RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DESPACHO DO RELATOR
RECLAMAÇÃO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I – Quando no requerimento de recurso os recorrentes suscitam a questão da recorribilidade da decisão e nas contra-alegações o recorrido tem oportunidade de sobre a mesma se pronunciar, não há decisão -surpresa se o relator do processo não admitir o recurso, sem proceder ao convite a que se reporta o art.º 655.º do CPC.
II – Por força do artigo 370.º, n.º 2 do CPC, sabendo que no caso dos autos o recurso tem por objeto uma decisão final proferida num procedimento cautelar, “não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.”
III – Invocando os recorrentes o fundamento de recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Civil, têm de comprovar o trânsito em julgado do acórdão fundamento do tribunal da Relação e demonstrar que se verifica a alegada contradição de julgados, no sentido de ser “uma oposição frontal, não bastando uma oposição implícita ou pressupostos e tem de referir-se a questão que se tenha revelado essencial para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida” – cf. Acórdão do STJ de 03-10-2019 (Revista n.º 167/06.4TBMFR.L1.S2)

Texto Integral


                Processo n.º26622/18.5T8LSB.L1.S1



ACÓRDÃO



Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK intentaram procedimento cautelar comum contra LL e mulher, MM, STHV - Investments, Lda, NN, OO e Interconfor - Decorações de Interiores, Lda., formulando os seguintes pedidos:
a) Que se ordene a imediata cessação da atividade de restaurante e/ou restauração na loja nº … ..., correspondente ao nº …, Lisboa, mediante notificação pessoal dos requeridos por funcionário judicial no local, devidamente assistido por forças policiais, para se absterem de exercer no presente e no futuro, por si ou por interposta pessoa, toda e qualquer atividade de restaurante e/ou restauração na referida loja, autorizando-se, desde já, os requerentes a, expensas dos requeridos, retirarem a tubagem instalada na corete de ventilação do prédio, assim como a removerem os aparelhos de ar condicionado e extrator colocados na fachada sul do prédio, assim como a removerem para lugar seguro (fornecedor) as botijas de gás;

Quando assim não se entenda;
b) Que se ordene a notificação dos requeridos por funcionário judicial, assistido por forças policiais, para que cessem no momento e se abstenham de exercer no futuro, por si ou por interposta pessoa toda e qualquer atividade de restaurante e/ou restauração, na mencionada loja, ordenando-se aos mesmos a imediata retirada dos tubos de exaustão colocados nas caleiras de ventilação, bem como a retiradas das botijas de gás das caves e da loja e de todos os objetos ali colocados ou guardados, fixando-se o prazo máximo de 48 horas, tapando todos os buracos efetuados nas paredes, tetos e pavimentos estruturais do prédio, fixando-se uma sanção compulsória por cada dia de atraso no valor de € 5.000,00;
c) Em qualquer dos casos, que se ordene que o funcionário judicial, assistido pelas autoridades policiais, aponha selos nos equipamentos de queima e de extração de gases, até à sua completa remoção de modo a inviabilizar a sua utilização e assim garantir a eficácia da providência;
d) Que se ordene a notificação dos requeridos de que em caso de violação ou incumprimento da decisão decretada, além da infração do crime de desobediência qualificada, vão condenados numa sanção pecuniária compulsória de € 2.500,00 e legitima a execução pelos requerentes ou por quem os represente da decisão jurisdicional;
e) Que se ordene aos requeridos LL e MM que se abstenham de no futuro arrendar ou ceder a qualquer título a loja 18 a terceiros para nela exercerem a atividade de restaurante e/ou restauração;
f) Que se ordene a notificação dos requeridos LL e MM de que devem, no prazo de 5 dias, remover todos os objetos existentes nas boxes e que não lhes podem dar fim diverso ao que consta no título constitutivo da propriedade horizontal e do regulamento às boxes, apenas podendo estacionar viaturas uma em cada box, condenando-se, desde já, numa sanção compulsória de € 500,00 por cada dia de atraso.
g) Que seja concedida a inversão do contencioso.

2. Alegaram, para tanto, e em síntese, que:

- são proprietários e residentes em frações autónomas num prédio localizado em ..., Lisboa, no qual a requerida Interconfor foi, até 04.10.2018, proprietária de uma fração – loja localizada nesse prédio, destinada a comércio e serviços, onde era exercida a atividade de exposição e comércio de móveis e utensílios de cozinha;

- desde 04.10.2018 os proprietários dessa fração autónoma são os ora requeridos LL e mulher, MM. Sucede que estes últimos cederam a mencionada loja à requerida STHV, de que os também requeridos NN e OO são sócios gerentes, os quais realizaram obras não autorizadas na aludida loja e em finais de setembro de 2018 aí abriram um restaurante, denominado ...;

- uma vez que o aludido local não está destinado à restauração, não dispõe de condições de ventilação nem de acesso ao abastecimento de gás, os requeridos, sem autorização, instalaram na corete destinada à renovação do ar das casas de banho das habitações um tubo de exaustão;

- esse tubo, além de reduzir em 40% o caudal de renovação do ar das casas de banho, pelo facto de ser composto por vários tubos aparafusados liberta gases que emitem cheiros nauseabundos, sujam tudo e põem em causa a saúde e a vida dos habitantes do prédio;

- acresce que os requeridos instalaram nas traseiras da loja um extrator de fumos e gases que são expelidos diretamente para o logradouro, a uma altura de apenas 2,20 metros, propagando-se a todo o prédio;

- por outro lado, uma vez que a dita loja não tem acesso a gás da companhia, os requeridos decidiram utilizar na sua atividade botijas de gás, que armazenam em grande quantidade na própria loja, junto à corete de ventilação das caves e, bem assim, em três boxes localizadas na cave, com todo o perigo de rebentamento que isso implica;

- acresce que das máquinas da loja e do funcionamento desta provêm ruídos, mesmo de noite, que obstam ao descanso dos moradores;

- finalmente, os requeridos acumulam no exterior lixos provenientes do restaurante, contaminando o pavimento do logradouro e o passeio público.

Concluem que todos estes factos lesam os requerentes na sua saúde, põem a sua vida em perigo, e causam danos patrimoniais, seja pela desvalorização que implicam das suas casas, seja pela despesa que será necessário realizar para recolocar o prédio no estado em que se encontrava, nomeadamente no que concerne à sua limpeza.

3. Os requeridos STHV, NN e OO contestaram, arguindo a incompetência do tribunal quanto à matéria e a ineptidão da petição inicial, defendendo a legalidade da exploração de um restaurante na dita loja e impugnando o alegado quanto aos cheiros, fumos e ruídos provenientes do restaurante.

Alegaram ainda que investiram todo o seu dinheiro naquele negócio e contraíram empréstimos bancários, dando trabalho a 12 pessoas, pelo que o encerramento do restaurante iria causar mais prejuízos do que benefícios.

4. Os requeridos Interconfor, LL e MM também contestaram, arguindo a ilegitimidade dos requerentes e, bem assim, dos requeridos, afirmando serem alheios a tudo o alegado na petição inicial e concluindo pela improcedência da providência.

5. Os requerentes responderam às exceções alegadas pelos requeridos, pugnando pela sua improcedência.

6. Foi proferido despacho que julgou improcedente a excepção de incompetência do tribunal quanto à matéria.

7. No Tribunal de 1ª instância foi proferida sentença, na qual, após se terem julgado improcedentes a arguição de ineptidão do requerimento inicial e de ilegitimidade adjetiva dos requerentes e dos requeridos LL, MM e Interconfor, se decidiu não decretar as providências requeridas.

8. Os requerentes apelaram da sentença, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa julgado a apelação improcedente e, consequentemente, mantido a sentença recorrida.

9. Inconformados, os requerentes vieram interpor recurso de revista.

10. O Relator não admitiu o recurso de revista (cf. fls.463/468).

11. Os Recorrentes vieram apresentar Reclamação para a Conferência do despacho do Relator, por, no seu entendimento, se verificar uma situação de contradição de acórdãos (entre o proferido nestes autos e o Acórdão da Relação de Lisboa, de 4/03/2004 - processo nº10334/2003 -, bem como se verificar “a nulidade da decisão-surpresa”.

12. Os recorridos vieram responder.

13. Cumpre apreciar e decidir.

II. Do objeto da reclamação

Os Reclamantes vieram manifestar a sua discordância do despacho do Relator que não admitiu o recurso, bem como invoca “a nulidade da decisão-surpresa”.

            III. Fundamentação.

1. Releva para a decisão o que consta do relatório que antecede.

2. Do mérito da Reclamação

2.1. Da decisão-surpresa

Os recorrentes referem que não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 655.º do Código de Processo Civil, pelo que o despacho do relator que não admitiu o recurso configura uma decisão surpresa.

Prescreve o n.º1 do artigo 655.º do Código de Processo Civil que se entender que não pode conhecer-se do objeto do recurso, o relator, antes de proferir decisão, ouvirá cada uma das partes.

Como se sabe, o n.º3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil proíbe as “decisões-surpresas”, por serem violadoras do princípio do contraditório, e visa impedir que o juiz decida questões de direito ou de facto sem que as partes tenham a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (cf. Ac. do STJ, de 9/05/2002, in Sumários, 5/2002).

Ora, no caso presente, os Recorrentes, nas suas alegações, consciente dos problemas de admissibilidade do presente recurso de revista, expôs os seus argumentos quanto à admissão do recurso de revista que pretendia interpor.

Daí que, nessas suas alegações, tentou demonstrar que se verifica a contradição de Acórdãos, pelo que, concluía, o recurso devia ser admitido, com fundamento no disposto na alínea d) do n.º2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil (cf. fls.392/394, e fls.397, destes autos em papel).

Os Recorridos, nas suas contra-alegações, também se pronunciaram sobre essa mesma questão.

Assim, não se verifica a existência de uma decisão-surpresa quando as partes colocaram a questão ao Tribunal, discutiram essa mesma questão e o Tribunal de pronunciou somente sobre essa questão e sobre os argumentos esgrimidos pelas partes.

Depois do que se refere, a notificação a que se refere os requerentes configurava a existência de um ato inútil, proibido pela lei.

Deste modo, não se verifica a invocada nulidade.

2.2. Inadmissibilidade do recurso

Quanto à inadmissibilidade do recurso, como se referiu na decisão do Relator, com a qual se concorda na íntegra:

 “De acordo com o disposto no artigo 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, “das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.”

            No caso dos autos, o recurso tem por objeto uma decisão final proferida num procedimento cautelar, pelo que o recurso de revista apenas será possível se se tratar de um caso em que o recurso é sempre admissível.

            Os recorrentes invocam o fundamento de recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Civil segundo o qual “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: (…) d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”

            Os recorrentes invocam a contradição do acórdão recorrido com o acórdão da mesma Relação proferido no dia 04-03-2004, processo nº10334/2003-6, consultável em www.dgsi.pt. de que foi junta cópia simples a fls. 400 e segs.

            De acordo com os recorrentes, “existe contradição entre os acórdãos já que em relação ao fumus boni iuris, no acórdão fundamento se decidiu que o exercício de uma atividade de restauração numa fracção destinada a comércio e serviços constitui violação do disposto no artigo 1422.º, n.º 2, al. c), do Cód. Civil e por si só preenche o referido requisito, ao passo que no acórdão recorrido concluiu-se com um non liquet pois decidiu-se que «suscitar-se-nos-iam» fundadas dúvidas acerca da alegada violação do fim imputado à aludida fracção.”

            Por outro lado, ainda segundo os recorrentes, “quanto ao requisito periculum in mora, decidiu-se no acórdão fundamento que a violação, além de constituir fundamento suficiente para o decretamento da providência, só cessa quando se verifica a conformidade do uso com o fim e que a mesma constitui violação grave do direito dos condóminos não lhes sendo exigível que aguardem a natural tramitação da ação própria para ver cessada tal lesão; ao invés, no acórdão recorrido, convocou-se a ponderação da comparação de prejuízos, tendo-se concluído que os prejuízos dos requerentes (condóminos) não atingiriam a seriedade e gravidade necessários para justificar o encerramento cautelar do estabelecimento, com os previsíveis prejuízos que daí adviriam para a ora requerida STHV e respetivos trabalhadores.”

            Apesar dos recorrentes não terem comprovado nos autos o trânsito em julgado do acórdão fundamento, desde já adianta que não se verifica a alegada contradição de julgados.

Como se defendeu no Acórdão do STJ de 03-10-2019 (Revista n.º 167/06.4TBMFR.L1.S2), “a contradição de julgados relevante a que se refere o art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC tem de ser uma oposição frontal, não bastando uma oposição implícita ou pressupostos e tem de referir-se a questão que se tenha revelado essencial para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida.” No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 09-01-2019 (Revista n.º 135/18.3YHLSB-A.L1.S1).

Ora, as questões sobre as quais os recorrentes invocam existir contradição entre os acórdãos não foram decisivas nem essenciais para a sorte do litígio destes autos. Na verdade, compulsado o teor do acórdão recorrido, facilmente se alcança que o argumento principal para o não decretamento das providências requeridas foi a falta de titularidade pelos requerentes da situação jurídica condominial no prédio onde se localiza a fração onde está instalado o restaurante ... (cfr. fls.49 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa recorrido). Daí que, ao contrário do que é referido pelos recorrentes, não se verifica qualquer non liquet quando no acórdão recorrido se afirma que se “suscitam fundadas dúvidas acerca da alegada violação do fim imputado à aludida fracção”.

Pois no acórdão recorrido apenas se apreciam as questões respeitante à alegada violação do fim imputado à fração onde está instalado o restaurante e à verificação do periculum in mora como questões marginais sem valor determinante para a decisão emitida, pois, como se afirmou expressamente no acórdão recorrido, tais questões apenas teriam relevância “se os recorrentes tivessem demonstrado a titularidade dos direitos invocados, incluindo o de residirem no condomínio em questão”.

Ou seja, a questão fundamental em que assentou a decisão final do acórdão recorrido foi a de os recorrentes não terem demonstrado serem condóminos do prédio em causa, motivo pelo qual, as providências cautelares não foram decretadas.

Esta questão não foi sequer apreciada no acórdão fundamento de 04/03/2004 que baseou a sua decisão nos factos alegados pelos requerentes do procedimento cautelar segundo os quais esses requerentes eram os proprietários e habitantes de frações autónomas do prédio no qual estava instalado o estabelecimento de restauração cuja actividade se pretendia cessar.

Assim, não existe qualquer contradição do acórdão recorrido com o acórdão fundamento relativamente à questão fundamental de direito na qual se baseou a decisão da Relação proferida nestes autos, o que é motivo suficiente para se concluir pela não verificação dos requisitos da contradição de julgados previstos na al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, motivo pelo qual o recurso não deve ser admitido”.

Deste modo, a pretensão dos Recorrentes não merece acolhimento.

                        IV. Decisão

           

            Posto o que precede, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se o despacho reclamado.

           

           

            Custas pelos Recorrentes, fixando a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 3 de março de 2020

(Processado e integralmente revisto pelo signatário, que assina e rubrica as demais folhas)

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

Fátima Gomes

Acácio das Neves