EXECUÇÃO
HABILITAÇÃO DE ADQUIRENTES
CASO JULGADO FORMAL
Sumário

Se a exequente instaurou execução contra a executada e outros, em razão de uma dívida, com garantia real, contraída pelos pais desta, chamando-a à execução enquanto herdeira do mutuário, seu pai, entretanto falecido, e se a executada embargou, alegando não ter aceitado a herança e o tribunal da Relação confirmou a sua ilegitimidade, ao entender que, não obstante ter havido habilitação, daí não decorria a aceitação da herança e, por outro lado, o facto de estar registada a aquisição em nome da recorrida, em comum e sem determinação de parte ou direito dos bens integrantes da herança, não demonstrava essa aceitação, não pode agora a exequente, sob pena de ser violado o caso julgado formal, habilitar a mesma executada, por alegadamente ser comproprietária do bem dado em garantia, nos termos do artigo 54, n.º 2 do CPC, e fundando essa compropriedade apenas naquele mesmo registo de aquisição em comum.

Texto Integral

Processo n.º 1051/17.1T8LOU-D.P1

Recorrente – B…, SA
Recorrida – C…

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto:

1 - A exequente C…, SA veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 356 do Código de Processo Civil (CPC) a Habilitação como adquirente de C…, na qualidade de executada e enquanto proprietária dos bens imóveis onerados com garantia real, nos termos do artigo 54, n.º 2 do CPC.

2 – Fundamentando a sua pretensão, aduziu, ora em síntese, que instaurou, a 10.03.2017, a presente execução contra D…, na qualidade de mutuária, contra E…, na qualidade de proprietária do bem imóvel hipotecado, e contra C…, F… e G…, na qualidade de herdeiros, sendo que a dívida acionada respeita a um contrato de mútuo com hipoteca celebrado a 13.07.2000 entre a exequente e os mutuários D… e H…, este último já falecido. Nos termos da escritura, para garantia do capital mutuado, juros e despesas, foi constituída uma hipoteca sobre os seguintes bens: a) Fração autónoma designada pela letra “M” correspondente a uma habitação sita no terceiro andar direito; b) Fração autónoma designada pela letra “E” correspondente a uma garagem sita no rés do chão, na parte posterior do prédio, entre as frações “D” e “F”, ambas pertencente ao prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Paços de Ferreira sob o n.º 334 e inscrito na matriz sob o artigo 1597. Na exposição fáctica constante do requerimento executivo lê-se que “O executado H… faleceu, sendo herdeiros C…, G… e F…, porquanto estes são, por esta via, executados, conforme o preceituado no art. 54.º, n.º 1 do CPC. A Executada D…, também herdeira e mutuária, vendeu a sua meação, juntamente com o quinhão hereditário que lhe pertence por óbito do H…, a E… pelo que, esta última, na qualidade de comproprietária, também é executada, nos termos do art. 54.º, n.º 2 do CPC (cfr. doc. 2 e 3)”. Sucede que – prossegue a requerente - a executada C…, representada pela legal representante, deduziu Embargos de Executado, invocando a sua ilegitimidade passiva porquanto não havia aceitado a herança aberta por óbito de H… e, no Apenso A, por sentença proferida a 7.03.2018, confirmada pela Relação do Porto por acórdão de 15.01.2019, foi julgada procedente a exceção de ilegitimidade e determinada a extinção da execução contra ela. No entanto, “independentemente da aceitação ou não da herança, a requerida C… é comproprietária dos bens imóveis hipotecados”, registados em seu nome e ainda em nome de F…, G… e E… e a requerida, por isso e enquanto proprietária pode ser demandada (artigo 54, n.º 2 do CPC) e a requerente “pretende a penhora e venda dos bens imóveis hipotecados, os quais se encontram registados em nome da requerida, sendo que “o único meio da presente ação prosseguir contra a proprietária dos bens imóveis hipotecados que servem de garantia ao crédito da Exequente, é fazer intervir na execução essa terceira proprietária, através do incidente de habilitação de adquirente”.

3 – Foi proferido despacho a determinar que “Por se afigurar pertinente à boa decisão da causa, antes de mais, aguardem os autos pela descida do apenso do recurso que se encontra ainda no Tribunal da Relação do Porto”.

4 - Uma vez baixado o processo, veio a dizer-se, em novo despacho: “(...) o Acórdão da Relação do Porto, transitado em julgado, proferido nos autos de embargos de executado que correm por apenso, confirmou a decisão proferida no aludido apenso e que “julgou procedente a exceção de ilegitimidade da executada C… e, consequentemente procedentes os embargos de executado, determinando-se a extinção da execução que corre termos contra aquela”, o que inviabiliza a pretensão deduzida pela requerente B…, S.A. Por conseguinte, o presente incidente de habilitação de cessionário deve ser declarado extinto por impossibilidade superveniente da lide, atendendo à extinção da execução quanto à requerida C…. Pelo exposto, nos termos do artigo 277.º al. e), do C.P.C., julgo extinto o presente incidente por impossibilidade da lide”.

5 – A exequente recorreu do despacho acabado de transcrever e esta Relação, por acórdão de 7.10.2019 julgou “procedente a apelação” e revogou “o despacho recorrido”, determinando o prosseguimento do incidente nos ulteriores termos.

6 – No acórdão citado no ponto anterior[1] enuncia-se que “A questão que se coloca consiste em saber se julgada a requerida parte ilegítima em embargos de executado, que correu os seus termos por apenso ao processo de execução, se mostra impossível prosseguir com o incidente de habilitação de adquirente, para efeitos do art 54.º/2 CPC”. E, prosseguindo a análise do recurso, diz-se também: “(...) o fundamento invocado não constitui causa de impossibilidade superveniente da lide. A habilitação do adquirente, nos termos do art. 356.º CPC, visa a modificação dos sujeitos na lide, pelo que os seus efeitos são de natureza processual. A norma em causa visa a habilitação do adquirente da coisa ou direito em litígio, exigindo que haja ocorrido, na pendência de uma causa, a transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou do direito objeto imediato da controvérsia que nela se dirime (Cfr. SALVADOR DA COSTA, Os Incidentes da Instância, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 236). No caso especial do terceiro adquirente de bem hipotecado, encontrando-se pendente processo de execução, visa-se fazer intervir o adquirente em juízo, como executado, nos termos do art. 54.º/2 CPC. Efetivamente a jurisprudência, com apoio em estudos jurídicos (JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Executiva- À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 145, nota(8)) tem vindo a defender que o incidente de habilitação é o próprio para fazer intervir, a par do executado, o terceiro que adquiriu os bens hipotecados objeto da execução, durante a sua pendência ou quando o exequente apenas toma conhecimento da transmissão apos a instauração da execução. Considera-se que o incidente de habilitação de adquirente previsto no art. 356.º CPC, sendo o meio adequado para realizar a substituição de alguma das partes em ação declarativa, à luz do princípio de economia processual pode e deve aplicar-se por analogia no âmbito da ação executiva para, embora em desvio às regras normais da legitimidade neste domínio, de um modo mais fácil e rápido possibilitar a intervenção do adquirente do bem hipotecado (Cfr. Ac. Rel. Évora 03 de novembro de 1994, CJXIX, V, 278; Ac. STJ 28 de novembro de 2002, Proc.02B2897; Ac. STJ 07 de dezembro de 2005, Proc. 05B3782; Ac. STJ 22 de setembro de 2009, Proc. 30/09.7YFLSB; Ac. STJ (acessível em www.dgsi.pt ). Ocorrendo a transmissão antes da instauração da execução, será́ o incidente de intervenção principal o adequado para fazer intervir o terceiro adquirente, como se defendeu no Ac. STJ 28 de janeiro de 2015, Proc. 2482/12.9TBSTR-A.E1.S1 (acessível em www.dgsi.pt )). No caso concreto, pretendendo a exequente promover a habilitação de C…, na qualidade de terceiro adquirente do bem hipotecado e nomeado à penhora, a decisão que julgou C… parte ilegítima para prosseguir como executada no processo de execução, na qualidade de sucessora do devedor, nos termos do art. 54/1 CPC, não representa uma impossibilidade subjetiva, nem objetiva ou causal, para prosseguir com o incidente de habilitação. Como se referiu o incidente de habilitação visa operar a intervenção do terceiro adquirente do bem onerado com hipoteca no processo de execução. Não está em causa uma relação jurídica pessoal que se extinga com a morte do titular, nem ainda relações jurídicas infungíveis. Também não se enquadra na impossibilidade causal porque nenhum interesse se extinguiu, nem do credor hipotecário, nem do adquirente do direito, a requerida. No registo de aquisição a requerida continua a figurar como adquirente dos prédios em comum e sem determinação de parte ou direito, ou seja, como coadquirente do bem objeto de garantia e o exequente não desistiu da penhora de tais bens. A relação jurídica substancial em que se funda o incidente não deixou de subsistir pelo facto de ter sido proferida decisão que julgou a requerida parte ilegítima”.

7 - E, a terminar, refere o mesmo acórdão desta Relação: “Questão diferente consiste em saber se com os factos alegados pela requerente-apelante estão reunidos os pressupostos para admitir liminarmente o incidente de habilitação de terceiro adquirente, dado o recorte que do mesmo é feito pela jurisprudência para estes concretos casos, mas essa matéria não foi abordada no despacho recorrido e como tal fica vedado ao tribunal de recurso a sua apreciação”.

8 - No prosseguimento dos autos, o tribunal recorrido proferiu despacho nos seguintes termos: “Notifique-se a exequente para, em 10 dias, se pronunciar, querendo, quanto ao indeferimento liminar do incidente, uma vez que, face à sua própria alegação, não estão preenchidos os pressupostos da habilitação de adquirente. Para este efeito, importa ter em conta que a legitimidade da requerida apenas poderia, face ao alegado, estar associada à aceitação da herança do falecido devedor e proprietário do bem hipotecado – o que já́ foi afastado, conforme decisão de ilegitimidade proferida em sede de embargos de executado -, sendo que, como, de certa forma, também se deixou vincado no apenso de embargos, não consta alegado que a requerida seja proprietária do bem hipotecado, a tal não equivalendo a menção do registo como sucessora do falecido proprietário, com a referência a AQUISIÇÃO EM COMUM E SEM DETERMINAÇÃO DE PARTE OU DIREITO”. E, no fundo, face ao estado dos autos, não é necessária a intervenção da requerida C… para que os bens da herança do falecido devedor sejam executados/vendidos. Resta salientar que a perspetiva de o presente incidente merecer o seu indeferimento liminar não contraria o decidido pelo tribunal da relação, sendo que, alias, resulta indiciado do próprio acórdão proferido que este seria o resultado devido, como resulta da parte final do aludido acórdão. Caso seja aceite a perspetiva acima exposta, poderá́ a exequente, querendo, desistir da instância do presente incidente, desde logo por força do princípio da cooperação”.

9 – Ao convite antes transcrito, a exequente respondeu e disse, em síntese, que “a legitimidade da Requeria não se pode associar apenas à aceitação da herança do falecido devedor e proprietário dos bens imóveis hipotecados (...) a Requerida não figura no título executivo como devedora. Como tal, somos forçados a recorrer à norma legal que prevê os desvios à regra geral da determinação da legitimidade (...) Ora, não há́ dúvidas que a Requerida é proprietária dos bens imóveis hipotecados a favor da Requerente, o que se constata das certidões prediais. A legitimidade do executado na qualidade de herdeiro do devedor é totalmente distinta da legitimidade do executado na qualidade de proprietário do bem imóvel hipotecado e a Requerida está a ser chamada na qualidade de proprietária dos imóveis hipotecados, sendo irrelevante se a mesma é ou não herdeira do devedor ou se aceitou ou não a respetiva herança, pois não se compreende de que forma a Exequente pode executar os bens garantidos sem a intervenção da Requerida, considerando que é proprietária dos referidos bens (...) Por fim, não nos parece que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação indicie que o presente incidente deve ser indeferido liminarmente pelo facto de referir que “questão diferente consiste em saber se com os factos alegados pela requerente-apelante estão reunidos os pressupostos para admitir liminarmente o incidente de habilitação de terceiro adquirente, dado o recorte que do mesmo é feito pela jurisprudência para estes concretos casos (...)”. Aliás, o Tribunal da Relação refere que a matéria dos pressupostos do incidente de habilitação de adquirente não é abordada no despacho recorrido, pelo que não pode dela conhecer”.

10 – No despacho imediato, o tribunal recorrido proferiu a decisão que havia antecipado e “pela manifesta improcedência, ao abrigo do art. 590.º, n.º 1, do NCPC, indefiro liminarmente o presente incidente de habilitação de cessionário”.

11 – Os fundamentos do decidido foram os que desde já se transcrevem: “(...) é manifesta a improcedência da habilitação, desde logo porque, para além da já́ declarada e admitida ilegitimidade da habilitanda para a execução, enquanto herdeira do falecido devedor, a habilitanda, ao contrário do que conclusiva e juridicamente afirma a exequente, não figura como proprietária dos imóveis hipotecados/penhorados e, sendo a propriedade uma figura meramente jurídica, a exequente também não alega factos dos quais decorra a aquisição da propriedade a favor da habilitanda, antes pelo contrário. Concretizando: A legitimidade da requerida para a execução apenas poderia, face ao alegado pela exequente, estar associada à aceitação da herança do falecido devedor e proprietário do bem hipotecado – o que já foi afastado-, sendo que, como, de certa forma, também se deixou vincado no apenso de embargos, não consta alegado que a requerida seja proprietária do bem hipotecado, a tal não equivalendo a menção do registo como sucessora do falecido proprietário, com a referência a “AQUISIÇÃO EM COMUM E SEM DETERMINAÇÃO DE PARTE OU DIREITO”.
A exequente confunde a mera habilitação de herdeiros, que implica que o registo passe a conter a identificação dos herdeiros, com a aquisição da propriedade, que, na sequência do falecimento do proprietário, apenas ocorre com a partilha. Exatamente por não ter ocorrido ainda a partilha e, por conseguinte, a inerente transferência da propriedade, é que o registo, apesar de conter a referência a “aquisição” – que se admite poder gerar equívocos, especialmente quando, como sucedeu no caso dos autos, um dos herdeiros habilitados, por sinal, a requerida, repudia à herança -, refere expressamente que tal sucede apenas “EM COMUM E SEM DETERMINAÇÃO DE PARTE OU DIREITO”. E, como refere, entre outros, o Ac. RC de 27.02.2018 (proc. 1927/15.0T8LRA, em dgsi) “O que o registo da aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito faz presumir é que o bem pertence a uma determinada herança”, sem que resulte desse registo que as pessoas identificadas como sucessores “sejam proprietárias das quotas em causa nem mesmo em compropriedade mas somente que até à sua partilha são titulares de um direito sobre a herança que incide sobre uma quota ou fração da mesma para cada herdeiro...”.Na verdade, como resulta, não só do registo predial dos imóveis em causa, como da escritura de “habilitação de herdeiros e cessões de meação e de quinhão hereditário”, datada de 30.03.2009 (junta na execução em 18.03.2017), e que, no fundo, está na base do registo, o que sucedeu foi apenas uma habilitação de herdeiros em que a requerida não intervém e onde apenas se declara o falecimento e a identificação dos alegados herdeiros, bem como uma declaração de venda da meação e do quinhão hereditário da declarante D…. Apesar de a requerida constar como herdeira da habilitação de herdeiros tal não equivale à aceitação da herança, o que, aliás, implicou a decisão de ilegitimidade reconhecida em sede de embargos de executado. Além disso, tendo a requerida repudiado à herança e retroagindo os efeitos do repúdio ao momento da abertura da sucessão, considera-se mesmo como não chamada à herança, nos termos do art. 2062.º do CC. E, sendo o repúdio irrevogável, nos termos do art. 2066.º do CC, a requerida nenhuma relação tem ou poderá vir a ter com os bens que compõem a herança, pelo menos pela partilha, de tal forma que, ao contrário do que refere a exequente, tais bens podem ser vendidos na execução sem a intervenção da requerida. Aliás, se a requerida repudiou à herança do falecido proprietário tal significa exatamente que não pretende ser beneficiária da partilha, não havendo razão, sequer lógica, para impor que a mesma assuma intervenção processual para uma suposta defesa quanto a tais bens”.

12 - E, sintetizando, acrescenta o tribunal recorrido: “(...) a requerida não é considerada herdeira do falecido devedor e proprietário (tendo em conta o repúdio da herança e a já declarada ilegitimidade enquanto tal, conforme decisão dos embargos) e, na verdade, também não consta como adquirente dos imóveis, seja pela partilha (de que não é/será beneficiária, exatamente pelo repúdio da herança), seja por qualquer outro facto translativo da propriedade, que não foi alegado e não consta documentado, sequer no registo. Além disso, nesta sequência, não sendo necessária a intervenção processual da requerida para a venda dos imóveis hipotecados/penhorados, o presente incidente é, para além de manifestamente improcedente, também manifestamente inútil (...) Resta salientar que a perspetiva de o presente incidente merecer o seu indeferimento liminar não contraria o decidido pelo tribunal da relação, sendo que, aliás, resulta indiciado do próprio acórdão proferido que este seria o resultado devido, como resulta da parte final do aludido acórdão.”

II – Do Recurso
13 – Inconformada, a exequente apelou, pretendendo a revogação do decidido e que seja proferido despacho que admita liminarmente o incidente de habilitação de adquirente contra a requerida C…, com todas as consequências

14 – Em abono da sua pretensão recursória, a apelante/exequente formulou as seguintes Conclusões:
14.1 – A sentença recorrida indeferiu liminarmente o incidente de habilitação de adquirente da requerida C… com fundamento que a mesma não consta como adquirente dos bens imóveis hipotecados.
14.2 - A exequente instaurou ação executiva contra E…, C…, F…, G…, e D… para a cobrança da quantia de 73.260,63€, tendo por base um contrato de mútuo com hipoteca celebrado com D… e H….
14.3 - Para garantia do capital mutuado, respetivos juros e despesas, foi constituída uma hipoteca sobre as frações autónomas designadas pelas letras “M” e “E” correspondentes, respetivamente, a uma habitação localizada no terceiro andar direito e a uma garagem no rés-do-chão, na parte posterior do prédio, do prédio urbano sito no …, descrito na Conservatória de Registo Predial de Paços de Ferreira sob o n.º 334, da freguesia …, inscrito na matriz sob o artigo 1.597.º.
14.4 - Face ao óbito do mutuário H… faleceu, foram executados como herdeiros C…, G… e F…, nos termos do n.º 1 do artigo 54 do CPC, e ainda D…, como herdeira e mutuária, e E…, a qual foi executada nos termos do n.º 2 do artigo 54 do CPC.
14.5 - A exequente juntou a escritura de habilitação de herdeiros e cessões de meação e de quinhão hereditário e a certidão predial das frações autónomas designadas pelas letras “M” e “E”, hipotecadas a favor da exequente, segundo as quais, pela Ap. 985 de 2009/06/02, encontra-se registada a aquisição a favor dos executados F…, G…, E… e ainda da requerida.
14.6 - A executada D…, por si e em representação da sua filha menor C…, embargou e invocou a ilegitimidade da executada C…, por falta de aceitação da herança aberta por óbito de H….
14.7 - O Tribunal a quo julgou procedente a exceção de ilegitimidade daquela executada, a qual foi confirmada pelo Tribunal da Relação, tendo a Exequente intentado incidente de habilitação de adquirente contra C…, na qualidade de proprietária do bem imóvel hipotecado para garantia dos créditos exequendos.
14.8 - O Tribunal a quo julgou extinto o incidente de habilitação de adquirente, por impossibilidade superveniente da lide, atendendo à extinção da execução quanto à requerida C…, tendo o Tribunal da Relação revogado a sentença por entender que inexistem fundamentos para a extinção do incidente por inutilidade superveniente da lide.
14.9 - Pela sentença em crise, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente o incidente de habilitação de adquirente, por manifesta improcedência, por entender que a requerida C… não é herdeira do devedor falecido nem é adquirente/proprietária dos bens imóveis hipotecados.
14.10 - Apesar de não ter aceitado a herança, também não a repudiou pelo que a requerida C… mantém-se proprietária do bem imóvel hipotecado à Exequente B…, S.A., conforme registo de aquisição efetuado pela Ap. 985 de 2/6/2009.
14.11. No Acórdão de 07/10/2019, o Tribunal da Relação entendeu que “no registo de aquisição a requerida continua a figurar como adquirente dos prédios em comum e sem determinação de parte ou direito, ou seja, como coadquirente do bem objeto de garantia e o exequente não desistiu da penhora de tais bens”.
14.12 - Em sentido manifestamente contrário, o Tribunal a quo refere que a Requerida C… não é adquirente dos bens imóveis hipotecados, não figurando como proprietária de tais bens, já que na base do registo esteve a habilitação de herdeiros.
14.13 - Independentemente do documento que esteve na base do registo de aquisição, os bens imóveis hipotecados encontram-se registados em nome da requerida C… e ainda de G…, F… e E… através da Ap. 985 de 2009/06/02.
14.14 - O Tribunal a quo refere que a propriedade não equivale à menção no registo da requerida como sucessora do falecido proprietário, com a referência a “aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito”, uma vez que ainda não ocorreu partilha e a inerente transferência da propriedade dos bens imóveis.
14.15 - O facto de ainda não ter ocorrido a partilha, por óbito do devedor, não significa que os bens imóveis hipotecados não se encontrem registados em nome da requerida C…, sob pena do registo da aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito tornar-se inócuo, quando, na verdade, permite estabelecer e identificar os sujeitos ativos da aquisição.
14.16 - Não há dúvidas que existe uma aquisição, independentemente do respetivo fundamento, sob pena de estarmos perante bens imóveis sem dono, pois que, caso procedesse o entendimento do Tribunal, não era possível promover a penhora e a venda da totalidade dos bens imóveis hipotecados.
14.17 - Ao contrário do que resulta da sentença recorrida, a requerida C… não repudiou a herança aberta por óbito do devedor H…, tendo simplesmente invocado que não a aceitou e que o registo não configurava um ato de aceitação tácita (entendimento com o qual não se concorda mas que se mostra definitivamente decidido).
14.18 - O repúdio da herança é irrevogável e está sujeito à forma escrita, sendo que, nos presentes autos, não consta qualquer documento escrito da requerida C… a repudiar a herança aberta por óbito de H….
14.19 - O Tribunal a quo parte da premissa errada de que a requerida C… repudiou a herança do devedor e, consequentemente, não pode ser proprietária ou adquirente dos bens imóveis hipotecados.
14.20 - A requerida C… não repudiou a herança (mantendo-se a mesma sujeita a aceitação ou repúdio), e mantém-se adquirente dos bens imóveis hipotecados.
14.21 - O n.º 1 do artigo 54 do CPC dispõe que, tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda, sendo que, no próprio requerimento executivo, o exequente deve deduzir os factos constitutivos da sucessão.
14.22 - A requerida C… foi inicialmente executada na qualidade de herdeira do devedor H… ao abrigo do disposto no referido n.º 1 do artigo 54 do CPC, tendo a execução sido extinta quanto à requerida por se entender que a mesma não aceitou a herança aberta por óbito de H…, não obstante a escritura de habilitação de herdeiros e o registo de aquisição do bem imóvel hipotecado, pelo que não podia ser executada como herdeira.
14.23 - Com o incidente de habilitação de adquirente, a exequente pretende fazer intervir C…, não na qualidade de herdeira do devedor H…, mas na qualidade de proprietária do bem imóvel hipotecado a favor da exequente, ao abrigo do n.º 2 do artigo 54 do CPC.
14.24 - A exequente acionou uma dívida garantida por hipoteca sobre as frações autónomas designadas pelas letras “M” e “E” do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Paços de Ferreira sob o n.º 334, as quais se encontram registadas em nome de C…, assim como de F…, G… e E…, estes últimos já executados.
14.25 - A requerida C… é proprietária dos bens imóveis hipotecados a favor da exequente, conforme se pode aferir da certidão de encargos dos imóveis, pelo que a mesma pode ser executada como proprietária nos termos do artigo 54, n.º 2 do CPC.
14.26 - O incidente de habilitação de adquirente, previsto no artigo 356 do CPC, destina-se a fazer intervir na lide o terceiro adquirente de forma a que o exequente possa fazer uso da garantia real constituída sobre o bem imóvel – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 15.10.2013.
14.27 - A ação executiva foi extinta quanto à requerida C… com fundamento na sua ilegitimidade passiva por falta de aceitação da herança aberta por óbito do devedor H…, mas, passando a ser um terceiro adquirente dos bens imóveis hipotecados a favor da exequente, a requerida pode ser chamada à lide como executada através do presente incidente de habilitação de adquirente.
14.28 - A Sentença ora em crise refere que não foi alegado nem consta documentado que a requerida C… seja adquirente dos bens imóveis hipotecados/penhorados, o que não se pode aceitar face ao teor do requerimento inicial do incidente de habilitação de adquirente.
14.29 - A requerida C… pode ser executada ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 54 do CPC, uma vez que é coproprietária dos bens imóveis garantidos por hipoteca registada a favor da exequente e para garantia da dívida peticionada nos presentes autos, sob pena da exequente nunca poder ver acionada a garantia real constituída a seu favor, o que constitui uma manifesta violação do direito de acesso aos tribunais.

15 – A apelada respondeu ao recurso, dizendo apenas que a decisão recorrida deve manter-se.

16 – O recurso foi admitido com subida nos próprios autos e efeitos devolutivo.

17 – Na mesma ocasião proferiu-se o seguinte despacho: “A requerente interpôs recurso do despacho de indeferimento liminar do incidente de habilitação de adquirente/cessionário, suscitando, além do mais, uma inexatidão do despacho recorrido que decorre de manifesto lapso do tribunal, a qual, por se enquadrar nas situações previstas no art. 614, n.º 1, do NCPC, ainda que, admite-se, numa interpretação abrangente, pode/deve ser corrigida oficiosamente pelo tribunal. A inexatidão a que o tribunal se refere relaciona-se com o facto de se ter escrito que a requerida havia repudiado a herança, por referência ao que havia sido decidido em sede de embargos de executado (acabando por se tecer algumas considerações nessa sequência), quando, na verdade, o que está manifestamente em causa não é um repúdio da herança, mas sim a mera circunstância de os factos alegados/provados não traduzirem uma aceitação da herança, tal como se considerou em sede de embargos de executado, sem que exista qualquer facto ou elemento novo a este respeito. A retificação implica que se substituam as referências ao repúdio por “não aceitação” e se elimine a argumentação associada apenas a um repúdio de herança.
Em todo o caso, a retificação a que se alude como justificada em nada é suscetível de alterar o sentido da decisão, pois, na verdade, como também se referiu no despacho recorrido, os factos que a requerente apresenta não tornam a requerida parte legítima na execução, seja pela explicitada questão de a mesma não constar como proprietária do imóvel hipotecado (apesar de constar como herdeira habilitada do falecido proprietário), seja pela questão da não aceitação da herança já abordada em sede de embargos de executado e no despacho recorrido, sem que, no fundo, insista-se, a requerente/exequente apresente factos novos relevantes, nomeadamente factos suscetíveis de traduzir uma aceitação da herança por parte da requerida. Nesta explicação do que se entende configurar a inexatidão que justifica a retificação do despacho recorrido, o tribunal vai um pouco mais além na sua fundamentação, face ao que seria exigível para a mera retificação, por uma questão de transparência e tentativa de clarificar uma situação que tem “entorpecido” o processo e que, se não for devidamente compreendida pelas partes e definitivamente definida pelo tribunal, pode atrasar ainda mais o desfecho da causa e a efetiva realização da justiça.
Nestes termos, no que respeita à retificação propriamente dita, determino, ao abrigo do art. 614, n.ºs 1 e 2, do NCPC, a retificação do despacho recorrido de 19.12.2019, no sentido de:
- No 2.º parágrafo, onde consta “do repúdio da herança”, passar a constar “da não aceitação da herança”;
- No 6.º parágrafo, onde consta “repudia a herança”, passar a constar “não aceita a herança”;
- Serem eliminados os parágrafos 9.º e 10.º, os quais se iniciam com as expressões “Além disso...” e “Aliás...”, respetivamente;
- No 11.º parágrafo, onde consta “o repúdio da herança”, passar a constar “a não aceitação da herança”; onde consta “pelo repúdio da herança”, passar a constar “pela não aceitação da herança”.
Introduza as retificações nos locais próprios do despacho recorrido. Notifique, podendo as partes, querendo, alegar perante o tribunal superior, em sede de recurso, o que entendam quanto à retificação, nos termos do art. 614, n.º 2, do NCPC”.

18 – Nada alegaram as partes, ao abrigo do disposto no artigo 614, n.º 2 do CPC.

19 – Na Relação nada foi alterado ao despacho que recebeu o recurso e o processo correu Vistos, nada se observando que obste à apreciação do mérito da apelação.

20 – O objeto do recurso, tendo em conta as conclusões da apelante, consiste em saber se deve ser liminarmente deferido o incidente de habilitação e prosseguir os seus termos ou, dito de outro modo, se não é manifestamente inviável fazer intervir na execução, como executada e porque (alegadamente) comproprietária dos bens que garantem o pagamento da crédito mutuado, a requerida/recorrida.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de Facto
21–Ainda que do relatório antecedente já resulte, com suficiência bastante, a factualidade relevante à apreciação da causa, para uma maior clareza, transcrevê-la, com apoio do que já considerou provado o acórdão desta Relação citado nos pontos 5 a 7:
21.1 - Em 13 de julho de 2000 a exequente B… celebrou com H… e D…s (os mutuários) um contrato de mútuo com hipoteca no montante de Esc. 9.974.156$00 (49.750,88€), para liquidação de um outro empréstimo contraído na I…, que se destinou à aquisição dos imóveis para habitação própria e permanente da parte devedora.
21.2 - Para garantia do capital mutuado, respetivos juros e despesas, foi constituída uma hipoteca sobre os seguintes imóveis: a) Fração autónoma designada pela letra “M” correspondente a uma habitação sita no terceiro andar direito; b) Fração autónoma designada pela letra “E” correspondente a uma garagem sita no rés do chão, na parte posterior do prédio, entre as frações “D” e “F”, ambas pertencentes ao prédio urbano situado no …, descrito na Conservatória de Registo Predial de Paços de Ferreira, sob o n.º 334 e inscrito na matriz sob o artigo 1597.º, da freguesia …, conforme documentos n.º 1 e 3 juntos com o Requerimento Executivo.
21.3 - O executado H… faleceu em 23 de março de 2003, sendo herdeiros C…, G… e F… e D….
21.4 - A executada D…, herdeira e mutuária, vendeu a sua meação, juntamente com o quinhão hereditário que lhe pertence por óbito do H…, a E….
21.5 - A Escritura Pública de habilitação de herdeiros e cessão de meação e quinhão hereditário foi celebrada em 30 de março de 2009, no Cartório Notarial de Marco de Canaveses;
21.6 - Na Conservatória do Registo Predial de Paços de Ferreira consta registado no sistema com data de2 de junho de 2009 a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de C…, F…, G… e com cessão da meação e quinhão hereditário de D… a favor de E… dos imóveis a seguir indicados: a) Fração autónoma designada pela letra “M” correspondente a uma habitação sita no terceiro andar direito; b) Fração autónoma designada pela letra “E” correspondente a uma garagem sita no rés do chão, na parte posterior do prédio, entre as frações “D” e “F”, ambas pertencente ao prédio urbano situado no …, descrito na Conservatória de Registo Predial de Paços de Ferreira, sob o n.º 334 e inscrito na matriz sob o artigo 1597.º, da freguesia …. CAUSA: Sucessão Hereditária, Compra da Meação e Quinhão Hereditário.
21.7 - A execução foi instaurada em 10 de março de 2017 e demandados como executados C…, G… e F…, ao abrigo do artigo 54, n.º 1 do CPC.
21.8 - A executada D…, herdeira e mutuária, vendeu a sua meação, juntamente com o quinhão hereditário que lhe pertence por óbito do H…, a E…, demandada na execução nos termos do art. 54, n.º 2 do CPC.

22 – Igualmente resulta dos autos, concretamente do Apenso A, embargos movidos pela executada D…, por si e em representação da filha menor C…, o seguinte:
22.1 – Foi proferida decisão (a 7.03.2018) que julgou “procedente a exceção de ilegitimidade da co-executada C… e, consequentemente, procedentes os embargos, determinando-se a extinção da execução que corre termos contra aquela”.
22.2 – A exequente não se conformou com a decisão antes referida e recorreu para este Tribunal da Relação, tendo concluído nas suas alegações, além do mais, que “A executada C… é parte legítima na presente ação executiva, por uma lado, na qualidade de herdeira do mutuário H… e, por outro, na qualidade de proprietária do bem imóvel penhorado” (concl. 11); que “... a embargante C… aceitou expressamente a herança aberta por óbito de H…, por ter assumido o título de herdeira e concorrente na sucessão à respetiva herança” (concl. 24); que “... invocou que a embargante C… sempre seria parte legítima na qualidade de proprietária dos bens imóveis hipotecados nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 54.º do CPC, sendo que estamos perante uma questão de direito relativamente à qual o tribunal não está sujeito às alegações das partes” (concl. 33) e que “Nos termos do disposto no artigo 54.º do CPC, a execução provida de garantia real sobre os bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia” (concl. 34).
22.3 – O acórdão a que se referem as conclusões antes citadas, proferido a 15.01.2019 na 1.ª Secção deste Tribunal da Relação, julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida.
22.4 – E nele se escreveu, na apreciação jurídica da apelação: “É sabido que a aceitação da herança (...) pode ser expressa ou tácita. Em qualquer caso a manifestação da aceitação deve ser inequívoca (...). Ora a habilitação não tem, por si só, significado algum de aceitação da herança e é ato que se esgota na determinação de quem são os herdeiros. Ou seja, tomada isoladamente, a habilitação não constitui sinal seguro da aceitação tácita da herança. A habilitação não exige nem faz depreender a aceitação da herança por parte do(s) habilitando(s). Por outro lado, o registo dado por assente no segundo parágrafo da f.f., a que o art.º 49º do Código de Registo Predial se dedica sem grandes exigências para a sua efetivação, insere-se nos atos de mera administração da herança, pelo que dele, sem mais, também não se pode extrair a aceitação inequívoca da herança por parte da identificada embargante C…, como, aliás, bem refere a decisão atacada: “Acresce (...). Com efeito, o facto de estar registado em nome da executada C… a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito dos bens integrantes da herança ..., não é apto a, por si só, demonstrar a intenção do herdeiro aceitar a herança””.

III.II – Fundamentação de Direito
23 –A questão que importa resolver em sede de recurso justifica que resumamos – sem pretendermos ser cansativamente repetitivos– a factualidade relevante, tanto mais que, entre recorrente e recorrida correram ou pendem outros processos (como o apenso) com decisões do tribunal recorrido e também desta Relação.

24 – A recorrente instaurou uma execução contra a recorrida e outros, em razão de uma dívida, com garantia real, contraída pelos pais desta, chamando-a à execução enquanto herdeira do mutuário, seu pai, entretanto falecido. A recorrida embargou, dizendo não ter aceitado a herança e o tribunal da Relação confirmou a procedência dos embargos, uma vez que entendeu que, não obstante ter havido habilitação, daí não decorria a aceitação da herança e, por outro lado, o facto de estar registada a aquisição em nome da recorrida, em comum e sem determinação de parte ou direito dos bens integrantes da herança, não demonstrava essa aceitação.

25 – A recorrente, perante aquela decisão da Relação (e ainda antes de o processo – apenso de embargos) ter regressado ao tribunal de primeira instância, veio promover a habilitação da recorrida, de acordo com a previsão do artigo 356 do CPC, agora em razão do disposto no artigo 54, n.º 2 do CPC[2] (e já não do artigo 54, n.º 1 do mesmo diploma), mas, logo que baixaram os autos, o tribunal recorrido considerou, atendendo ao superiormente decidido, que tal habilitação se mostrava supervenientemente inútil.

26 – A exequente voltou a recorrer e a Relação deu procedência ao recurso, dizendo que não era caso de inutilidade superveniente. Daí ter revogado a decisão da primeira instância, sem embargo de acrescentar que outra e diferente questão [diferente da questão da inutilidade superveniente] era a de saber “se com os factos alegados pela requerente-apelante estão reunidos os pressupostos para admitir liminarmente o incidente de habilitação de terceiro adquirente, dado o recorte que do mesmo é feito pela jurisprudência para estes concretos casos”, mas essa, não tendo sido abordada no despacho recorrido, estava “vedado ao tribunal de recurso a sua apreciação”.

27 – Voltaram os autos à primeira instância e o incidente de habilitação foi agora indeferido liminarmente, mas em razão da sua manifesta improcedência, e a exequente voltou a recorrer, com a presente apelação, que importa agora apreciar.

28 – O princípio geral, respeitante à legitimidade na ação executiva, vem estabelecido no artigo 53, n.ºs 1 e 2 do CPC, e segundo este normativo é exequente quem figure no título executivo como credor e é executado a pessoa que no título tenha a posição de devedor, sendo certo que, nos casos em que o título é ao portador, quem deve promover a execução é o portador do título.

29 – Mas logo o artigo seguinte do mesmo Código estabelece desvios – é essa mesma a expressão legal - à regra da legitimidade. No que aqui importa, “tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuravam como credor ou devedor da obrigação exequenda (...)” – n.º 1 do artigo 54 do CPC e “a execução por dívida provida de garantia real sobre os bens de terceiro segue diretamente contra este, se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor” – n.º 2 do artigo 54 do CPC.

30 – Diga-se, desde já - o que, como melhor veremos, nos parece relevante – que o título executivo não se confunde com a causa de pedir na execução: esta pode dele constar, como habitualmente sucede, ou então terá de ser invocada pelo exequente, mas são realidades jurídicas distintas, como de modo claramente maioritário vem entendendo a jurisprudência[3].

31 – Como já se disse, a recorrida começou por ser demandada na execução por – na alegação da exequente – haver sucedido ao devedor, seu pai, entretanto falecido. Com efeito, tendo o devedor falecido antes da propositura da ação, a ação foi intentada contra os sucessores deste, concretamente, e também, a recorrida, mas tendo esta discordado da sua posição processual veio a deduzir oposição (embargos), “na medida em que se verifica a falta de um pressuposto processual (legitimidade) de que depende a regularidade da instância executiva”[4].

32 – Procedentes os embargos, pretende a recorrente que a recorrida passe a ser parte da execução, agora por ser titular (proprietária/comproprietária) do bem que é garantia real do crédito, como permite – ou exige – o n.º 2 do artigo 54 do CPC.

33 – Para tanto, lança mão do incidente de habilitação, concretamente do incidente de habilitação do adquirente ou cessionário, previsto no artigo 356 do CPC, preceito legal que, logo no seu n.º 1 esclarece que o incidente se refere à “habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa (...)” – sublinhado nosso.

34 – Este incidente, salvo melhor saber, admitindo-se que possa ocorrer em sede executiva, tem como pressuposto necessário que a transmissão da coisa ou direito ocorra na pendência da causa (trata-se de coisa ou direito “em litígio”, como o preceito esclarece), desde que o requerente conheça o facto que o justifica, pois é “destinado a efetivar a substituição de alguma das partes em ação pendente por virtude da cessão do direito ou transmissão da coisa ou do objeto do litígio”[5].

35 – Assim e, em primeiro lugar, devemos dizer que a recorrente não fez uso do incidente adequado à sua pretensão, pois é manifesto que a aquisição da compropriedade pela recorrida, que a exequente alega e pressupõe, se ocorreu, foi antes da instauração desta execução[6].

36 – Entendemos, com efeito, que é o incidente de intervenção provocada[7] o meio processualmente idóneo para esse efeito pretendido pela recorrente, como bem se salienta no acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 28.01.2015[8], onde se sumaria, além do mais, o seguinte: “III - O credor hipotecário tem o direito de ser pago pelo produto dos bens hipotecados, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art. 686.º, n.º 1, do CC), pelo que a ação executiva, sob pena de ilegitimidade, tem de ser proposta necessariamente contra o proprietário do bem (art. 735.º, n.º 2, e 818.º do CC), como resulta do art. 54.º, n.ºs 2 e 3, do NCPC. IV - Permite este normativo que o exequente que queira fazer valer a garantia real, quando os bens dados em garantia pertençam a terceiro, possa optar entre propor desde logo a execução contra terceiro e o devedor, numa óbvia situação de litisconsórcio voluntário, ou ser mais expectante intentando a execução apenas contra terceiro, para, posteriormente se os bens se revelarem insuficientes, chamar o devedor para alcançar a completa satisfação do crédito exequendo. V - Não tendo o exequente/credor hipotecário demandado inicialmente os garantes, pode ainda fazê-lo na pendência da execução primitivamente instaurada apenas contra os executados outorgantes do contrato de mútuo garantido por hipoteca, através do incidente de intervenção principal provocada, de modo a que o bem hipotecado, propriedade daqueles terceiros cujo direito de propriedade foi adquirido posteriormente à data da constituição da hipoteca mas antes da dedução da ação executiva, possa responder pela dívida provida de garantia real”.[9]

37 – De todo o modo, também entendemos que, independentemente do meio incidental usado – atendendo também ao disposto no artigo 193 do CPC -, é clara a pretensão da exequente em fazer intervir a recorrida na execução, agora porque entende que a sua situação se enquadra na previsão do n.º 2 do artigo 54 do CPC. Por isso, a questão relevante (também sob pena de não terminar a – legítima – atividade recursória que os autos, e apenso, revelam) é saber se o incidente deveria ter prosseguido os seus termos ou se é justificável o seu imediato indeferimento, nos termos do artigo 590, n.º 1 do CPC, atenta a sua manifesta improcedência, e tal como decidiu o tribunal recorrido.

38 – Pensamos que a recorrente sabe que a recorrida não sucedeu ao devedor. Melhor dito, tem necessariamente de o saber, mesmo que o não refira expressamente, pois nos embargos apensos o tribunal da Relação (em processo entre as mesmas partes) já assim o disse. Mas considera, não obstante, que a recorrida é comproprietária do bem que garante o seu crédito, ou seja, se não é sucessora, é titular do bem.

39 – Parece-nos que tal entendimento, necessariamente pressuposto, padece de um formalismo que não se compadece com a realidade dos factos, com a realidade do já decidido e transitado em julgado e com a razão de ser do chamamento à execução do responsável, ainda que por efeito de ser proprietário do bem garante, pelo pagamento do dívida.

40 - Acresce que a exequente, quando recorreu da procedência dos embargos instaurados pela recorrida, não deixou de invocar, nas suas conclusões, que a recorrida podia/devia estar na execução, também nos termos do disposto no artigo 54, n.º 2 do CPC, mas não convenceu o tribunal de recurso[10].

41 - Por outro lado, o documento que suporta a alegada legitimidade da recorrida, enquanto executada, é o mesmo (inscrição registral da aquisição, por habilitação) relativamente ao qual o tribunal da Relação já disse não ter aptidão para permitir concluir que a recorrida é sucessora.

42 - E a recorrente não invoca qualquer outra causa de aquisição da propriedade. Nem podia, aliás, tendo em conta o que já antes dissera no processo.

43 - Como se disse anteriormente, a causa de pedir não se confunde com o título. A causa de pedir não se altera, consoante se queira seguir o caminho do disposto no artigo 54, n.º 1 do CPC ou o do seu n.º 2. Num caso e no outro, e por maioria de razão agora, a legitimidade da recorrida deriva de ser, na alegação da recorrente e/ou na inscrição do registo, proprietária/comproprietária do bem imóvel que garante a dívida contraída pelos seus pais. Só que, salvo o devido respeito, em sede de embargos, já um tribunal disse, e de maneira definitiva, que a recorrida não era proprietária ou, o que dá no mesmo, disse não resultar dos autos que o seja, por não resultar que tenha aceitado a herança[11], atenta a desconsideração, já declarada, da inscrição resultante da habilitação.

44 – Decorre que estamos perante uma situação de caso julgado formal e dúvidas não existem que, na sequência do decidido em sede de embargos, a pretensão de habilitação da recorrida, aqui formulada, não pode suportar-se na mesma certidão predial que não deferiu a legitimidade da requerida enquanto alegada sucessora do devedor originário.

45 – E tanto basta, salvo melhor saber, para se concluir que, pelas razões fundantes da pretensão da recorrente, nunca a recorrida pode vir a ser executada e, daí, o acerto da decisão proferida em primeira instância.

46 – Em conformidade, o recurso revela-se improcedente.

47 – As custas do recurso são a cargo da apelante, atento o seu decaimento.

IV - Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação e, em conformidade, confirma-se a decisão proferida em primeira instância.

Custas pela apelante.

Porto, 12.10.2020
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
___________________
[1] Relatado pela Desembargadora Ana Paula Amorim e cujo sumário se transcreve: “I. A instância extingue-se ou finda por impossibilidade superveniente, todas as vezes que, ou por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo atinente ao objeto, ou por motivo atinente à causa, a respetiva relação jurídica substancial se torne impossível, isto é, não possa continuar a subsistir. II. O incidente de habilitação de adquirente previsto no art. 356 CPC é o próprio para fazer intervir, a par do executado, o terceiro que adquiriu os bens hipotecados objeto da execução, durante a sua pendência ou quando o exequente apenas toma conhecimento da transmissão após a instauração da execução. III. Demandado um coexecutado, nos termos do art. 54.º/1 CPC, que posteriormente é julgado parte ilegítima, a decisão não constitui fundamento de extinção do incidente de habilitação do mesmo coexecutado, como terceiro adquirente, por impossibilidade superveniente da lide, quando o exequente mantém interesse na penhora do bem hipotecado, cuja propriedade está registada a favor do coexecutado”.
[2] Ainda que no recurso da decisão de procedência dos embargos a exequente (recorrida) haja logo invocado o disposto no citado artigo 54, n.º 2 do CPC, afirmando por esta, ou também por esta via, pelo menos, a legitimidade da executada (recorrida) não podemos afirmar que a Relação se tenha pronunciado expressamente sobre esse fundamento de legitimidade.
[3] Assim o refere José Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª Edição, GestLegal, 2017, págs. 93/94, nota 90. Nas mesmas págs., em texto, o autor diz que “a configuração do título como causa de pedir na ação executiva, de acordo com a qual a causa de pedir deixaria, na ação executiva, de ser o facto jurídico de que resulta a pretensão do exequente (...) não se harmoniza com o conceito de causa de pedir”.
[4] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª Edição, Almedina, 2020, págs. 218/219.
[5] Salvador da Costa, Os incidentes da Instância, 11.ª Edição Atualizada e Ampliada, Almedina, 2020, pág. 221.
[6] O que dizemos não ofende, assim claramente o pensamos, o que se refere e o que se decidiu no acórdão desta Relação, já proferido nos presentes autos e ao qual fizemos, oportunamente, detalhada referência. Como resulta da sua leitura, o que apenas se considerou estar em causa foi a questão de saber se a ilegitimidade da executada, decidida em embargos por esta instaurados, implica a inutilidade superveniente da sua posterior habilitação, o que se considerou não acontecer, mas acrescentando-se, como também já se referiu, que daí não decorria a inviabilidade concreta da pretensão da exequente, em razão de a mesma não ser objeto daquela apelação.
[7] Sobre o incidente, Salvador da Costa, Os incidentes... cit., págs. 83 e ss.
[8] Relator, Conselheiro Gregório de Jesus, in dgsi.
[9] Escrevendo-se no texto do acórdão, além do mais: “(...) se a execução podia ter sido instaurada, ab initio, também contra o terceiro (n.º 2 do art. 54.º), muito embora as normas processuais referentes aos incidentes de intervenção de terceiros estejam estruturadas em função da ação declarativa, não se descortina fundamento para que ele não possa ser chamado no decurso da execução, sabido que a admissibilidade, em geral, da intervenção principal provocada é aceite quanto a pessoas com legitimidade para a ação executiva (...) não se descortina na dogmática processual algum princípio geral e absoluto que vede o incidente de intervenção principal no âmbito da ação executiva. Lebre de Freitas considera a sua admissibilidade, em geral, baseada na admissibilidade do litisconsórcio ou da coligação, “quanto a pessoas com legitimidade para a ação executiva, pois de outro modo o incidente de intervenção iria servir à formação dum título executivo a favor ou contra terceiros, o que só se compadece com o fim (art. 10-4) e os limites (art. 10-5) da ação executiva quando uma norma excecional o preveja”[13], pelo que a admissibilidade do mesmo deverá é estar condicionada a uma análise da sua necessidade em face das circunstâncias de cada caso concreto, se, porventura, se mostram verificados os necessários pressupostos legais, e se tal intervenção tem a virtualidade de satisfazer um interesse legítimo e relevante que se coadune com o fim e os limites da ação executiva (...) uma corrente de pensamento vem entendendo que no caso de sucessão (nº 1 do art. 54.º) que ocorra na pendência da ação executiva, a que se equipara o caso de falecimento do executado antes da propositura da ação mas só nela conhecido após a frustração da citação, o meio adequado para essa intervenção é o incidente de habilitação (arts. 351.º a 357.º). A mesma via se preconiza para o ato de transmissão entre vivos da posição do executado (...) Ora, acontece que nada disto está em causa nestes autos. O incidente de habilitação implica a substituição de alguma das partes na relação substantiva em litígio, seja por sucessão, seja por ato entre vivos (...) O recorrente/exequente não pretende substituir os executados que já são parte da presente execução, não procura fazer suceder na sua posição os terceiros proprietários do bem onerado, mas antes fazê-los intervir ao lado daqueles (...) se a execução podia ter sido instaurada, ab initio, também contra os terceiros, não se descortina fundamento para que eles não possam ser chamados no seu decurso para o lado dos devedores/executados, para ocupar precisamente a posição que ocupariam desde o início (...) Destarte, não tendo o exequente demandado inicialmente os garantes, pode ainda fazê-lo na pendência da execução, através do incidente da intervenção provocada, de modo a que o bem hipotecado, propriedade daqueles terceiros, possa responder pela dívida provida de garantia real” (sublinhados nossos).
[10] Ainda que – reconheça-se – o tribunal da Relação não se tenha expressamente pronunciado sobre essa questão.
[11] Note-se que, por respeito à decisão da Relação no apenso dos embargos de executada, é bastante e é vinculativa a conclusão de não estar demonstrada a aceitação da herança e de a inscrição no registo não ter aptidão para a demonstrar (e, inerentemente, demonstrar a compropriedade que daquela derivaria), pois outro mecanismo processual, capaz concretamente de revelar inequivocamente a aceitação ou o repúdio, não revela nos autos, desde logo a faculdade prevista no artigo 2049, n.º 1 do Código Civil e deferida a qualquer interessado.