ACUMULAÇÃO DE FUNÇÕES
DELIBERAÇÃO
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
RECONVENÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

I) Do disposto no n.º 2 do artigo 15.º do D.L. n.º 119/83, de 25 de fevereiro decorre que aos membros dos corpos gerentes de instituições particulares de solidariedade social não é permitido o desempenho de mais de um cargo na mesma instituição, pelo que, se encontra vedada, em princípio, a acumulação de funções de tesoureiro e de administrador em órgão de direção de uma associação daquela natureza.
II) A decisão da direção da ré - que não da sua assembleia geral a quem estava atribuída tal competência – que permitiu a referida acumulação seria anulável, em conformidade com o disposto no artigo 22.º do D.L. n.º 119/83, de 25 de fevereiro, vício que fica sanado, se não for promovida no prazo de seis meses a respetiva anulabilidade.
III) Para existir uma deliberação tem de se configurar ter tido lugar um processo deliberativo, ou seja, um conjunto de actos concatenados para a obtenção de um fim: a própria deliberação, actos esses que podem passar por uma convocatória cabal, por uma reunião com verificação de presenças, por apresentação de proposta ou propostas de deliberação, por um debate, por uma votação e seu resultado e pela elaboração da acta.
IV) O pagamento de quantias ao autor como contrapartida do exercício de funções de administrador da ré sem que tenha existido uma deliberação a aprovar tal pagamento, não é suficiente para demonstrar a formação de vontade da ré na atribuição de contrapartida pelo exercício de funções de administração e para com esse fundamento basear o pagamento de montantes alegadamente em dívida.
V) Perante uma total ausência de deliberação não se pode falar em vício invalidante, passível de convalescença, por via de confirmação, não tendo aplicação o normativo do artigo 288.º do CC quando se está perante o vício da inexistência jurídica.
VI) Não tem lugar a restituição de quantias pagas pela ré, a título de enriquecimento sem causa, se o autor as recebeu como contrapartida pelo desempenho do cargo de administrador do conselho executivo de unidade de saúde da ré, por se evidenciar a causa justificativa para o seu recebimento.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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HA…, identificado nos autos, instaurou a presente ação declarativa contra a LIGA DOS AMIGOS DO HOSPITAL GARCIA DE ORTA, também identificada nos autos, peticionando a condenação desta no pagamento de € 43.316,00, acrescida de juros a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto, ter celebrado contrato de prestação de serviços com a ré, tendo desenvolvido a actividade de administração, contabilidade e auditoria durante todo o ano de 2015, acumulando funções de técnico de contas, tesoureiro e director financeiro, fazendo assessoria financeira e administrativa da ré, e a tempo inteiro e em exclusividade, desempenhando, por ordens e ao serviço da ré as funções de apoio nos recursos humanos, gestão de pessoal, apoio no processamento de salários, apoio na elaboração dos contratos de prestação de serviço e de trabalho, negociação com credores da Ré, pagamento a credores da ré. O valor reclamado tem por base, segundo o autor, uma deliberação da direcção da ré que fixou a remuneração dos administradores do Conselho Executivo das Unidades de Cuidados Continuados da LAHGO, na quantia de 2.600,00 € mensais.
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Citada a ré, deduziu contestação, defendendo-se por impugnação alegando que o autor tinha o cargo de tesoureiro da LAHGO e que, enquanto tal, lhe competia superintender nos serviços administrativos e financeiros da instituição, não incluindo a execução de serviços de contabilidade e auditoria. Não tendo sido deliberada a atribuição de qualquer remuneração pelo cargo que desempenhava.
Com fundamento na alegação do autor - que afirmou ter recebido da ré, entre os anos de 2013 e 2014 a quantia total de € 18.200,00 e no ano de 2015 a importância de € 7.800,00 - deduziu a ré pedido reconvencional em que pediu a condenação do autor a restituir esse valor indevidamente recebido, tendo pedido ainda a condenação do reconvindo a pagar-lhe, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 12.000,00.
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Replicou o autor, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional, alegando que a remuneração a que se acha com direito é o pagamento das remunerações enquanto administrador da Unidade de Saúde do Feijó e não como Tesoureiro e que a remuneração foi objecto de deliberação em reunião da Direcção da ré, concluindo que não recebia como titular de órgão social mas pelos serviços que prestava para além dele. Mais exepcionou a prescrição dos créditos relativos a 2013 e Agosto de 2014.
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Foi o autor convidado ao aperfeiçoamento da petição inicial para concretizar em que data foi celebrado o contrato de prestação de serviços entre o Autor e a Ré, qual a forma que observou, quem o celebrou em representação da Ré; qual o conteúdo do contrato, o seu clausulado, mais concretamente: a definição dos serviços a prestar pelo Autor, local e modo como os mesmos deveriam ser prestados, o prazo ou horário que porventura tenha sido fixado, a remuneração fixada, o prazo e forma de pagamento dessa remuneração que foram acertados.
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Acedendo ao convite, alegou o autor ter-se iniciado o contrato de prestação de serviços em Setembro de 2013 e terminado em Dezembro de 2015, contrato que não foi reduzido a escrito, tendo passado a receber a remuneração em Outubro de 2013. Tendo sido em reunião da direcção da LAHGO do dia 18.02.2013 que a decisão de nomeação do autor como administrador do Conselho Executivo assim como sobre o valor da contraprestação tiveram lugar. Mais alegou constarem do Regulamento Interno da instituição as funções que cabiam ao autor na sede das unidades, exercendo-as durante meio dia e, após Maio de 2015, todo o dia.
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Em exercício do contraditório impugnou a ré toda a alegação ali contida e que o crédito de que se arroga titular na reconvenção esteja prescrito, porquanto, tendo aquela sido apresentada 01.10.2017 e visto o autor ter sido membro da Direcção até 01.01.2016, a ré apenas quando é citada em 24.08.2017 para contestar, conheceu os valores pagos ao autor. E mesmo que se entenda ter o autor interpelado a ré, apenas a partir de 06.01.2016, data da posse do novo Conselho de Administração poderá contar-se o prazo de prescrição de 3 anos.
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Procedeu-se ao saneamento dos autos e à selecção dos factos assentes por confissão ou documento.
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Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, na procedência da acção, condenou a ré a pagar ao autor a quantia de € 41.964,00, “à qual será deduzido o tributo fiscal que no caso haja de ser retido pela ré, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação da ré, à taxa legal (4%) (art.ºs 559º/1/2 e 805º/1 do Código Civil e Portaria nº 291/03, de 08.04)” e, na integral improcedência da reconvenção, absolveu o autor do pedido reconvencional.
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Não se conformando com a referida decisão, dela apela a ré, pugnando pela revogação da decisão proferida e sua substituição por outra que a absolva do pedido e que lhe seja reconhecido o direito à restituição pelo apelado do valor do pedido reconvencional e tendo formulando as seguintes conclusões:
“(…) 71º Ora no conceito amplo de direito, nulidade é um negócio nulo; anulabilidade um negócio jurídico anulável, e inexistência jurídica consistirá num valor negativo de um ato jurídico público traduzido na total inaptidão do mesmo ato para produzir quaisquer efeitos jurídicos, pelo facto de lhe faltarem os requisitos mais elementares de identificação e de imputação à vontade de um órgão público. Mesmo que faticamente tenha sido praticado, o ato jurídico inexistente deve ser considerado como um “ato aparente” e totalmente improdutivo em termos de efeitos jurídicos.
72º Pois efetivamente um ato inexistente não preenche os elementos para a sua constituição gerando um grau elevado de nulidade tão notória que dispensa qualquer tipo de ação judicial para ser declarado sem efeito (Noções Gerais de Direito).
73º Sempre a atribuição da remuneração ao APELADO teria de ser redigida a escrito, ou teria de outro modo ter sido um resultado de uma deliberação nos termos dos artigos 10º/K, 36º/1 e artº 18º/1 do DL 119/83, de 25/2.
74º Ora verificou-se e tendo sido dado como provado na Sentença da qual cuja decisão se recorre, que nem tão pouco existiu alguma deliberação da direção, nem da Assembleia de Associados nem tão pouco algum documento escrito/contrato que tivesse atribuído/aprovado a atribuição de uma remuneração ao APELADO.
75º Ora não tendo existido o supra referido, não estamos perante qualquer tipo de ato que possa ser anulado nos termos do artº 40º do referido Estatutos (a contrario).
76º Assim como o Tribunal a quo alicerça-se em depoimentos de testemunhas (JG…, o próprio APELANTE e OC…) para posterior dizer que não são credíveis e que nada sabem/desconhecem quanto a este ponto.
77º O Tribunal a quo foi para além daquilo que lhe foi dado a conhecer por prova produzida.
78º Pena é que o Tribunal não tenha dado seguimento à produção de prova por parte da APELANTE, no que concerne quanto á forma em como os pagamentos eram feitos!
79º E por outro lado, como pode o Tribunal proferir uma decisão cingindo-se exclusivamente à figura jurídica da anulabilidade, quando de fato não estamos perante qualquer ato passível de ser anulado, algo que não existe. Uma deliberação que não existiu, uma aprovação também inexistente, logo tudo nos encaminha para a figura da inexistência jurídica, pois na fundamentação do Tribunal nada nos diz que que tivesse existido ato para que posteriormente pudesse concluir que o ato seria anulável e que não o foi e como tal acabou por ser formar tacitamente.
80º Ficou provado que determinadas verbas foram recebidas pelo APELADO. Mas a que título?
81º O que se sabe e conforme prova assente, é que o APELADO recebeu determinados valores, desconhecendo-se a que título recebeu por falta de documentos escritos. Os únicos documentos existentes e que o Tribunal deu por provado foram as faturas recibos das quantias, as quais não transcrevem a que se refere tais verbas, não se alcançando onde foi o Tribunal buscar o valor da remuneração do APELADO, a menos que o tivesse sido da “boca deste”.
82º Ora deliberações, quer da Direção quer da Assembleia Geral, que não existem, documentos escritos que também não existem, o que só nos poderá levar para uma inexistência jurídica.
83º Ora, não existindo nenhuma deliberação ou aprovação, não poderia nunca o próprio APELANTE, pedir a anulabilidade, dentro dos 6 meses, de algo que não existia.
84º Das noções gerais de Direito, poder-se-á retirar que: “…O ato nulo não pode valer, o ato anulável é um ato em principio válido que pode não valer. A nulidade de um ato declara-se, reconhece-se; o ato anulável pode ser anulado ou não, conforme seja ou não exercido o direito potestativo de anulação. O ato anulável é um ato originariamente válido com a validade resolúvel, embora se possa também dizer que é um ato inválido com a invalidade suspensa. Em qualquer caso, a invalidade, como outras ineficácias, não exclui que do ato decorram efeitos parciais ou diferentes dos que lhes seriam próprios. Os regimes gerais da nulidade e da anulabilidade diferem quanto aos pressupostos da sua invocabilidade, verificação e pronúncia (artigos 286.º e 287.º 22), mas convergem nas consequências da declaração de nulidade e da anulação
85º E como escreveu o Prof. Carlos Ferreira de Almeida – Maio de 2017 (Direito Privado – Volume I – Universidade Católica de Lisboa) quanto à diferenciação da nulidade e anulabilidade: Tendo com referência o direito português vigente, parece-me que o ato jurídico, o negócio jurídico e o contrato são inexistentes num conjunto não homogéneo de situações, que se podem reconduzir às seguintes:
1.ª Se o facto referido não ocorreu. É a chamada inexistência material, de que são exemplos uma declaração que não foi emitida, uma assembleia geral que não se realizou ou uma deliberação que não foi tomada (sublinhado e negrito nosso).
2.ª Se o facto não for uma ação. Assim, na coação física e na falta de consciência da emissão de sinais (artigo 246.º).
3.ª Se a ação, sendo exterior ao direito ou ao âmbito negocial, não tiver a natureza de ato ou de negócio jurídico. Assim, nas chamadas declarações não sérias (artigo 245.º), na falta de consciência da natureza negocial da declaração (artigo 246.º) e nos donativos conformes aos usos sociais (artigo 940.º, n.º 2, 2.ª parte), pelos quais o direito se desinteressa, deixando o campo aberto para a aplicação de regras sociais exteriores ao direito.
4.ª Se o ato for ininteligível ou contraditório, com deficiência significativa irredutível e insolúvel, insuscetível de recuperação por interpretação, com todas as suas dimensões, de tal modo que não se possa apurar um significado em função do qual se estabeleçam os feitos.
5.ª Se o negócio unilateral ou o contrato sofrerem de insuficiência estrutural extrema ou de contradição sistemática, sem salvação possível por via interpretativa ou integrativa.
Para (pretensos) contratos, são exemplos de insuficiência sintagmática ou de exterioridade paradigmática, além do dissenso, que é o caso mais relevante e mais referido, a emissão de uma só declaração contratual, a imputação a uma entidade não personalizável, o anonimato de um dos declarantes, a omissão insuprível do objeto (salvo em contratos familiares) ou de uma circunstância essencial, a indicação de uma função (eficiente) sem valor jurídico (amar, persuadir). Contradição sistemática verifica-se quando haja incompatibilidade inultrapassável entre elementos, como, por exemplo, a coincidência de partes ou o casamento de pessoa física com uma pessoa jurídica ou com um animal.
Em todas estas hipóteses, poderá haver um ato jurídico ou até dois, mas não há contrato, o “contrato” é inexistente. (sublinhado e negrito nosso)
Nas situações 2.ª a 5.ª, a inexistência deriva de o facto não reunir os requisitos mínimos para preencher, respetivamente, os conceitos de ato, de ato jurídico, de declaração jurídica, de negócio jurídico ou de contrato, sem que, para tal concluir, seja necessário preceito legal que expressamente proceda a tal qualificação. Não se trata pois de uma valoração como aquela que está subjacente ao juízo de invalidade, mas de pura verificação de não pertença a uma classe de factos ou de atos..”
86º Pelo que no nosso entender não se pode aplicar o regime da anulabilidade, mas sim estaremos perante uma inexistência jurídica, porque não preenche os elementos para a sua constituição para ser passível de anulabilidade, caindo quase que no grau elevado de nulidade, tao notória que até dispensa qualquer tipo de ação judicial para ser por si só declarado nulo sem efeito pelos argumentos ora apresentados nesta alegação. “... a inexistência jurídica a reserva dos mais graves atos, em que o ato foi completamente omitido…a jurisprudência admite-a para atos afetados de vicio mais grave que a nulidade…por isso podendo ser invocada por qualquer pessoa e a todo o tempo, dado tratar-se de um não ato (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – 07P 3259 – JST J000 – Armindo Monteiro – 05/03/2008).
DA NULIDADE DA SENTENÇA
87º A Sentença da qual se recorre é nula na medida em que tem uma manifesta e evidente contradição entre os fatos que considerou provados e depois a sua fundamentação e conclusão., ….”a construção da Sentença é viciosa uma vez que os fundamentos referidos pelo Juíz conduziram necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos de sentido diferente..” Acórdão do supremo Tribunal de Justiça – 660/1999- P1S1 – 2ª Seção – Álvaro Rodrigues de 30-05-2013)
88º Porque uma vez que tendo sido dado por provado pelo Tribunal a quo que a retribuição peticionada pelo APELADO não foi objeto de qualquer deliberação / aprovação, nem da direção nem da Assembleia Geral de Associados, nos termos dos Estatutos de 2012 e da Lei 119/83, de 25/02, e que nem tão pouco aquele apresentou algum documento escrito que fizesse prova dessa atribuição, uma vez que o documento que apresentou “Regulamento Interno das Unidades” em parte alguma refere que os administradores executivos são remunerados, e tratando-se de uma retribuição peticionada pelo APELADO em função de uma deliberação, que já se viu não existe, e a qual a ser atribuída seria ilegítima face aos normativos referidos, na própria Sentença.
89º Por outro lado nunca o Tribunal a quo poderia ter alicerçado a sua decisão do fato da não arguição de anulabilidade do ato (??) e nesse sentido o ato acabaria por se confirmar tacitamente. Ora em momento algum o Tribunal deu como provado, que existisse ato de deliberação para tal remuneração, e nesse sentido o Tribunal nunca poderia vir concluir e proferir decisão no sentido de uma condenação da APELANTE por não ter pedido a anulabilidade do ato tendo deixado passar os 6 meses conforme os Estatutos. Mas se não existia ato algum como poderia a APELANTE pedir a anulabilidade de algo que não existia, sempre se estaria perante um ato inexistente, que é a situação.
90º Não se podem anular atos que não existem!
91º Logo a decisão/Sentença e no sentido do que se alega neste Recurso, sempre teria de ser no sentido de uma Absolvição da APELANTE, quanto ao pedido formulado pelo APELADO na sua P.I., e por via desse mesmo raciocínio o pedido Reconvencional teria de ser procedente devido ao enriquecimento sem causa por parte daquele”.
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O autor contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso interposto e manutenção da sentença proferida e referindo que, caso seja considerado que “na sua argumentação a Apelante usou de contradições que podem ser consideradas lide temerária e que o seu único propósito com a interposição do presente recurso foi evitar o trânsito em jugado da Sentença sem fundamento, devem condenar esta como litigante de má-fé, nos termos do artigo 542.º do CPC, em indemnização a favor do Apelado nunca inferior a € 5.000,00”, tendo formulado as seguintes conclusões:
“A – Se uma deliberação é tomad[a] pelo órgão próprio de uma IPSS, no caso a sua Direcção, tal deliberação é válida e obriga a referida instituição, mesmo que a sua direcção venha a mudar ao longo do tempo a que chega não pode pura e simplesmente rasgar ou ignorar os contratos passados, pacta sunt servanda. De igual modo, é quem quer impugnar a validade e eficácia de tal deliberação que tem de demonstrar que a atacou e em tempo, pedindo em sede de Assembleia Geral e Judicial se for o caso, a sua declaração de nulidade ou anulabilidade ou até de inexistência, e não tudo cumprir, tudo pagar, tudo deixar andar e só quando não quer pagar mais se lembrar de alegar a tal invalidade.
B – Se uma determinada pessoa colectiva celebrou um contrato de prestação de serviços e o vem cumprindo ao longo e cerca e 2 anos, recebe por ele serviços e como contrapartida destes efectua pagamentos, constitui abuso de direito, na modalidade de venire contra factum próprio, vir muito tempo depois alegar a sua nulidade. Tal resulta igualmente se com base nisso, nessa deliberação que considera agora inválida mas que nunca atacou e ou impugnou, a IPSS devedora celebrou diversos contratos de prestação de serviços, sendo que cumpriu todos menos um, tal releva a ilicitude da sua conduta e a sua motivação política e intuito personae.
C – De igual modo, a obrigação de passar as deliberações tomadas ao livro de Atas e de manter os livros atualizados, com as Atas completas cabe à IPSS e não ao prestador de serviços, pelo que, dar causa à nulidade – por não ter Atas e depois vir invocar tal nulidade por quem a causou é abusivo e não pode prejudicar quem de boa-fé com essa entidade negociou, nem lhe ser oponível.
D – Não se confunde o exercício de funções em órgão social estatutariamente gratuitas e não remuneradas – Tesoureiro - , com o exercício de outras funções de administração/gestão, auditoria ou contabilidade – administrador Executivo de Unidades - que não se confundem com as primeiras nem a estas se reduzem, e essas sim remuneradas. Funções essas de elevada complexidade e que implicam dedicação de muitas horas, como sejam, ser o responsável pelo serviço financeiro, exercendo essas funções em regime diário durante metade do dia e depois o dia inteiro. Coordenação e elaboração dos Planos de Actividades anuais da LAHGO da Unidades de Saúde (Unidades de Cuidados Continuados) e respectivos orçamentos, submetendo-os à aprovação da Direcção da LAHGO, acompanhar a sua execução, identificar eventuais desvios e implementando as medidas correctivas; Garantir a Execução das deliberações gerais e de caracter administrativo da Direcção da LAHGO a ora Ré; Assegurar a regularidade da cobrança das receitas e do pagamento das despesas da Unidade de Saúde; Autorizar todas as despesas de conservação e reparação das instalações e equipamentos ou outras que sejam indispensáveis ao normal e conveniente funcionamento das Unidades dentro dos limites definidos pela Direcção da LAHGO a ora Ré; Autorizar sob proposta da Direcção Clinica e/ou Enfermeiro Coordenador da Ré, a aquisição de produtos farmacêuticos, de materiais de consumo clinico e equipamentos necessários ao normal funcionamento dos serviços, assim como a introdução de novos produtos, desde que, daí resultem benefícios terapêuticos e económicos; Aprovar o plano de formação anual proposto pelo Conselho Técnico, para os diferentes grupos profissionais das Unidades da Ré;Fornecer à Direcção da LAHGO ora Ré elementos necessários para a avaliação da actividade; Exercer todas as demais competências das competências que a Direcção da LAHGO ora Ré delegar, ou seja, funções diferentes e que vão muito para além das do Tesoureiro. Por isso é que em Direito do Trabaçho há categorias profissionais diversas, com conteúdos funcionais distintos, ou seja, Tesoureiro, Contabilista, Director Financeiro, Director Administrativo, Director de Recursos Humanos, e apesar de ao abrigo da polivalência funcional uma categoria poder ser chamada a desempenhar temporariamente funções de outra, se isso se prolongar obriga a requalificação profissional na categoria mais elevada e a retribuição de tal trabalho.
E - O contrato de prestação de serviços para ser válido não obriga a ser reduzido a escrito. Podendo-se fazer prova da sua existência por outras formas, nomeadamente de que os serviços foram prestados e recebidos e que até certa altura foram pagos. O contrato de prestação de serviços na sua modalidade de mandato por serviços profissionais presume-se oneroso, sendo que era ao devedor que cabia o Ónus se demonstrar que pagou e cumpriu, artigos 798.º, 1152.º a 1158.º do CC”.
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Admitido liminarmente o requerimento recursório e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
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I) Impugnação da matéria de facto:
1) Questão prévia – Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, por violação dos artigos 639.º e 640.º do CPC?
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II) Nulidades da sentença:
2) Se a decisão recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC?
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III) Mérito do recurso:
3) Se a decisão proferida deve ser revogada e substituída por outra que absolva a ré do pedido do autor e julgue procedente a reconvenção?
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IV) Litigância de má fé:
4) Se foi evidenciada litigância de má fé?
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3. Enquadramento de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
2.1.1. O autor foi tesoureiro da Liga dos Amigos do Hospital Garcia da Horta durante 15 anos e até Dezembro de 2015 (al. A))
2.1.2. Entre Setembro de 2013 e Dezembro de 2015, o autor integrou o conselho executivo da LAHGO – Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, sedeada no Laranjeiro, sendo o responsável pelo serviço financeiro, exercendo essas funções em regime diário durante metade do dia. (pontos 1, 2 e 3 dos temas de prova).
2.1.3. Como administrador do Conselho Executivo concretamente da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados da ré o autor desempenhava as seguintes tarefas:
i) - Coordenação e elaboração dos Planos de Actividades anuais da LAHGO da Unidades de Saúde (Unidades de Cuidados Continuados) e respectivos orçamentos, submetendo-os à aprovação da Direcção da LAHGO, acompanhar a sua execução, identificar eventuais desvios e implementando as medidas correctivas;
ii) - Garantir a Execução das deliberações gerais e de caracter administrativo da Direcção da LAHGO a ora Ré;
iii) Assegurar a regularidade da cobrança das receitas e do pagamento das despesas da Unidade de Saúde;
iv) Autorizar todas as despesas de conservação e reparação das instalações e equipamentos ou outras que sejam indispensáveis ao normal e conveniente funcionamento das Unidades dentro dos limites definidos pela Direcção da LAHGO a ora Ré;
v) Autorizar sob proposta da Direcção Clinica e/ou Enfermeiro Coordenador da Ré, a aquisição de produtos farmacêuticos, de materiais de consumo clinico e equipamentos necessários ao normal funcionamento dos serviços, assim como a introdução de novos produtos , desde que, daí resultem benefícios terapêuticos e económicos;
vi) Aprovar o plano de formação anual proposto pelo Conselho Técnico, para os diferentes grupos profissionais das Unidades da Ré;
vii) Fornecer à Direcção da LAHGO ora Ré elementos necessários para a avaliação da actividade;
viii) Exercer todas as demais competências das competências que a Direcção da LAHGO ora Ré delegar. (ponto 4).
2.1.4. Por deliberação da Direcção da LAHGO, tomada em reunião realizada em 4 de Março de 2013, foi atribuído ao autor o cargo de administrador (área administrativa e financeira) do conselho executivo da Unidade de Saúde da LAHGO (ponto 5.)
E não obstante não ter sido deliberado, pelo exercício das funções de administrador do Conselho Executivo das Unidades da LAHGO, passou a ser-lhe paga a contrapartida mensal de € 2.600,00 a partir do mês de Outubro de 2013.
2.1.5. A partir do mês de Maio de 2015, o autor passou a desempenhar as mesmas funções a tempo inteiro, sendo que até essa data desempenhava funções a meio tempo com outra administradora (ponto 6.).
2.1.6. O autor recebeu no ano de 2015 o valor de € 7.800,00 e nos meses de Dezembro de 2013 e Agosto e Dezembro de 2014, recebeu, no conjunto, a importância de € 17.836,00, como contrapartida pelo desempenho do cargo de Administrador do Conselho Executivo da Unidade de Saúde da LAHGO (ponto 7).
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
2.2.1. Em 15 de Julho de 2016 a ré tomou conhecimento do recebimento pelo autor das quantias referidas em 7 (ponto 8.).
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4. Enquadramento jurídico:
Vejamos, pois, o recurso apresentado, apreciando as questões supra enunciadas.
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I) Impugnação da matéria de facto:
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1) Questão prévia – Se existe motivo para a rejeição do recurso, no tocante à impugnação da matéria de facto, por violação dos artigos 639.º e 640.º do CPC?
Invocou a recorrente, na sua alegação de recurso, numa parte intitulada “V – DA IMPUGNAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA”, que:
“30º Ora o Tribunal concretizou a sua convição na prova testemunhal, tendo elencado as testemunhas que foram prestaram depoimento, para em conclusão vir dizer que a testemunha JG… não mereceu qualquer credibilidade face ao seu depoimento eivado de contradições e titubeante…. Entende a ora APELANTE que o Tribunal entre em contradição, uma vez que o Tribunal não acha credível determinado depoimento, e por outro lado já o aceita para nele basear a sua convicção.
31º Assim como considerou o Tribunal que o próprio APELADO, nem tão pouco demonstrou cabal conhecimento sobre a referida reunião em que tal assunto tivesse sido tratado (a remuneração), precisando apenas que tal foi na ata de nomeação dos membros do Conselho Executivo. Contudo a ata nº 262 a que o APELADO refere é omissa quanto á remuneração dos membros do Conselho Executivo.
32º E ainda o Tribunal também especificou que a Ata nº 1, de 16.09.2013, do Conselho Executivo da APELANTE, nada referir acerca da remuneração que fossem devidas ao APELADO enquanto membro do Conselho Executivo
33º. E concluiu ainda o Tribunal que nenhum outro meio de prova confirmou este segmento fatual, pelo que o tribunal concluiu restritivamente, de acordo com o conteúdo da ata 262 de 6 de Agosto de 2013, documento que faz parte do livro de atas das reuniões da APELANTE.
34º.Ora efetivamente não foi apresentada nenhuma prova pelo APELADO quanto à atribuição da remuneração que se arroga na sua P.I, e apesar destas contradições entre os fatos considerados como provados ainda assim o Tribunal considera que o APELADO tem direito à remuneração de € 2.600,00 por mês.
35º Ora foi credível para o Tribunal face ao depoimento da testemunha ML…, que o APELADO recebeu as quantias no seu total de € 25.636,00 referentes aos anos de 2013, 2014 e 2015, baseando-se ainda em documentação de fls. 12, referente a declaração emitida pela APELANTE.
36º Contudo, em momento algum resultou provado o valor da remuneração para o APELADO, pois conforme o Tribunal considerou que “…..nem o autor teve conhecimento da citada reunião que viria a atribuir remuneração aos membros do Conselho Executivo….”
37º E o Tribunal muito simplesmente, fixou ele próprio determinado valor, sem que para isso tivesse apresentado como é que tal valor resultou, considerando que o APELADO receberia € 2.600,00 por mês, quando tal valor nem tão pouco foi confessado pelo APELANTE, nem tão pouco consta dos fatos que o Tribunal considerou como provado, consta meramente da P.I. e não tem suporte probatório.
38º Serviu também para convicção do Tribunal o fato da documentação que foi junta, correspondente a declaração emitida pela APELANTE em 27/01/2016 referentes a valores recebidos pelo APELADO em 2015, no valor de € 7.800,00, bem como documentação recibos para autoridade tributária relativos a meses de Agosto e Dezembro de 2014 e Dezembro de 2103, documentos estes que por sua vez não referem a que título tais importâncias são recebidas.
39º Entende a APELANTE, que de fato o que se sabe é que o APELADO recebeu determinados valores, e tal não existem dúvidas até pela prova que foi dada produzida e considerada, e que emitiu recibos, mas a que título recebeu tais valores já não se sabe, pois tal fato não resultou de prova produzida, e nem tão pouco foi apresentada alguma prova que fosse considerada atendível pelo Tribunal quanto ao quantitativo relativo a qualquer remuneração e a que título.
40º E o Tribunal considerou ainda como motivação dos fatos provados, que as faturas-recibos datadas de 26-12-2013, 3112-2014 e 13-08.2014 juntas nos autos, contabilizam os pagamentos líquidos a título de prestador de serviços ao APELADO, documentos estes que nada referem a que título foram emitidos.
41º Ora tal fato resultado provado meramente confirma que foram pagos determinados valores, mas a que título não se sabe, em momento algum da provas testemunhal que foi produzida e da prova documental resultou provado que fora atribuída e aprovado quer pela Direção e/o pela Assembleia de Associados que o APELADO receberia remuneração pelos serviços que prestava. Pois entenda-se que o APELADO nunca conseguiu juntar aos autos qualquer documento que o habilitasse a receber a remuneração que peticionou como prestador de serviços.
42º Pese embora ter ainda o Tribunal considerado que a testemunha OM…, ter referido face de acordo com as funções que exerceu na APELANTE, “…que lhe foi dado instrução verbal…”, diz o Tribunal que a testemunha não tenha identificado a autoria dessa informação para processar a remuneração.
43º Entende a APELANTE que esta prova que foi levada em conta para a consideração de fatos provados, não pode de forma alguma ser considerada credível e válida, na medida em que nem tão pouco a ora testemunha conseguiu identificar quem lhe deu as instruções, como também pouco ou nada acrescentou quanto a esta matéria. Logo esta prova vale “zero”, pois nada vem acrescentar quanto à matéria que estava em discussão, e o Tribunal a quo de forma alguma se basear-se nesta sustentação para formular a sua convicção, e criar uma ato em si (o ato de atribuição de uma remuneração).
44º Pois não compete ao Tribunal fazer juízos sem algum suporte. Compete sim ao juiz acautelar determinados juízos e não proferi-los sem qualquer sustentação probatória. “O julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstanciam o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório….. a livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraía das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido de responsabilidade e bom senso, e valorando segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência” – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra . 3/07.4GAVGS.C2 – JTRC- 01-10-2008”.
Vejamos se existe motivo para a rejeição liminar do recurso no tocante à impugnação sobre a matéria de facto:
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No que toca à especificação dos meios probatórios, “quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da «exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso»), não funciona automaticamente, devendo o Tribunal, se se patentear a falta de indicação das passagens exactas da gravação, a convidar o recorrente a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (cfr. Ac. do STJ de 26-05-2015, P.º n.º 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO);
O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
Para além disso, e especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte:
“1. O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2. Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3. Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4. Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.
Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, Relator JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS): “O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.
“Limitando-se os apelantes, nas conclusões, para efeitos de impugnação ora a referirem, repetidamente, que o tribunal deveria ter julgado provado certos segmentos, supostamente fácticos que entendem relevantes, mas sem os relacionarem com qualquer ponto concreto dos elencados na decisão da matéria de facto (como provados ou não provados) ou sequer os identificarem com os articulados, isto de permeio com considerações de diversa natureza a seu ver justificativas de tal dever, ora a referir que há factos que foram omitidos, factos contraditórios entre si e, ainda, contradição entre factos provados e a decisão de mérito, omissões e contradições que equivocamente qualificam como nulidades da sentença, resulta claro que não cumpriram, como deviam ter feito nessas conclusões, os ónus obrigatórios previstos nas alíneas a) e c), do nº 1, do artº 640º, de especificar os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados e de, quanto a cada um deles, especificarem a decisão que os apelantes entendem deveria ter sido e deve ser no recurso ser proferida” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-03-2017, Pº 6225/13.1TBBRG.G1, rel. JOSÉ AMARAL).
E, na mesma linha, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.
Ora, no presente caso, a alegação da apelante circunscreveu-se à descrição de determinados factos extratados da matéria de facto apurada pelo Tribunal, manifestando discordância sobre a motivação da convicção alcançada pelo Tribunal.
Contudo, em nenhum momento da alegação, ou das conclusões da mesma, a apelante se insurge em contrário com o resultado probatório alcançado pelo Tribunal recorrido, não visando a alteração da matéria de facto provada ou não provada, nem invocando existir qualquer insuficiência, excesso ou erro de apreciação na prova produzida, com algum reflexo nos factos e na seleção factual levada a efeito pelo Tribunal a quo.
Como se viu, com vista ao cumprimento dos ónus de impugnação da matéria de facto acima identificados, impor-se-ia à recorrente que identificasse os concretos pontos de facto que considerasse terem sido incorretamente julgados.
A recorrente, contudo e como se disse, não identifica quaisquer pontos de factos que possam ter sido objeto de errado julgamento, assim como, não faz qualquer referência à decisão que, em contrário, devesse ser proferida.
Finalmente, a recorrente também não identifica quaisquer segmentos ou partes da prova gravada (ainda que procedendo à transcrição dos excertos respectivos), nos termos que lhe são impostos pelo nº 2 do referido artigo 640.º do CPC.
Assim, na medida em que a recorrente não deu cumprimento aos preceitos legais acima mencionados, quanto à matéria de facto considerada na sentença recorrida como provada e não provada, não especificando na sua alegação os pontos concretos que considera terem sido incorretamente julgados, nem a concreta decisão que devesse ser tomada quanto aos mesmos, não cuidando de indicar as partes concretas da prova gravada que impusessem a alteração da decisão, há lugar à rejeição imediata do recurso no que respeita à impugnação da matéria de facto, por inobservância do disposto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, assim se mantendo a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto.
*
II) Nulidades da sentença:
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2) Se a decisão recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC?
Nas conclusões 87.º a 91.º da alegação de recurso, a ré/apelante vem invocar que a sentença proferida é nula - segundo refere - “na medida em que tem uma manifesta e evidente contradição entre os fatos que considerou provados e depois a sua fundamentação e conclusão”, entendendo que “a construção da Sentença é viciosa uma vez que os fundamentos referidos pelo Juíz conduziram necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos de sentido diferente”, “[p]orque uma vez que tendo sido dado por provado pelo Tribunal a quo que a retribuição peticionada pelo APELADO não foi objeto de qualquer deliberação/aprovação, nem da direção nem da Assembleia Geral de Associados, nos termos dos Estatutos de 2012 e da Lei 119/83, de 25/02, e que nem tão pouco aquele apresentou algum documento escrito que fizesse prova dessa atribuição, uma vez que o documento que apresentou “Regulamento Interno das Unidades” em parte alguma refere que os administradores executivos são remunerados, e tratando-se de uma retribuição peticionada pelo APELADO em função de uma deliberação, que já se viu não existe, e a qual a ser atribuída seria ilegítima face aos normativos referidos, na própria Sentença”.
Mais considera a apelante que “nunca o Tribunal a quo poderia ter alicerçado a sua decisão do fato da não arguição de anulabilidade do ato (??) e nesse sentido o ato acabaria por se confirmar tacitamente. Ora em momento algum o Tribunal deu como provado, que existisse ato de deliberação para tal remuneração, e nesse sentido o Tribunal nunca poderia vir concluir e proferir decisão no sentido de uma condenação da APELANTE por não ter pedido a anulabilidade do ato tendo deixado passar os 6 meses conforme os Estatutos. Mas se não existia ato algum como poderia a APELANTE pedir a anulabilidade de algo que não existia, sempre se estaria perante um ato inexistente, que é a situação (…) Não se podem anular atos que não existem! (…) Logo a decisão / Sentença e no sentido do que se alega neste Recurso, sempre teria de ser no sentido de uma Absolvição da APELANTE, quanto ao pedido formulado pelo APELADO na sua P.I., e por via desse mesmo raciocínio o pedido Reconvencional teria de ser procedente devido ao enriquecimento sem causa por parte daquele”.
Nos termos do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, uma sentença é nula quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Vejamos se, no caso, a sentença padece da nulidade da alínea c) do n.º 1 do referido artigo 615.º do CPC.
“A nulidade da sentença a que se refere a 1.ª parte da alínea c), do n.º 1, do art.º 615.º do C. P. Civil, remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos. A ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, e a obscuridade traduz os casos de ininteligibilidade. A estes vícios se refere a 2.ª parte [da alínea c)] do n.º 1, do art.º 615.º do C. P. Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-11-2016, Processo 1774/13.4TBLLE.E1, rel. TOMÉ RAMIÃO).
Ou seja: Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-01-94, rel. CARDOSO ALBUQUERQUE, in BMJ nº 433, p. 633, o Acórdão do STJ de 13-02-97, rel. NASCIMENTO COSTA, in BMJ nº 464, p. 524 e o Acórdão do STJ de 22-06-99, rel. FERREIRA RAMOS, in CJ 1999, t. II, p. 160).
Trata-se de um erro lógico-discursivo na medida em que, ocorrendo tal vício, a decisão segue uma determinada fundamentação e linha de raciocínio, mas vem, a final, a decidir em conflito com tal fundamentação.
Esta nulidade verificar-se-á, assim, quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se, constituindo um vício de natureza processual.
Relativamente ao segmento atinente à ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, tem entendido a doutrina que “a sentença é obscura quando contém um passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos” (cfr. Pais do Amaral, Direito Processual Civil, 11ª ed., 2013, Almedina, p. 400).
“Diz-se que a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade: de ambiguidade quando algumas das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante do 2º segmento da al. c) do nº. 1 do artº. 615º, se tais vícios tornarem a “decisão ininteligível” ou incompreensível” (assim, Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 371).
Revertendo estas considerações para o caso dos autos, verificamos que a apelante considera que os fundamentos da decisão deveriam ter conduzido a uma decisão de sentido oposto/diferente, na medida em que tendo o Tribunal recorrido dado como provado que “a retribuição peticionada pelo APELADO não foi objeto de qualquer deliberação/aprovação” (e “em momento algum o Tribunal deu como provado, que existisse ato de deliberação para tal remuneração”), não “poderia vir concluir e proferir decisão no sentido de uma condenação da APELANTE por não ter pedido a anulabilidade do ato tendo deixado passar os 6 meses conforme os Estatutos. Mas se não existia ato algum como poderia a APELANTE pedir a anulabilidade de algo que não existia, sempre se estaria perante um ato inexistente, que é a situação”.
Na sentença proferida foram expendidas na fundamentação de direito, nomeadamente, as seguintes considerações:
“As questões a apreciar são as seguintes:
A existência do contrato de prestação de serviço em que o autor alicerçou o seu pedido e o incumprimento do mesmo pela ré
E na medida em que não prejudicadas pela solução dada à anterior, a verificação de enriquecimento sem causa pelo autor e a excepção de prescrição invocada por este.
O autor alicerçou a sua pretensão num contrato de prestação de serviços celebrado com a ré, na sequência da abertura da UCC da LAHGO, em Setembro de 2013, da investidura no cargo de membro do Conselho Executivo dessa nova valência desta IPSS.
O que se trata é de saber se o trabalho prestado cujo pagamento é reclamado pelo autor foi prestado na execução de um contrato de prestação de serviços celebrado entre ela e a ré.
Este tipo contratual previsto no art.º1156º do Código Civil caracteriza-se por uma das partes se obrigar a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com exclusão dos que são regulados no Código Civil, com ou sem retribuição.
Esta questão tem resposta negativa pelos fundamentos que passaremos a enunciar.
Da matéria de facto apurada é lídimo concluir ter a Direcção da LAHGO decidido que o autor assumiria, para além do cargo de tesoureiro da LAHGO, as funções de membro do conselho executivo da UCC da LAHGO, com a abrangência de funções constante do elenco do ponto de facto 2.1.3..
Com efeito, não obstante a ausência de prova de deliberação pelo órgão competente da ré sobre a matéria da retribuição, demonstrou-se que a Direcção da LAHGO deliberou em reunião de direcção da LAHGO, realizada no dia 4 de Março de 2013 a atribuição ao autor do cargo de administrador do conselho executivo das Unidades da LAHGO ao autor (ponto 2.1.4.), tendo-lhe passado a ser paga, desde o mês de Outubro de 2013, a quantia mensal de € 2.600,00 por mês”.
Destas considerações da sentença recorrida decorre que, na realidade, o Tribunal assinalou que não se logrou provar que ocorreu deliberação “pelo órgão competente da ré” sobre a matéria da retribuição, mas, não deixou de sublinhar, sem qualquer contradição, que, contudo, ficou apurado que “a Direcção da LAHGO deliberou em reunião….realizada no dia 4 de Março de 2013, a atribuição ao autor do cargo de administrador do conselho executivo” e, bem assim, se provou que passou a ser paga a este, “desde o mês de Outubro de 2013, a quantia mensal de € 2.600,00”.
E, relativamente a estes factos colocou, com assertividade, as questões a decidir em sede de subsunção jurídica, do seguinte modo:
“As questões a apreciar consubstanciam-se, por um lado, na legalidade do exercício, em simultâneo, do cargo de tesoureiro e de administrador do conselho executivo de uma das unidades da IPSS, e por outro lado, a da regularidade da atribuição patrimonial, por reporte, quer à Lei 119/83, de 25 de Fevereiro, vigente na data da celebração do contrato, quer dos estatutos da IPSS LAHGO de 2012.
Os estatutos de 2012 previam no art.º 36º que o exercício de qualquer cargo nos Corpos Sociais da Instituição é gratuito, embora possa justificar o pagamento de despesas dele derivadas”.
A decisão recorrida prossegue na análise abordando a questão da legalidade de cumulação de funções de tesoureiro e de administrador:
“Quanto à primeira questão começaremos por precisar que de acordo com o preceituado no art.º 12º/1 do DL nº119/83 de 25.02.1983, cada instituição terá, pelo menos, um órgão colegial de administração e outro com funções de fiscalização, ambos constituídos por um número impar de titulares, dos quais um será o presidente. Sendo que nas instituições de forma associativa haverá sempre uma assembleia geral de associados.
Por seu turno, o art.º 15º/1 do mesmo diploma estabelece que os corpos gerentes serão, em princípio, constituídos por associados da própria instituição, pelos fundadores ou pessoas por eles designadas. Prevendo o nº2 que aos membros dos corpos gerentes não é permitido o desempenho de mais de um cargo na mesma instituição.
Na instituição aqui em causa, tratando-se de uma IPSS de cariz associativo (art.º 1º dos estatutos de 2012), além da assembleia geral, constituem órgãos da LAHGO a direcção, o conselho fiscal e o conselho consultivo (art.º 8º).
Por sua vez, a direcção é composta por um presidente, um vice-presidente, um tesoureiro e quatro vogais de entre os quais a direcção designará um secretário.
No caso da LAHGO, os respectivos estatutos estabelecem a competência dos diversos órgãos, entre ele a da direcção, entre as quais não se mostra contemplada a de decidir sobre a nomeação para um outro órgão da LAHGO, no caso o conselho executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção, conforme decorre do art.º 19º dos estatutos de 2012.
Com efeito, não suscita dúvidas que esta unidade carece de personalidade jurídica, conforme aliás, decorre do seu próprio regulamento interno – art.º 1º - não sendo mais que uma valência da LAHGO.
Destarte a decisão da direcção da ré, tomada em 04 de Março de 2013, pela qual foi atribuído ao autor o cargo de administrador do conselho executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção, enferma de anulabilidade, conforme prevêem os seus estatutos no art.º 40º/1, na medida em que viola frontalmente aquela norma, segundo a qual, aos membros dos corpos gerentes não é permitido o desempenho simultâneo de mais de um cargo na mesma instituição (art.º 15º do DL 118/83, de 25.02), como sucedia com o autor que já desempenhava o cargo de tesoureiro (ponto 2.1.1. do elenco da matéria de facto provada).
Anulabilidade que apenas poderia ter sido arguida no prazo de seis meses (nº2 do art.º 40º) porquanto, tal como sucede no caso em apreço, o vício considerar-se-á sanado, decorrido esse prazo”.
Após, a sentença recorrida aprecia a questão da “regularidade da atribuição patrimonial” que começou a ser feita ao autor a partir de outubro de 2013, tendo-se pronunciado nos seguintes termos:
“Aqui chegados, importa indagar da regularidade da atribuição de retribuição ao autor pelo exercício desse cargo de membro do conselho executivo de uma das valências da LAHGO, mais concretamente se tem por base deliberação do órgão competente que a sustente.
Determina o art.º 18º/2 do DL 119/83, de 25 de Fevereiro, contendo os estatutos no seu art.º 36º/2 idêntica disposição, que quando o volume do movimento financeiro ou a complexidade da administração das instituições exijam a presença prolongada de um ou mais membros dos corpos gerentes, podem estes ser remunerados, desde que os estatutos o permitam.
Impondo o art.º 58º, alínea k) do mesmo diploma competir necessariamente à assembleia geral das IPSS fixar a remuneração dos corpos gerentes, indo no mesmo sentido o art.º 10º/k) doa estatutos da ré.
Sancionando a lei com a anulabilidade as decisões tomadas por qualquer dos corpos gerentes fora da respectiva competência (art.º 22º do mesmo diploma legal), disposição que se acha replicada nos estatutos da ré, na versão vinda de referir, concretamente no seu art.º 40º.
Da matéria de facto tida por provada extrai-se que não obstante não ter sido objecto de deliberação a retribuição do autor pelo exercício de funções no conselho executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção da LAHGO, passou a ser-lhe paga a contrapartida mensal de € 2.600,00 a partir do mês de Outubro de 2013.
Esta atribuição patrimonial ao autor sem base legal, porque, entre o mais, não foi objecto de deliberação da assembleia geral, conforme previsto na lei e nos estatutos enferma, de acordo com os normativos acimas citados, do vício da anulabilidade.
Contudo, não se demonstrou que a ré tenha arguido um tal vício, designadamente, depois da substituição dos titulares dos órgãos que integram a IPSS, ocorrida em Janeiro de 2016, pelo que há-de concluir-se que a renúncia ao exercício desse direito potestativo se traduz na confirmação (cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 423), no caso, tácita, do acto que determinou a atribuição de uma remuneração ao autor (art.º 288º do Código Civil).
Acresce referir que não obstante a alteração em matéria de remuneração pelo exercício de cargos em órgão sociais introduzida pela Lei 172-A/2014 de 14.11 no seu art.º 20º/3 segundo o qual ‘’Não há lugar à remuneração dos titulares dos órgãos de administração sempre que se verifique, por via de auditoria determinada pelo membro do Governo responsável pela área da segurança social, que a instituição apresenta cumulativamente dois dos seguintes rácios: a) Solvabilidade inferior a 50 %; b) Endividamento global superior a 150 %; c) Autonomia financeira inferior a 25 %; d) Rendibilidade líquida da atividade negativa, nos três últimos anos económicos.’’.
Todavia, esta não é aplicável ao caso em apreço, por força do princípio da não retroactividade da lei, uma vez que segundo o art.º 12º/2 do Código Civil, ‘’Quando a lei dispões sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida que só visa os factos novos (…)’’, pelo que se considera aplicável a lei vigente na data em que o autor foi nomeado para exercer o cargo de administrador do conselho executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção”.
Na decorrência destas considerações, o Tribunal recorrido conclui que o autor tem direito a haver da ré as quantias que deixou de receber relativamente ao período em que integrou o Conselho Executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção da LAHGO, isto é, entre Outubro de 2013 e Dezembro de 2015, o que totaliza a importância de € 67.600,00 (sem prejuízo das quantias já recebidas e da dedução do imposto que deva ser retido pela ré na decorrência do pagamento em questão).
Do exposto decorre que, ao contrário do invocado pela ré, a decisão proferida se encontra em plena articulação e harmonização com os fundamentos de facto e de direito expostos precedentemente, nela não se divisando alguma contradição ou incompatibilidade.
Na realidade, como se viu, só existirá contradição ou oposição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão judicial quando aqueles conduzirem, de acordo com um raciocínio lógico, a um resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a decisão consequente justifica uma decisão oposta à prolatada.
No caso, tal não se verifica pois, como se viu, as premissas de facto e de direito (e estas harmonizam-se com a factualidade na qual assentaram) em que assentou o decidido (no caso, a verificação da existência de direito do autor ao recebimento de quantias com o fundamento na circunstância de a ré ter passado a partir de certa altura a pagar ao autor uma remuneração, com base em deliberação da direção, que, embora “sem base legal, porque, entre o mais, não foi objecto de deliberação da assembleia geral”, apenas seria anulável, vício que, contudo, não foi arguido), estão conformes com a decisão proferida.
Assim, conclui-se não se vislumbrar qualquer ambiguidade, do mesmo modo que não ocorre qualquer contradição entre a decisão e os fundamentos, pelo que, não padece a decisão recorrida da invocada nulidade.
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III) Mérito do recurso:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
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3) Se a decisão proferida deve ser revogada e substituída por outra que absolva a ré do pedido do autor e julgue procedente a reconvenção?
Concluindo pela revogação da decisão proferida pelo Tribunal recorrido, entendendo que deve ser absolvida do peticionado pelo autor e julgada procedente a reconvenção, invocou a recorrente, nomeadamente, que:
“(…) 73º a atribuição da remuneração ao APELADO teria de ser redigida a escrito, ou ter sido um resultado de deliberação nos termos dos artigos 10º/K, 36º/1 e artº 18º/1 do DL 119/83, de 25/2.
74º tendo sido dado como provado que não existiu deliberação da direção, nem da Assembleia de Associados nem algum documento escrito/contrato que tivesse atribuído/aprovado a atribuição de uma remuneração ao APELADO, não estamos perante qualquer ato que possa ser anulado nos termos do artº 40º do referido Estatutos (a contrario) (…).
79º como pode o Tribunal proferir uma decisão cingindo-se exclusivamente à figura jurídica da anulabilidade, quando de fato não estamos perante qualquer ato passível de ser anulado, algo que não existe. (…).
81º O que se sabe e conforme prova assente, é que o APELADO recebeu determinados valores, desconhecendo-se a que título recebeu por falta de documentos escritos. Os únicos documentos existentes e que o Tribunal deu por provado foram as faturas recibos das quantias, as quais não transcrevem a que se refere tais verbas, não se alcançando onde foi o Tribunal buscar o valor da remuneração do APELADO, a menos que o tivesse sido da “boca deste”.
82º Ora deliberações, quer da Direção quer da Assembleia Geral, que não existem, documentos escritos que também não existem, o que só nos poderá levar para uma inexistência jurídica.
83º Ora, não existindo nenhuma deliberação ou aprovação, não poderia nunca o próprio APELANTE, pedir a anulabilidade, dentro dos 6 meses, de algo que não existia (…).
86º não se pode aplicar o regime da anulabilidade, mas sim estaremos perante uma inexistência jurídica (…)”.
O autor contrapôs que o contrato de prestação de serviços, para ser válido, não obriga a ser reduzido a escrito (podendo ser feita prova da sua existência, nomeadamente, provando-se que os serviços foram prestados e recebidos e que, até certa altura, foram pagos, cabendo ao devedor o ónus de demonstrar que pagou e cumpriu) e que a deliberação tomada pela direção da ré é válida e obriga a referida instituição, devendo ser esta que tem de demonstrar que atacou a deliberação em tempo e, se for o caso, a sua declaração de nulidade, anulabilidade ou inexistência e que, se uma pessoa colectiva celebrou um contrato de prestação de serviços e o vem cumprindo ao longo de cerca de 2 anos, recebe por ele serviços e como contrapartida destes efectua pagamentos, constitui abuso de direito, vir alegar a sua nulidade ou invocar a não transcrição dessa deliberação para o livro de actas.
Vejamos:
Na petição inicial, o autor estruturou a sua pretensão com base na celebração com a ré de um contrato de prestação de serviços, que refere ter tido por objeto a realização de diversos actos de assessoria, gestão, organização de recursos humanos, com intuitos de gerir o dia a dia da Ré, mas que a ré incumpriu, por não ter procedido ao pagamento do acordado no contrato.
Por despacho de 27-11-2017, foi considerado existir “alguma insuficiência na alegação de facto do Autor” e, nessa medida, foi o mesmo convidado “a apresentar articulado de aperfeiçoamento no qual esclareça de modo cabal e concretizado, o seguinte:
- Em que data foi celebrado o contrato de prestação de serviços entre o Autor e a Ré;
- Qual a forma do contrato;
- Quem o celebrou em representação da Ré;
- Qual o conteúdo do contrato, o seu clausulado, mais concretamente: a definição dos serviços a prestar pelo Autor, local e modo como os mesmos deveriam ser prestados, o prazo ou horário que porventura tenha sido fixado, a remuneração fixada, o prazo e forma de pagamento dessa remuneração que foram acertados, etc, etc.”.
Respondendo ao convite, o autor pronunciou-se, nos termos seguintes:
“1.º - O contrato de prestação de serviços entre o A. e a Ré iniciou-se em Setembro de 2013 e terminou em Dezembro de 2015.
2.º - A Remuneração do A. pela Ré só se iniciou em Outubro de 2013.
3.º - Forma de Contrato: Não existe contrato escrito.
4.º - Quem celebrou o contrato: A Direção da Liga de Amigos do Hospital Garcia de Orta, ora Ré, em reunião de Direção decidiu por unanimidade, a atribuição dos cargos de Administradores do Conselho Executivo da Unidade de Saúde à Drª VR… e ao Dr. HR…, o ora A..
5.º - Nessa mesma reunião foram decididos os valores da contraprestação remuneratórias pelos serviços prestados.
6.º - Os serviços a prestar são os que constam do Regulamento Internos das Unidades aprovado pela Direção da Instituição e assinado pelo Presidente do Conselho Executivo e simultaneamente Presidente da Instituição, em concreto no Nº.1 do Artigo 7º (competências do Conselho Executivo) e infra melhor identificados.
7.º - Em termos de pelouros, o A. assumia a parte Administrativa e Financeira e a Drª. VR… a problemática da Saúde, tudo por instruções da Ré e com o seu conhecimento.
8.º - O Local da prestação de serviços era preferencialmente na sede das unidades mas também noutros locais, quando necessários em representação das Unidades.
9.º - O Horário acordado era de meio tempo para cada um dos administradores. O A. permanecia na Unidade da parte da manhã enquanto a Drª. V… permanecia de tarde.
10.º - A partir de Maio de 2015 e depois da saída da Drª V…, o A. permaneceu a prestar serviços para a Ré a tempo inteiro, sem que tenha havido qualquer alteração de remuneração.
11.º - Anexo doc 5 - mail do Presidente da Instituição ora Ré a convocar uma reunião de Direção onde constava um ponto sobre "nomeação do Conselho Executivo para Registo em ata" 16.02.2013. (Já junto aos autos para o qual se remete V. Ex.ª).
12.º - Anexo doc 4 - Primeira ata do Conselho Executivo de 16.09.2013 da Ré. (Já junto aos autos).
13.º - Anexo doc 20 que ora se junta - Carta da colega de Administração da altura do A. a reclamar pagamento dos meses em atraso, com o despacho do Presidente da Ré.
14.º - Anexo doc 21 - Carta do advogado a reclamar pagamento. Foi elaborado pela Ré plano de pagamento a 06.08.2015 (doc 9) Já junto aos autos.
15.º Assim, a ata da reunião de Direção da Ré: Dia 18.02.2013, às 17:30
16.º - Com a seguinte Ordem de Trabalhos.:
(....) 2 - Organização do trabalho sobre os seguintes assuntos:
(...) - Nomeação do Conselho Executivo para registo em Ata.
- Regulamento Interno para o funcionamento do Conselho Executivo.
17.º - Estes elementos eram necessários para o licenciamento da Unidade de Saúde da Ré.
18.º - Elementos da Direção da Ré: FN… (Dr.) - Presidente
JG…l (Dr.) - Vice-Presidente
HR… (Dr.) - Tesoureiro
VR… (Drª) - Vogal
LL… (Dr.) - Vogal
AD… (Engª) - Vogal
JM… (Eng.º) - Vogal
19.º - Síntese das Funções do A. como Administrador do Conselho Executivo:
1 - Coordenação e elaboração dos Planos de Atividades anuais da LAHGO da Unidades de Saúde (Unidades de Cuidados Continuados) e respetivos orçamentos, submetendo-os à aprovação da Direção Da LAHGO, acompanhar a sua execução, identificar eventuais desvios e implementando as medidas corretivas;
2 - Garantir a Execução das deliberações gerais e de caracter administrativo da Direção da LAHGO a ora Ré;
3 - Assegurar a regularidade da cobrança das receitas e do pagamento das despesas da Unidade de Saúde;
4 - Autorizar todas as despesas de conservação e reparação das instalações e equipamentos ou outras que sejam indispensáveis ao normal e conveniente funcionamento das Unidades dentro dos limites definidos pela Direção da LAHGO a ora Ré;
5 - Autorizar sob proposta da Direção Clinica e/ou Enfermeiro Coordenador da Ré, a aquisição de produtos farmacêuticos, de materiais de consumo clinico e equipamentos necessários ao normal funcionamento dos serviços, assim como a introdução de novos produtos , desde que, daí resultem benefícios terapêuticos e económicos;
6 - Aprovar o plano de formação anual proposto pelo Conselho Técnico, para os diferentes grupos profissionais das Unidades da Ré;
7 - Fornecer à Direção da LAHGO ora Ré elementos necessários para a avaliação da atividade;
8 - Exercer todas as demais competências das competências que a Direção da LAHGO ora Ré delegar;”.
Em sede de saneamento dos autos fixou-se como objeto do litígio, o seguinte:
“A existência de acordo de prestação de serviços entre o autor e a ré.
O direito de crédito do autor referente a remunerações em falta.
O direito da ré à indemnização por enriquecimento sem causa do autor e a extinção por prescrição deste direito”.
E foram fixados os seguintes temas da prova:
“1. De Setembro de 2013 em diante até Dezembro de 2015, o autor prestou serviços de contabilidade e auditoria à ré, no período da manhã, quer na sede das Unidades, quer noutros locais, em representação destas.
2. Acumulando as funções de técnico de contas, tesoureiro e director financeiro.
3. O autor fazia nomeadamente toda a assessoria administrativa e financeira da ré, a tempo inteiro e em exclusividade, levando a cabo o apoio: nos recursos humanos; gestão de pessoal; processamento de salários; elaboração de contratos de prestação de serviço e de trabalho; negociação com credores da ré; pagamento a credores da ré.
4. Como administrador do Conselho Executivo da ré o autor desempenhava as seguintes tarefas:
i) - Coordenação e elaboração dos Planos de Actividades anuais da LAHGO da Unidades de Saúde (Unidades de Cuidados Continuados) e respectivos orçamentos, submetendo-os à aprovação da Direcção da LAHGO, acompanhar a sua execução, identificar eventuais desvios e implementando as medidas correctivas;
ii) - Garantir a Execução das deliberações gerais e de caracter administrativo da Direção da LAHGO a ora Ré;
iii) Assegurar a regularidade da cobrança das receitas e do pagamento das despesas da Unidade de Saúde;
iv) Autorizar todas as despesas de conservação e reparação das instalações e equipamentos ou outras que sejam indispensáveis ao normal e conveniente funcionamento das Unidades dentro dos limites definidos pela Direcção da LAHGO a ora Ré;
v) Autorizar sob proposta da Direcção Clinica e/ou Enfermeiro Coordenador da Ré, a aquisição de produtos farmacêuticos, de materiais de consumo clinico e equipamentos necessários ao normal funcionamento dos serviços, assim como a introdução de novos produtos , desde que, daí resultem benefícios terapêuticos e económicos;
vi) Aprovar o plano de formação anual proposto pelo Conselho Técnico, para os diferentes grupos profissionais das Unidades da Ré;
vii) Fornecer à Direcção da LAHGO ora Ré elementos necessários para a avaliação da actividade;
viii) Exercer todas as demais competências das competências que a Direcção da LAHGO ora Ré delegar;
5. Por deliberação da Direcção da LAHGO tomada em reunião realizada em 4 de Março de 2013, foi atribuído o cargo de administrador (área administrativa e financeira) do conselho executivo da Unidade de Saúde da LAHGO, e foi fixada ao autor, pela execução desses serviços, enquanto administrador do Conselho Executivo das Unidades da LAHGO a remuneração mensal de € 2.600,00, que entrou em vigor a partir do mês de Outubro de 2013.
6. A partir do mês de Maio de 2015, o autor passou a desempenhar as mesmas funções a tempo inteiro, sendo que até essa data desempenhava funções a meio tempo com outra administradora.
7. O autor recebeu no ano de 2015 o valor de €15.600,00 e nos meses de Dezembro de 2013 e Agosto e Dezembro de 2014, recebeu, no conjunto, a importância de € 18.200,00 como contrapartida pelo desempenho do cargo de Administrador do Conselho Executivo da Unidade de Saúde da LAHGO.
8. Em 15 de Julho de 2016 a ré tomou conhecimento do recebimento pelo autor das quantias referidas em 7.”.
Relativamente a estes temas da prova, após julgamento, o Tribunal apurou a factualidade supra considerada e que, em síntese, é a seguinte:
- O autor foi tesoureiro da ré durante 15 anos e até Dezembro de 2015;
- Entre Setembro de 2013 e Dezembro de 2015, o autor integrou o conselho executivo da LAHGO – Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção Integrados, sedeada no Laranjeiro, sendo o responsável pelo serviço financeiro, exercendo essas funções em regime diário durante metade do dia, funções em que desempenhava as seguintes tarefas: i) - Coordenação e elaboração dos Planos de Actividades anuais da LAHGO da Unidades de Saúde (Unidades de Cuidados Continuados) e respectivos orçamentos, submetendo-os à aprovação da Direcção da LAHGO, acompanhar a sua execução, identificar eventuais desvios e implementando as medidas correctivas; ii) - Garantir a Execução das deliberações gerais e de caracter administrativo da Direcção da LAHGO a ora Ré; iii) Assegurar a regularidade da cobrança das receitas e do pagamento das despesas da Unidade de Saúde; iv) Autorizar todas as despesas de conservação e reparação das instalações e equipamentos ou outras que sejam indispensáveis ao normal e conveniente funcionamento das Unidades dentro dos limites definidos pela Direcção da LAHGO a ora Ré; v) Autorizar sob proposta da Direcção Clinica e/ou Enfermeiro Coordenador da Ré, a aquisição de produtos farmacêuticos, de materiais de consumo clinico e equipamentos necessários ao normal funcionamento dos serviços, assim como a introdução de novos produtos , desde que, daí resultem benefícios terapêuticos e económicos; vi) Aprovar o plano de formação anual proposto pelo Conselho Técnico, para os diferentes grupos profissionais das Unidades da Ré; vii) Fornecer à Direcção da LAHGO ora Ré elementos necessários para a avaliação da actividade; viii) Exercer todas as demais competências das competências que a Direcção da LAHGO ora Ré delegar;
- Por deliberação da Direcção da LAHGO, tomada em reunião realizada em 4 de Março de 2013, foi atribuído ao autor o cargo de administrador (área administrativa e financeira) do conselho executivo da Unidade de Saúde da LAHGO e não obstante não ter sido deliberado, pelo exercício das funções de administrador do Conselho Executivo das Unidades da LAHGO, passou a ser-lhe paga a contrapartida mensal de € 2.600,00 a partir do mês de Outubro de 2013;
- A partir de Maio de 2015, o autor passou a desempenhar as mesmas funções a tempo inteiro, sendo que até essa data desempenhava funções a meio tempo com outra administradora;
- O autor recebeu no ano de 2015 o valor de € 7.800,00 e nos meses de Dezembro de 2013 e Agosto e Dezembro de 2014, recebeu, no conjunto, a importância de € 17.836,00, como contrapartida pelo desempenho do cargo de Administrador do Conselho Executivo da Unidade de Saúde da LAHGO.
Ora, sobre a questão da celebração de contrato de prestação de serviços entre autor e ré, a mesma não resultou apurada, ou seja, não resultou provado que, o trabalho prestado e cujo pagamento é reclamado pelo autor o tenha sido em execução de um contrato de prestação de serviços que aquele tenha celebrado com a ré.
Diga-se que, no âmbito da formalização de um qualquer contrato de prestação de serviços não se encontra o mesmo sujeito a forma escrita, ao contrário do pugnado pelo autor.
Na realidade, conforme decorre do disposto no artigo 1154.º do CC, o contrato de prestação de serviços não se encontra sujeito a qualquer forma.
É que, aos contratos de prestação de serviços que a lei não regule especialmente (como o mandato, o depósito e a empreitada) são aplicáveis, nos termos do preceituado no artigo 1156º do Código Civil, com as necessárias adaptações, as disposições que regem o mandato, relativamente ao qual não exige a lei forma escrita, estando sujeito ao princípio do consensualismo, ínsito no artigo 219.º do CC.
Este princípio é válido também na esfera de atuação da ré (uma associação, instituição particular de solidariedade social, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública – cfr. artigo 1.º dos Estatutos da ré, sendo que, se faz referência aos Estatutos de 2012, em vigor à data dos factos atinentes ao exercício das funções de administrador do autor na ré), pelo que a prova da existência de um tal contrato não teria que ser feita por documento escrito.
Em contrário, não se encontra apoio nos invocados artigos 10.º, al. k) e 36.º, n.º 1, dos Estatutos da ré, nem no n.º 1 do artigo 18.º do D.L. n.º 119/83, de 25 de fevereiro.
Ora, como se viu, não logrou o autor demonstrar a celebração do aludido contrato, quer o mesmo tenha obedecido a forma escrita ou verbal.
Improcede, pois, neste ponto, a alegação da recorrente.
No que concerne à acumulação de funções pelo autor, também não merece censura a sentença recorrida.
É que, essa acumulação é, por princípio, vedada por lei.
Tal decorre, como assinalado na decisão recorrida, do disposto no n.º 2 do artigo 15.º do D.L. n.º 119/83, de 25 de fevereiro, onde se dispõe que aos membros dos corpos gerentes de instituições particulares de solidariedade social não é permitido o desempenho de mais de um cargo na mesma instituição.
E, assim, subscreve-se, inteiramente, o juízo formulado na decisão recorrida, no sentido de que, “a decisão da direcção da ré, tomada em 04 de Março de 2013, pela qual foi atribuído ao autor o cargo de administrador do conselho executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção, enferma de anulabilidade, conforme prevêem os seus estatutos no art.º 40º/1, na medida em que viola frontalmente aquela norma, segundo a qual, aos membros dos corpos gerentes não é permitido o desempenho simultâneo de mais de um cargo na mesma instituição (art.º 15º do DL 118/83, de 25.02), como sucedia com o autor que já desempenhava o cargo de tesoureiro (ponto 2.1.1. do elenco da matéria de facto provada)”.
Relativamente ao vício atinente à circunstância de a direção da ré ter deliberado no sentido de o autor ter sido nomeado para o exercício do cargo de administrador do conselho executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção da ré, em acumulação com as funções de tesoureiro, a sentença recorrida concluiu no sentido de se estar perante uma anulabilidade.
Tal não merece reparo ou censura, atentos os órgãos da ré (cfr. artigo 8.º dos seus Estatutos) e as competências de cada órgão (cfr. artigos 10.º, 15.º, 19.º, 20.º e 22.º dos Estatutos), bem como a circunstância de ter sido decidido o exercício de funções pelo autor para o cargo de administrador da direção da ré à margem do estabelecido estatutária e legalmente (não podendo esquecer-se que, relativamente a uma associação, os seus estatutos contêm “a regulamentação detalhada da corporação, como que o seu “ordenamento constitucional”, ou seja, “o complexo das normas que regulam de modo abstracto para o futuro a estrutura interna” do ente corporativo, “e o seu modo de funcionamento”” (assim, Carvalho Fernandes; Teoria Geral do Direito Civil; Vol. I, 6.ª ed., UCP, 2012, p. 555).
E, conforme decorre do disposto no artigo 22.º do D.L. n.º 119/83, de 25 de fevereiro, “as decisões tomadas por qualquer dos corpos gerentes fora da respectiva competência são anuláveis”.
Trata-se de um princípio, aliás, em linha com o que decorre do artigo 177.º do CC, para a generalidade das associações.
“As deliberações de um órgão, para além da sua competência, envolvendo violação da lei ou do estatuto (…), são anuláveis (arts. 177.º e 178.º do C.Civ.).” (cfr., Carvalho Fernandes; Teoria Geral do Direito Civil; Vol. I, 6.ª ed., UCP, 2012, p. 608).
Este princípio foi replicado no artigo 40.º dos Estatutos da ré do seguinte modo:
“Artigo 40º
(Atos, decisões e deliberações anuláveis)
1. São anuláveis pela Assembleia Geral de Associados ou pelo Tribunal todos os atos, decisões ou deliberações dos Corpos Gerentes ou de qualquer dos seus membros que violem a Lei ou os presentes estatutos.
2. A anulabilidade pode ser arguida no prazo de seis meses por qualquer órgão ou associado da Liga que não lhe tenha dado causa.”.
Assim, conforme se enuncia na decisão recorrida, a anulabilidade da deliberação em questão apenas poderia ter sido arguida no prazo de seis meses, considerando-se sanado o vício decorrido que se encontre esse prazo.
Contudo, para além destes aspetos, já não se acompanha a decisão recorrida.
É que a decisão recorrida, como já se viu, embora considerando que “não obstante não ter sido objecto de deliberação a retribuição do autor pelo exercício de funções no conselho executivo da Unidade de Cuidados Continuados Integrados, de Média Duração e Reabilitação e de Longa Duração e Manutenção da LAHGO” reporta que lhe “passou a ser-lhe paga a contrapartida mensal de € 2.600,00 a partir do mês de Outubro de 2013” e considera que: “Esta atribuição patrimonial ao autor sem base legal, porque, entre o mais, não foi objecto de deliberação da assembleia geral, conforme previsto na lei e nos estatutos enferma, de acordo com os normativos acimas citados, do vício da anulabilidade”, vício esse que, por não ter sido tempestivamente arguido teria gerado a “renúncia” da ré ao exercício desse direito anulatório potestativo e a “confirmação (cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág. 423), no caso, tácita, do acto que determinou a atribuição de uma remuneração ao autor (art.º 288º do Código Civil)”.
Vejamos:
Uma deliberação constitui, em geral, “uma proposição imputada à decisão de um conjunto de pessoas singulares ou seres humanos. Colocada nestes termos, a deliberação assenta em pressupostos de legitimidade e assume, ela própria, uma dimensão legitimadora”. Na Ciência do Direito, “a deliberação é, simplesmente, a decisão de um órgão coletivo, sobre uma proposta” (assim, Menezes Cordeiro; Direito das Sociedades, I, Parte Geral, 3.ª ed., Almedina, 2011, p. 739).
Para existir uma deliberação tem de se configurar ter tido lugar um processo deliberativo, ou seja, “um conjunto de actos concatenados para a obtenção de um fim: a própria deliberação” (assim, Menezes Cordeiro; SA: Assembleia Geral e Deliberações Sociais; Almedina, 2009, p. 159), actos esses que podem passar por uma convocatória cabal, por uma reunião com verificação de presenças, por apresentação de proposta ou propostas de deliberação, por um debate, por uma votação e seu resultado e pela elaboração da acta.
A inexistência jurídica constitui uma categoria autónoma, diversa da ineficácia.
A inexistência do negócio jurídico não produz qualquer efeito, pode ser invocada a todo o tempo e pode ser invocada por qualquer pessoa, não carecendo de declaração judicial e “não faz sentido falar na sanação (…) quanto à inexistência jurídica” (cfr., admitindo a inexistência como valor negativo do negócio jurídico, Carvalho Fernandes; Teoria Geral do Direito Civil; Vol. II, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1996, p. 381; em sentido contrário, Menezes Cordeiro; Tratado de Direito Civil Português; I, Parte Geral, Tomo I, 2.ª ed., 2000, p. 575, nota 1631).
Especificamente referenciada a deliberações, a inexistência “não é a problemática do nada, mas de um certo quid de facto que, tendo a aparência de uma deliberação, não preenche todavia a facti species legal do conceito” (assim, Pinto Furtado; Deliberações dos Sócios, Almedina, 1993, p. 225) de deliberação.
A respeito de deliberações sociais, Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial; Volume II, 4.ª ed., 2013, pp. 489-490) sintetiza que poderá falar-se de deliberações inexistentes, fundamentalmente, em dois tipos de hipóteses: “(a) não correspondência dos factos (invocados como deliberativo-sociais) a qualquer forma de deliberação dos sócios (v.g., deliberações tomadas não pelos sócios, mas pelos trabalhadores da sociedade, invocadas pela administração desta como deliberações sociais); (b) não correspondência dos factos à forma da deliberação tomada”, concluindo que, “as deliberações inexistentes não produzem quaisquer efeitos – nem sequer efeitos laterais ou secundários (…); a inexistência pode ser invocada a todo o tempo por qualquer pessoa, não carecendo de declaração judicial”.
Sandra Passinhas (A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal; 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 250) enumera alguns exemplos de deliberações inexistentes referentes à assembleia de condóminos no instituto da propriedade horizontal.
A figura da deliberação inexistente não se encontra regulada na lei, o que sucede, como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-12-1996 (Pº 96A697, rel. MARTINS DA COSTA) “de certo por não ser susceptível de produzir qualquer efeito, e tem sido considerada na doutrina como aquela em que "falte absolutamente" algum dos seus "elementos essenciais específicos" (entre outros, Raúl Ventura, nas "Sociedades por Quotas", II, p.247), ou (…) "o acto que não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter a eficácia jurídica própria" de uma deliberação (A. Reis, no Cód. Anot., V, p.114).
Em resumo, dir-se-á que não existe deliberação social quando um certo acto não seja adequado, nem sequer na sua aparência material, a vincular a sociedade pelos efeitos jurídicos por ele visados”.
Pode assim considerar-se inexistente face a uma determinada pessoa coletiva, não só todo o leque de situações em que a vontade dos órgãos da pessoa coletiva não se forma no sentido de exteriorizar uma vontade de conteúdo decisório, como também uma deliberação escrita que não tenha sido submetida à apreciação, discussão e votação dos órgãos da pessoa coletiva, ou ainda, uma deliberação tomada por não membros da pessoa coletiva.
Nos factos apurados consta expressamente referido – facto provado em 2.1.4 (2º parágrafo) – que não teve lugar a deliberação do pagamento da contrapartida pelo exercício de funções de administrador do Conselho Executivo das Unidades da LAHGO.
Mas será que o pagamento de uma atribuição patrimonial nos termos verificados quanto ao autor expressa uma verdadeira deliberação?
O Tribunal recorrido concluiu no sentido afirmativo. Vejamos se com acerto.
O Tribunal recorrido começou por referenciar que o pagamento da remuneração ao autor não se funda na deliberação constante da acta de nomeação dos membros do conselho executivo. Conforme se refere na motivação da decisão de facto, na página 8 da decisão recorrida: “(…) nem o próprio autor demonstrou cabal conhecimento sobre a citada reunião em que tal assunto tivesse sido tratado, precisando apenas que foi na acta de nomeação dos membros do Conselho Executivo. Porém, a acta – número 262 - a que se refere o autor é omissa quanto à remuneração dos membros do Conselho Executivo”.
E, para além disso, o Tribunal recorrido não deixou de expressar que a “atribuição patrimonial” conferida ao autor não teve por base uma deliberação – pelo contrário, afirmou a sua inexistência – sendo certo que, não só não se apurou que a mesma tenha tido aprovação em assembleia geral (como também o assevera o Tribunal recorrido).
Todavia, ulteriormente, a decisão recorrida pressupõe a existência de uma deliberação que, em seu entender, seria anulável, por não ter sido tomada pela assembleia geral da ré, anulabilidade essa que, contudo, por não ter sido arguida, sanou o vício, concluindo que a atribuição patrimonial é devida ao autor.
Parece-nos indemonstrado o facto pressuposto pelo Tribunal recorrido: O de que houve uma deliberação no sentido de aprovar o pagamento de uma remuneração ao autor.
Na realidade, não resulta de qualquer dos factos provados que uma deliberação no sentido do pagamento tenha tido expressão pela vontade de algum dos órgãos da ré, em termos de lhe ser imputável, desconhecendo-se, em boa verdade, em que assentou o processamento e o pagamento de quantias pagas pela ré e recebidas pelo autor, do modo como provado no facto 2.1.6.
Efetivamente, não se divisa no comportamento da ré (pela assembleia geral, pela direção ou por qualquer outro seu órgão) alguma deliberação tomada no sentido de atribuir alguma remuneração ao autor pelo exercício do cargo de administrador.
Na realidade, só uma deliberação com existência, imputável a algum dos respetivos órgãos da ré, poderia ser objeto de possível vício invalidante passível de sanação por renúncia e de confirmação.
O ato material de pagamento efetuado ao autor a partir do mês de outubro de 2013 (cfr. facto provado em 2.1.4) não é suficiente para demonstrar que a vontade da ré se formou – válida ou invalidamente, pouco importa, para este efeito – no sentido de pretender atribuir ao autor uma contrapartida pelo exercício das funções de administrador.
E, nesta medida, ainda que alguma doutrina questione da admissibilidade da confirmação não só para os casos de anulação, mas também para os casos de nulidade – cfr. Carvalho Fernandes; Teoria Geral do Direito Civil; Vol. II, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1996, pp. 401-402- certo é que, perante uma total ausência de deliberação não se pode falar em vício invalidante, passível de convalescença, por via de confirmação. O artigo 288.º do CC não é, pois, de convocar quando se está perante o vício da inexistência jurídica.
Ora, como bem salienta a ré, o que foi apurado é apenas que o autor recebeu, em determinadas alturas, determinados valores, como contrapartida do exercício de funções na administração do conselho executivo das unidades da LAHGO, não resultando minimamente apurado que o valor da remuneração/retribuição se deve fixar, mensalmente, em € 2.600,00, nem que - como se deduz com ausência de substrato factual na decisão recorrida - que fosse essa a periodicidade de pagamento que devesse ter ocorrido.
Não nos parece, pois, possível concluir que o autor seja credor das quantias que peticionou, pois, na realidade, não se logrou provar que a ré tenha a qualidade de devedora dos montantes que aquele peticionou.
Em face do exposto e por os factos apurados não permitirem corroborar o entendimento aí pugnado, não se configurando alguma situação de abuso de direito da ré na invocação da inexistência de deliberação sobre o pagamento ao autor de valores pecuniários como contrapartida do exercício das funções de administrador na ré, não se acompanham as conclusões e considerações em contrário – designadamente, as conclusões A a D - expressas pelo apelado na sua contra-alegação.
Ora, não tendo o autor demonstrado ter celebrado qualquer contrato de prestação de serviços com a ré, nem, igualmente, ser credor, a qualquer título, das quantias que peticionou com fundamento no exercício das funções de administrador que desempenhou na ré, conclui-se, pois, ao contrário do expresso na decisão recorrida, que não assiste fundamento à pretensão deduzida pelo autor.
Consequentemente, a pretensão do autor improcederá.
E quanto ao pedido reconvencional?
Importa recordar que a ré formulou, em reconvenção, o pedido de condenação do autor a pagar-lhe o valor de € 33.800,00, que o autor recebeu e que considera que o autor se fez pagar a si próprio à custa da ré, recebimento esse que entende como indevido e sem qualquer causa justificativa, obtido à custa do património da ré e devendo o autor ser obrigado a restituir aquilo que injustamente recebeu, por enriquecimento sem causa. Para além disso, peticionou a condenação do autor a pagar-lhe € 12.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Lê-se na decisão recorrida a respeito da reconvenção o seguinte:
“A decisão favorável à pretensão do autor, ainda que com diferente fundamento jurídico, coloca em crise o pedido de restituição formulado em reconvenção das quantias que lhe foram pagas, discriminadas no ponto 2.1.6. do conjunto dos factos provados, improcedendo nessa medida.
De igual forma improcederá o pedido de indemnização por danos morais deduzido pela ré, perante a ausência de fundamento fáctico para tal”.
Ora, quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 12.000,00, em boa verdade, o mesmo não subsiste, pois, sobre ele a ré formulou requerimento de desistência do correspondente pedido, pretensão essa que foi atendida e objeto de homologação por sentença proferida em 11-02-2020 (cfr. ata da 4.ª sessão de audiência de julgamento).
Quanto à remanescente componente da pretensão reconvencional importa verificar se se encontram reunidos os pressupostos para a restituição fundada em enriquecimento sem causa.
Vejamos:
Dispõe o artigo 473.º do Código Civil que:
“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.
O disposto neste normativo refere-se ao enriquecimento sem causa, como fonte da obrigação de restituir, a qual, tem a sua razão de ser nos casos em que, embora o direito considere legal a produção de certos efeitos, estes representam um enriquecimento injusto de alguém à custa alheia (cfr. Vaz Serra, B.M.J. 81º, p. 37).
O enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos, a saber:
a) «o enriquecimento de alguém» por aumento do activo ou diminuição do passivo (isto é, deve ocorrer uma melhoria da situação patrimonial da pessoa obrigada à restituição, a qual, “tanto pode derivar da aquisição de um novo direito como do acréscimo do valor de um direito que já lhe pertencia: a propriedade de um objecto, a titularidade de um crédito, a mais-valia trazida a um prédio por trabalhos nele efectuados, etc. Pode também o enriquecimento ser realizado, não através de um aumento do activo patrimonial, mas por uma diminuição do passivo (...) ou mesmo evitando-se uma despesa (...)” (assim, Almeida Costa; Direito das Obrigações; 5ª ed., p. 393). Na realidade, “o enriquecimento tanto pode consistir no aumento do património pela prestação de uma coisa como no evitar que desse património saia qualquer parcela, o que matematicamente se equivale” (assim, L.P. Moitinho de Almeida; Enriquecimento sem Causa; Almedina, Coimbra, 1996, p. 47);
b) «sem causa justificativa», isto é, sem existir uma relação ou um facto que, à luz do direito, da ordenação jurídica dos bens ou dos princípios aceites pelo ordenamento jurídico, legitime tal enriquecimento (“a inexistência de causa…pressupõe ter havido um enriquecimento injusto do réu, enriquecimento esse que, se não fosse injusto, não seria sem causa” - assim, L.P. Moitinho de Almeida; Enriquecimento sem Causa; Almedina, Coimbra, 1996, p. 63 ou, como referem Pires de Lima e Antunes Varela; Código Civil, anotado, vol. I, p. 320, “a falta de justa causa traduz-se na inexistência de uma relação onde um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento”);
c) «à custa de quem requer a restituição, de modo que aquele enriquecimento esteja correlacionado com o empobrecimento» (neste sentido e entre outros, vd. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª ed., pp. 454 e ss.; Antunes Varela, Direito das Obrigações, Volume I, 7ª ed., pp. 467 e ss.; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 6ª edição, pp. 182 e ss.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., pp. 392 e ss.; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 1996, in C.J.S.T.J., 1996, t. II, p. 70). A causalidade consiste numa relação directa entre o património empobrecido e o património enriquecido.
Mas, «o artº 473º, nº 1, do C. Civ. contém uma cláusula geral cuja amplitude conduziria, na base da sua utilização indiscriminada, ao efeito perverso de colocar em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo, facultando a interposição de uma acção exigindo a restituição do enriquecimento sempre que se reunissem os pressupostos directamente previstos na norma em causa: a) existência de um enriquecimento; b) obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) ausência de causa justificativa para o enriquecimento. Como primeiro elemento de “contenção” da amplitude da cláusula geral, encontramos a chamada regra da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, constante do artº 474º do CC, que afasta a “restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-05-2010, Pº 64/03.5TBTBU.C1, rel. TELES PEREIRA, disponível em http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do artigo 474º do Código Civil, a acção baseada nas regras do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária, ou seja, a restituição com base no enriquecimento só é admitida quando a lei não faculte ao empobrecido outro meio de reagir contra o enriquecimento para desfazer a deslocação patrimonial (cfr. autores acima citados nos locais mencionados) e isto não só quando a via do direito comum se lhe fechou em consequência de um obstáculo legal, mas também quando a acção de direito comum é inoperante por virtude de um obstáculo de facto, maxime, a insolvência do devedor (assim, Pereira Coelho, Rev. de Direito e Estudos Sociais XVII, nºs. 2, 3, 4, página 354).
Para além disso, como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-07-1993 (in B.M.J. 429º, p. 906), “sendo a acção baseada no artº 473º, nº 1, do Código Civil (enriquecimento sem causa) cabe aos autores o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu direito, pese embora a sua carga negativa. Assim sendo, cabe-lhes provar que não havia causa justificativa para o recebimento de determinado quantitativo, isto, evidentemente, para além de lhes caber provar o enriquecimento da ré decorrente do mesmo recebimento”.
Do mesmo modo, concluiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2012 (Pº 218/09.0TVLSB.L1-2, rel. PEDRO MARTINS) que: “No enriquecimento por prestação em virtude de uma causa que deixou de existir (art. 473/2, 2ª alternativa) ou em vista de um efeito que não se verificou (art. 473/2, 3ª alternativa), cabe ao autor alegar e provar estes factos. Se não ficarem provados, não se pode ter por verificado o requisito “falta de causa justificativa” do enriquecimento ilegítimo”.
Como refere Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações; Vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 414), “o enriquecimento por prestação respeita a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para possa ocorrer por parte deste a recepção dessa prestação”.
Relevante é a ausência de causa da prestação, cuja atribuição deve ser finalisticamente orientada, sendo referida a uma determinada causa jurídica, a qual, não ocorre.
“A ausência de causa jurídica deve ser definida em sentido subjectivo, como a não obtenção do fim visado com a prestação. Haverá, assim lugar à restituição da prestação, sempre que esta é realizada com vista à obtenção de determinado fim, e esse fim não vem a ser obtido” (assim, Luís Menezes Leitão; Direito das Obrigações; Vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 415).
Sobre uma das modalidades de enriquecimento sem causa, regula o artigo 476.º do Código Civil.
Este preceito legal – com a epígrafe «Repetição do indevido» - tem a seguinte redacção:
“1. Sem prejuízo do disposto acerca das obrigações naturais, o que for prestado com intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação.
2. A prestação feita a terceiro pode ser repetida pelo devedor enquanto não se tornar liberatória nos termos do artigo 770.º.
3. A prestação feita por erro desculpável antes do vencimento da obrigação só dá lugar à repetição daquilo com que o credor se enriqueceu por efeito do cumprimento antecipado”.
A questão que ora se coloca é, pois, a de saber se a ré pode repetir do autor o valor que foi pago a este?
Ora, “são pressupostos comuns à repetição do indevido a realização de uma prestação com intenção de cumprir uma obrigação (animo solvendi), sem que exista uma obrigação subjacente a essa prestação (indevido objectivo), ou sem que esta tenha lugar entre solvens e accipiens (indevido subjectivo) ou deva ser realizada naquele momento (cumprimento antecipado) (…).
O indevido subjectivo ex latere accipientis ocorre quando a prestação é realizada a terceiro, e não ao seu verdadeiro credor. Esta situação é praticamente equiparada ao indevido objectivo pelo art. 476.º, n.º 2, com a excepção de se poder admitir casos em que a obrigação venha a ser extinta, apesar de ser realizada a terceiro. São as situações referidas no art. 770.º (…)” (assim, Luís Menezes Leitão; Direito das Obrigações; Vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, p. 417).
E, em termos de ónus probatório nesta sede, decidiu o Acórdão do STJ de 20-02-2020 (Pº 4955.18.0T8GMR.G1.S1, rel. TOMÉ GOMES, em: http://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4955.18.0T8GMR.G1.S1) o seguinte:
“(…) II. Atenta a diversidade de situações de enriquecimento sem causa, cabe à jurisprudência ponderar, no contexto de cada caso singular, a exigência ou não do requisito da imediação da deslocação patrimonial em ordem a evitar soluções de flagrante injustiça.
III. O ónus de alegação e prova dos pressupostos cumulativos do enriquecimento sem causa enunciados em 1 incumbe a quem invoca o direito à restituição, ou seja, ao autor, como factos constitutivos que são deste direito, mesmo daqueles que possam revestir feição de facto negativo, nos termos conjugados dos artigos 342.º, n.º 1, e 473.º, n.º 1, do CC e do artigo 5.º, n.º 1, do CPC.
IV. Nesse quadro, a causa justificativa do enriquecimento traduz-se num conceito normativo indeterminado incidente sobre a relação jurídica em que se funda a prestação efetuada e que tem em vista aferir se a atribuição patrimonial a quem recebe essa prestação é conforme à ordem jurídica.
V. Para a demonstração da falta de causa justificativa não basta que não se prove, de modo genérico, a existência de causa da atribuição patrimonial, sendo necessário provar, especificamente, a inexistência dessa causa, o que implica a verificação do espectro de circunstâncias em que ocorreu a deslocação patrimonial em referência, envolvendo um complexo de elementos de facto, quer positivos quer negativos, de cuja aglutinação resulte então o preenchimento da ausência de causa justificativa.
VI. Como vem sendo doutrina e jurisprudência mais correntes entre nós, a distribuição abstrata do ónus da prova é feita, em princípio, à luz da estruturação e escalonamento sistemático das normas aplicáveis ao caso (a denominada teoria das normas), na pressuposição de que as respetivas previsões normativas favoráveis a qualquer das partes, em função do efeito jurídico concretamente pretendido, refletem a normalidade social dos factos nelas contemplados ou modelados, pelo que será a parte favorecida por tais previsões normativas aquela que estará em melhores condições de provar os factos que lhe aproveitam.
VII. Porém, as regras da repartição do ónus probatório não visam um fim em si mesmas, com valor absoluto, mas consistem em regras destinadas a servir de critério decisório para superar o non liquet porventura emergente do resultado probatório, proibido pelo artigo 8.º, n.º 1, do CC e incompatível com o dever de administrar a justiça proclamado no artigo 152.º, n.º 1, do CPC, devendo tais regras ser interpretadas em consonância com a sua função primordial de conduzir a uma decisão justa.
VIII. Assim, sem desvirtuar a essencialidade dos ditames legais da repartição abstrata do ónus da prova, já que postulados também por razões de certeza e de segurança jurídica, importa, nalguns casos, ajustar aqueles ditames, quando necessário, para permitir ao julgador encontrar a solução mais conforme ao direito e à justiça.
IX. Segundo esta orientação, no respeitante ao ónus de prova sobre o pressuposto da ausência de causa justificativa em sede do enriquecimento por prestação, mostra-se razoável delimitar aquele ónus probatório no sentido de distribuir por cada uma das partes o ónus de provar os elementos de facto caracterizadores ou descaracterizadores desse pressuposto consoante o universo fáctico ou empírico por elas alcançável em termos de normalidade social.
X. Nesse quadro, tendo o autor empobrecido provado a ocorrência de deslocação patrimonial direta de uma determinada quantia pecuniária do seu património para o do réu e que a prestação efetuada por aquele teve um fim alheio a este e fora de qualquer relação jurídica estabelecida entre ambos, caberá então ao réu provar a existência da causa justificativa atípica por ele próprio alegada para sustentar a conformidade jurídica do ingresso daquela quantia no respetivo património”.
Revertendo estas considerações para o caso em apreço, verifica-se que o autor recebeu no ano de 2015 o valor de €7.800,00 e nos meses de Dezembro de 2013 e Agosto e Dezembro de 2014, recebeu, no conjunto, a importância de € 17.836,00, como contrapartida pelo desempenho do cargo de Administrador do Conselho Executivo da Unidade de Saúde da LAHGO (cfr. facto provado n.º 2.1.6.).
Que o autor desempenhou funções de administrador na ré não é questão controversa e que recebeu as referidas quantias também não é posto em causa.
O referido facto provado n.º 2.1.6. relaciona estas duas realidades, assinalando que o recebimento dos valores percecionados pelo autor ocorreu como contrapartida do desempenho funcional no cargo de administrador na ré.
Encontra-se, pois, verificada causa, assente na contrapartida das funções de administração exercidas, para o aludido recebimento de quantias monetárias pelo autor.
Tal conduzirá à improcedência do pedido reconvencional formulado pela ré.
*
IV) Litigância de má fé:
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4) Se foi evidenciada litigância de má fé?
O apelado concluiu as suas contra-alegações dizendo que, caso seja considerado que “na sua argumentação a Apelante usou de contradições que podem ser consideradas lide temerária e que o seu único propósito com a interposição do presente recurso foi evitar o trânsito em jugado da Sentença sem fundamento, devem condenar esta como litigante de má-fé, nos termos do artigo 542.º do CPC, em indemnização a favor do Apelado nunca inferior a € 5.000, 00”.
Vejamos:
O artigo 8.º do CPC enuncia que “as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado” no artigo 7.º do mesmo Código.
“A litigância de má-fé surge (…) como um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais” (assim, Menezes Cordeiro; Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006; Almedina, 2006, p. 26, nota 2).
A particular gravidade que assume o abuso processual acontece porque lesa, não apenas a contra-parte, mas, devido ao carácter publicístico do processo, também e sobretudo, a própria administração da Justiça.
O artigo 542 º do CPC censura três comportamentos substantivos contrários à boa fé e um comportamento processual do litigante violador da boa fé devida:
A conduta substantiva sancionável pode consistir:
1) Na dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não deva ignorar (artigo 542.º, n.º 2, alínea a));
2) Na alteração da verdade dos factos ou na omissão de factos relevantes para a decisão da causa (artigo 542.º, n.º 2, alínea b));
3) Na grave omissão do dever de cooperação (artigo 542º, n.º 2, alínea c)).
Em termos de atuação processual sanciona-se o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, por qualquer das partes, a fim de:
i) conseguir um objetivo ilegal;
ii) impedir a descoberta da verdade; ou
iii) protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 542, n.º 2. alínea d)).
A delimitação da responsabilização por litigância de má fé impõe sempre uma apreciação casuística sobre a integração dos comportamentos sinalizados no âmbito de alguma das previsões contidas no mencionado n.º 2 do artigo 542.º.
A ilicitude pressuposta pela litigância de má-fé distancia-se da ilicitude civil (artigo 483º CC) não apenas porque se apresenta como um ilícito típico (descrevendo-se no artigo 542.º do CPC, analiticamente, as condutas que o integram), mas também porque, ao contrário do que sucede com o ilícito civil, se encontra dependente da verificação de um elemento subjectivo, sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito, aproximando-se nesta medida muito mais do ilícito penal (assim, Paula Costa e Silva; A litigância de má-fé, Almedina, 2008, p. 620).
O litigante tem de atuar imbuído de dolo ou culpa grave. O elemento subjetivo será então considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade.
Releva a má-fé subjetiva - quando a parte que atua de má-fé tem consciência de que lhe não assiste razão - e, em face das dificuldades em apurar a verdadeira intenção do litigante, essa consciência deve manifestar-se perante a violação ou inobservância das mais elementares regras de prudência.
Se o comportamento da parte preencher objetivamente a previsão de alguma das alíneas do artigo 542º, nº 2, do CPC, mas não se patentear o elemento subjetivo, o mesmo não poderá ser qualificado como litigância de má fé. Não haverá lide dolosa nem temerária.
Refira-se, a este propósito, que a reforma do processo civil de 1995-1996 (operada pelo Decreto-Lei n.º. 329-A/95, de 12 de dezembro, Lei n.º 6/96, de 29 de fevereiro e Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro) veio alargar a figura da litigância de má-fé, passando a abarcar não só a lide dolosa, mas também, a lide temerária (esta última ocorrerá quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro – assim, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pp. 194-195, dando conta de que a lide temerária constitui um “mais” relativamente à lide meramente imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve).
A lide temerária pode, pois, ser sancionada como litigância de má fé.
Assim, “hoje (…), a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição " cuja falta de fundamento não devia ignorar", ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização” (nesta linha, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-03-2014, Processo 1063/11.9TVLSB.L1.S1, rel. SALAZAR CASANOVA).
O dolo supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida – dolo substancial direto – ou a consciente alteração da verdade dos factos ou omissão de um elemento essencial – dolo substancial indireto – podendo ainda traduzir-se no uso manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais (cfr. Menezes Cordeiro; Da Boa Fé no Direito Civil, 2ª Reimpressão, Colecção Teses, Almedina, 2001, p. 380).
Por seu turno, “há negligência grave, fundamentadora de um juízo de litigância de má-fé, quando o litigante procede com imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um” (assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2001, Processo 01A3692, rel. AFONSO DE MELO).
Finalmente, diga-se que “a lei processual castiga a litigância de má-fé, independentemente do resultado. Apenas releva o próprio comportamento, mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada. O dano não é pressuposto da litigância de má-fé” (cfr. Menezes Cordeiro; Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006, p. 26, nota 2). Assim, a condenação não depende dos resultados com a conduta reprovável do tipo das referidas no artigo 542.º, n.º 2, do CPC, serem ou não atingidos (cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-05-2019, Processo 6646/04.0TBCSC.L1.S2, rel. CATARINA SERRA).
Contudo, o julgador deve ser especialmente cauteloso e prudente na aferição das situações passíveis de constituírem litigância de má fé, apenas devendo determinar a condenação se se patentearem as condutas típicas e, bem assim, o dolo ou a grave negligência na sua prática.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Processo 280/18.5T8OAZ.P1, rel. RITA ROMEIRA): “A responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; O autor deve ser condenado como litigante de má-fé se nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados”.
Ou seja: “(…) a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má fé processual” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-11-2015, Processo 3067/12.5TBTVD.L1-2, rel. SOUSA PINTO).
Revertendo estas considerações para o caso dos autos, não se infere da circunstância de qualquer das partes ter invocado pretensão que não veio a obter tutela jurídica - como se veio a apurar – a conclusão de que as mesmas tenham litigado de forma dolosamente infundada ou que tal litigância se possa reputar como gravemente negligente.
A instauração e o prosseguimento da lide pelo autor - embora, como se vê sem assistir fundamento para a procedência da sua pretensão – e a oposição, com dedução de contra-ação pela ré – esta última, igualmente sem procedência - encontram-se ainda no núcleo de exercitação admissível do direito de ação/defesa, não consubstanciando litigância de má fé.
Não se verifica, pois, que tenha ocorrido má fé na litigância das partes.
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A decisão recorrida deverá, em conformidade com o exposto, ser revogada e substituída pela presente, julgando, na parcial procedência da apelação, em conformidade a causa, declarando a improcedência das pretensões recíprocas de ambas as partes.
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A responsabilidade tributária inerente incidirá por ambas as partes, atento o recíproco decaimento havido – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, na parcial procedência da apelação, em revogar a sentença recorrida e em a substituir pela presente decisão, julgando improcedentes as pretensões recíprocas de ambas as partes.
Custas da apelação por ambas as partes, na proporção do decaimento havido.
Notifique e registe.
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Lisboa, 3 de dezembro de 2020.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes