DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO DA PROVA
Sumário

A deficiência da gravação da prova não consubstancia uma nulidade mas sim uma mera irregularidade, a arguir no prazo previsto no art. 123.º do CPPenal (três dias), sem prejuízo, também aqui, do prazo a que alude o art. 101.º do CPPenal e do tempo que os serviços demoraram a fazer a entrega dos suportes com a gravação, conforme resulta da tramitação do art. 101.º do CPPenal e se consignou no acórdão n.º 13/2014, do STJ; prazo que, por ser mais curto do que aquele que vigora para as situações de nulidade, também já decorreu.

Texto Integral

Proc. n.º 81/20.0GBAGD.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 81/20.0GBAGD, a correr termos no Juízo Local Criminal de Águeda, por sentença de 28-07-2020 foi decidido:
«Assim, face a todo o exposto, julgo procedente a acusação pública deduzida e, em consequência, condeno o arguido B…, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e 2, do C.P., na pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão.
Arbitro a C… o valor de € 500,00 (quinhentos euros) a título de reparação pelos prejuízos sofridos e, consequentemente, condeno o arguido no respectivo pagamento.
Este montante vencerá juros contados da notificação desta decisão, nos termos referidos no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência identificado como Jurisprudência n.º 4/2002 (publicado no DR I de 27 de Junho de 2002).»
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Inconformado, o arguido B… interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que contemple o pretendido nas conclusões da motivação, que são do seguinte teor (transcrição):
«1 - O julgamento deve ser declarado nulo, por gravação deficiente da documentação das declarações orais na audiência.
2 - De fato, pretendendo o recorrente impugnar a douta sentença proferida nos autos, designadamente na parte respeitante à decisão da matéria de fato, quando se pretendeu a audição das gravações e a sua transcrição, iniciando assim o seu trabalho de pesquisa para obter de cada um dos depoimentos os excertos que podem demonstrar a tese que o recorrente pretende apresentar, deparou-se com o fato de que grande parte da prova produzida se encontrar impercetível
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Vejamos.
Nulidade do julgamento por gravação deficiente da documentação das declarações orais na audiência
A questão que o recorrente traz à apreciação deste Tribunal da Relação do Porto relacionada com as deficiências detectadas na gravação da prova mostra-se prejudicada pela jurisprudência que a este propósito já foi produzida.
Com efeito, qualquer dúvida que a questão da inaudibilidade das gravações da prova pudesse suscitar foi resolvida através do acórdão n.º 13/2014 do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência, de 03-07-2014 (DR n.º 183/2014, Série I de 23-09-2014), e que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
«A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada».

Conforme se verifica da acta de julgamento, a produção de prova realizada nestes autos ocorreu no dia 15-07-2020 (sessão única) e a questão da inaudibilidade parcial da gravação da prova apenas foi suscitada pelo recorrente no requerimento para interposição de recurso da decisão final, peça que entrou em juízo no dia 28-08-2020, muito depois do decurso do prazo de 10 (dez) dias de que dispunha para arguir a nulidade a que alude o art. 363.º do CPPenal perante o Tribunal de julgamento, tendo em atenção a apontada jurisprudência fixada.

Esta questão já havia sido anteriormente abordada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que foi igualmente chamado a fixar jurisprudência (à luz da redacção do Código de Processo Penal então vigente), vindo a ser prolatado o acórdão para uniformização de jurisprudência n.º 5/2002, de 27-06-2002, que decidiu que:
«A não documentação das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º, do mesmo diploma, pelo que uma vez sanada, o tribunal já dela não pode conhecer.»

Esta posição passou pelo crivo do Tribunal Constitucional, que no seu acórdão n.º 208/2003, de 28-04-2003, procedeu à apreciação da inconstitucionalidade das normas dos arts. 363.º e 123.º do CPPenal “com a interpretação de que embora reconhecendo que a documentação da prova é obrigatória (artigo 363.º), a sua não observância constitui mera irregularidade, sanável nos termos do artigo 123.º, pois não foi suscitada em audiência”, por alegada violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, aí se entendendo que a obrigação que impende sobre o sujeito processual de suscitar durante a audiência de julgamento a questão da omissão de documentação das declarações orais nela prestadas não constitui uma “diminuição inadmissível, um prejuízo insuportável e injustificável” das suas garantias de defesa.

Com a redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, ao art. 363.º do CPPenal passou a ser obrigatória a documentação na acta de todas as declarações prestadas oralmente na audiência, sob pena de nulidade.
Deixou, assim, de haver a distinção até aí existente entre julgamento perante tribunal singular, colectivo ou de júri, na presença ou ausência dos arguidos e com ou sem concordância dos sujeitos processuais.

É neste contexto legislativo que surge o acórdão n.º 13/2014 supramencionado, onde a dado passo se afirma:
«Haverá, assim, que distinguir os casos da falta ou ausência de documentação e os casos em que se verifica a deficiência da documentação, ora por ser incompleta ora por ser inaudível.
A significar que a nulidade pode ser total ou parcial. Será de verificação rara a situação de falta ou deficiência de toda a documentação. As mais das vezes, poderão ocorrer casos de nulidade parcial, estes sim relativamente frequentes. A nulidade é parcial se for omitida a documentação de parte da prova produzida na audiência ou se a documentação deficiente disser respeito a parte da prova produzida na audiência.
6.4. Não se tratando de nulidade elencada no artigo 119.º nem sendo expressamente classificada como insanável, pela própria norma, a nulidade prevista no artigo 363.º é, pois, uma nulidade sanável que deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina dos artigos 120.º e 121.º.
Por outro lado, é consubstanciada por um vício procedimental cometido durante a audiência.
Com efeito, a omissão da gravação ou a deficiência equiparável a falta de gravação ocorrem na audiência.
Não se trata, por conseguinte, de uma nulidade da sentença. Nulidades da sentença são só as previstas no n.º 1 do artigo 379.º e só para estas, compreensivelmente, está previsto um regime especial de arguição em recurso (artigo 379.º, n.º 2).
As demais nulidades devem ser arguidas, em requerimento autónomo, perante o tribunal onde foram cometidas, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 120.º, ou, na falta de norma especial, no prazo geral de 10 dias indicado no artigo 105.º, n.º 1.
(…)
6.7. Da conjugação das normas dos artigos 101.º, n.º 3, e 364.º, n.º 1, resulta que, sempre que for realizada gravação, o sujeito processual interessado pode requerer a entrega de uma cópia facultando ao tribunal o suporte técnico necessário, devendo o funcionário entregar uma cópia, no prazo de quarenta e oito horas. Nessa altura, o sujeito processual fica em posição de poder verificar a regularidade da gravação e invocar qualquer deficiência.
Por isso, o referido prazo de 10 dias para arguir a nulidade da falta de documentação das declarações prestadas oralmente na audiência deve contar-se a partir da data da sessão da audiência em que tiver sido efectuada a gravação deficiente, sendo nele descontado o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário (por lei, quarenta e oito horas).»

Em face do exposto, e porque se trata de nulidade sanável, conforme enunciado no aresto citado, tinha o recorrente que suscitar a questão da nulidade prevista no art. 363.º do CPPenal no prazo de 10 (dez) dias após a sessão de julgamento em que foi produzida a prova cuja gravação foi indicada como deficiente, acrescido do período temporal que os serviços demoraram a fazer a entrega do suporte com a gravação da prova, tendo em consideração o disposto no art. 101.º do CPPenal, prazo que não se mostra cumprido nos presentes autos.
Esta interpretação já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional que fez recair sobre a mesma juízo de não inconstitucionalidade.
Assim, no acórdão n.º 118/2017[1], de 15-03, o Tribunal Constitucional decidiu «não julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação dos artigos 363.º, 364.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, sob pena de dever considerar-se sanada.»
E no acórdão n.º 291/2017[2], de 08-07, o Tribunal Constitucional decidiu «[n]ão julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 363.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta ou deficiência da gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de dez dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.»

Como se argumenta neste último aresto, «a exigência constitucional de que o processo criminal assegure todas as garantias de defesa, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, não é incompatível com um regime de preclusão associado ao estabelecimento de ónus de arguição temporalmente delimitada de determinados vícios in procedendo, ainda que inimputáveis aos sujeitos processuais que pelos mesmos podem vir a ser negativamente afetados (v. o Acórdão n.º 46/2005).
O que a ordem constitucional impõe é que se alcance um equilíbrio entre os interesses individuais dos sujeitos processuais, designadamente os direitos de defesa do arguido, e o interesse geral numa justiça penal eficaz e célere. Em suma, o que se exige é proporcionalidade entre o ónus imposto ao arguido e a finalidade de interesse geral prosseguida através dessa imposição.

Em face do exposto, impõe-se concluir que, a ter-se por verificada qualquer nulidade (neste caso, parcial), a mesma já se mostra sanada, nenhum juízo de inconstitucionalidade devendo recair sobre tal solução.

Cremos, contudo, que no caso concreto nem estaremos perante uma nulidade mas sim uma mera irregularidade, a arguir no prazo previsto no art. 123.º do CPPenal (três dias), sem prejuízo, também aqui, do prazo a que alude o art. 101.º do CPPenal e do tempo que os serviços demoraram a fazer a entrega dos suportes com a gravação, conforme resulta da tramitação do art. 101.º do CPPenal e se consignou no acórdão n.º 13/2014, prazo que, por ser mais curto do que aquele que vigora para as situações de nulidade, também já decorreu.
Como se realça neste mesmo aresto do Supremo Tribunal de Justiça, «Tem-se entendido que à omissão da documentação em acta das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo do depoimento.
É deficiente a documentação que não permita ou impossibilite a captação do sentido das palavras dos declarantes.
Deve, pois, considerar-se que também constitui a nulidade prevista no artigo 363.º uma documentação que não satisfaça a finalidade visada pela norma que é, justamente, a de permitir impugnar perante um tribunal superior a decisão proferida sobre matéria de facto.»
Porém, o mesmo acórdão clarifica a questão, apesar de o fazer em nota-de-rodapé (nota 12), admitindo que nem todas os problemas relativos à deficiente gravação da prova geram a nulidade indicada, esclarecendo que «Diferente será a situação em que se verificam deficiências menores, que não inviabilizam a percepção do significado das declarações contidas no depoimento gravado, caso em que não há verdadeiramente omissão de documentação mas apenas uma documentação deficiente que, por não comprometer a captação do sentido essencial desse depoimento, constitui uma mera irregularidade, como se sustentou no acórdão deste Tribunal, de 23/11/2011 (processo n.º 161/09.3GCALQ.L1.S1)».

Ora, no caso dos autos, apesar de o recorrente alegar, para o efeito da arguição da nulidade que agora de analisa, que «grande parte da prova produzida é imperceptível» e que «a parte das declarações que se encontram imperceptíveis são cruciais para o recurso que o Arguido/recorrente pretende levar a efeito», a verdade é que, de seguida, apresentou uma impugnação da matéria de facto onde faz extensa exposições de declarações prestadas oralmente em julgamento, apresentando as respectivas transcrições, pontuadas com indicações de «imperceptível», é certo, mas não deixou de, aparentemente, conseguir extrair do conjunto dessa prova algum sentido útil à pretensão que apresentou, não podendo, nesta perspectiva, serem tais deficiências qualificadas como nulidade, sob pena de ficar inutilizado o recurso amplo em matéria de facto, o que manifestamente não foi o pretendido pelo recorrente[3].

Seja, como for, improcede a invocada nulidade por deficiente gravação das provas.
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Nulidade da fundamentação por omissão de apreciação crítica da prova, nos termos do disposto nos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, do CPPenal
Neste segmento do recurso, considera o recorrente que «a fundamentação da decisão contida no douto acórdão recorrido, quanto aos factos julgados provados e não provados supra elencados, não satisfaz os requisitos constantes do n.º 2 do art.º 374.º do Código de Processo Penal, porquanto não se procede ao necessário exame crítico das provas».
Alega o recorrente que se impunha ao Tribunal a quo que descrevesse o processo racional que conduziu à formação dessa convicção, não sendo o cumprimento integral no disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPPenal do CPPenal compatível com a simples indicação dos meios de prova.
O Tribunal a quo justificou do seguinte modo a fixação da matéria de facto supratranscrita:
«A convicção do tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se na análise e ponderação crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como na documental junta aos autos.
Em primeiro e quanto aos factos, foi valorado o depoimento da ofendida e da sua filha D…, assim como a admissão, por parte do arguido dos impropérios que dirigiu à ofendida, quer em sede de 1º interrogatório, quer na audiência. A ofendida descreveu a forma como o arguido se lhe dirigia, o que lhe dizia e a agressividade com que lhe falava, e descreveu os diversos episódios em que o arguido ameaçava que se ia matar. A sua filha também relatou os impropérios e os episódios de tentativa de suicídio. Os depoimentos das testemunhas foram claros, escorreitos e objectivos, motivo pelo qual o Tribunal lhes atribuiu credibilidade.
Relativamente à situação pessoal e económica de arguido e ofendida, foram valoradas as declarações dos próprios.
Valorados ainda os assentos de nascimentos dos filhos a fls. 20 a 35 dos autos.
Por último, foi devidamente valorado o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 247 e ss.
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Quanto à factualidade dada como não provada, a sua resposta deveu-se à insuficiência de prova uma vez que a ofendida não os relatou.»

Vejamos.
Dispõe o n.º 2 do art. 374.º do CPPenal, sob a epígrafe “Requisitos da sentença” que «[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»

Por seu turno determina o art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal que:
«1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F».

A simples leitura do primeiro dos preceitos citado evidência que a fundamentação de facto e de direito não tem de ser exaustiva, isto é, não tem de se fazer alusão particularizada e pormenorizada a todos factos e sua interligação com as provas produzidas, antes satisfazendo-se a exigência de fundamentação com uma exposição concisa, ainda que tanto quanto possível completa, que deve conter a indicação e o exame crítico das provas que sustentaram a convicção do Tribunal.
E só na falta destas menções se pode concluir pela nulidade da decisão, como resulta do texto do segundo dos preceitos aqui reproduzidos.

Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2018[4], segundo o qual:
«I - A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos dos artigos 374.º e 375.º do CPP, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre directamente do art. 205.º, n.º 1, da CRP. A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
II - O dever de fundamentação satisfaz-se com a exposição concisa, mas, tanto quanto possível, completa dos motivos de facto que fundamentam a convicção do tribunal, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar tal convicção, não sendo exigível uma indicação das provas que, com especificada referência a cada um dos factos, justificam que cada um deles seja considerado provado ou não provado.
III - A falta de fundamentação implica a inexistência dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e só a falta absoluta de fundamentação determina a sua nulidade.»

E ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2014[5] que, quanto ao dever de fundamentação, explanou o seguinte:
«XI - O dever de fundamentação da decisão traduz-se em assumir uma síntese intelectualmente honesta e suficientemente expressiva do resultado do exame contraditório sobre as distintas fontes de prova. O juiz examina a prova e depois manifesta uma opção de sentido e valor e essa tarefa não o dispensa de, ao fixar os seus elementos de convicção, o fazer de forma clara, numa exposição das razões de facto e de direito da sua decisão (art. 374.º, n.º 2, do CPP).»

Esta análise, que se impõe que o julgador verta na sua decisão, permite aos destinatários da mesma acompanhar o processo lógico-valorativo da formação da convicção do Tribunal, verificar da legalidade da decisão face às regras de apreciação da prova – como o princípio in dubio pro reo, as regras da experiência comum, as proibições de prova, o valor da prova pericial, o grau de convicção exigível e a presunção de inocência – e, pretendendo, impugná-la especificadamente quanto aos pontos considerados mal julgados, possibilitando ainda ao Tribunal de recurso uma mais clara e efectiva reponderação da decisão da 1.ª Instância.

Como bem se definiu no acórdão desta Relação do Porto de 09-12-2015[6]:
«I - A fundamentação, na sua projecção exterior, funciona como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite da verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão, e na perspectiva intraprocessual, está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos.
II – O exame crítico da prova consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.
III – A razão de ser da exigência da exposição, dos meios de prova, é não só permitir o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, mas também assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova.»

Ora, percorrendo o texto da decisão recorrida no segmento supratranscrito em que o Tribunal a quo fundamenta a fixação da matéria de facto provada e não provada, verificamos que a mesma é bastante sucinta mas, ainda assim, encontramos aí o essencial para perceber o percurso lógico do julgador, tendo o Tribunal a quo cumprido a sua tarefa de manifestar uma opção de valor e sentido, nas palavras usadas num dos arestos citados.
Claro que o Tribunal a quo podia – e devia, para melhor concretização dos objectivos acima referidos – ter desenvolvido um pouco mais o seu raciocínio, mas a essência do que foi a apreciação da prova – o porquê da credibilidade dada aos depoimentos da ofendida e da sua filha – mostra-se vertida na decisão recorrida.
A circunstância de o Tribunal a quo poder – e dever – fazer melhor no que refere à fundamentação não significa que a decisão está ferida de nulidade e que o Tribunal de 1.ª Instância não cumpriu o disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPPenal. Denota apenas que esse cumprimento não é perfeito e que podia ter sido melhorado.
Vale aqui a apreciação enunciada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-06-2014[7], segundo o qual, se «[a] decisão recorrida deu por provada uma sequência fáctica, em si verosímil, e a motivação explica porque é que a convicção dos julgadores se formou num certo sentido, não» padece «de nulidade por falta de fundamentação. O grau de profundidade ou pormenor exigível, ao nível do exame crítico das provas, tem só que ser o suficiente, para que a decisão possa ser aceite, afastando-se a partir daí a ocorrência de falta de fundamentação, e consequente nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. a), com referência ao art. 374.º, n.º 2, ambos do CPP.»

Através da análise que efectuou, o Tribunal a quo fez a descrição mínima exigida pelo art. 374.º, n.º 2, al. a), do CPPenal do percurso lógico seguido na decisão que tomou e das razões da sua convicção, não havendo fundamento para se considerar ocorrer nulidade por falta de exame crítico da prova, conforme invocado pelo recorrente.
Tanto é assim que o mesmo percebeu perfeitamente convicção do Tribunal a quo e até ripostou em sede de recurso amplo da matéria de facto, procurando abalar a credibilidade da prova que convenceu aquele Tribunal.
E no fundo, como se vê pela sequente argumentação que consta do recurso, não é propriamente a ausência de exame crítico da prova que está em causa, antes a discordância do recorrente face à valoração levada a cabo pelo Tribunal a quo, pretendendo substituí-la pela sua própria valoração.
Pelo exposto, é de julgar improcedente esta parcela do recurso.
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Erro de julgamento quanto aos pontos da matéria de facto 5, 9 (parcialmente), 10, 11, 13, 14 e 15, que deviam ter sido dados como não provados
Como se referiu, esta parcela do recurso será apreciada porque, na configuração que o recorrente deu à sua motivação, a inaudibilidade das gravações da prova não surge como impeditiva da realização de uma ampla impugnação da matéria de facto através do recurso a excertos da gravação da prova, posição que impede que as deficiências detectadas sejam classificadas como verdadeira nulidade. Tanto é assim que o recorrente conseguiu estruturar a partir da prova gravada uma argumentação tendente à alteração dos factos provados.
E, na verdade, ouvida a prova indicada, transcrita na motivação de recurso, é possível extrair dos segmentos indicados o sentido global dos depoimentos ou declarações a que respeitam.

Contudo, resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal, que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que o Tribunal a quo efectuou, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal.
E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[8]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[9]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, passemos à análise em concreto do recurso de que nos ocupamos.
Se a leitura do recurso suscita alguma reprovação por aparente falta de análise crítica e raciocínio lógico que justificasse qualquer alteração da factualidade assente tendo presente os critérios expostos, a concreta análise das provas indicadas pelo recorrente demonstra a ausência total de fundamento para modificar a sentença recorrida.
Como se referiu, a argumentação do recorrente baseia-se fundamentalmente numa diferente leitura da prova, que pondera de modo diferente do Tribunal a quo a valia das declarações da assistente, mas não aponta verdadeiros erros de avaliação da prova.
A verdade é que os trechos da prova que invoca, das declarações do arguido e da assistente e do depoimento da testemunha D…, em nada determinam qualquer alteração da factualidade assente.
A versão da assistente é coerente, mostra-se adequada às regras da experiência e a circunstância de pontualmente não existir outra prova a corroborá-la não significa que não possa ser valorada.
Evidentemente que uma maior ou menor ligação de um interveniente à situação sob julgamento e ao desfecho do processo, tal como outros factores, deve ser ponderada quando se avalia a credibilidade de determinada narrativa. Mas transformar tal ligação, sem mais, num indício de parcialidade ou imparcialidade de quem produziu essa narrativa não encontra qualquer apoio na lei.
Contrariamente, a versão do arguido neste recurso, que até aceita o consignado no ponto 12 dos factos assentes, isto é, que no dia 21-12-2019 foi encaminhado pela GNR para o departamento de psiquiatria do Hospital E…, deixa sem explicação a intervenção daquela autoridade nessa ocasião.
Para além disso, a audição das suas declarações, correspondentes ao trecho mencionado pelo recorrente a propósito da questão da nulidade do julgamento por inaudibilidade da prova, revela que o arguido, aqui recorrente, acaba por reconhecer, ao menos parcialmente, que pode ter efectuado algum anúncio de que se matava, o que contraria os próprios fundamentos do recurso.
Avaliados os argumentos apresentados é forçoso concluir que o recorrente não apresenta elementos de prova que invalidem a decisão do Tribunal a quo ao fixar os pontos da matéria de facto provados, sendo certo que os factos consignados nos pontos 14) e 15) desta factualidade, correspondentes ao aspecto interior da sua conduta estão em perfeita consonância com as atitudes exteriorizadas enunciadas nos pontos de facto antecedentes.
Em suma, nenhuma censura nos merece a redacção dos pontos de facto provados impugnados, que é de manter nos seus precisos termos, com a ressalva que segue.
Com efeito, no ponto 13) da factualidade assente menciona-se um episódio ocorrido no dia 17-01-2017.
Contudo, resulta evidente da prova produzida que se tratou de um lapso de escrita e que onde se refere “2017” devia constar “2020”.
Este acontecimento é descrito pela assistente como tendo ocorrido depois do que vem descrito no ponto 10) da matéria de facto provada, verificado a 21-12-2019, e está reportado na participação com que iniciam os autos ao dia 17-01-2020, sendo certo que o próprio arguido, apesar de negar a ameaça de suicídio, admitiu que a 17-01-2020 a GNR o contactou, justificando essa abordagem com a comunicação da assistente que lhes disse que ele estava a tentar matar-se (cf. transcrição das declarações do arguido inseridas na 3.ª conclusão do recurso).
Este lapso, não foi corrigido pelo Tribunal a quo, apesar de ter sido detectado, como resulta da gravação mencionada.
Tal correcção, uma vez que o Tribunal a quo não o fez, pode ser realizada pelo Tribunal de recurso, à luz do art. 380.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPPenal, o que se fará.
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Erro de julgamento quando à qualificação jurídica dos factos
Por último, pretende o recorrente que este Tribunal de recurso opere uma alteração da qualificação jurídica, condenando-o apenas por três crimes de injúria e não pelo crime de violência doméstica.
Contudo, se bem entendemos a argumentação recursiva, esta requalificação estava dependente da pretendida alteração à matéria de facto assente, que não ocorreu.
Não se verificando esta, falece o argumento apresentado, sendo certo que a factualidade apurada, com especial relevo para as duas situações de ameaça de morte do próprio, por representarem comportamentos de domínio e violência psicológica[10] de elevado grau quando dirigidas à mãe dos seus filhos, a par das expressões que diariamente dirigiu à assistente, é inequivocamente subsumível ao tipo de crime pelo qual foi o arguido condenado, não merecendo censura a decisão de condenação assim proferida.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
a) - Nos termos do art. 380.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPPenal, determinar a correcção do lapso de escrita constante do ponto 13) da matéria de facto provada quanto à data aí indicada – “17 de Janeiro de 2017” – que deve ser substituída pela menção “17 de Janeiro de 2020”;
b) - No mais, negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3,5 UC a taxa de justiça (arts. 513.º, n.ºs. 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

Porto, 09 de Dezembro de 2020
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
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[1] Acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[2] Acessível in www.tribunalconstitucional.pt.
[3] No sentido de que nem todas as deficiências da gravação redundam na nulidade a que alude o art. 363.º do CPPenal, vejam-se, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto de 08-10-2014, Proc. n.º 895/10.0SJPRT.P1, e da Relação de Évora de 14-10-2014, Proc. n.º 1926/10.9TASTB.E1, e 06-10-2015, Proc. n.º 185/06.2PAVRS.E1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[4] Proc. n.º 388/15.9GBABF.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[5] Proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Proc. n.º 9/14.7T3ILH.P1 – 1.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.
[7] Proc. n.º 853/98.0JAPRT.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[8] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[9] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[10] A propósito das situações de ameaça de suicídio no âmbito da violência doméstica e de como estas representam um factor de risco de algum relevo, vejam-se os estudos ”Homicídios em violência doméstica”, da PGR (acessível in http://www.pgdlisboa.pt/docpgd/files/1436797085_homicidios_19_casos_acastanho.pdf) e “Violência Doméstica – CEJ (acessível in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/Violencia-Domestica-CEJ_p02_rev2c-EBOOK_ver_final.pdf).