PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Sumário


I - Se não resultar claramente da lei que as exigências de forma se destinam apenas a provar a declaração, essas exigências deverão ser consideradas ad substantiam e a sua preterição provocará a nulidade do negócio nos termos do art. 220.º do CC.

II - Da norma do n.º 2 do art. 116.º do Cód. Notariado, nada resulta que a forma exigida o seja apenas para efeitos de prova da declaração. O agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, tem a finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração e de certeza quanto ao seu conteúdo.

III - A forma exigida pela norma do n.º 2 do art. 116.º do Cód. Notariado, constitui um único comando: "...instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial", que não é cindível quanto aos seus efeitos - art. 9.º, n.º 3, do CC.

IV - "O arquivamento da procuração no cartório notarial", teve por base as mesmas razões que ditaram a exigência de "instrumento publico" para a procuração irrevogável: a solicitação de procurações irrevogáveis de pessoas juridicamente impreparadas, tinha-se revelado de algum perigo, reclamando cautelas acrescidas não só para a tutela da liberdade e discernimento do dominus na outorga da procuração, como também para a tutela de terceiros, que venham a contratar com o procurador.

V - Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas "in totum" de ad substantiam.

Texto Integral


Proc. nº 97/17.4T8STC.E1.S1

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção

No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Cível de Setúbal, Juiz 2, corre termos a presente ação que AA e BB, intentaram contra CC e ISAURA MATOS – GESTÃO DE PATRIMÓNIO, UNIPESSOAL LDA., formulando, os seguintes pedidos:

1 – Julgar-se que a procuração outorgada pelos Autores em 25 de novembro de 2014 no Cartório Notarial de ..., com que constituíram procuradora a 1ª Ré, junta como documento nº 9, sendo de facto uma procuração irrevogável, é nula por preterição da forma legal prevista no artº 116º nº 2 do Código do Notariado;

a) Consequentemente, deverá julgar-se ineficaz em relação aos Autores a escritura de compra e venda outorgada pela 1ª Ré em 3 de Julho de 2015 no Cartório Notarial de ..., junta como documento nº 16, intervindo enquanto procuradora dos Autores e como única e legal representante da 2ª Ré, por falta de poderes de representação, nos termos e ao abrigo do artigo 268º nº 1 do Cód. Civil;

b) Em resultado da peticionada e verificada ineficácia da identificada compra e venda deve ordenar-se o cancelamento do registo da aquisição a favor da 2ª Ré efectuado sob a AP. 3344 de 03/07/2015 registada sob a ficha ... da freguesia de ...;

c) Deve ainda ser ordenado o cancelamento do registo da penhora a favor da Fazenda Nacional sob a AP.1377 de 29/09/2015 inscrita no pressuposto da validade da antecedente aquisição a favor da 2ª Ré registada sob a AP. 3344 de 03/07/2015 ;

d) Deve a 2ª Ré de que a 1ª Ré é a única e legal representante ser condenada na imediata restituição aos Autores da fracção autónoma designada pela letra A, correspondente ao rés do chão nº … sito no ...– Bloco ... em ..., livre e devoluta de pessoas e bens.

Quando porventura, assim se não entenda

2 - Julgar-se que a procuração outorgada pelos Autores em 25 de Novembro de 2014 no Cartório Notarial de ..., com que constituem procuradora a 1ª Ré, junta como documento nº 9, sendo de facto uma procuração irrevogável, é nula, por falsidade intelectual, nos termos e ao abrigo do artigo 372º nº 2 do CC, pois que o seu conteúdo não foi explicado aos outorgantes, tudo com as consequências requeridas em a), b), c) e d) de I;

Se ainda assim se não entender,

3 - Julgar-se que a procuração outorgada pelos Autores em 25 de Novembro de 2014 no Cartório Notarial de ..., com que constituem procuradora a 1ª Ré, junta como documento nº 9, foi revogada pelos Autores por comunicação verbal de 30 de Julho de 2015, seguida de comunicação escrita, válida e eficaz de 1 de Julho de 2015, extinguindo-se os poderes de representação por ela conferidos, do que decorrem as consequências aludidas em a), b), c) e d) de I ;

Caso, porventura, ainda assim se não entenda

4- Julgar-se que a 1ª Ré ao exercer os poderes que lhe foram conferidos pelos Autores através da procuração outorgada em 25 de Novembro de 2014 no Cartório Notarial de ..., junta como documento nº 9, actuou com abuso de representação, actuação que acarreta e remete para as consequências discriminadas em a), b), c) e d) de I, ex vi do artigo 269º do CC

5 – Condenar-se a 1ª Ré no pagamento aos Autores de indemnização por danos patrimoniais no montante de € 2.000,00 (dois mil euros) para ressarcir os prejuízos causados com a conduta da demandada, nesta data concretamente apurados e determinados, por abuso de direito com a actuação que teve no exercício dos poderes conferidos com a referida procuração;

6 – Condenarem-se as Rés no pagamento aos Autores de indemnização por danos patrimoniais que se vierem a liquidar em execução de sentença (artº 609º nº 1 do CPC) designadamente os emergentes da execução para pagamento de quantia certa instaurada pela demandada e que corre termos no Juízo de Execução de Setúbal com o nº 5426/16.5T8STB em que é reclamada a quantia exequenda de € 3.835,70 com juros, despesas e honorários do agente de execução provisoriamente fixados em € 1.264,30.

7 – Condenar-se a 1ª Ré no pagamento aos Autores da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais por ter enquanto procuradora actuado em abuso de direito causando danos não patrimoniais ao demandantes que merecem a tutela do direito, a ressarcir através de justa e equilibrada compensação.

Para o efeito, alegaram, em síntese, que entre os Autores e a Ré CC foi celebrado um acordo mediante o qual esta se obrigou a efetuar o pagamento das dívidas dos Autores e em contrapartida ficava com um prédio sito no ...– Bloco 4-C em ....

Face a este acordo a Autora através de uma procuração constituiu sua procuradora a Ré CC a quem conferiu, além do mais, poderes de vender a quem e pelo preço e sob as cláusulas e condições que tiver por conveniente o referido prédio, tendo o Autor dado o consentimento para os atos previstos na procuração.

Por sua vez, a Ré CC entregou-lhe um documento escrito intitulado declaração nos termos do qual declarava que assumia o pagamento das dívidas dos Autores a terceiros ali identificados.

Em cumprimento do combinado os Autores entregaram a Ré CC o prédio livre e devoluto de pessoas e bens.

Acontece que a Ré CC não procedeu ao pagamento das dívidas e vendeu o prédio a uma sua sociedade, o que fez depois de tomar conhecimento da revogação da procuração.

Após o acordo, a Ré CC disponibilizou uma casa para habitação dos Autores mediante o pagamento da renda mensal no valor de €350,000, todavia, a dada altura, a Ré procedeu a resolução do contrato e instaurou uma ação executiva contra os Autores por falta de pagamento de rendas o que motivou o despejo e causou-lhes um prejuízo decorrente do pagamento coercivo desse valor.

Após o despejo, procederam ao arrendamento de outro prédio para seu uso e habitação tendo despesas no valor mensal de € 200,00 o que perfaz à data da entrada em juízo um prejuízo no valor de € 2.000,00. 

Sustentam, finalmente, que a situação causou tristeza, sofrimento, angústia, indignação, humilhação, vivem aterrorizados e humilhados e em permanente desassossego e inquietação, danos de natureza não patrimonial que merecem a tutela.

As Rés contestaram e impugnaram a matéria alegada pelos Autores concluindo que na eventualidade da procedência da ação, a Ré CC deduziu reconvenção pedindo que os Autores sejam condenados a pagar o valor das obras realizadas no prédio no valor de € 6.000,00 acrescida de todas as prestações entregues aos Autores para pagamento de prestações das dividas que oneram o imóvel, a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.

Os Autores replicaram e pugnaram pela improcedência da reconvenção.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida a seguinte decisão:

a)- Declarar a procuração outorgada pelos Autores em 25 de Novembro de 2014 no Cartório Notarial de ..., com que constituíram procuradora a Ré CC, irrevogável e nula.

b) - Declarar ineficaz em relação aos Autores a escritura pública de compra e venda outorgada em 3 de julho de 2015, no Cartório Notarial de ..., que permitiu intervir como procuradora a ora Ré CC, sem que dispusesse de poderes bastantes.

c) Ordenar o cancelamento do registo de aquisição sobre a da fração autónoma designada pela letra A, correspondente ao rés do chão nº … sito no ...– Bloco ... em ..., a favor da Ré Isaura Matos-Gestão de Património Unipessoal, Lda., efetuado sob a apres. 3344 de 03/07/2015 registada sob a ficha ... da freguesia de ....

d)  Condenar a Ré Isaura Matos-Gestão de Património Unipessoal, Lda., a restituir aos Autores a fração autónoma designada pela letra …, correspondente ao rés do chão nº … sito no ...– Bloco ... em ..., livre e devoluta de pessoas e bens.

e) Condenar a Ré Isaura Matos-Gestão de Património Unipessoal, Lda. a pagar aos Autores a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais.

f)  No mais, absolver as Rés do pedido.

Julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência:

g) Condenar a Autora/Reconvinda a restituir a Ré/Reconvinte CC a quantia de € 2.669,06 (dois mil seiscentos e sessenta e nove euros e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, desde a data do trânsito em julgado desta decisão até integral pagamento.

h) absolver os Reconvindos do demais pedido.”

Inconformada a ré CC interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora que veio a confirmar integralmente a decisão da 1ª instancia.

Desta decisão, as rés CC e ISAURA MATOS – GESTÃO DE PATRIMÓNIO, UNIPESSOAL, LDA, apresentaram recurso para o Supremo Tribunal Justiça, em revista excecional.

Após despacho da (então) relatora de fls. 483, os autos foram presentes à Formação a que alude o art. 672º, nº3 do Código de Processo Civil, que proferiu o seguinte acórdão de admissão da revista:

“… 5. Como esta mesma Formação tem entendido muito reiteradamente – e se pode ver nos sumários constantes do sítio deste Tribunal em “jurisprudência” e depois “revista excecional” – o pressuposto desta alínea preenche-se com a existência de divergências na doutrina ou na jurisprudência sobre a questão ou as questões em causa, ou ainda nos casos em que o tema está eivado de novidade, tudo de sorte que o cidadão comum que lida com este tipo de assuntos não pode legitimamente estar seguro da interpretação com que pode contar por parte dos tribunais.

Isto sempre sem perder de vista que a lei desenha, logo à partida, um regime de excecionalidade na admissão deste tipo de revistas e que, na própria redação do pressuposto, usou uma linguagem particularmente exigente traduzida pela palavra “claramente”.

Outrossim, por força da alínea a) do n. º2 do mesmo artigo, cabe ao recorrente indicar, sob pena de rejeição, as razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, ou seja, indicar as mencionadas divergências ou o ineditismo da questão e, bem assim, a inerente razoabilidade da insegurança, tudo em ordem a compreender-se a necessidade de intervenção deste Supremo Tribunal.

6. A recorrente fundamenta a sua pretensão de admissibilidade nos seguintes termos:

“4- Saber se o arquivamento da procuração irrevogável no Cartório Notarial constitui uma formalidade constitutiva (ad substantiam), cuja omissão importa a nulidade do negócio jurídico, como entendem as instâncias, ou se apenas tem tal natureza a exigência de tal acto ser praticado por instrumento público, como consideram as recorrentes e a Jurisprudência e Doutrina por estas citadas, é questão de muito elevada relevância jurídica, quer para estes autos, quer para a segurança do comércio jurídico e a prática contratual e notarial em geral,

5- Sendo o seu esclarecimento, que com o presente recurso se pretende, essencial a uma melhor aplicação do Direito, desde logo porque da solução depende a validade da procuração irrevogável objecto dos autos, com todas as consequências daí advenientes, tudo conforme melhor se explana nas alegações de recurso juntas ao presente, que se dão por reproduzidas.

6- Assim, não obstante o disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil, cabe recurso de Revista do Acórdão recorrido – cfr. artigo 672.º, n.º 1, alínea a) do mesmo Código.”

7. A questão, assim enunciada, reveste, na verdade, algum ineditismo.

Relativamente às consequências da outorga de procuração irrevogável sem ser por instrumento público, haverá entendimentos não divergentes.

Mas saber das consequências do não arquivamento no cartório notarial, constitui um capítulo não comummente abordado na doutrina e/ou na jurisprudência, justificando a intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal.

8. Assim, admite-se a revista excecional.”

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Os recorrentes terminaram as suas alegações de revista com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

I - O presente recurso é interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que negou provimento ao recurso de Apelação interposto pelas recorrentes, mantendo a decisão recorrida;

II – O objecto do recurso é a questão jurídica relacionada com a validade ou invalidade da procuração irrevogável objecto dos autos – se é nula por falta de forma, dado não ter sido arquivada no Cartório Notarial, como entende a decisão recorrida, ou se é válida, como entendem as recorrentes;

III - Trata-se de matéria de importância jurídica fundamental, porquanto, à semelhança de tantas outras, a procuração objecto dos autos não foi outorgada por escritura pública, mas tão só por instrumento notarial, resultando a insusceptibilidade de revogação do conteúdo do negócio, ou seja, do facto de ter sido outorgada no interesse quer do mandante, quer do procurador; a procedência da tese das instâncias recorridas determina que todas as procurações cuja insusceptibilidade de revogação advenha do respectivo conteúdo são, caso não tenham sido arquivadas em Cartório, nulas por preterição do disposto no artigo 116.º, n.º 2 do Código do Notariado, ainda que outorgadas por instrumento público;

IV – A apreciação de tal questão é matéria de grande relevância jurídica, sendo claramente necessária à melhor aplicação do Direito;

V - Toda a decisão proferida pela 1.ª Instância e confirmada pelo Acórdão recorrido é consequência de ter-se julgado nula a procuração objecto dos autos, com o que as recorrentes não se conformam, por entenderem que a interpretação efectuada é contrária ao Direito;

VI – Tendo a procuração em causa nos autos sido lavrada por instrumento público e sendo irrevogável atendendo ao respectivo conteúdo, como decidiram já as instâncias, não é nula por falta de forma, ainda que não tenha sido arquivada no Cartório Notarial;

VII - A forma da declaração negocial é o modo como se exterioriza a vontade negocial – por instrumento público, documento escrito assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou documento autenticado; apenas a exigência da outorga da procuração irrevogável por instrumento público, enquanto modo como se exterioriza a vontade negocial das partes, é uma formalidade ad substanciam, pelo que apenas a preterição desta imporia a nulidade do negócio, por força do disposto nos artigos 219.º e 220.º do Código Civil;

VIII - O arquivamento da procuração é uma formalidade imposta pela Lei ao notário, sem qualquer intervenção das partes e efectuada sem a presença destas, sendo uma formalidade ad probationem;

IX – Assim, o facto de a procuração não ter sido arquivada pelo cartório notarial não importa a nulidade da procuração irrevogável por falta de forma;

X - Ao contrário do que decidiu o Tribunal da Relação de Évora, a recorrente singular CC tinha poderes para outorgar a escritura pública de compra e venda no dia 3 de Julho de 2015, no Cartório Notarial de ..., pelo que esta escritura é plenamente válida, com todas as consequências daí advenientes;

XI - Ao decidir como decidiu, o douto Acórdão recorrido violou, designadamente, o disposto nos artigos 219.º, 220.º e 265.º, n.º 3 do Código Civil, bem como o artigo 116.º, n.º 2 do Código do Notariado, pelo que deve ser revogado e, em consequência, substituído por outro que, declarando a validade da procuração em causa nos autos, absolva as recorrentes dos pedidos, ficando prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.

Nestes termos e nos mais de Direito, …. Deve o presente recurso de Revista ser admitido por se verificarem os pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, julgando-se procedente, por provado e em consequência revogando-se o Acórdão recorrido e substituindo-se por outro que, declarando a validade da procuração em causa nos autos, absolva as recorrentes dos pedidos, ficando prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.

Os recorridos contra-alegaram e concluíram pela improcedência da revista.

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O recurso foi admitido.

Dispensados os vistos cumpre apreciar e decidir.

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Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados, os seguintes factos:

1 - Por escritura pública de compra e venda outorgada em 6 de Dezembro de 1999 no Cartório Notarial de ... a Autora AA adquiriu a fracção autónoma destinada a habitação designada pela letra …, correspondente ao rés do chão nº … que faz parte do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito no ...– Bloco … em ..., freguesia de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha nº … – A da freguesia de ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...º-A daquela freguesia. Documento 30v a 31

2 - Sobre o referido prédio estão registadas duas hipotecas a favor do Banco Santander Totta S.A. (denominação actual do Banco em que foi integrada a Companhia Geral de Crédito Predial Português, S.A. ou Crédito Predial Português, S.A.) constituídas para garantias de empréstimos concedidos a favor dos Autores, sendo a primeira com data de 19/01/2000 e a segunda de 20/03/2008

3 - Pela ap. 176 de 2013/06/06, encontra-se registada uma penhora a favor do Banco Banif Mais, SA. incidente sobre o prédio indicado em 1).

4 – Nessa fracção instalaram os Autores a sua habitação.

5 - No dia 25 de Novembro de 2014, os Autores BB e marido BB outorgaram a favor da aqui Ré CC, o documento intitulado “Procuração”, junto a fls. 55 a 56 dos autos, que aqui se dá reproduzido, por meio da qual declararam, além do mais, que:

“(…) Pela outorgante mulher foi dito:

Que pelo presente instrumento, constitui sua bastante procuradora CC, divorciada, Nif .., (Cartão de Cidadão nº. .., válido até …2018, emitido pela República Portuguesa) natural da freguesia de .., concelho de …, residente na Rua ..., Lote …, ..., a quem confere os poderes para vender a quem, pelo preço e condições que entender por convenientes a fracção autónoma designada pela letra .., afecta ao prédio urbano sito no ..., numero ..., em ..., freguesia de ..., ..., inscrita na respectiva matriz sob o artº. ..., assinando os respectivos contratos promessa, podendo tratar de toda a documentação que seja necessária, receber sinais, receber preços, dar quitação, outorgar e assinar a respectiva escritura pública podendo fazer negócio consigo mesmo.

Dar de arrendamento a fração autónoma acima identificada, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes, receber as rendas, passar e assinar os recibos, despejar inquilinos, renovar, prorrogar ou rescindir os respectivos contratos, receber quaisquer importâncias de dinheiro, valores ou rendimentos certos ou eventuais, vencidos ou vincendos que pertençam ou venham a pertencer à mandante por qualquer via ou título.

Para junto do Banco Santander Totta, SA., e do Banco Banif Mais, SA., tratar de qualquer assunto relacionados com os créditos existentes em nome da mandante, renegociando os prazos, juros e as condições que entender por convenientes, podendo para o efeito assinar toda a documentação que se torne necessária.

Mais lhe confere poderes para a representar junto de quaisquer Repartições Públicas ou Administrativas, designadamente, nos serviços de Repartições de Finanças, liquidar impostos ou contribuições, reclamando dos indevidos ou excessivos, requerer avaliações fiscais e inscrições, ratificações ou alterações matriciais, na Conservatória do Registo Predial requerer quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos e cancelamentos, podendo ainda prestar quaisquer declarações complementares se necessárias e na Câmara Municipal onde poderá tratar de quaisquer assuntos camarários, nomeadamente apresentar projectos de alteração dos mesmos, fazer aprová-los, bem como requerer licenças, vistorias e alvarás.

Para junto de quaisquer companhias de água, luz e Meo assinar contratos ou rescindir os mesmos, praticando, requerendo e assinando tudo o que seja preciso para o completo desempenho deste mandato.

Declarou o outorgante marido:

Que presta ao respectivo cônjuge o necessário consentimento para efectuar o ato.

Assim o outorgaram.

Esta procuração foi lida aos outorgantes e feita a explicação do seu conteúdo. (…)”.

6 - No dia 25 de Novembro de 2014, a aqui Ré CC apôs a sua assinatura no escrito denominado “Declaração” constante de fls. 56v dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual consta, além do mais, o seguinte: “ Eu CC, residente na Rua de ..., lote …, … ..., divorciada NIF .. e portadora do Cartão de Cidadão ….. com validade …/1018, declaro que assumo todas as dívidas referente ao imóvel com o artigo matricial ..., situado na ..., ...Bloco ... nº. … em ..., freguesia de ..., Concelho de ....

As dívidas são do Banco Santander e o Banco Banif + da Sra. BB com o NIF .... (…)”.

7 - Esta procuração não se encontrava arquivada no Cartório Notarial.

8 - A Ré CC munida do escrito junto a fls. 56v, mandou elaborar o documento junto a fls. 57 dos autos, no qual ficou a constar, além do mais, que “Reconheço a assinatura do documento anexo de CC, feita pela própria na minha presença, cuja identidade verifiquei por exibição do Cartão de Cidadão .., com validade até …/2018, emitido pela República Portuguesa.

Cartório Notarial da Licenciada DD(…) ao 25 de Novembro de 2014 (…)”.

9 – No mês de Novembro de 2014, os Autores entregaram à Ré CC o dito prédio livre e devoluto de pessoas e bens e as respetivas chaves.

10 - Após ter tomado posse do dito prédio a Ré CC cedeu-o de arrendamento a terceiros.

11 - Por sua vez, os Autores foram residir para o prédio sito na Rua do … no local da …, freguesia de ..., em virtude de terem celebrado um arrendamento para habitação com a Ré CC, ficando obrigados a pagar-lhe a renda mensal no valor de € 350,00.

12 – No dia 30 de Junho de 2015, mediante instrumento notarial junto a fls. 58 e 58v, que se dá por integralmente reproduzido, a ora Autora BB declarou que “ (…) revoga, a partir desta data, a procuração por ela outorgada no dia vinte e cinco de Novembro de dois mil e catorze, neste Cartório Notarial, em que constituiu procuradora CC(…) ”.

13 - Os autores dirigiram à ré a carta comunicando-lhe a revogação da procuração realizada em 30 de Junho de 2015 no Cartório Notarial de ..., carta que veio devolvida em 14 de Julho de 2015, com a menção “objecto não reclamado” .

14 – A Ré CC tomou conhecimento da revogação da procuração, pelo menos, no dia 1 de Julho de 2015.

15 – A Ré Isaura Matos-Gestão de Património é uma sociedade unipessoal que se dedica à promoção imobiliária, construção de edifícios para venda, compra e venda de imóveis para revenda e arrendamento de bens imóveis.

16 – A Ré CC a gerente e única socia da sociedade Ré.

17 - No dia 3 de Julho de 2015, no Cartório Notarial de ... da licenciada EE, a ora ré CC, na qualidade de procuradora e em representação da ora autora e com consentimento do cônjuge marido desta, declarou vender a Isaura Matos-Gestão de Património Unipessoal, Lda., e esta, que figura nesse acto como representada pela única sócia e gerente CC, declarou comprar, pelo preço já recebido de € 42.000,00, o prédio urbano identificado no ponto 1).

18 – Consta ainda do teor dessa escritura pública de compra e venda o seguinte “sobre a fracção subsistem registadas na citada conservatória duas hipotecas, uma a favor do Banco Crédito Predial Português S.A., (…) e outra a favor do Banco Santander Totta, S.A. (…) uma penhora a favor do Banco Banif Mais, S.A. (…) ”.

19 - Pela apresentação nº. ..., foi inscrito, na Conservatória do Registo Predial de ..., o acto de aquisição do prédio descrito em 1), a favor da Isaura Matos-Gestão de Património Unipessoal, Lda.

20- Pela apresentação … de 29/09/2015, foi registada uma penhora a favor da Fazenda Nacional sob o dito prédio por divida da Ré Isaura Matos-Gestão de Património Unipessoal, Lda.

21 – A Ré CC dirigiu à Autora a carta que consta de fls. 60 dos autos, datada de 7 de Julho de 2015, por esta recepcionada, a qual se dá por integralmente reproduzida, comunicando-lhe a venda do prédio identificado em 1), com base na procuração outorgada no dia 25 de Novembro de 2014.

22 – Contrariamente ao que ficou a constar nessa escritura pública de compra e venda, a Ré CC comunicava ainda que “ (…) Informa ainda que foram assumidas todas as dívidas, referentes ao imóvel em sede de Escritura Pública, pelo comprador (…) ”.

23 – Até a presente data a Ré CC não procedeu ao pagamento das dívidas, em substituição dos Autores, desonerando estes.

24 – A Ré CC efectuou os seguintes depósitos bancários na conta da Autora: Dezembro de 2014 – € 90,07; Fevereiro de 18/02/2015 – € 90,07; Abril de 2015 - € 200,00; Julho de 2015 – € 314,00, Agosto de 2015 – € 188,49; Setembro de 2015 - € 188,49; Outubro de 2015 - € 188,49; Dezembro de 2015 - € 368,98; Fevereiro de 2016 - € 376,82; Março de 2016 - € 188,41; Abril de 2016 - € 188,41; Junho de 2016 - € 188,41;

25 - A partir de Julho de 2015, os Autores deixaram de pagar a renda relativo ao contrato de arrendamento a que se alude em 10.

26 - A Ré CC instaurou um procedimento especial de despejo no Balcão Nacional do Arrendamento para entrega coerciva do locado processo que correu termos com o nº 4302/15.3IPRT por falta de pagamento de rendas, com efeitos a partir de 17 de Setembro de 2015.

27 - A Ré CC instaurou uma acção executiva para pagamento de quantia certa contra os ora Autores que corre seus termos no Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 2, com o nº 5426/16.5T8STB, em que é agente de execução a solicitadora FF e vem reclamada a quantia exequenda de € 3.835,70 com juros, despesas e honorários do agente de execução provisoriamente fixados em € 1.264,30, o que tudo perfaz o valor em dívida fixado provisoriamente em € 5.100,00.

28 - No âmbito dessa acção executiva foi efectuada a penhora da quantia de € 41,37 da conta à ordem de que a Autora é titular no Banco Santander Totta com o nº….

29 - No âmbito da acção executiva que corre agora termos no Juízo de Execução de Setúbal – Juiz 1 com o nº 2696/15.0T8STB após redistribuição na secção de execução da Comarca de Setúbal do processo que correu termos no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de ... com o nº 3989/06.2YXLSB-A foi efectuada a penhora aos Autores do reembolsos de IRS dos anos de 2014 e 2015, nos valores respectivamente de € 4.261,46 e de € 808,04.

30 - Nessa execução mantem-se a penhora na pensão de reforma por invalidez que a Autora recebe da Caixa Geral de Aposentações desde Março de 2016 á razão de €446,38/mês à ordem da referida execução.

31 - Desde Maio de 2016 os Autores arrendaram outra habitação mediante o pagamento da renda mensal de € 200,00.

32 - Os Autores apresentaram uma queixa-crime contra a Ré CC a qual deu origem ao inquérito NUIPC 906/15.2T9STC que corre seus termos no DIAP de ..., no qual findo o inquérito foi proferido despacho de acusação.

33 – A Autora e a Ré CC estabeleceram uma relação de proximidade.

34 – Na altura os Autores atravessavam dificuldades económicas.

35 – A procuração e o documento intitulado de declaração a que se alude em 5 e 6) foram subscritos em execução de um acordo verbal delineado entre e a Ré CC e os Autores em que aquela se responsabilizava pelo pagamento das dívidas destes e ficava com o prédio identificado em 1) para dispor livremente e como bem entendesse.

36 – Os Autores sentiram sofrimento, angustia, inquietação e perturbação com a actuação levada a cabo pela Ré CC.

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Conhecendo:

De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, nº 4, 637º, nº2 e 639º, ex vi art. 679º, todos do Código de Processo Civil.

Assim sendo, nos termos do preceituado nos arts. 608º nº 2, 635º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, cumpre focar os seguintes pontos, aliás bem delimitados pela conclusão II dos recorrentes:

– “O objeto do recurso é a questão jurídica relacionada com a validade ou invalidade da procuração irrevogável objeto dos autos – se é nula por falta de forma, dado não ter sido arquivada no Cartório Notarial”,

Tendo a Formação entendido como relevante, ao abrigo do nº1, al. do art. 672º do Código de Processo Civil,

- “Saber se o arquivamento da procuração irrevogável no Cartório Notarial constitui uma formalidade constitutiva (ad substantiam), cuja omissão importa a nulidade do negócio jurídico, como entendem as instâncias, ou se apenas tem tal natureza a exigência de tal acto ser praticado por instrumento público, como consideram as recorrentes e a Jurisprudência e Doutrina por estas citadas, é questão de muito elevada relevância jurídica, quer para estes autos, quer para a segurança do comércio jurídico e a prática contratual e notarial em geral.”

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Conforme o art. 262º do Código Civil, “Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente poderes representativos”. Procuração é o negócio jurídico unilateral, por meio do qual alguém - o dominus - atribui a outrem - o procurador - poderes para que este celebre negócios ou pratique outros atos jurídicos em sua representação e o substitua, assim, na prática desses atos ou negócios. O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último (art. 258º), sendo anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses (artigo 261.º, n.º 1).

O Código Civil, no seu art. 265º, nº3, prevê a possibilidade de a procuração ter sido conferida também no interesse do procurador. A principal consequência dessa alteração de equilíbrio de interesses relevantes na procuração é a irrevogabilidade da procuração. Porém, a referida norma, prevendo “procuração no interesse comum do dominus e procurador” e indicando a principal consequência, não refere quando é que se deve considerar que a procuração é no interesse de dominus e procurador, nem o que deve entender-se por “interesse”, nem ainda sobre o que deve recair o “interesse”.

Pedro Pais de Vasconcelos, em “A PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL, 2ª ed., págs. 99/100, alerta que o dominus tem, em princípio, um qualquer motivo para outorgar, pois de outro modo não o faria. De modo semelhante, também o procurador tem algum motivo para não renunciar à procuração e para exercer os poderes de representação. Há sempre uma razão que leva o procurador a exercer os poderes outorgados. No entanto essa razão não pode ser considerada como um interesse relevante para aferir se a procuração é no interesse exclusivo do dominus ou no interesse comum. Se assim fosse, verificar-se-ia que todas, ou quase todas, as procurações seriam no interesse comum. 

O interesse que é relevante na concretização do regime jurídico da procuração, no que respeita à revogabilidade pode ser designado por interesse primário, enquanto o interesse que não é juridicamente relevante para aferir desse regime jurídico pode ser designado por interesse secundário

E, mais à frente o mesmo autor esclarece que “o que é essencial, para que se trate de uma procuração no interesse comum, é que haja mais de um interesse primário – mais de um interesse juridicamente relevante – na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente à procuração. (…) O procurador terá um interesse na procuração quando esta for útil para prosseguir um fim deste, no quadro da relação subjacente. (…) O interesse primário deve por isso ser próprio, específico, objetivo e direto na execução do negócio que constitui a relação subjacente, de tal modo que o procurador tenha uma posição própria no âmbito da relação de representação, uma posição autónoma da posição da pessoa que representa. Uma posição que lhe permita exercer a sua própria vontade negocial diferentemente e autonomamente da vontade negocial do outorgante da procuração, dentro daquilo que a relação subjacente lhe permita ou de acordo com o que a relação subjacente implique, uma posição que atribua ao procurador um poder próprio” - Ob. Cit. Págs. 102 a 105.

Com o introito acabado de fazer, temos como indiscutível que a situação configurada nos autos é de uma procuração irrevogável, tal como prevê o art. 265º, nº3, do Código Civil.

Com efeito, como bem analisaram as instâncias, da leitura da procuração resulta que a mesma foi conferida no interesse da representante, interesse que se evidencia pelo facto de os representados, por referência ao direito de propriedade sobre o bem em questão - terem conferido àquela e no interesse dela – representante – poderes para vender a quem, pelo preço e condições que entendesse por convenientes, incluindo a si própria, o dito prédio, recebendo sinais, preços, dar quitação, outorgar e assinar a respetiva escritura (facto 5.)

Do conjunto de interesses para os quais a procuração foi outorgada, encontramos como “interesse primário do procurador”, a aferir na perspetiva da execução do negócio que constitui a relação subjacente, a venda do prédio identificado com uma vontade negocial diferente e autónoma da eventual vontade negocial da outorgante da procuração.

E o facto de a procuração não possuir a estipulação de “irrevogabilidade”, não lhe retira essa qualidade/efeito. A irrevogabilidade da procuração vigora independentemente de estipulação na procuração. Desde que exista um interesse relevante do procurador na procuração e que este interesse seja emergente da relação subjacente, a procuração é irrevogável nos termos do mencionado preceito. Não se trata, assim, de uma questão de poder ou não ser irrevogável, ou de poder ou não estipular a sua revogabilidade, o que releva é a verificação desse interesse relevante de ambos decorrente da relação subjacente – cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. Cit. Pág. 103/104 e Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 4-7-2019, Proc. 2939/15.0T8STR.E1.S1, em www.dgsi.pt.

Também da procuração se retira que à procuradora instituída lhe era dada autorização para junto do Banco Santander Totta, SA., e do Banco Banif Mais, SA., tratar de qualquer assunto relacionado com os créditos existentes em nome da mandante, renegociando os prazos, juros e as condições que entender por convenientes, podendo para o efeito assinar toda a documentação que se torne necessária. (facto 5).

Esta autorização tinha já a ver com a declaração exarada pela ré CC e junta aos autos como Doc. 10, a fls. 56vº, nos termos da qual aquela assumia todas as dívidas referentes ao mesmo imóvel, de que os autores eram devedores (Facto 8.).

Seria, uma promessa de liberação, com efeitos interpartes, e estranha a terceiro (credor), no caso, as entidades bancárias credoras (Facto 2.) – art. 444º, nºs 2 e 3, do Código Civil – para cuja execução os autores concediam poderes de agilização.

Sucede que a ré CC munida da procuração que lhe foi passada pelos autores, no dia 3 de Julho de 2015, no Cartório Notarial de ... da licenciada EE, na qualidade de procuradora e em representação da ora autora e com consentimento do cônjuge marido desta, declarou vender a Isaura Matos-Gestão de Património Unipessoal, Lda., e esta, representada pela única sócia e gerente, CC, declarou comprar, pelo preço já recebido de € 42.000,00, o prédio urbano identificado no ponto 1. da matéria de facto.

Porém, tal procuração, sendo uma procuração irrevogável como se deixou dito, tinha de obedecer a requisitos de forma para que a validade do ato celebrado (a escritura publica) não viesse a ser afetada (art. 268º do Código Civil).

Assim, dispõe o nº2 do art. 116º do Cód. Notariado:

2 - As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial.

Nos termos da transcrita norma, a procuração dos autos teria de ser lavrada por “instrumento publico” e o seu “arquivamento teria de constar no cartório notarial”.

Esta exigência foi introduzida no art. 127º do Cód. Notariado, aprovado pelo DL. 67/90 de 1 de março de 1990, introduzindo-lhe um nº3, e veio, depois, a ser reafirmada pelo novo Código do Notariado, aprovado pelo DL. 207/95, de 14 de agosto, transitando para art. 116º nº3 e constando agora no nº2 da mesma norma, mercê da alteração introduzida pelo DL. 250/96, de 24 de dezembro.

O regime de forma legal das procurações, que era unitário no Código de Notariado, aprovado pelo DL 47619 de 31 de março de 1967, passou, após as alterações introduzidas pelos referidos decretos leis, a ser distinto consoante a procuração fosse outorgada no interesse exclusivo do dominus ou também no interesse do procurador ou de terceiro, situação que o art. 265º, nº3 do Código Civil também já tinha acautelado para efeitos de revogabilidade, impondo que a revogação das procurações passadas também no interesse do procurador, fosse por mutuo acordo, salvo ocorrendo justa causa.

O regime especial da procuração irrevogável, ao passar a comportar um maior risco para o dominus, exigia agora uma certeza quanto à garantia de conformidade com a vontade do dominus, que não era suficientemente satisfeita com uma declaração que constasse de documento simples, ainda que reconhecido notarialmente.

Desta feita, a aludida norma do art. 116º do Cód. Notariado veio trazer àquele ato uma solenidade acrescida, com a intervenção do notário na execução/redação do conteúdo ínsito na procuração, podendo concluir-se que « (…) a “ratio” do nº2 do art. 116º do Cód. Notariado, e o seu sentido jurídico traduzem-se num agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral. Este agravamento tem uma finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração, de certeza quanto ao conteúdo e regime da procuração e de publicidade no interesse de terceiros, designadamente aqueles com quem o procurador venha a contratar no uso da procuração (…) a intervenção notarial promove a clarificação da situação, de modo a tornar claro que se trata de uma procuração irrevogável, que a mesma é outorgada no interesse do procurador ou de terceiro e não de uma típica procuração no interesse exclusivo do dominus. E, finalmente, permite ainda guardar no arquivo, no cartório notarial, o original do instrumento que titula a procuração, o que acarreta inegáveis vantagens de publicidade e segurança. » – cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Ob. Cit., pág. 245.

Voltando à situação dos autos, atentos os interesses que já apreciámos, a procuração passada pelos autores à ré CC deverá sujeitar-se aos aludidos requisitos de forma, para que a sua validade não fique afetada.

A recorrente fundamenta a sua pretensão de admissibilidade nos seguintes termos:

Saber se o arquivamento da procuração irrevogável no Cartório Notarial constitui uma formalidade constitutiva (ad substantiam), cuja omissão importa a nulidade do negócio jurídico, como entendem as instâncias, ou se apenas tem tal natureza a exigência de tal ato ser praticado por instrumento público, como consideram as recorrentes”, questão especificamente delimitada pela Formação.

A questão prende-se com a determinação das consequências da violação da forma legal, já que a norma do nº2 do art. 116º do Cód. Notariado, impõe a obrigatoriedade de a procuração ser lavrada por instrumento público e que o original seja arquivado no cartório notarial.

Nos termos conjugados dos arts. 220º e 364º do Código Civil, as exigências de forma podem ser ad probationem ou ad substantiam.

Do art. 364º do Código Civil, resulta que a forma pode ser exigida por lei “apenas para prova da declaração”. Nesse caso, a sua falta não é a causa de nulidade, mas apenas de dificuldade de prova. Sem a forma ad probationem, o ato é válido, mas não pode ser provado, a não ser por um meio mais solene, com força probatória superior.

Já a falta da forma ad substantiam acarreta a nulidade do ato.

Em regra, as exigências legais de forma são ad substantiam.

Esta conclusão retira-se do art. 220º do Código Civil que comina, em princípio, com nulidade o desrespeito pela forma exigida por lei. Admitindo, porém, que outro regime seja fixado em preceito especial.

A finalidade das exigências de forma deve resultar da lei.

Se não resultar claramente da lei que as exigências de forma se destinam apenas a provar a declaração, essas exigências deverão ser consideradas ad substantiam e a sua preterição provocará a nulidade do negócio nos termos do art. 220º do Código Civil. Neste sentido, cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit. pág. 250, citando Vaz Serra, Forma dos Negócios Jurídicos, BMJ, 86º, pág. 181.

Voltando à norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, nada resulta que a forma exigida o seja apenas para efeitos de prova da declaração. Como atrás expusemos, o preceito revela um interesse de tutela da autonomia privada, e o agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, tem a finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração e de certeza quanto ao conteúdo.

Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas de ad substantiam.

Neste sentido se pronunciou já o Supremo Tribunal Justiça, quanto à exigência de “instrumento publico para a procuração irrevogável” – cfr. Acs. de 25-10-2011, Proc. nº 1961/09.0TBSTB.E1.S1; e de 3-12-2015, Proc. nº 8210/04.5TBVNG.P2.S1, em www.dgsi.pt, este com a conclusão que “a procuração conferida também no interesse do procurador deve ser lavrada por instrumento público. Trata-se de exigência ou requisito de forma que deve considerar-se uma formalidade ad substantiam. Se desrespeitada a forma legal exigida para o negócio jurídico unilateral que é a procuração, a mesma é inválida para efeitos de se poder buscar nela, por interpretação, o interesse do mandatário, por válidas não serem as declarações de vontade constantes do escrito particular.”

As recorrentes isolam a formalidade “do arquivamento do original no cartório notarial”, pretendendo que tal formalidade constitua um “si minus” formal, sem relevância jurídica.

Não cremos que assim seja.

Como se deixou dito, o preceito revela um interesse de tutela da autonomia privada, e o agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, tem a finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração. Mas não só, a intervenção notarial, que permitiu a clarificação da situação, deve ainda contribuir para a publicidade e segurança do ato, no interesse de terceiros, designadamente, aqueles com quem o procurador venha a contratar no uso da procuração.

A forma exigida pela norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, constitui um único comando: “…instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, que não é cindível quanto aos seus efeitos – art. 9º, nº3 do Código Civil.

O arquivamento da procuração no cartório notarial”, teve por base as mesmas razões que ditaram a exigência de “instrumento publico” para a procuração irrevogável (Pires de Lima e Antunes Varela, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, I, 3ª ed. pág., 58, dizem que o sentido da lei, coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal): a solicitação de procurações irrevogáveis de pessoas juridicamente impreparadas, tinha-se revelado de algum perigo, reclamando cautelas acrescidas não só para a tutela da liberdade e discernimento do dominus na outorga da procuração, como também para a tutela de terceiros, que venham a contratar com o procurador.

Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas “in totum” de ad substantiam.

Assim, é-nos dado concluir que a procuração utilizada na escritura de compra e venda do imóvel dos autos, não obedecia aos requisitos formais para a intervenção da ré, em representação dos autores.

As consequências jurídicas para a omissão da forma legal exigida, vamos encontrá-las na interpretação conjugada dos arts. 364º e 220º do Código Civil que nos dizem o seguinte:

1. Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

2. Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.

Por sua vez o art. 220º do mesmo Código, que

A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.

Como no caso concreto é feita expressa referência na lei à necessidade de a procuração ser “lavrada por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, quando a mesma tenha sido emitida em beneficio do representante (como foi, nos termos que deixámos expressos), nenhuma duvida pode subsistir que nos encontramos perante uma formalidade ad substantiam (como igualmente deixámos expresso), cuja preterição conduz à nulidade da própria procuração.

Nesta conformidade, porque a declaração de nulidade da procuração naturalmente irrevogável, por defeito de forma, tem efeitos retroativos nos termos do art. 289º do Código Civil, que implicará a ineficácia do negócio celebrado com ela, a escritura de compra e venda do prédio dos autores celebrada com ela é ineficaz em relação aos autores – art. 268º, nº1 do Código Civil.

Termos em que o acórdão recorrido, não merece reparo.

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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I - Se não resultar claramente da lei que as exigências de forma se destinam apenas a provar a declaração, essas exigências deverão ser consideradas ad substantiam e a sua preterição provocará a nulidade do negócio nos termos do art. 220º do Código Civil

II - Da norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, nada resulta que a forma exigida o seja apenas para efeitos de prova da declaração. O agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, tem a finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração e de certeza quanto ao seu conteúdo.

III - A forma exigida pela norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, constitui um único comando: “…instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, que não é cindível quanto aos seus efeitos – art. 9º, nº3 do Código Civil.

IV - “O arquivamento da procuração no cartório notarial”, teve por base as mesmas razões que ditaram a exigência de “instrumento publico” para a procuração irrevogável: a solicitação de procurações irrevogáveis de pessoas juridicamente impreparadas, tinha-se revelado de algum perigo, reclamando cautelas acrescidas não só para a tutela da liberdade e discernimento do dominus na outorga da procuração, como também para a tutela de terceiros, que venham a contratar com o procurador.

V - Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas “in totum” de ad substantiam.

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Decisão:

Na improcedência da revista, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 29-09-2020

Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.

Maria Clara Sottomayor – Juíza Conselheira 1ª adjunta

António Alexandre Reis – Juiz Conselheiro 2º adjunto