RECURSO DE APELAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
GRAVAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
ERRO GROSSEIRO
MEIOS DE PROVA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Sumário


I - Os recorrentes/apelantes justificaram a pretensa alteração de vários pontos da decisão da matéria de facto em depoimentos de testemunhas que foram gravados. Logo, ao prazo normal de interposição do recurso e da resposta, acrescem 10 dias, conforme art. 638.º, n.º 7, do CPC.

II - Por isso, independentemente da apreciação do mérito de tal impugnação, era vedado à Relação extrair, a posteriori, um efeito que contende com a admissibilidade do próprio recurso.

Texto Integral


Processo nº 1779/18.9T8BRG.G1.S1


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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.

1-Freguesia de Alheira e Igreja Nova, AA e mulher, BB e CC e mulher, DD, propuseram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EE e mulher, FF e contra GG e mulher, HH, pedindo que:

-Fosse reconhecido que os 2.ºs co -Autores (AA e mulher, BB) são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico (que identificaram), e que dele faz parte o muro de pedra sobreposta que o delimita a nascente, sendo os Réus condenados a reporem-no no estado original (recolocando-lhe as pedras subtraídas e retirando a coluna de sustentação lateral do portão que nele implantaram), e a pagarem-lhes a quantia de € 2.500,00 (a título de indemnização por danos não patrimoniais que lhes causaram, com a sua atuação violadora dos direitos que aqui pretendem ver reconhecidos);

-Fosse reconhecido que os 3.ºs co -Autores (CC e mulher, DD) são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico (que identificaram), e que dele faz parte o muro de pedra sobreposta com cerca de 37 metros localizado a norte, sendo os Réus condenados a reporem-no no estado original (recolocando-lhe as pedras subtraídas e retirando os esteios e rede que nele colocaram), e a pagarem-lhes a quantia de € 5.000,00 (a título de indemnização por danos não patrimoniais que lhes causaram, com a sua atuação violadora dos direitos que aqui pretendem ver reconhecidos);

-Fosse reconhecido que o caminho que passa junto dos prédios dos 2.ºs coautores e dos 3.ºs coautores (que melhor identificaram) pertence ao domínio público, sendo os Réus condenados a desobstrui-lo (retirando todos os obstáculos que nele colocaram, nomeadamente os portões implantados nas suas extremidades, as redes e os esteios), e a absterem-se de futuramente o obstruírem, sob pena de pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00, por cada infração ou dia de infração.

2-Alegaram para o efeito, em síntese, serem, quer os 2.ºs coautores (AA e mulher, BB),  quer os 3.ºs coautores (CC e mulher, DD), proprietários de um prédio rústico, confinando qualquer deles com um mesmo caminho vicinal (sendo que o prédio dos 2.ºs coautores pelo seu lado nascente, e o prédio dos 3.ºs coautores pelo seu lado norte), pertencendo-lhes igualmente os muros divisórios, em pedra sobreposta, que aí se encontram.

Mais alegaram serem os 1.ºs co-réus (EE e mulher, FF) proprietários de um outro prédio rústico, de que os 2.ºs co -Réus (GG e mulher, HH) são usufrutuários,  confinando o mesmo,  a sul e a poente, com o caminho vicinal já referido.

Alegaram ainda os Autores que este, em terra batida, com cerca de 158 metros de extensão, implantado entre extremas de plúrimos prédios privados, mas cujo leito lhes é estranho, faz desde tempos imemoriais a ligação pedonal entre o Lugar … e o Lugar …, sendo usado pela população em geral, pela maior rapidez e comodidade que oferece, sem oposição de ninguém, e beneficiando já de um poste de iluminação pública; e, por isso, possuindo natureza pública.

Contudo (e sempre segundo a alegação dos Autores), entre finais de Julho e finais de Setembro, de 2017, os Réus vedaram o dito caminho (nomeadamente, por meio de portões colocados nas suas extremidades, esteios e rede de arame, tendo para o efeito retirado pedras dos muros divisórios dos prédios dos 2.ºs coautores e dos 3.ºs coautores); obstruíram a sua passagem (nomeadamente, com ferros e rede plástica); e retiraram a rede elétrica de alimentação do candeeiro público, e mesmo este.

Por fim, alegaram que, mercê da atuação dos Réus, os 2.ºs coautores (AA e mulher, BB) e os 3.ºs coautores (CC e mulher, DD) sofreram incómodo, mal-estar e nervosismo, sendo que estes últimos foram ainda acometidos de enorme ansiedade, desgosto e perturbação do sono, por várias noites.

3- Regularmente citados, os Réus (EE e mulher, FF, e GG e mulher, HH) contestaram, pedindo que a ação fosse julgada improcedente, sendo eles próprios absolvidos de todos os pedidos deduzidos contra si.

Alegaram para o efeito, em síntese, reconhecerem os Autores como proprietários dos prédios invocados como sendo deles; mas impugnarem tudo o demais por eles alegado (nomeadamente, a propósito das confrontações dos respetivos prédios com caminho vicinal, da propriedade dos muros de pedra que marginam os ditos prédios, ou da natureza pública do dito caminho vicinal, defendendo constituir o mesmo mero atalho ou atravessadouro, abolido pelo art. 1383 do CC de 1966).

Mais alegaram terem, de facto, realizado obras de vedação do dito caminho; mas terem-no feito por o mesmo ser propriedade sua, impugnando ainda a verificação de quaisquer danos que assim tivessem causado aos Autores.

4- Foi proferido despacho no qual foi dispensada a realização de audiência prévia; saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); fixando o valor da ação em € 65.991,00; identificando o objeto do litígio e enunciando os temas da prova; apreciando os requerimentos probatórios das partes e agendando a realização da audiência final.

5-Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo a ação totalmente procedente e, em consequência:

a. Reconheço que os 2ºs Autores AA e BB são donos e legítimos possuidores do prédio inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo 1977º, descrito nos artigos 1- a 5-, dos factos provados;

b. Reconheço que faz parte daquele prédio, sendo os 2ºs Autores AA e BB os seus únicos donos e possuidores, o muro de pedra sobreposta que o delimita a nascente;

c. Condeno os Réus a repor tal muro ao estado original, recolocando-lhe as pedras subtraídas e retirando a coluna de sustentação lateral do portão que estes lá colocaram;

d. Condeno os Réus a pagar aos 2ºs Autores AA e BB a pagar-lhes a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais;

e. Reconheço que os 3.ºs Autores CC e DD são donos e legítimos possuidores do prédio inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo 1969, descrito nos artigos 6- a 10-, dos factos provados;

f. Reconheço que faz parte daquele prédio, sendo os 3.ºs Autores CC e DD os seus únicos donos e possuidores, o muro de pedra sobreposta com cerca de 37 metros, localizado a norte;

g. Condeno os Réus a repor tal muro ao estado original, recolocando-lhe as pedras subtraídas e retirando os esteios e redes que por estes aí foram colocados;

h. Condeno os Réus a retirar os esteios e redes que foram colocados na sua propriedade;

i. Condeno os Réus a pagar aos 3.ºs Autores CC e DD a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais;

j. Reconheço que o caminho descrito nos artigos 15- a 38-, dos factos provados, pertence ao domínio público;

k. Condeno os Réus a desobstruir o referido caminho, retirando todos os obstáculos que nele colocaram, designadamente, os portões implantados nas suas extremidades, as redes e esteios;

l. Condeno os Réus a, de futuro, absterem-se de obstruir o caminho, sob pena de pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 50,00 (cinquenta euros), por cada dia de infração.

As custas do processo são a cargo dos Réus, por força do seu decaimento (cfr. artigo 527º/1/2, do CPCiv).

Valor da ação: o fixado no despacho saneador a fls. 85.

Registe e notifique”.

6- Inconformados com esta decisão, os Réus (EE e mulher, FF, e GG e mulher, HH) interpuseram recurso de apelação, pedindo que fosse provido, substituindo-se a sentença recorrida por decisão julgando improcedentes todos os pedidos formulados, e deles os absolvendo.

Recurso de apelação que mereceu a seguinte decisão:

“Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:

- Rejeitar, por extemporâneo, o recurso de apelação pretendido interpor pelos Réus (EE e mulher, FF, e GG e mulher, HH).

Custas da apelação pelos Réus (art. 527.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC)”.

7- De novo inconformados, vêm os réus apresentar recurso de revista, concluindo as alegações nos seguintes termos:

“A – O recurso apresentado no Tribunal da Relação de Guimarães cumpre todos os requisitos e obrigações constante do artigo 640º do Código de Processo Civil

B – O Tribunal da Relação de Guimarães não podia, assim, rejeitar o mesmo por extemporaneidade, tanto mais que compreendeu toda a matéria, ficou perfeitamente ciente da questão e tinha em mãos, transcritos e com apontamento do dia, hora, minuto e segundo em que foram gravados, os depoimentos que os aqui recorrentes entendem fundamentavam a sua discórdia na matéria de facto

 C - Tanto mais que “acordou” em 68 páginas de acórdão e se pronunciou sobre o objeto do recurso: a classificação do atravessadouro como caminho publico

D - A interpretação pelo Tribunal quanto ao constante nos artigos 1383 e 1384 do Código Civil de que um carreiro, ou ligação pedonal entre lugares da freguesia, para encurtar caminho, com uma extensão de cerca de 158 metros e uma largura de cerca de 80 centímetros, que nem considerado foi na toponímia local, seja considerada caminho publico é inconstitucional porque viola o principio da legalidade e da boa fé constante dos artigo 3º nº 2, 202º e 203º da Constituição da Republica Portuguesa

E - Dos autos constam todos os elementos necessários para este Supremo Tribunal possa, com base na matéria de facto dada como provada e daquela que deveria ter sido alterada pela Relação, proferir decisão que considere a inexistência de qualquer caminho publico no local como o foi descrito pelos autores e, ao mesmo tempo, por vaga e falta de concretização e de elementos, absolva os réus dos pedidos peticionados pelos autores AA e mulher e CC e mulher

F - Conforme, aliás, consta das conclusões apresentadas na Apelação e supra transcritas e que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidas.

 G - Ao decidir conforme o decidiu, violou o acórdão aqui em recurso o disposto nos artigos 640º do Código de Processo Civil, 1383º e 1384º do Código Civil, bem como o disposto nos artigos 3º nº 2, 202º e 203º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, Excelentíssimos Conselheiros,

Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, ser o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães revogado e substituído por outro que decida em conformidade com o supra alegado resultando na improcedência total dos pedidos formulados pelos ora recorridos e autores em primeira instância”.

Responde a autora Freguesia, concluindo:

“-   Deve o recurso quanto à questão de violação da lei processual sobre   os   poderes   de reapreciação da matéria de facto ser julgado improcedente;

-   Deve o recurso, quanto   à   matéria   de   direito, não   ser   admitido, por   verificação   da exceção da dupla conforme”.


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Não tendo o recurso de revista sido admitido no Tribunal recorrido, reclamaram os recorrentes do indeferimento, reclamação que foi deferida e admitido o recurso como de revista, a subir nos autos e com efeito devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre conhecer e decidir.


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Conhecendo:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações – artigo 635 do Código de Processo Civil – as questões a decidir respeitam à:

-Rejeição do recurso de apelação pela Relação.

Embora do acórdão recorrido resulte que, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto, a rejeição da apelação resulta do incumprimento do ónus de impugnação, e no segmento respeitante à matéria de direito, por extemporaneidade, verifica-se que do dispositivo do mesmo acórdão apenas se diz: “Rejeitar, por extemporâneo, o recurso de apelação pretendido interpor pelos Réus (EE e mulher, FF, e GG e mulher, HH).

Assim, mesmo verificando que foi analisado o recurso no que respeita à matéria de facto e se tenha concluído pelo incumprimento do ónus de impugnação por parte dos recorrentes, nada disso consta da decisão.

Deste modo, o objeto deste acórdão restringe-se a saber se se verificavam fundamentos para a apelação ser recebida e não rejeitada, ou seja, se se verificam os pressupostos para, ao prazo normal do recurso, acrescerem 10 dias, conforme estipula o nº 7 do art. 638, do CPC, isto é, saber se o recurso tem por objeto a reapreciação da prova gravada.


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Não tendo interesse para a decisão do objeto deste recurso a reprodução da matéria de facto apurada, omite-se essa reprodução.

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No acórdão recorrido são do seguinte teor os fundamentos para a rejeição do recurso, neste segmento (impugnação da matéria de facto):

“Concretizando, considera-se que os Recorrentes (Réus) não cumpriram integralmente o ónus de impugnação que lhes estava cometido pelo art. 640, n.º 1 do CPC, nomeadamente por não terem indicado - devida e suficientemente - os «concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida».


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Concluindo, e quanto ao cumprimento do ónus de conclusão, previsto no art. 639, n.º 1 do CPC, não tendo os Réus recorrentes (EE e mulher, FF,   e  GG  e   mulher,   HH)   indicado,    nas conclusões do recurso de apelação que apresentaram, quais os concretos pontos de facto que consideravam incorrectamente julgados, limitaram o respectivo objecto à matéria de direito; e, em conformidade, foi o mesmo recurso apresentado de forma extemporânea, devendo por isso ser aqui rejeitado”.

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-Rejeição do recurso de apelação, no segmento respeitante à impugnação da matéria de facto:

- A rejeição do recurso de apelação resulta de que, no entender da Relação, os apelantes não indicavam as concretas provas que serviriam para impor uma decisão diferente da decisão da matéria de facto fixada pela 1ª Instância.

Dispõe o art. 640  do CPC, com a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”.

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

(…)” (sublinhado nosso).

No acórdão recorrido entendeu-se que os recorrentes apenas não tinham dado cumprimento ao ónus especificado na al. b) do nº 1 e a) do nº 2, do art. 640 do CPC (não especificaram os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e consequentemente não indicaram as passagens da gravação em que se funda o recurso).

O que equivale por dizer que o acórdão recorrido entendeu terem sido especificados no recurso de apelação, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como a decisão que deveria ser proferida sobre essa questão.

Vem sendo entendimento deste STJ que:

 “1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do nº1 do art. 640 do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes ( e que consta atualmente do art. 640, nº 2, al. a) do CPC) . 2. Este ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da ata, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso” - Ac. nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, de 29-10-2015.

“V- O cumprimento dos diversos itens do art. 640 do CPC não constitui um fim em si, antes se perfila teleologicamente como um meio de delimitar a quaestio decidendi e respetiva solução. VI- Ao indagar da suficiência da alegação deverá tomar-se em linha de conta o princípio da proporcionalidade; trata-se de um princípio intrínseco e mesmo estruturante do Estado de direito, postulando o entendimento de que as medidas a adotar pelo juiz, nomeadamente restritivas, deverão conter-se na “justa medida” do necessário à prossecução dos fins a que vão intentadas".Ac. STJ de 6-11-2018, Proc. nº 349/14.5T8CLD-B.C1.S1.

Estando em causa um direito fundamental, como o é o direito ao recurso na vertente da impugnação da matéria de facto, só em casos de erro grosseiro ou omissão essencial, que dificulte a compreensão do objeto do recurso e das questões a decidir, é que o recurso pode ser rejeitado por incumprimento do ónus previsto no artigo 640 do CPC. Neste sentido, se pronunciou o Ac. do STJ de 14-02-2017, Proc. nº 1260/07.1TBLLE.E1.S1, segundo o qual apenas podem conduzir à rejeição liminar e imediata do recurso violações grosseiras, por exemplo, uma omissão absoluta e indesculpável do cumprimento do ónus contido no artigo 640 do CPC, que comprometa decisivamente a possibilidade do Tribunal da Relação proceder à reapreciação da matéria de facto.

No caso vertente não está em causa que os recorrentes identificaram (na motivação, mas não nas conclusões) os factos que consideram incorretamente julgados e a decisão que sobre os mesmos pretendem seja dada pelo Tribunal da Relação.

A questão incide sobre os concretos meios probatórios que no entender dos apelantes impõem decisão diversa da recorrida – art. 640 nº 2 do CPC (e a indicação das passagens da gravação).

Respigando as alegações do recurso para a Relação, relativamente à matéria de facto e concretamente no segmento respeitante ao ónus de impugnação relativo aos concretos meios probatórios, aí se diz:

- Entendem os réus que não deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos números 4, 5, 9, 10, 14, 18, 19, 20, 22, 23. 24, 25, 26, 41, 42, 43, 45 e 52 porquanto não têm apoio na sua resposta afirmativa quer no depoimento das testemunhas, quer em toda a documentação constante dos autos

-Tais factos deveriam antes constar dos não provados.

Relativamente às pedras que os réus teriam retirado dos muros dos 2ºs e 3ºs autores, indicam como meio de prova:

- A todas as testemunhas questionadas sobre o assunto, veja-se, por exemplo a testemunha II, que depôs no dia 29 de Abril de 2019, estando o seu depoimento gravado no sistema áudio do Tribunal de 15:20:04 a 15:34:19 que, referindo-se aos muros, diz o seguinte: (transcreve parte do depoimento).

Relativamente à existência do caminho/carreiro, indicam:

- E a testemunha JJ, que prestou depoimento no dia 29 de Abril de 2019, estando mesmo gravado no sistema áudio do Tribunal de 15:56:23 a 16:25:23 e donde, questionado, quanto à existia e uso do caminho/carreiro, consta: (seguindo-se transcrição parcial do depoimento).

Relativamente aos sinais de que o prédio dos réus confrontava com o caminho, indicam:

- E são estes mesmos autores que não definem qual, ou quais, os sinais dos prédios dos réus que confrontam ou fazem estrema com o tal caminho identificam, apenas, que é o leito do próprio caminho Sinal mais que evidente que o leito do próprio caminho faz parte do prédio dos réus.

O que, aliás, foi referido – e nunca contrariado por outros – pela testemunha KK, que prestou depoimento no dia 29 de Abril de 2019, depoimento este gravado no sistema áudio do Tribunal de 17:04:56 a 17:19:47, onde, a dado passo diz o seguinte: (transcreve parte do depoimento).


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Por isso, entendemos que, no recurso de apelação, foram indicados os concretos meios probatórios que, no entender dos apelantes, impunham a reapreciação da prova gravada, acrescendo ao prazo normal do recurso dez dias, nos termos do art. 638, nº 7 do CPC.

Ainda que a indicação das passagens na gravação áudio não esteja exatamente correta, tal não se afigura como impeditiva de acrescer ao prazo normal 10 dias.

Estamos somente no âmbito da admissão do recurso de apelação.

No sentido do exposto vem a jurisprudência do STJ, que refere:

“II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.

V - Independentemente da perfeição/imperfeição da impugnação da matéria de facto, não pode o Tribunal da Relação considerar que o prazo de recurso de 30 dias, fixado no art. 80.º n.º 3 do CPT, não é aplicável, reduzindo-o para o prazo de 20 dias, previsto no n.º 1 desse mesmo artigo, para depois concluir que o recurso é extemporâneo e decidir no sentido da sua rejeição” – Ac. de 03-03-2016, Revista n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1.

“III - A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638.º, n.º 7, do NCPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação. 

IV - Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação da prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640.º, n.º 1, do NCPC” – Ac. de 28-04-2016, Revista n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção .

“I - É admissível recurso de revista do acórdão da Relação que, não admitindo o recurso de apelação por intempestividade, pôs termo ao processo (art. 671.º, n.º 1, do CPC). 

II - A apelante que sustenta a alteração da matéria de facto com base em depoimento testemunhal gravado beneficia da prorrogação do prazo de dez dias para recorrer, independentemente da regularidade da impugnação da matéria de facto e do respectivo mérito (art. 638.º, n.º 7, do CPC). 

III - De acordo com a orientação reiterada do STJ, a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640.º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal” – Ac. de  08-02-2018, Revista n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1 - 2.ª Secção.

“I - A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638.º, n.º 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação. 

II - Tendo a recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação da prova gravada, ainda que não tenha dado cumprimento ao ónus a que alude o disposto no art. 640.º, n.º 1, al. a), do referido diploma legal, terá que ser admitido o recurso interposto por tempestivo, devendo a Relação conhecer das demais questões suscitadas” Ac. de 05-02-2019, Revista n.º 1607/07.0RMLSB-F.L1.S1 - 1.ª Secção.

“I - Resultando das alegações do recurso de apelação que a recorrente pretendia a modificação do acervo factual com base, mormente, na reapreciação da prova testemunhal gravada, é de considerar que lhe aproveitava o prazo suplementar concedido pelo n.º 7 do art. 638.º do CPC, independentemente de, no julgamento do recurso, a Relação ter considerado que não haviam sido cumpridos os ónus de alegação vertidos no art. 640.º do CPC” – Ac. de  06-06-2019, Revista n.º 2215/12.0TMLSB-B.L1.S1 - 7.ª Secção.  

Os recorrentes/apelantes justificaram a pretensa alteração de vários pontos da decisão da matéria de facto em depoimentos de testemunhas que foram gravados. Logo, ao prazo normal de interposição do recurso e da resposta, acrescem 10 dias, conforme art. 638, nº 7 do CPC.

Por isso, independentemente da apreciação do mérito de tal impugnação, era vedado à Relação extrair, a posteriori, um efeito que contende com a admissibilidade do próprio recurso.

Como se refere no Ac. do STJ de 28-04-2016, no Proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, “A tempestividade dos recursos constitui um pressuposto processual atinente à sua admissibilidade, pelo que de modo algum o resultado alcançado aquando da apreciação do seu mérito poderá interferir em tal pressuposto cuja satisfação se deve reportar ao momento da sua interposição”.


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Face ao exposto há-de julgar-se procedente o recurso de revista.

Sumário elaborado nos termos do disposto no art. 663 nº 7 do CPC:

I- Os recorrentes/apelantes justificaram a pretensa alteração de vários pontos da decisão da matéria de facto em depoimentos de testemunhas que foram gravados. Logo, ao prazo normal de interposição do recurso e da resposta, acrescem 10 dias, conforme art. 638, nº 7 do CPC.

II- Por isso, independentemente da apreciação do mérito de tal impugnação, era vedado à Relação extrair, a posteriori, um efeito que contende com a admissibilidade do próprio recurso.


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Decisão:

Acorda-se na 1ª Secção do STJ em julgar procedente a revista, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para que:

a) Seja apreciada e decidida a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelos RR. apelantes;

b) Sejam apreciadas as demais questões suscitadas pelos RR. recorrentes no recurso de apelação.

Custas da revista a cargo da parte vencida a final.

Lisboa, 21-10-2020

Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.

Maria Clara Sottomayor – Juíza Conselheira 1ª adjunta

António Alexandre Reis – Juiz Conselheiro 2º adjunto