OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
MEDIDA DE COACÇÃO
CRIME DE EVASÃO
REQUISITOS
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
Sumário

I – Constitui entendimento prevalecente na jurisprudência dos tribunais superiores que incorre na prática do crime de evasão não só quem se encontrar privado da liberdade em virtude de detenção ou de prisão, mas também quem estiver sujeito a obrigação de permanência na habitação, tenha ela sido aplicada a título de medida processual de coação ou para efeitos de cumprimento de pena.
II – As eventuais consequências processuais de agravamento das medidas cautelares que possam ou não resultar da violação dos deveres inerentes à medida de obrigação de permanência na habitação são realidade diversa da consequência tipificada na lei penal substantiva para a conduta do agente que, desrespeitando a autoridade pública encarregada do sistema estadual de justiça, viole a custódia oficial, quando se ausenta ilegitimamente do local a que, nos termos da competente decisão judicial, deveria estar confinado para cumprimento da medida privativa de liberdade.

Texto Integral

Recurso nº 760/17.0T9SJM.P1

Origem: T.J. Comarca de Aveiro, Ol. Azeméis- Juízo Local Criminal
Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
O Ministério Público acusou, em processo comum com intervenção de tribunal singular, B…, (nascido a 19/05/1976), imputando-lhes a prática de um crime de evasão, previsto e punido no artigo 352°, nº 1, do Código Penal.
A final da audiência de julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido, como autor do crime de evasão que lhe foi imputado, na pena de nove meses de prisão.
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Inconformado com o assim decidido, dele veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
«1- Ao conhecer do objeto do processo, nos termos do artigo 379º nº1 alínea c) conjugado com o disposto no artigo 29º nº5 da C.R.P., o tribunal “a quo” violou o princípio constitucional “non bis in idem” ex vi artigo 29º nº5 da C.R.P., porquanto conheceu de questões que não devia tomar conhecimento, uma vez que esses factos foram objeto de apreciação em outro processo, (reapreciação de medida de coação) sendo portanto a sentença nula por violação dos artigos supra referidos (379º nº1 e 29º nº5 da C.R.P.)
2- O tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 58º nº 5 C.P.P, ao não advertir o arguido de que as declarações do mesmo poderiam incorrer em responsabilidade criminal, não podendo as mesmas ser valoradas no presente processo, mormente o teor declaratório, veja-se que o douto tribunal requereu a junção de tais documentos para instruir o presente!
3- Importa ter em conta que o arguido tinha autorização para saída de atos médicos.
4- Sob pena de se violar o disposto no artigo 29º nº5 da C.R.P., uma vez que esses factos foram objeto de apreciação num outro processo.
Sem prejuízo,
4- O arguido vem acusado da prática de um crime de evasão p. e .p. no artigo 352º do C.P.
5- Salvo o devido e merecido respeito, a interpretação das normas deve ser feita num sentido restrito, e não se pode aplicar analogicamente ou subsumirem-se factos ao que não se encontra expressamente previsto, sob pena de violação do artigo 1º nºs 1 e 3 do C.P.
6- O tipo legal está inscrito no Título V “Dos crimes contra o estado”, no Capítulo I “Dos crimes contra a segurança do Estado”, na Secção II “Da tirada e evasão de presos e do não cumprimento de obrigações impostas por sentença criminal”.
7- Contrário à situação do presente caso, que inclusive tem uma norma própria que regula a situação e que atempadamente foi utilizada, mormente o artigo 203º do C.P.P
8- O Juiz decidiu não agravar a medida coativa, que dispunha de meios/mecanismos legais próprios para agravar a medida coativa por violação ou incumprimento das obrigações impostas, in casu, artigo 203º do C.P.P.
9- Aliás, só o veio a fazer com a prolação do acórdão condenatório, justificando, em parte, com a condenação cominada.
10- Ao autonomizar-se os factos e analogicamente recorrer-se a outra norma para tutelar a situação, viola-se o disposto no artigo 1º nº 3 do C.P.
11- A título exemplificativo, o D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, no seu artigo 44º nº2, dispõe de um recurso à lei penal como resposta a incumprimentos/injunções, o que expressamente contempla no normativo, caso distinto do que aqui se julga.
12- Redigiu a sentença, no ponto 38, o seguinte,
13- Agiu ainda o arguido de forma livre, deliberada e consciente, de forma homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior e através de processos de idêntica natureza, que foi reiterando durante o período de tempo acima referido, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida e punida por lei penal. “
14- Nos termos do artigo 14º do C.P., age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar; no caso sub judice é exigível para a consumação do crime que alguém tenha a intenção de se evadir
15- Nunca em momento algum foi intenção do arguido evadir-se, subtrair-se à ação da justiça, quando muito viola de forma grosseira a medida de coação.
16- Como decorre do que consta nos autos corroborado pelas declarações do próprio arguido, neste sentido vide o declarado pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, mormente o constante no Ficheiro 20200227115149_3893877_2870306 entre o minuto 12:15 até ao minuto 12: 25 “Senhora Juiz nunca me passou pela cabeça, estamos aqui a falar de um crime de evasão, até aqui as pessoas presentes nunca me passou pela cabeça fugir, nunca tive a polícia atrás de mim, sempre saí para consultas (...)”.
17- Ao decidir conforme o ponto 58 do recurso (transcrição do ponto 38) da sentença), o tribunal “a quo” viola o disposto no artigo 410º nº2 c) e 412º nº3, ocorrendo manifesto erro de apreciação de prova por violação do artigo 410º nº 2 c), e cumulativamente violação do disposto no artigo 412º nº3.
18- No entendimento da defesa, tal ponto deveria ser dado como não provado por não se verificarem os requisitos do dolo, uma vez que o arguido voltou sempre à sua habitação e nunca foi sua intenção frustrar-se à justiça, muito menos evadir-se.
19- Importante, e que se deve ter em conta são os factos, das violações constatadas serem sempre na sequência de uma saída autorizada.
20- Pelo que se requer a renovação de prova nos termos e para os fundamentos do artigo 430º nº1 e nº3 ambos do C.P.P.
21- No sentido do ora pugnado, veja-se a título exemplificativo o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 16-03-2011, processo nº 492/09.2PJPRT.P1, em que é Relator o Desembargador Moreira Ramos “Não comete o crime de evasão do artigo 352º do Código Penal aquele que, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação da obrigação de permanência na habitação, viola essa obrigação, abandonando a casa onde cumpria a medida.”
A ter-se outro entendimento,
22- Deve a pena ser diminuída no seu quantum por ser manifestamente desproporcional face aos factos que se consideraram provados
23- Seja porque o arguido regressou sempre voluntariamente à sua habitação
24- Seja pela sua confissão dos factos, seja porque tal decorre por período de tempo restrito, muitas vezes decorrente da sua condição buscar comida géneros.
25- Ao cominar a pena nos moldes que antecedem o presente recurso, a sentença viola o preceito no disposto no artigo 18º nº2 da C.R.P ocorrendo manifesta inconstitucionalidade por excessiva desproporcionalidade na sanção aplicada.
26- Ao ser condenado a pena do arguido deve ser especialmente atenuada pelo mesmo ter confessado os factos e se demonstrar arrependido com a prática dos mesmos,
27- Ao não aplicar a atenuação especial da pena caso entenda que o arguido deve ser condenado, o tribunal “a quo” viola o disposto no artigo 352º do Código Penal, bem como o disposto no artigo 72º nº1 e nº2 c).»
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Na 1ª instância, o Ministério Público respondeu à motivação do recurso, sintetizando a sua posição, de concordância com a sentença impugnada, nos seguintes termos:
«1. O arguido B… foi condenado como autor material de um crime de evasão, p. e p. pelo artigo 352º, nº 1, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão.
2. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense, afirma que o bem jurídico protegido por esta incriminação é a segurança da custódia oficial, um dos níveis de refração do bem jurídico mais lato, que abarca todos os crimes contra a administração pública: a autonomia do Estado visando completar a proteção da administração na realização da justiça.
3. Por isso, não só respeita a decisões finais, mas ainda a outras que surjam no decurso do processo penal, vg. a detenção ou as medidas de coação detentivas, que, por visarem satisfazer as necessidades que as determinou, não pode o sistema deixar de prover ao seu efetivo acatamento.
4. São elementos objetivos do tipo legal de evasão que o seu agente seja alguém que se encontra legalmente privado da liberdade e que se tenha evadido, ou seja, se tenha retirado voluntariamente da situação de privação de liberdade em que se encontrava.
5. Condição fundamental e únicos pressupostos, são, assim, por um lado, a legalidade da privação da liberdade e, por outro, o seu afastamento voluntário por parte do arguido.
6. Para alguém cometer o crime de evasão p. e p. pelo artigo 352.º, nº1 do Código Penal é necessário estar, então, efetivamente, privado da sua liberdade, desde logo.
7. O legislador, ao utilizar a expressão “pessoa legalmente privada de liberdade”, não pode ter deixado de querer abranger quem está privado da liberdade por decisão que ordene,
8. A expressão “pessoa legalmente privada de liberdade” está utilizada com o sentido de abranger também as medidas de segurança, a prisão preventiva e a obrigação de permanência no domicílio, entendeu, desde logo, expressamente o Prof. Figueiredo Dias, in Atas da Comissão de Revisão do C Penal, 1993, 440.
9. No mesmo sentido se pronunciou, de resto, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C. Penal, 2008, 829, “por decisões privativas de liberdade devem entender-se todas as decisões que ordenam detenção, prisão ou internamento, quer elas sejam definitivas quer sejam transitórias. Também está incluída a obrigação de permanência na habitação, seja como medida de coação seja como pena”.
10. Dúvida, não temos, portanto, de que, na situação concreta, o arguido incorreu na prática do crime de evasão pelo qual se encontrava acusado e pelo qual veio a ser condenado.
11. Estão preenchidos, quer os elementos objetivos - o estado de privação de liberdade e a modificação desse estado, por iniciativa do detido - quer o subjetivo – a título de dolo direto, pois que estão verificados os elementos, intelectual, volitivo e emocional, já que o próprio arguido assumiu, de forma clara e inequívoca, que saiu de casa e que estava bem ciente de que não o podia fazer, tendo para tal sido variadíssimas vezes alertado pelo técnico da DGRSP-Vigilância Eletrónica e pelo próprio tribunal.
12. Não será pelo facto de, decorrente da violação da medida de coação e não vendo, por esse facto, agravada, de imediato, a medida de coação, com a aplicação da prisão preventiva (que não é de aplicação automática, depende da gravidade do crime imputado e dos motivos da violação, cfr. artigo 203.º/1 in fine Código de Processo Penal), que impede que a mesma factualidade, o mesmo evento, a mesma ocorrência possa conduzir a esta resposta, que seja considerada como integrando a factualidade típica do crime de evasão do artigo 352º, nº1 Código Penal.
13. No processo nº 112/15.6T9VFR, de natureza processual, com a apreciação das necessidades cautelares que o caso concreto exigia e, aqui de natureza substantiva, enquanto resposta sancionatória ao preenchimento da factualidade típica de um crime.
14. A exceção de caso julgado concretiza o disposto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
15. O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que, por elementares razões de segurança jurídica, impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).
16. Com efeito, no caso concreto, o arguido apenas está a ser punido, criminalmente, por uma vez – neste processo. Já que naquele 112/15.6T9VFR onde ocorreu a violação da medida de coação e por causa dela, o que acontece é coisa substancialmente diversa – viu revista a medida de coação, pelo facto de ter desrespeitado a medida de coação que lhe tinha sido aplicada.
17. A responsabilidade criminal do arguido nos presentes autos não advém do depoimento que prestou no processo nº 112/15.6T9VFR, mas sim das condutas reiteradas de violação da medida de coação de OPHVE por si realizadas no âmbito desses autos.
18. O arguido foi diversas vezes advertido para as consequências da sua conduta, quer pelos Técnicos da vigilância eletrónica que o acompanhavam e reportavam as constantes violações pelo arguido da medida de coação de OPHVE, quer pelo próprio tribunal que, no dia 4/12/2017, por despacho, advertiu o arguido para o rigoroso cumprimento do dever de permanência no local da vigilância, devendo ausentar-se apenas de acordo com as autorizações que lhe forem concedidas.
19. Não obstante todos os alertas efetuados para a gravidade da sua conduta e as suas consequências, o arguido não atendeu às advertências que lhe foram dirigidas, persistindo em comportamentos idênticos, como constam da douta sentença recorrida, não podendo o arguido agora invocar que não pretendia furtar-se à medida de coação que lhe havia sido aplicada, atentas as constantes, reiteradas e persistentes ausências da sua habitação, em violação grosseira da medida de coação aplicada, conforme consta dos factos dados como provados na douta sentença em crise.
20. Ao crime de evasão é aplicável uma pena de prisão entre 1 mês e 2 anos, cfr. artigos 352.º, nº1 e 41.º, nº 1 Código Penal - no caso concreta fixou-se a pena em 9 meses de prisão.
21. No n.º 2 do artigo 352.º prevê-se uma circunstância modificativa, atenuante especial - “se o agente espontaneamente se entregar às autoridades até à declaração de contumácia, a pena pode ser especialmente atenuada”.
22. Conforme se constata da letra da lei, no caso do crime de evasão, a atenuação especial é facultativa – “a pena pode …”.
23. O “pode” evita a concessão do prémio ou benefício em casos nos quais – como o dos autos – falta o mérito atinente e tem a vantagem de observar o princípio da apreciação concreta das circunstâncias, cfr. Código Penal, anotado e comentado, Vítor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette.
24. A atenuação especial representa, pois, um caso especial de determinação da pena, tendente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos grave, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo.
25. Na situação em apreço nos autos - alguém que se ausenta do domicílio onde tem fixada a obrigação de permanência e aí regressa, inúmeras vezes, depois de ir ao café, ao minimercado, a consultas médicas, permanecendo ausente de casa muito para além do tempo necessário, ou a outros locais que se desconhece, não merece, em nosso entender, beneficiar da atenuação especial da pena possibilitada pelo nº 2 do artigo 352º do Código Penal.
26. E regressar à casa onde habita foi, afinal, o regresso à sua zona de conforto, que afinal nada tem de extraordinário e, por isso, não merece especial tratamento, mormente em seu benefício.
27. Isto é, o facto de o arguido ter regressado sempre a casa, onde estava a cumprir a medida de coação, só por si não tem o carácter atenuativo, excecional, que a lei exige.
28. Na situação em apreço nos autos - alguém que se ausenta do domicílio onde tem fixada a obrigação de permanência e aí regressa, inúmeras vezes, depois de ir ao café, ao minimercado, a consultas médicas, permanecendo ausente de casa muito para além do tempo necessário, ou a outros locais que se desconhece, não merece, em nosso entender, beneficiar da atenuação especial da pena possibilitada pelo nº 2 do artigo 352º do Código Penal.
29. No nosso sistema jurídico-penal as finalidades da aplicação das penas são, como estipula a norma do artigo 40º, do Código Penal, a proteção dos bens jurídicos e a reinserção do indivíduo na sociedade - Sobre a determinação da medida da pena ver, por todos, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, e Anabela Rodrigues, A determinação da Medida Privativa de Liberdade, 1995.
30. No caso vertente, tendo em atenção a imagem global e unitária do facto, afigura-se-nos que as exigências de prevenção geral se fazem sentir com particular acuidade.
31. Com efeito, o incumprimento recorrente das medidas de coação torna particularmente prementes as exigências de prevenção geral, quer na vertente positiva, de reafirmação contrafáctica das normas jurídicas violadas, quer na vertente negativa, de rigorosa e constante prevenção e punição das condutas violadoras.
32. Não podemos olvidar que este tipo legal de crime reflete uma débil interiorização do dever-ser jurídico penal no cumprimento e respeito pelas decisões judiciais.
33. Mais se aduz que o quantum de pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, se situam num patamar relativamente elevado, o que reduz, de algum modo, o peso das considerações de prevenção especial, enquanto capazes de fundamentar uma redução da medida concreta da pena.
34. Pelo exposto, entendemos que as razões de prevenção geral positiva, ligadas à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias assumem neste contexto especial acuidade.
35. De igual modo, são relevantes as necessidades de prevenção especial.
36. De facto, in casu, o arguido agiu com dolo direto, violando recorrentemente a medida de coação que lhe foi imposta, não obstante as constantes advertências que lhe foram sido dadas pelo Mmo Juiz titular do processo, tendo tais incumprimentos culminado com o agravamento da medida de coação aplicada, aquando da leitura do acórdão condenatório.
37. Entendemos, pois, que, no caso dos autos, a carência de socialização do arguido se situa num patamar elevado.
38. Assim, não podemos deixar de considerar adequada, suficiente e proporcional a pena concretamente aplicada ao arguido.»
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Já nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
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Cumpre, pois, decidir em conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal ‘ad quem’ tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Assim, de acordo com as conclusões formuladas pelo recorrente, as principais questões a decidir consistem em saber:
- se a sentença recorrida está afetada por nulidade, por nela se ter conhecido de questão de que se não podia conhecer nos presentes autos, por já ter sido apreciada noutro processo;
- se, ao fixar os factos subjetivos do ponto 38, o Tribunal ‘a quo’ incorreu no vício de erro notório de apreciação de prova ou, pelo menos, em erro de julgamento;
- se a qualificação jurídica dos factos apurados se mostra desacertada, por os mesmos carecerem de tipicidade criminal;
- se, subsidiariamente, a medida da pena não se mostra ajustada, por excessiva, às circunstâncias apuradas.
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A matéria de facto provada (transcrição):
«(…) Factos Provados
1) Em sede de primeiro interrogatório judicial que teve lugar no dia 22 de Junho de 2016, no âmbito do inquérito 112/15.6T9VFR que correu termos no DIAP de Santa Maria da Feira, foi determinado que o arguido B…, ali aguardasse os ulteriores trâmites processuais sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
2). Por requerimento datado de 06 de Junho de 2017, o arguido solicitou, no âmbito daqueles autos, a substituição da medida de coação de prisão preventiva a que estava sujeito, pela medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
3). Na sequência do assim requerido, por despacho judicial proferido em 08 de Junho de 2017 pelo Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz l – no âmbito do Processo Comum Coletivo 112/15.6T9VFR, foi determinado que o arguido ficasse a aguardar os ulteriores trâmites processuais sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na sua habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica.
4). Mais ali foi concedida autorização ao arguido para se ausentar da sua habitação, pelo tempo estritamente necessário para comparecer às sessões da audiência de julgamento agendadas naqueles autos, datas essas que foram logo comunicadas à Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
5). Assim, o arguido, desde 14-06-2017, ficou, no âmbito daqueles autos, sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na sua habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica, tendo para o efeito, sido colocado ao mesmo um dispositivo que possibilitava a monitorização à distância do cumprimento da dita medida de coação.
6). Para cumprimento da medida de coação assim determinada, o arguido indicou a sua residência, sita na Rua …, n.º …, em C….
7). Por despacho proferido em 06/09/2017, procedeu-se ao reexame dos pressupostos da medida de coação aplicada, tendo-se decidido que o arguido continuava sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com utilização de meios técnicos de vigilância eletrónica.
8). Uma das sessões de audiência de discussão e julgamento realizadas no âmbito do processo referido em 3) teve lugar no dia 28 de Setembro de 2017, ali tendo estado presente, além do mais, o arguido B….
9). No decurso da mesma, foi, pelo arguido, requerido que lhe fosse concedida autorização para, no dia 1 de Outubro de 2017, se ausentar da habitação, a fim de poder exercer o seu direito de voto nas eleições autárquicas que tinham lugar naquele dia.
10). Assim, pelo Mmº Juiz, presidente do Coletivo de Juízes que compunham o Tribunal no âmbito daqueles autos, foi concedida autorização ao arguido “para se ausentar da habitação pelo tempo necessário ao exercício de voto nas eleições autárquicas, no próximo domingo”, o que foi transmitido à Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais a fim de monitorizar tal saída do arguido.
11). Nessa medida, no dia 01 de Outubro de 2017, pelas 11h30m, e a fim de exercer o seu direito de voto, o arguido ausentou-se da sua habitação.
12). Mais ficou determinado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais que o arguido regressaria à sua habitação, pelas 12h40m, período esse onde se incluía o tempo necessário para a sua deslocação à mesa de voto respetiva – sita no Fórum Municipal C… - e o cumprimento do seu dever cívico de votar.
13). Porém, o arguido, não alegando nenhum facto imprevisto e que não lhe fosse imputável, apenas regressou à sua habitação cerca das 18h01m.
14). Desde, pelo menos, as 12h41m e até às 18h01m, pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais foi tentado, por diversas vezes, o contacto telefónico com o arguido, o que não foi possível por este não atender o telefone.
15). Pelas 16h20m, uma patrulha da PSP de C… deslocou-se à residência do arguido, não se encontrando o mesmo no seu interior.
16). O arguido não informou a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais nem qualquer outra entidade do motivo da sua ausência para lá do período de tempo que lhe foi concedido para exercer o seu direito de voto.
17). Assim, desde as 12h40m até às 18h01m, o paradeiro do arguido revelou-se ser desconhecido, tendo o arguido nesse período de tempo, permanecido fora do alcance da aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na sua habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica.
18). No dia 14 de Novembro de 2017, o arguido compareceu à audiência de discussão e julgamento que teve lugar no âmbito do processo referido em 3). 19). Por despacho judicial proferido a 04-12-2017, foi o arguido advertido para o rigoroso cumprimento do dever de permanência no local da vigilância, devendo ausentar-se apenas de acordo com as autorizações que lhe fossem concedidas, tendo ali sido decidida a manutenção da medida de coação de obrigação de permanência na sua habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica.
20). Porém, o arguido não atendeu à advertência que assim lhe foi dirigida, persistindo em comportamentos idênticos ao descrito de 11º) a 17º).
Assim,
21). Com a data de 02 de Janeiro de 2018, pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, são reportados incidentes relativos ao cumprimento, pelo arguido, da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica – cfr. cópia de fls. 60 a 62, cujo teor damos por integralmente reproduzido.
22). São, pois, as seguintes, as saídas do arguido, da sua habitação, não autorizadas e sem comunicação de factos imprevistos e não imputáveis:
21Dez2017 das 21:52h às 22:34h;
22Dez2017 das 08:24h às 08:57h;
23Dez2017 das 10:06h às 10:47h, das 22:08 às 22:42h;.
24Dez2017 das 18:09h às 18:39h;
25Dez2017 das 11:04h. às. 11:38h;
27Dez2017 das 08:24h às 08:57h;
28Dez2017 das 08:21 h às 08:55h;
29Dez2017 das 08:23h às. 08:58h;
30Dez2017 das 15:21 h às 15:41 h;
01Jan2018 das 12:47h às 13:13h;
11Jan2018 das 15h42m às 16:11h das 16:29hàs 16:33h;
12Jan2018 das 16:37h às 17:15h das 19:48h às 20:19
16Jan2018 das 14:56h às 15:26h; . 17Jan2018 das 15:26h às 15:39h das 15:52h. às 17;22h;
21Jan2018 das 18:08h às. 20:02h;
22Jan2018 das 17:15h às 18:26h;
23). No dia 27 de Dezembro de 2017, conforme determinado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, o arguido deveria ter regressado à sua habitação às 18h15m, apenas tendo regressado às 20h21m, nada tendo comunicado relativamente a factos imprevistos e que não lhe fossem imputáveis.
24). No dia 22 de Janeiro de 2018, conforme determinado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, o arguido deveria ter regressado à sua habitação às 15h55m, apenas tendo regressado às 17h15m, nada tendo comunicado relativamente a factos imprevistos e que não lhe fossem imputáveis.
25). Naqueles períodos de tempo referidos em 22º), 23º) e 24º), o paradeiro do arguido revelou-se ser desconhecido, tendo o arguido, nesse período de tempo, permanecido fora do alcance da aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica.
26). Após comunicação destes incidentes por parte da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, por despacho judicial de 02-03-2018, foi mantida a aplicação ao arguido da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica.
27). Por despacho judicial de 27 de Abril de 2018, proferido no âmbito do Processo Comum Coletivo 112/15.6T9VFR do Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz l - foi mantida a aplicação ao arguido da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica.
28). No dia 29 de Julho de 2018, o arguido passou a residir na Rua …, n.º .., em …, Oliveira de Azeméis, o que foi comunicado à Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
29). No dia 10 de Novembro de 2018, o arguido, sem que lhe fosse concedida autorização ou sem que para tal tivesse algum motivo imprevisto ou não imputável, saiu, cerca das 12h11m da sua residência, ali tendo regressado cerca das 12h58m.
30). No dia 07 de Dezembro de 2018, o arguido, sem que lhe fosse concedida autorização ou sem que para tal tivesse algum motivo imprevisto ou não imputável, saiu, cerca das 10h33m da sua residência, ali tendo regressado cerca das 10h59m.
31). A fim de se apurar o paradeiro do arguido, foi enviada uma patrulha da GNR de C… à residência do arguido.
32). No dia 26 de Dezembro de 2018, o arguido tinha agendada, para hora que não se logrou apurar, uma consulta médica na Clínica Saúde …, na cidade do Porto.
33). Assim, para se deslocar à referida consulta, saiu, pelas 10h50m, da sua residência.
34). Contudo, nunca o arguido se deslocou naquele àquela clínica.
35). Naquele dia o arguido regressou, cerca das 17h24m, à sua habitação, desconhecendo-se, portanto, o local onde esteve desde as 10h50m, até esta hora.
36). Assim, permaneceu o arguido, desde as 10h50m até às 17h24m, fora do alcance da aplicação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com recurso a meios de vigilância eletrónica.
37). Ao agir da forma descrita, das diversas vezes referidas, agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente com o propósito de se furtar à estrita permanência na sua residência, e, consequentemente, à privação da sua plena liberdade pessoal, válida e legalmente imposta por decisão judicial, não obstante saber que não se poderia ausentar, por qualquer forma, daquela residência sem prévia autorização judicial para tal, a qual, naqueles momentos, não detinha, o que logrou alcançar, violando, com a sua conduta, a autoridade pública do sistema estadual.
38). Agiu ainda o arguido de forma livre, deliberada e consciente, de forma homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior e através de processos de idêntica natureza, que foi reiterando durante o período de tempo acima referido, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei penal.
39). Mais sabia o arguido que, com a conduta descrita, praticava atos proibidos e punidos por lei penal.
40) Ao longo do tempo de duração da medida de coação, foi o arguido advertido, conforme supra se refere, para o cumprimento escrupuloso da medida de coação, quer pelos técnicos de videovigilância quer pelo juiz titular do Processo à ordem do qual lhe foi imposta tal medida.
41) Por despacho datado de 8 de março de 2019 pelos fundamentos que nele constam e qui dados por integralmente reproduzidos foi substituída a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica pela medida de coação de prisão preventiva.
42) O arguido é solteiro, tem um filho menor de idade e encontra-se no estabelecimento prisional a cumprir pena de 9 anos de prisão à ordem do processo 112/15.6T9VFR.
43) Ao arguido são conhecidos os antecedentes criminais constantes do CRC junto a fls. 288 a 293.
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(…) Factos Não Provados
Com interesse para a decisão não se provaram quaisquer outros factos que estejam em contradição com os acima referidos .
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(…) Motivação
O Tribunal formou a sua convicção com base:
Quanto aos factos dados como provados, o tribunal alicerçou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas D… e E…, a primeira coordenadora e o segundo técnico responsável pelo controlo, ambos, da vigilância eletrónica da medida de coação imposta ao arguido, os quais, dando por integralmente reproduzidos os relatórios de incidentes juntos aos autos e comunicados no aludido processo e forma objetiva, abundantemente circunstanciada e equidistante ao desfecho do processo, depuseram de forma que nos ofereceram credibilidade sobre as ausências do arguido levadas aos factos provados, o segundo aliás, bem expressivo na explicação dada ao tribunal de que só comunicava as ausências em causa nos autos depois de analisadas as declarações de presença do arguido nas clínicas em causa e após junto das mesmas contactar para aferir da presença ou não e/ou horário do arguido nas mesmas. Esclareceu, pois, todo o procedimento prévio ao relatado nos relatórios dos incidentes de incumprimento da medida de coação em causa pelo arguido, cujo teor se mostra junto aos autos a fls. 304ss e analisadas em audiência de julgamento e as sucessivas advertências pessoalmente ao arguido para o cumprimento escrupuloso daquela medida.
Para esta análise comparada com os elementos documentais que subscreveram, relevou ainda o depoimento da testemunha F…, amigo do arguido, o qual, de forma espontânea e abundantemente circunstanciada no tempo e no espaço, descreveu ao tribunal os contactos diários que estabelecia com o arguido e concretizou as saídas várias que, juntamente com o arguido, fazia e, designadamente, acompanhando-o, com frequência (chegando a quantificar “de dois em dois dias”), ao café sito da rua do arguido, as compras que este efetuava no minimercado sito na rua de trás da residência do arguido, ou à residência do filho, ou Santa Casa da Misericórdia em …, a fim de o ver ou trazer consigo e em horários diferentes daqueles em que também o acompanhava às consultas médicas diárias, essas, conforme explicou, sempre ao fim da tarde, e aqueloutras antes do almoço ou logo após o almoço, para além da deslocação a Aveiro, aproveitando uma ida a uma consulta, para o arguido passar o testemunho no negócio das importações de veículos, dando-lhe a conhecer o despachante .
Depois deste depoimento, quis o arguido prestar declarações complementares acabando por confessar parcialmente alguns factos e concretamente assumindo que “de vez em quando se deslocava ao minimercado sito a 1 minuto da sua residência por necessidade de adquirir alimentos”, não logrando justificar aquela necessidade quando ia acompanhado pelo amigo e este podia trazer comida ou ante o declarado pela sua mãe, a testemunha G…, de cujo depoimento ressalta ser ela quem tratava da comida e das compras, não tendo o filho - o arguido - de o fazer, assim justificando a desnecessidade deste sair da residência.
Não logrou o arguido convencer o tribunal para que o seu estado incapacitante (…) o impediu de regressar a casa no dia em que foi votar, tanto mais que, atento o estado de saúde em que se encontrava, com tratamento médico diário, a sentir-se como o descreveu, certamente que seria encaminhado ou ele próprio se deslocaria de imediato ao serviço de urgência, o que não fez.
No mais, quanto às medidas de coação aplicadas – aquela em causa nos autos e a sua substituição por prisão preventiva – e aos períodos de ausência dados como provados, relevaram, além do supra analisado, também as certidões remetidas aos autos do processo 112/15.6T9VFR.
Quanto ao elemento subjetivo, o mesmo se extrai da factualidade objetiva concretizada, também é o próprio arguido quem descreve as sucessivas advertências que lhe foram feitas não só pelos técnicos do serviço de videovigilância eletrónica como pelo Sr. Dr. Juiz no aludido processo, demonstrando conhecimento da ilicitude, vontade na sua prática, bem sabendo que cometia crime.
Aliás, conforme decorre da análise do recorte histórico dos factos dados como provados, dela se extrai a convicção de que lhe foram dadas sucessivas oportunidades para cumprir a medida que lhe havia sido imposta, [de] que, animado com a circunstância de a situação, apesar de prolongada no tempo, não lhe trazer qualquer consequência naquele momento, foi renovando a sua intenção de se colocar fora da esfera de privação da liberdade, saindo do controlo à distância, da proibição de se ausentar do perímetro que lhe foi delimitado .
De igual modo se valoraram as suas declarações quanto à sua situação profissional e pessoal anteriores à detenção e que se me afiguraram credíveis.
Valorou-se o certificado do registo criminal do arguido e respetiva tradução no que respeita aos seus antecedentes criminais.»
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A) A invocada nulidade
Sustenta o recorrente (conclusão 1ª do seu recurso) que, ao conhecer do objeto do processo, nos termos do artigo 379º nº1 alínea c) conjugado com o disposto no artigo 29º nº5 da C.R.P., o tribunal ‘a quo’ violou o princípio constitucional “non bis in idem” ex vi artigo 29º nº5 da C.R.P., porquanto conheceu de questões de que não devia tomar conhecimento, uma vez que esses factos foram objeto de apreciação em outro processo, (reapreciação de medida de coação), sendo portanto a sentença nula por violação dos artigos supra referidos (379º nº1 e 29º nº5 da C.R.P.).
Afigura-se-nos infundada tal pretensão.
Com efeito, o princípio ‘ne bis in idem’, com a dignidade constitucional que lhe confere a sua inserção no nº 5 do artigo 29º da C.R.P., tem o alcance de estabelecer a proibição de um novo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido ou a de evitar uma dupla punição pela prática do mesmo crime [2].
Ora, a eventual reapreciação de uma medida de coação num outro processo não equivale, de modo algum, ao julgamento pela prática de um crime e muito menos a uma absolvição definitiva, do que resulta não podermos estar perante a violação de tal princípio.
De todo o modo, nos presentes autos, o Tribunal tinha que decidir sobre a relevância criminal dos factos ajuizados e não podia omitir tal pronúncia, pelo que o julgamento que fez não pode ser confundido com um excesso de pronúncia [3], que sempre implicaria que tivesse exorbitado do objeto do processo, o que, manifestamente, não ocorreu.
De natureza diversa é a eventual questão de saber se os factos ajuizados constituem ou não crime, nomeadamente, atendendo à natureza residual ou de ‘ultima ratio’ da punição criminal. Essa é uma questão que contende com o fundo da causa e não com uma limitação formal ao poder de cognição do tribunal.
Improcede, pois, a arguição de nulidade em causa.
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Refira-se, ainda, que, na conclusão 2ª do seu recurso, o impugnante alega que “O tribunal ‘a quo’ violou o disposto no artigo 58º nº 5 C.P.P, ao não advertir o arguido de que as declarações do mesmo poderiam incorrer em responsabilidade criminal, não podendo as mesmas ser valoradas no presente processo, mormente o teor declaratório (…)”.
Tal violação de proibição de utilização de provas teria ocorrido através da junção de certidão de diversas peças processuais extraída do processo comum (tribunal coletivo) nº 112/15.6T9VFR, onde se mostra incluída a ata de interrogatório de arguido e subsequente despacho que decidiu sobre alteração de medidas de coação.
Afigura-se-nos, porém, que não tem razão.
Na verdade, apesar de a referida certidão conter uma ata de interrogatório do aqui (e ali) arguido, não inclui transcrição das declarações aí prestadas, que, por isso, não foram usadas nos presentes autos.
Assim, a prova da factualidade dos presentes autos não resultou das declarações que o arguido prestou no processo nº 112/15.6T9VFR, mas sim de outros diversos meios de prova não abrangidos pela pretensa violação de proibição de utilização de prova.
Improcede, pois, tal arguição.
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B) O alegado erro decisório em matéria de facto
Como se extrai das conclusões 16ª a 19ª do seu recurso, sustenta o arguido que, ao fixar os factos subjetivos do ponto 38, o Tribunal ‘a quo’ incorreu no vício de erro notório de apreciação de prova a que se refere o artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, ou, pelo menos, em erro de julgamento de tal matéria de facto, na aceção ampla definida nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do mesmo diploma.
Ora bem.
Como qualquer dos outros vícios decisórios elencados nas alíneas do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, também a verificação do previsto na alínea c) se encontra legalmente restringida às hipóteses em que o erro notório decorra do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O recorrente convocou, em abono da arguição em causa, uma passagem das suas próprias declarações que não consta do texto da decisão recorrida. Acresce que tal extrato se mostra em oposição com a apreciação global da prova efetuada na decisão impugnada. Tudo isto evidencia a impossibilidade de estarmos perante a verificação do vício formal invocado.
Improcede, pois, a respetiva arguição.
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Passando à apreciação do também invocado erro de julgamento da matéria de facto – erro esse que incidiria apenas sobre o teor do ponto 38 da factualidade dada como assente – importa salientar que tal impugnação se revela, desde logo, incongruente com o não questionamento simultâneo da demais factualidade, mormente da vertida no antecedente ponto 37 e no posterior ponto 39.
Na verdade, todos esses pontos versam sobre factualidade subjetiva, limitando-se o item 38 a salientar a homogeneidade das circunstâncias externas que condicionaram a reiteração no tempo de comportamentos de significado idêntico, correspondendo, no plano da qualificação jurídica, a circunstâncias conformadoras de um só crime continuado (cfr. nº 2 do artigo 30º do Código Penal).
Mas ainda que nos abstraiamos dessa incoerência lógica, sempre verificaremos que não é a simples afirmação, pelo arguido, de que nunca quis eximir-se ao cumprimento da medida de coação e de que sempre saiu só para consultas ou tratamentos médicos, que pode abalar a convicção formada pelo Tribunal recorrido, assente em copiosa e firme prova documental, explicada e validada por prova pessoal que a corroborou.
Acresce que, enquanto fenómenos respeitantes à vida psíquica das pessoas, os factos subjetivos relacionados com o nexo de imputação não são suscetíveis de serem diretamente percecionados ou apreendidos por terceiros, pelo que a sua indiciação resulta geralmente de factos objetivos que são passíveis de os fundamentar, normalmente os que preenchem o tipo objetivo do crime, extraindo-se a sua verificação, em cada caso, através de presunções naturais apoiadas nos princípios da normalidade e das regras da experiência comum.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto efetuada pelo recorrente, mantendo-se incólume a factualidade fixada pela 1ª instância.
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C) A questão da tipicidade da conduta ajuizada
Divergindo da posição adotada na sentença recorrida também no que tange à qualificação jurídica dos factos apurados, sustenta o recorrente que a violação, ainda que dolosa, da medida de coação de obrigação de permanência em habitação (prevista no artigo 201º do Código de Processo Penal) não chega para configurar o crime de evasão tipificado no nº 1 do artigo 352º do Código Penal, que lhe vem imputado.
Em defesa da atipicidade criminal da conduta ajuizada, invoca “a título exemplificativo” o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 16/03/2011, no processo nº 492/09.2PJPRT.P1.
Pois bem.
A questão colocada mostra-se tão mais pertinente, quanto se verifica que sobre a mesma não existe unanimidade na doutrina e na jurisprudência.
Assim, na doutrina, assinalam-se, como mais destacados defensores da posição que nega a possibilidade de preenchimento da previsão típica em causa – entenda-se, através da simples violação dos deveres de confinamento impostos pela obrigação de permanência em habitação –, Germano Marques da Silva [4], Cristina Líbano Monteiro [5] e, na sua esteira, Victor de Sá Pereira/Alexandre Lafayette [6].
No mesmo sentido, na jurisprudência, encontra-se o douto acórdão desta Relação do Porto referenciado pelo recorrente.
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Sobre a questão do enquadramento típico criminal das condutas apuradas, o Tribunal recorrido usou a seguinte argumentação:
«Vem o arguido acusado, por factos suscetíveis de o constituir na prática, em autoria material, de um crime de evasão, p. p. pelo artigo 352º, n.º 1, do CP.
Dispõe o artigo 352º do CP nos seguintes termos:
1 - Quem, encontrando-se legalmente privado da liberdade, se evadir é punido com pena de prisão até 2 anos.
2 - Se o agente espontaneamente se entregar às autoridades até à declaração de contumácia, a pena pode ser especialmente atenuada.
O tipo em questão insere-se na área dos tipos que visam o bem jurídico da autoridade pública, lato sensu.
O tipo objetivo consiste na ação levada a cabo por quem, estando em situação de legal privação da liberdade – por qualquer um dos meios processuais admissíveis –, se colocar fora dessa esfera por via de evasão.
Subjetivamente, exige-se o dolo na forma genérica, com os seus dois elementos:
- O elemento intelectual que consiste no conhecimento, pelo agente, dos elementos objetivos do tipo legal – representação na mente do agente da facticidade descrita no tipo; e
- O elemento volitivo que consiste na vontade de praticar o facto típico e que pode ser direto, necessário ou eventual – cfr. artigo 14.º do C.P..
Assim sendo, o sujeito necessita, antes de mais, de estar perante essa especial qualidade de pessoa privada legalmente da liberdade.
Não se afigura necessário tecer o que se tem como liberdade, desde logo porque libertar é subtrair à clausura, é conferir disponibilidade de movimentação a alguém que se encontra sob a alçada de autoridade pública e por mando dela.
Delimitando o conceito de legal privação, o mesmo afere-se, quão mais não seja, pelo reducionismo linguístico da norma, em oposição à amplitude de situações que abrange.
Bastando o recurso à história da norma, desde logo se vê que face ao CP82 – que aí punia a referida ação ao nível do artigo 392.º – o que se dizia era “encontrando-se em situação, imposta nos termos da lei, de detenção, internamento, ou prisão, em regime fechado, ou aproveitando a sua remoção ou transferência”.
Ora a situação hoje referida na norma “encontrando-se legalmente privado da liberdade”, não mais é do que o modo de abarcar, de uma forma concisa, essas situações e ainda aquelas que na mesma venham a ser subsumíveis. Não se trata de um conceito em branco ou tipo aberto, mas antes de uma forma técnica que permite englobar as situações de intuito da norma.
“Regime simples e claro, procurou censurar apenas aquelas situações de evasão da responsabilidade do próprio recluso que importa efetivamente conter”, como dizem Simas Santos e Leal Henriques.
Por isso o STJ, por Ac. de 3-3-98, veio dizer que: I – Comete o crime de evasão aquele que, depois de preso em flagrante delito por um agente de autoridade por crime a que corresponda prisão, se escapa e foge. II – É que o cometimento desse crime não pressupõe a validação judicial da prisão; basta-se com a legalidade da privação da liberdade.
Ou seja, pode-se invocar um duplo alcance no conceito. Por um lado, que o crime só existe quando existe privação da liberdade e quando a mesma é legal. Com efeito, havendo ilegalidade da privação da liberdade, a fuga do agente não mais é do que o exercício de um direito.
Evasão significa ato de evadir-se, de se escapar, fuga, saída.
Em termos jurídico-penais significa escapar-se, livrar-se da situação legal de privação de liberdade.
De acordo com Eduardo Correia, in Direito Criminal, I, p. 309, na estrutura dos crimes distinguem-se duas fases: uma que se analisa na produção de um estado antijurídico, igual à de qualquer outro crime; e outra que corresponde a permanência ou à manutenção desse evento – não cumprimento do comando que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesse jurídico em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz.
Preconiza Bettiol, in Direito Penal, e citado no acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Guimarães, proferido no dia 28.02.2005, in DGSI, que não se deve confundir o crime instantâneo com o crime permanente, quando de um crime instantâneo derivam efeitos que podem considerar-se permanentes, dado que se prolongam no tempo. “(…) Os efeitos dizem respeito às consequências nocivas que podem derivar do crime, mas não podem alterar-lhe a estrutura, pelo que se refere a instantaneidade da consumação (…)”. “No caso dos crimes instantâneos, por oposição aos permanentes continuados, habituais e não consumados, o crime consuma-se por um só facto, contando-se, inclusive, a prescrição do dia em que teve lugar o facto consumatório (…)”.
Em suma, o crime de evasão é um crime de consumação instantânea, mas com efeitos permanentes.
Que a expressão “pessoa legalmente privada de liberdade” está utilizada com o sentido de abranger também as medidas de segurança, a prisão preventiva e a obrigação de permanência no domicílio, entendeu, desde logo, expressamente o Prof. Figueiredo Dias, in Atas da Comissão de Revisão do C. Penal, 1993, 440 e no Ac. TRP de 7/2/2016.
No mesmo sentido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C. Penal, 2008, 829 [7], “por decisões privativas de liberdade deve entender-se todas as decisões que ordenam detenção, prisão ou internamento, quer elas sejam definitivas quer sejam transitórias. Também está incluída a obrigação de permanência na habitação, seja como medida de coação seja como pena”.
No caso em análise, ao arguido, por despacho judicial, no âmbito do processo 112/15.6T9VFR, foi-lhe aplicada a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica (OPHVE) prevista no artigo 201.º C P Penal, tendo, porém, o arguido – sabendo que não o podia fazer – saído para o exterior da sua residência.
Estão preenchidos, quer os elementos objetivos – o estado de privação de liberdade e a modificação desse estado, por iniciativa do arguido com obrigação de permanência no domicílio – quer o subjetivo – a título de dolo direto, pois que estão verificados os elementos, intelectual, volitivo e emocional.
Na verdade, o próprio arguido assumiu, de forma clara e inequívoca, ter saído para o exterior da habitação e fora do perímetro de alcance daquele controlo, algumas vezes, ora para ir às compras ao minimercado sito na rua de trás da sua residência e duas vezes por semana ir à escola do filho, sito na Santa Casa da Misericórdia em … (ainda que invocando necessidade de alimentos ou necessidade de ver o filho), a fim de o levar consigo e, que estava bem ciente de que não o podia fazer .
Com a atitude do arguido dúvidas não podem subsistir que o arguido ficou fora do alcance do controlo de vigilância eletrónica a que estava obrigado, pois que se ausentou de casa e desapareceu do ângulo de visão de quem o vigiava.
Mais se provou que o arguido sabia bem que se encontrava legitimamente coartado na sua liberdade, conhecendo os termos da sua situação processual, tanto mais que, advertido inúmeras vezes, pelos técnicos de videovigilância e pelo próprio juiz presidente do processo à ordem [de quem] havia sido aplicada medida de coação, ante os relatórios de incidente de incumprimento da medida de coação, para o restabelecimento do cumprimento efetivo da medida de coação sob pena de alteração do seu estatuto coativo, o que veio, aliás, a ocorrer em auto de interrogatório de arguido datado de 8 de março de 2019, o qual, aliás, também pelos incumprimentos desta medida de coação, viu alterada tal medida de coação no decurso do julgamento para prisão preventiva – fls. 336 ss.
Estava, pois, o arguido plenamente consciente de que não se podia eximir à situação da medida de coação de obrigação de permanência no domicílio a que estava sujeito. Mesmo assim, e por várias vezes, se ausentou daquela residência, atuando por forma livre e voluntária, sabendo que praticava ato criminalmente censurável.
Dúvidas não temos, portanto, que, na situação concreta, o arguido incorreu na prática do crime de evasão pelo qual se encontrava acusado.».
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No fundamental, estamos em sintonia com o enquadramento típico dos factos efetuado pelo Tribunal recorrido.
Com efeito, divergindo da redação original do artigo 392º no Código Penal de 1982 – em que o crime de evasão era aplicável “à pessoa legalmente presa, detida ou internada em estabelecimento destinado à execução de reações criminais privativas da liberdade”, isto é, ao evadido que se encontrasse em prisão preventiva ou em cumprimento de pena de prisão ou de internamento – o legislador da reforma de 1995 (Decreto-Lei 48/95, de 15/3) veio introduzir, no atual artigo 352º do Código Penal, a expressão abrangente “encontrando-se legalmente privado da liberdade”.
Recorrendo-se, em termos interpretativos, ao elemento histórico, verifica-se que, com esta expressão substitutiva, quis a Comissão Revisora abranger precisamente as pessoas submetidas a medida de segurança privativa da liberdade, prisão preventiva e obrigação de permanência no domicílio, como resulta da discussão que teve lugar nas 35ª e 51ª sessões [8].
Assim, como refere Maia Gonçalves [9], “a evasão abrange todos os casos em que o agente se encontra legalmente privado da liberdade, (…) aqui se incluindo, portanto, a medida de segurança privativa da liberdade e a obrigação de permanência no domicílio”.
No mesmo sentido se direcionam, aliás, os comentários de outros anotadores da parte especial do Código Penal, como Paulo Pinto de Albuquerque [10] e J.M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio [11].
Na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, parece ser esta também a orientação prevalente.
Assim, no acórdão do STJ de 23/11/2017, recurso 1210/12.3POLSB.L1.S3 [12], entende-se que “(…) incorre na prática do crime de evasão não só quem se encontrar privado da liberdade em virtude de detenção ou de prisão, mas também quem estiver sujeito a obrigação de permanência na habitação, tenha ela sido aplicada a título de medida processual de coação ou para efeitos de cumprimento de pena. Entendimento que saiu reforçado com a nova redação dada pela Lei 94/2017, de 23/08, ao artigo 43.º do Código Penal”.
De resto, parece-nos ter sido o já referido propósito do legislador histórico de emprestar maior consistência e efetividade ao novo sucedâneo não institucional da prisão – quer enquanto pena, quer enquanto medida de coação – que norteou a jurisprudência que aderiu a este entendimento, de que são exemplo o acórdão da Relação de Évora de 13/11/2012, proferido no recurso 450/10.4TASTB.E1, e o acórdão da Relação do Porto de 7/12/2016, proferido no recurso 746/13.3GDGDM.P1 [13].
Por outro lado, retornando à objeção da dupla penalização do agente que seja condenado pelo crime de evasão por ilegitimamente se ter ausentado do local onde se encontrava sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica – que já acima vimos ter sido concitada pelo recorrente – parece-nos também carecer este de razão.
E, desde logo, porque em causa se encontram realidades distintas.
Na verdade, uma coisa são as eventuais consequências processuais de agravamento das medidas cautelares que possam ou não resultar da violação dos deveres inerentes à medida de obrigação de permanência na habitação (cfr. o artigo 203.º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Outra coisa é a consequência tipificada na lei penal substantiva para a conduta do agente que, desrespeitando a autoridade pública encarregada do sistema estadual de justiça, viole a custódia oficial, quando se ausenta ilegitimamente do local a que, nos termos da competente decisão judicial, deveria estar confinado para cumprimento da medida privativa de liberdade (no caso, de obrigação de permanência na habitação).
Atente-se no lugar, quanto a nós paralelo, que M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio mencionam na sua obra já acima citada [14] em comentário (4) ao artigo 352º: “Um recluso terá cometido um crime de evasão; paralelamente, a sua conduta constituiu facto disciplinar ilícito. A aplicação, por ato administrativo do diretor do estabelecimento prisional, de uma certa sanção disciplinar não impede a sujeição do recluso à responsabilidade criminal. Trata-se de responsabilidades diversas e autónomas que tutelam bens jurídicos perfeitamente distintos, podendo o agente ser censurado pelo seu comportamento em dois planos diversos, o penal e o disciplinar, sem ofensa de qualquer princípio constitucional” – como se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 263/94, de 23/03/1994.
Improcede, pois, a impugnação do enquadramento típico realizado pelo Tribunal recorrido, que se confirma.
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D) A medida da pena
Por último e subsidiariamente, sustenta o recorrente que a medida da pena não mostra ajustada, por excessiva, às circunstâncias apuradas, devendo ser diminuída no seu ‘quantum’, por ser manifestamente desproporcional face aos factos que se consideraram provados, seja porque o arguido regressou sempre voluntariamente à sua habitação, seja pela sua confissão dos factos, seja porque tal decorre por período de tempo restrito, muitas vezes decorrente da sua condição de necessitar de ir buscar comida, géneros alimentícios.
Vejamos.
Sobre a determinação da medida concreta da pena, o Tribunal recorrido argumentou do seguinte modo:
«A moldura penal prevista para o crime em causa é de pena de prisão de 1 mês até 2 anos.
A determinação da medida concreta da pena far-se-á, dentro da moldura abstrata definida na lei, em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção geral e especial, atendendo também a todas as circunstâncias exteriores ao tipo de crime que deponham a favor ou contra o arguido, nos termos do disposto no artigo 71º do Código Penal.
Dentro da moldura penal abstrata a culpa do arguido funciona como limite máximo e inultrapassável da pena, devendo, na medida em que as necessidades de prevenção geral o permitem, atender-se às necessidades de prevenção especial, de ressocialização do delinquente.
Assim, há que ponderar a intensidade do dolo, pois o arguido agiu com dolo direto, o modo de execução que se prolonga no tempo, tendo o arguido, no decurso do tempo, sido várias vezes advertido não só pelos serviços de vigilância eletrónica mas também pelo Sr. Juiz presidente do processo à ordem do qual cumpria a aludida medida de coação, e, ainda assim, persistiu na sua conduta, bem sabendo que tinha de acatar e respeitar as ordens do tribunal e, mesmo assim, ausentou-se da sua residência. Atendendo ainda ao grau de ilicitude dos factos, bem como todo o circunstancialismo subjacente aos mesmos.
Ainda do CRC do arguido ressalta à evidência que o arguido não tem pautado a sua conduta pelos valores vigentes na nossa sociedade e tem vindo a praticar variados ilícitos.
E não se diga que regressar a casa de todas as vezes que se ausentava deverá reverter a seu favor no sentido de beneficiar da atenuação especial da pena.
Antes, se nos afigura que, ao fazê-lo de forma contínua e prolongada no tempo, apesar de em cada situação sempre advertido pelos técnicos responsáveis pelo controlo e vigilância do cumprimento da pena, revela a persistência daquele incumprimento que sabia ilícito criminal, ainda que ao fazê-lo sempre movido no quadro da solicitação exterior de que nada lhe acontecia e por isso punido por uma só e a mais gravosa conduta criminosa, sendo os demais a considerar em sede de pena concreta.
Em face do exposto, no enquadramento de conduta continuada, e tudo ponderado, julga-se adequado aplicar ao arguido uma pena de 9 meses de prisão
Basilarmente, concordamos com o argumentário da sentença recorrida.
Com efeito, ao contrário do que alega o arguido, afigura-se-nos que a sua atitude processual de modo algum pode ser confundível com uma postura alegadamente confessória ou contrita.
É certo que o arguido regressou sempre voluntariamente à sua habitação e que quanto a esta circunstância, o nº 2 do artigo 352º do Código Penal prevê mesmo a possibilidade de haver lugar à atenuação especial da pena [15], que concordamos não dever ter aqui lugar, face à reiteração dos comportamentos ilícitos.
Não obstante e mesmo apesar de estarmos perante uma vigilância à distância, não pode deixar de sublinhar-se que – face à multiplicidade de avisos, recomendações e advertências de que foi alvo – o comportamento do arguido se apresentou como fortemente doloso, caprichoso, contumaz e desafiador, quer face ao Tribunal que lhe impôs a medida quer aos funcionários da DGRSP que consigo contactaram [16], em termos que exacerbaram as necessidades de prevenção.
Entendemos, assim, que a medida concreta da pena não se mostra desproporcionada, tendo sido corretamente fixada em 1/3 da sua variabilidade dentro da moldura abstrata.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, confirmando a sentença recorrida.
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Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3,5 UCs a taxa de justiça.
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Porto, 11 de novembro de 2020
Vítor Morgado
Maria Joana Grácio
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[1] Ver, nomeadamente: os artigos 412º/1 e 417º/3 do Código de Processo Penal; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição, página 347; jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos do S.T.J. de 28.04.99, CJ/S.T.J., ano de 1999, tomo II, página 196 e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2ª edição, 2010, página 676.
[3] Ainda que, por absurdo, se quisesse censurar o Tribunal recorrido por não ter conhecido de uma exceção, tal nunca se traduziria numa nulidade por excesso de pronúncia.
[4] Curso de Processo Penal, II Vol., 5ª edição, Verbo, 2010, página 395, onde sustenta que não é possível, no direito português, considerar a violação da obrigação de permanência na habitação como uma espécie de prisão domiciliária, pois a constituição não o consente (artigo 27º da CRP) e, consequentemente, a sua violação não constitui o crime de evasão, até porque a fiscalização do cumprimento da medida através de controlo à distância não é o mesmo que constrição ao seu cumprimento.
[5] Que, em anotação inserida no Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, página 365, refere que “(…) quem está obrigado a permanecer na habitação não entrou ainda naquela esfera de controlo cerrado que, se quebrantado, justifica uma condenação penal. Goza, ao menos, do benefício da dúvida quanto à sua intenção de acatar a medida de coação”.
[6] Código Penal Anotado e Comentado (…), 2ª edição, Quid Juris, 2014, página 935.
[7] Na 2ª edição (2010), veja-se a nota 6 ao artigo 349º, páginas 916-917, em que se refere, também, Maia Gonçalves, Código Penal Português, Almedina, 18ª edição (2007), 1056-1057 (nota ao artigo 349º) e 1059 (nota ao artigo 352º).
[8] Cfr. Actas da CRCP/Figueiredo Dias, 1993: Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, Lisboa, Rei dos Livros, mormente página 409.
[9] Código Penal Português, 18ª edição (2007), Almedina, na anotação nº 2 ao artigo 352º, página 1059.
[10] Comentário do Código Penal (…), 2ª edição (2010), UCE, nota 6 ao artigo 349º e nota 5 ao artigo 352º, respetivamente a páginas 916-917 e 920.
[11] Código Penal, Parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 2014, nota 3 ao artigo 349º e nota 2 ao artigo 352º, páginas1180 e 1183, respetivamente.
[12] Relatado por Isabel São Marcos e acedível em www.dgsi.pt.
[13] Relatados, respetivamente, por Maria Isabel Duarte e Ernesto Nascimento, ambos acedíveis em www.dgsi.pt.
[14] Cfr. nota 11.
[15] Havendo até quem considere – embora, quanto a nós, sem o mínimo apoio literal – que onde a lei diz ‘pode, deverá ler-se ‘deve’ (cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, § 16 da anotação ao artigo 352º, página 398).
[16] Quem esteve na audiência de julgamento ou ouviu a sua gravação não esquecerá facilmente a calma olímpica e os modos aparentemente cordatos com que o arguido tentou subverter os factos da acusação e o indisfarçável agastamento com que depuseram os funcionários da DGRSP.