementos para uma decisão de mérito no que se refere ao pedido reconvencional (da Recorrida) – posse e propriedade horizontal – e, bem assim, aos pedidos de reivindicação (dos Recorrentes) e de indemnização formulado pelo 3º Recorrente. Pelo que os autos não podem deixar de baixar ao tribunal de primeira instância, a fim de aí se proceder ao julgamento da factualidade relevante vertida nos articulados relativa a tais pedidos (principais e reconvencional – e, acentue-se, não apenas da  factualidade alegada e indicada pelos Recorrentes e que reputam importante, ínsita nos artigos 24º, 25º, 110º, 142º, 145º a 147º, 152º a 165º da petição inicial e nos artigos 98º, 99º, 114º a 120º, 125º, 126º, 135º e 136º da réplica, que pode, sem dúvida, ser relevante na economia do mérito da causa, mas toda a demais que o tribunal recorrido considere relevante, como a alegada pela Recorrente relativamente à eventual posse sobre as partes comuns, v.g., a alegação que fez sobre obras que diz ter realizado na clarabóia e no telhado ou cobertura do prédio, limpeza das escadas, dos caixotes do lixo e do hall de entrada e à substituição de lâmpadas do prédio, referida nos artigos 59º a 62º e 171º da contestação) sem prejuízo da factualidade já assente pela, e nos termos da, supra referida autoridade de caso julgado.

Se o alegado pela Ré/ Recorrida, nos termos e para os efeitos do artigo 1420.º do Código Civil, ou seja, se o por si alegado, designadamente sobre reparações e limpezas que terá feito  nas partes comuns – e bem assim o alegado sobre os requisitos legais para a constituição da propriedade horizontal – será bastante para o preenchimento do referido corpus e animus de comproprietária e, consequentemente, para a aquisição do direito de propriedade sobre a fracção que ocupa, em termos de propriedade horizontal, di-lo-á o tribunal recorrido, sim, mas só depois da produção da prova dos pertinentes factos alegados nos articulados.

Ou seja, aferir se a aquisição originária, pela Ré/Recorrida, do direito de propriedade sobre o quarto andar do prédio, com fundamento na posse por si exercida, revela ou não as particularidades do conteúdo edo regime jurídicoda propriedadehorizontal (considerando o regime do “numerus clausus” dos direitos reais previsto no artigo 1306º do Código Civil), é matéria e decisão cuja incumbência pertence ao tribunal a quo, a apreciar e tomar após produção da respectiva prova.

Para além, é claro, da própria constituição da propriedade horizontal sobre o prédio, sem a qual não é viável o pedido de aquisição do direito de propriedade sobre uma fracção do prédio. Só que, para tal, há requisitos a preencher, em sintonia com o disposto no código civil (cfr. artº 1415º) e com as normas administrativas, como é o caso da certificação pela câmara municipal de que as características físicas e técnicas das fracções estão em conformidade com a regulamentação das edificações urbanas (cfr. artº 66º, nº3, do Regime Jurídico de Urbanização e Edificação – ainda, o artigo 59.º, n.º 1 do Código do Notariado).

Como bem salientou o Tribunal da Relação do Porto de 17.11.2011[24], “[p]ara que a propriedade horizontal possa ser constituída por decisão judicial impõe-se que, a par dos requisitos civis previstos no art.º 1415.º do Código Civil, se verifiquem os correspondentes requisitos administrativos, os quais terão de verificar-se no momento em que a divisão é requerida”.

Só perante o preenchimento de tais requisitos, o tribunal declarará constituída, ou não, a propriedade horizontal (cfr. arts. 1417º e 1418º CC) – não se olvidando, porém, que, como ensinam ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA[25], nos casos em que a propriedade horizontal é constituída por usucapião a respectiva sentença é meramente declarativa.

Tudo isto, portanto, a carecer de ser analisado e provado. Tarefa que incumbe, naturalmente, ao tribunal recorrido.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em determinar que os autos baixem à primeira instância para aí prosseguirem os seus ulteriores termos, com produção de prova, em conformidade com o supra explanado.

Custas a fixar a final.

Notifique.


Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/20, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.


Lisboa, 29.04.2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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[1] Cfr., sobre esta temática e designadamente: MANUEL DE ANDRADE, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pags. 303 e segs.; ALBERTO DOS REIS, in “CPC Anotado”, Vol. V, pags. 155 e segs.; e Cons. RODRIGUES BASTOS, in “NOTAS ao CPC”, Vol. III, 3ª Ed., pags. 199 e segs.
[2] In Código de Processo Civil anotado, Vol. 3, Pág.94.
[3] Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, p. 178 e ss.
[4] ALBERTO DOS REIS, CPC Anotado, vol. III, p. 93.
[5] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/2/1998, acessível em www.dgsi.pt.
[6] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUS, “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ/325º, p. 171, 176 e 179.
[7]Também LEBRE DE FREITAS, in CPC Anotado, II, 2.ª ed., p. 354, refere que «pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado um obstáculo a nova decisão de mérito», enquanto «a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida».
[8] CASTRO MENDES, Dir. Proc. Civil, 1980, III, pág.282, e Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, 1968, pág. 152, ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO NORA, Manual Proc. Civil, 1985, pág.714, ANSELMO DE CASTRO, Dir. Proc. Declaratório, 1982, III, pág.404, e MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Proc. Civil,1976, pág.334 e 335.
[9] - MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – Estudos sobre o Novo Processo Civil (2ª ed., 1997, Lex) – 579/580.
[10] Material, que, como dito, significa que, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente, tão somente, a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.
[11] Ver, designadamente, os acórdãos deste Supremo, de 10.07.97 – COL/STJ – 2º/165; de 27.04.04 – Proc. 04A1060.dgsi.Net; de 20.05.04 – Proc. 04B281.dgsi.Net; de 13.01.05 – Proc. 04B4365.dgsi.Net; de 05.07.05 – Proc. 05ª008.dgsi.Net; e de 08.03.07 – COL/STJ – 1º/98; do STJ de 12.07.11, 23.11.11 e de 22.09.2016, in www.dgsi.pt).
[12] Ver, para além dos arestos já referidos, ainda, entre outros, os acórdãos do STJ, in BMJ nº 353º/352, 388º/377, e de 01/06/2010, 15/01/2013, 08/11/2013, 21/03/2013, 26/03/2015, 07/05/2015 e 16/02/2016, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 578.
[14] RODRIGUES BASTOS, Notas ao CPC, 3ª ed., pág. 202.
[15] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA – Estudos sobre o Novo Processo Civil cit. – 580 (destaque nosso)..
[16] Ac. do STJ de 12.07.11 – Destaque nosso.
[17] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, nova edição revista e actualizada por HERCULANO ESTEVES, pp 317 e 318.
[18] Destaque nosso.
[19] O pedido reconvencional tem, como visto, o seguinte teor:
«I - Reconhecido e declarado que:
a) a Reconvinte exerce sobre o 4o andar do prédio sito na Rua do ......., n° ..., em ….DD, desde abril de 1975, posse não titulada (1259. ° do CC), de má-fé (artigo01260. ° n.°s 1 e 2), pacífica (artigo0 1261.°) e pública (artigo0 1262.°), posse essa adquirida nos termos da ai. a) do artigo0 1263. ° do CC, e que o avô dos Io e 2o AA. e pai do 3°A. perdeu decorrido um ano após o início da da A. (artigo01267. °n.°l ai. d) e n.° 2);
b) a Reconvinte adquiriu a titularidade do correspondente direito de propriedade horizontal, por usucapião, decorridos 20 anos após o início da posse referido no n.° anterior (artigos 1287.°, 1288.°, 1296.°do CCiv.);
c) o prédio sito na Rua do ......., n° ..., em ….., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob a ficha … da freguesia...... e inscrito na matriz predial urbana da freguesia....sob a ficha …, tem a área total de 441,10m2, sendo a área coberta (correspondente à de implantação do edifício) de 163,856m2 e a área descoberta de 277,244 m2;
e é constituído por cinco pisos e cinco fogos, um por cada piso, que constituem unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para a escada comum e para o hall com porta de acesso à via pública, sem prejuízo do que vier a apurar-se em face da requerida e protestada juntar certidão do MOD. 1 do IMI n° ….532 de 31.12.2012, com a ficha de avaliação ….223 e de quanto venha a resultar da certificação requerida à Câmara Municipal ..... em conformidade com o disposto nos artigos 4o e 62º a 66º do RJUEU, aprovado pelo DL 555/99 de 16/12, alterado pelo DL 177/2001 de 4 de Junho.
Pelo que,
d) em resultado da conjugação dos referidos artigos 1414º, 1415º e, também, do 1418º, todos do CCiv. - cujos requisitos se deixaram supra alegados e demonstrados e aqui se consideram reproduzidos - e, bem assim, da comprovação dos requisitos técnicos e administrativos, deverá ser declarada a constituição da propriedade horizontal, com a constituição de cinco fracções autónomas, todas com entrada pelo n.º … da Rua......, assim constituídas:
e) (….)”.
[20] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 235.
[21] Acs. citados supra.
[22] Processo nº 421/13.9TBOHP.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[23] Destaques nossos.
[24] Processo n.º 335/10.4TVPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[25] Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª Ed., pág. 404.