CASO JULGADO
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
CONFISSÃO
CONFISSÃO EM CASO DE LITISCONSÓRCIO
Sumário

I - As decisões judiciais que conheçam do mérito da causa, uma vez transitadas em julgado, são vinculantes, inclusive para os tribunais, uma vez que funcionam como condicionantes para a apreciação de outros objetos processuais em ações judiciais subsequentes. E isso ainda que não haja uma perfeita identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir.
II - Em qualquer caso, a autoridade do caso tem de ser avaliada em função dos precisos termos e limites do já decidido, se bem que interpretado à luz dos antecedentes lógicos e fundamentos da própria decisão já tomada.
III - Tendo-se decidido numa dada ação judicial que houve uma doação (aí anulada) de determinada quantia monetária, porque não se acolheu a tese de que essa quantia tinha sido oportunamente restituída por quem primitivamente a recebeu, não mais pode este último, que foi parte na primeira, instaurar uma nova ação tendente a demonstrar essa restituição e a pedir o pagamento do correspondente valor às heranças ou aos herdeiros que naquela ação também foram partes.
IV - Para que a confissão tenha eficácia é indispensável que o confitente tenha capacidade de exercício dos direitos de que dispõe.
V - Em caso de litisconsórcio necessário, a confissão só é eficaz se for feita por todos os litisconsortes.

Texto Integral

Processo n.º 2210/19.8T8PNF.P1

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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- B…, instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C… e a Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de D…, representadas por E… e F…, alegando, em breve resumo, que, por sentença proferida no âmbito do Processo n.º 1102/16.7T8PNF, já transitada em julgado, foi anulada a doação da quantia de 20.965,70€ que lhe foi feita pela falecida, C…, e ele condenado a restituir essa quantia ao respetivo acervo hereditário, acrescida de juros de mora.
Mais foi anulada a escritura de compra e venda que celebrou com os autores das mencionadas heranças, em 03/06/2011, relativa ao prédio misto sito no …, freguesia …, concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 2010-…, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo urbano 197.º e sob o artigo rústico 719.º, e ele condenado a restitui-lo, de imediato e livre de pessoas e bens, ao acervo hereditário de C… e D….
Sucede que a transferência da quantia primeiramente referida para a sua conta bancária foi feita com o intuito da aludida C…, poder dispor desse valor, uma vez que, à data tinha más relações com a filha, E…. Por isso mesmo, na sequência do previamente acordado, passou-lhe um cheque no mesmo valor, que ela levantou e usou, estando dele desembolsado.
Por outro lado, pelo aludido prédio pagou o preço de 30.000,00€, que pretende reaver, na sequência da predita sentença.
Deste modo e em suma, termina pedindo que as Rés sejam condenadas a restituir-lhe a quantia global de 50.965,70€, acrescida de juros de mora desde os dias 01 e 03 de julho de 2011 até integral pagamento e, subsidiariamente, a reconhecerem o seu direito a ver compensado o seu crédito de 20.965,70€ com o crédito reconhecido às Rés pela já referenciada sentença.
2- Contestou a aludida, E…, refutando estes pedidos. Isto porque, em síntese, nem a autoridade do caso julgado permite a sua procedência, nem é verdade que o A. tenha entregue aos autores da identificadas heranças os mencionados valores.
3- O A. respondeu pugnando, para além do mais, pela improcedência da citada exceção.
4- Terminados os articulados, foi convocada uma audiência prévia, na qual, entre outras decisões tomadas, se absolveram as Rés do pedido subsidiário, bem como do pedido de restituição da quantia de 20.965,70€, por se ter entendido, em suma, que ocorria a exceção da autoridade do caso julgado.
Quanto ao mais, o processo prosseguiu para a audiência final.
5- Realizada esta última, foi proferida sentença que julgou a presente ação improcedente e absolveu as Rés do pedido ainda subsistente.
6- Inconformado com qualquer uma das decisões, recorre o A., terminando o seu recurso do despacho saneador com as seguintes conclusões:
“1 – O objeto do presente recurso radica na apreciação da questão da “autoridade de caso julgado” decorrente do peticionado no âmbito dos presentes autos por confronto com a sentença proferida no processo n.º 1102/16.7T8PNF, que correu termos no Juízo Central Cível, J1, da Comarca do Porto Este – Núcleo de Penafiel;
Assim,
2- No âmbito do processo n.º 1102/16.7T8PNF foi decidido e sentenciado anular uma alegada “doação” da quantia de 20.965,70 €, efetuada por transferência bancária em 13/05/2011 por C… (mãe das Rés) a favor do aí Réu e aqui Autor recorrente, B…, com a consequente condenação de restituição, sendo que no âmbito dos presentes autos, o pedido de restituição processado pelo Autor da quantia de 20.965,70€ tem por causa de pedir e pressuposto um determinado cheque bancário apresentado a pagamento, e que se destinou a reembolsar a mãe das Rés da transferência que a mesma havia processado (Ponto 25), nos termos constantes do art.º 19º da petição inicial, e para o qual o pedido formulado remete;
3- A autoridade do caso julgado visa o efeito positivo de impor a força vinculativa da decisão antes proferida como questão prejudicial ou prévia em face do “thema decidendum” na ação posterior, e cuja apreciação depende decisivamente do objeto previamente julgado;
Assim, e em primeiro lugar,
4- Haverá que notar que no âmbito da ação número 1102/16.7T8PNF, o Tribunal limitou-se a anular o identificado negócio aí em questão, o qual intitulou de “doação”, efetuado por transferência bancária a favor do Autor aqui recorrente, no declarado montante de 20.965,70 €, por ter considerado que à data ocorreu a situação de incapacidade acidental da ordenante da transferência, mãe das Rés, e em consequência, retirou as devidas consequências da declarada anulação;
Porém,
5- Afigurando-se como questão diversa, a decisão proferida no âmbito da identificada ação número 1102/16.7T8PNF não versa objetivamente sobre a circunstância do aqui Autor ter restituído à mãe das Rés, C…, a referida importância de 20.965,70€, e através do identificado cheque apresentado a pagamento e efetivamente descontado, pois que não foi apreciado nem deduzido pelo aqui Autor recorrente qualquer pedido reconvencional, limitando-se aí o Tribunal a retirar as consequências legais derivadas da declarada anulação;
E note-se que,
6- Se o negócio que foi anulado no âmbito da ação n.º 1102/16.7T8PNF é relativo a uma transferência bancária que materializou uma intitulada de “doação” processada pela mãe das Rés a favor do aqui Autor, o que aqui se discute no âmbito dos presentes autos é bem distinto e de ocorrência posterior, relativo a um pagamento mediante cheque bancário, nesse indicado montante, emitido pelo aqui Autor a favor da mãe das Rés;
E, portanto,
7- Objetivamente, a decisão que vier a ser proferida no âmbito dos presentes autos em nada colide com aquela outra primeiramente proferida;
8- Trata-se, tão somente, de apurar se o aqui autor já restituiu ou não a quantia que se diz doada/mutuada, sob pena de se poder verificar o enriquecimento ilegítimo por virtude da declarada anulação proferida na identificada primeira ação;
E,
9- Sendo certo que ambos os negócios (transferência bancária e cheque) apresentam factos comuns, não deverá de todo colher o argumento processado pelo Tribunal a quo no sentido do impedimento da renovação da prova, pois que é princípio basilar do nosso ordenamento processual civil que a circunstância de determinada factualidade ter sido considerada “não provada”, daí não se poderá retirar a conclusão inversa, ou seja, a certeza jurídica para efeitos probatórios de que a mesma não ocorreu conforme alegado;
10- Tratam-se de negócios e dinheiros diversos, sendo que uma causa prejudicial é aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser discutida e apreciada na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que se esta se baseia;
11- O que de todo não sucede no âmbito dos presentes autos, pois que tratando-se de atos distintos, a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos em nada colide com aquela outra primeiramente proferida;
12- Porque assim não decidiu o Tribunal a quo violou o princípio da “Autoridade do caso julgado”, e dos artigos 580º, 581º, 619º a 621º e 625º todos do Código de Processo Civil”.
Termina pedindo que se revogue esta decisão e se substitua por outra que declare que não ocorre a exceção da autoridade de caso julgado.
7- Em relação à sentença, o recurso acaba com o seguinte quadro conclusivo:
“1- Atento o objeto do litígio que os presentes autos documentam, ou seja saber se as Rés devem ou não restituir ao Autor a quantia peticionada a título de preço declarado na escritura pública de compra e venda objeto de anulação, a matéria de facto considerada não provada encerra em si o cerne e a totalidade dos temas da prova em discussão nos presentes autos;
No entanto,
2- O Tribunal a quo não valorou devidamente, e de acordo com uma análise crítica e global, a extensa prova que os autos documentam, nomeadamente a prova por confissão, documental, por declaração de parte e testemunhal, tendente na sua análise e apreciação global à conclusão probatória de que, de facto, o Autor pagou e entregou aos pais das Rés o declarado preço de € 30.000,00 cuja restituição se peticiona;
3- Existindo fundamentos sérios, devidamente sustentados em dados concretos por violação daquilo que se deve entender em termos de direito adjetivo por prova plena, e também decorrente das regras da experiência comum, que tornam evidente que a valoração da prova considerada no seu todo, foi inaceitável e incorreta, pois que todos, e cada um, dos meios de prova produzidos são manifestamente tendentes à conclusão que, de facto, o Autor pagou e entregou aos pais das Rés o declarado valor que se pretende ver restituído de € 30.000,00;
Assim,
4- No que respeita à prova por confissão, e apesar de ter admitido que a confissão processada pela Ré F…, vai de encontro ao declarado pelo Autor bem como pela testemunha G…, únicas pessoas que para além dos pais das Rés assistiram ao ato da entrega do dinheiro, o Tribunal a quo considerou, no entanto, não valorar tal confissão, ainda que ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, com o único e exclusivo motivo decorrente da dúvida da existência ou não de uma relação análoga à dos cônjuges entre esta Ré e o Autor;
No entanto,
5- Na motivação processada, o Tribunal a quo não refere nem indica um única discrepância entre tais depoimentos, presenciais, aliás, sendo que esta Ré, foi clara e inequívoca, sem ser contraditada, em confessar com pormenor que o dinheiro foi contado e entregue em numerário ao seu pai, descrevendo com pormenor o ato da entrega do dinheiro e a deslocação ao Cartório Notarial que também acompanhou, tal como resulta do seu depoimento na passagem com início ao minuto 01:51 e termo ao minuto 07:40;
Além disso,
6- Da matéria de facto considerada provada não resulta sequer que o Autor e a Ré F… tivessem, à data da realização da escritura ou posteriormente, qualquer relação análoga à dos cônjuges, o que também foi negado no seu depoimento, conforme passagem com início ao minuto 00:25 e termo ao minuto 00:34;
Por outro lado,
7- A outra Ré, E…, não negou o facto que lhe era desfavorável, no sentido de apurar se o Autor entregou aos seus pais a referida quantia de 30.000,00€, pois que o que esta Ré declarou foi que não sabia se a entrega foi ou não processada, conforme passagem do seu depoimento com início ao minuto 02:25 e termo ao minuto 02:59;
Ora,
8- Versando o depoimento de parte sobre factos pessoais ou de que a parte deva ter conhecimento, não se poderá olvidar que se trata de ato relevante da vida dos pais desta Ré, traduzido na compra e venda do prédio urbano onde habitaram, sendo assim de presumir segundo um juízo de probabilidade psicológica, que a Ré, E…, devia ter conhecimento que o Autor entregou aos seus pais a referida quantia de 30.000,00€, ao invés de ter declarado que não sabia, apesar de não o negar;
9- Daí que, nesta parte, e ao abrigo do preceituado no art.º 358º, n.º 1, do Código Civil, deveria o Tribunal a quo ter extraído a prova plena que resultou da confissão processada, assim dando como provado que o Autor entregou e pagou aos pais da Ré a quantia de 30.000,00€ e que constitui o ponto 1. dos temas da prova;
Sem prescindir,
10- E ainda que assim não fosse, não se vislumbram motivos para que, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, não se valorasse a confissão processada pela Ré, F…, em complemento e em conjunto com a demais prova produzida, ao invés de lhe ter retirado sem motivação aparente, todo e qualquer valor probatório;
Por outro lado,
11- Na motivação processada, e à semelhança da prova por confissão, o Tribunal a quo indevidamente excluiu todo e qualquer valor probatório à escritura pública em discussão nos autos, e à confissão que da mesma resulta quanto ao recebimento do preço, com base na argumentação de que a mesma fora anulada;
12- Ora, salvo o devido respeito, não pode o recorrente aceitar tal entendimento, pois que pelo facto de a mesma ter sido anulada, não significa que a mesma não tenha sido outorgada, e que em termos probatórios possa ser apreciada como documento autêntico ou sequer como documento de natureza particular;
Na verdade,
13- Quanto à declaração de recebimento do preço, quer se trate de documento autêntico, quer se trate de documento particular, e ao abrigo do preceituado nos art.ºs 363º, n.º 2, 369º, n.º 1 e 374º, n.º 1, do Código Civil, está plenamente provado nos autos que os pais das Rés declararam perante oficial público e materializado na escritura pública que os autos documentam, que receberam do Autor a referida quantia de 30.000,00€, e de cujo recebimento deram quitação;
Sendo que,
14- Nos termos do preceituado no art.º 358º, n.º 2, do Código Civil, a confissão extrajudicial constante em documento autêntico ou particular, cuja autoria e genuinidade estejam estabelecidas, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos, daí decorrendo que tal prova só pode ser ilidida com base na falsidade do documento ou mediante a invocação de factos integradores de falta ou vício da vontade que determinem a nulidade ou anulação da confissão (cfr., p. f., art.ºs 347º e 372º, n.º 1, do Código Civil);
Aliás,
15- Dúvidas não poderão restar quanto a esta factualidade, pois que sob o ponto 3º da matéria de facto considerada provada, foi dado como assente que: “Na escritura pública anulada foi declarado pelos falecidos que receberam o preço de 30.000,00€”;
16- Sucede, porém, que as Rés não invocaram a falsidade do documento, nem produziram qualquer prova (nula!) tendente à declaração de nulidade ou anulação da confissão extrajudicial inerente à declaração de recebimento do preço constante do documento em apreço;
17- Ora, nesta parte, e como complemento da força probatória que resulta da escritura pública de compra e venda, o Tribunal a quo omitiu na sua motivação o depoimento da Sra. Notaria, H…, que no seu depoimento declarou que leu e explicou o conteúdo aos pais das Rés, que declararam perceber, que lhes perguntou se já haviam recebido o preço declarado, ao que estes responderam que sim, e que no ato os considerou que os mesmos se encontravam lúcidos e com plena capacidade de entendimento, conforme resulta da passagem do seu depoimento com início ao minuto 03:47 e termo ao minuto 07:07;
Aliás,
18- Haverá também que notar que se por um lado, a inabilitação da mãe das Rés, C…, não era de todo impeditiva que à data da realização da escritura (03/06/2011) a mesma se encontrasse lúcida e com capacidade de discernimento, tal como foi atestado pela Sra. Notaria, o certo é que resulta da factualidade considerada provada que à data da realização da escritura, ou seja em 03 de Junho de 2011, o pai das Rés, D…, nem sequer se encontrava incapaz, pois que a data do começo da sua incapacidade apenas foi fixada a partir de 20 de Abril de 2012, e, portanto, dúvidas não poderão existir de que à data da declaração de quitação, pelo menos o pai das Rés, D…, não se encontrava em declarado estado incapacitante;
Aliás,
19- Nesta parte, haverá até que notar que no depoimento de parte processado pela Ré F…, a mesma declarou e reafirmou que os 30.000,00€ foram entregues ao seu identificado pai;
20- Razões pelas quais, não tendo as Rés logrado provar factos em sentido contrário ao da confissão de recebimento do preço escriturado, deverá subsistir aquela declaração, não podendo o Tribunal deixar de considerar como provado o facto confessado;
Outrossim,
21- A prova produzida, quer a prova por confissão, quer a prova documental que resulta da escritura pública foram ainda complementadas pelas declarações de parte do Autor, bem como pela prova testemunhal produzida, com especial relevo para a também testemunha presencial G… e, ainda que com respeito a factos instrumentais, pela testemunha J…;
Na verdade,
22- No que se reporta ao pagamento do preço de 30.000,00€ as declarações de parte do Autor foram prestadas com serenidade, descrevendo com pormenor todas as circunstâncias relativas à outorga da escritura, locais, estado dos intervenientes, contagem e entrega do dinheiro ao pai das Rés, descrevendo ainda com pormenor não apenas o ato notarial propriamente dito, relativo à intervenção, perguntas e comportamento da Sra. Notaria, como também explicou a razão pela qual o pagamento foi processado em numerário, o que tudo resulta com evidente clareza e segurança da passagem do seu depoimento com início ao minuto 04:22 e termo ao minuto 22:00.
23- No que se reporta ao pagamento do preço, o Autor não foi minimamente contraditado, ou posto em causa ou em dúvida por qualquer dos intervenientes processuais, inexistindo qualquer razão para não valorar o seu depoimento como pessoa séria e credível que é;
Além disso,
24- No essencial, o seu depoimento foi também corroborado por outras duas testemunhas presenciais, ou seja a Ré F… e o filho G…, também estas não contraditadas quanto à dinâmica da contagem e entrega do dinheiro, bem como pela testemunha J… quanto à circunstância do Autor processar pagamentos e negócios em numerário;
25- De igual forma, e no que respeita à prova testemunhal, também prestou declarações a testemunha G…, o qual apesar de ter sido uma testemunha presencial e de ter prestado o seu depoimento de forma clara e objetiva, sem a mínima contradição, insegurança ou recuo, foi desvalorado pelo Tribunal a quo com o singelo, e não justificado argumento, de que à data ainda teria uma idade precoce;
26- É certo que à data da realização da escritura (2011), esta testemunha era adolescente, com cerca de 13-14 anos de idade, mas isso não lhe retira a firmeza e segurança do seu depoimento, aliás, até mais facilmente suscetível de ser contraditado pelos intervenientes processuais, o que de facto não sucedeu, de todo;
27- Foi seguro e claro, no sentido de declarar o que viu, acompanhando, como filho, o seu pai Autor nos negócios por este realizados, também descrevendo pormenorizadamente que o Autor pagou a quantia de 30.000,00€ aos pais das Rés, local onde pagou e detinha esse dinheiro, as circunstâncias da outorga da escritura, a qual declarou assistir, a contagem e entrega do dinheiro ao pai das Rés, e o estado de lucidez dos vendedores, assim também corroborando e complementando na íntegra a prova por confissão, a prova documental e a prova por declarações de parte, tal como resultou da passagem do seu depoimento com início ao minuto 05:04 e termo ao minuto 15:25;
28- Por último, e à semelhança do Autor e do testemunho de G…, também a testemunha J…, enquanto funcionário bancário, teve a virtualidade de evidenciar ao Tribunal a seriedade e credibilidade do Autor, bem como a sua regular prática de pagamento de dinheiros em numerário, conforme resulta das passagens do seu depoimento com início ao minuto 02:17 e termo ao minuto 05:21;
Isto posto,
29 – O Tribunal a quo foi convocado a dirimir o litígio, o que de facto não fez, assim tendo dado como não provado que o Autor pagou ou que não pagou a importância peticionada título de restituição no montante de 30.000,00€;
No entanto,
30- Da conjugação dos elementos probatórios constantes dos autos, mais concretamente da prova por confissão, documental, por declarações do Autor e testemunhal, deveria o Tribunal a quo ter considerado como provado que, de facto, o Autor pagou e entregou aos pais das Rés o declarado preço de 30.000,00€;
31- Conclusão esta que resulta evidente da conjugação da força probatória plena, ou pelo menos da apreciação segundo as regras da experiência comum que deverá ser retirada dos depoimentos de parte das Rés, da confissão extrajudicial que resulta da escritura de compra e venda em discussão nos autos quanto à declaração de quitação do preço aí declarado, do depoimento integral do Autor, e da conjugação de tais meios de prova com os testemunhos de G…, na passagem do seu depoimento com início ao minuto 05:04 e termo ao minuto 15:25, e do depoimento do testemunho de J…, com início ao minuto 02:17 e termo ao minuto 05:21;
Ou seja,
32 - Os autos fornecem elementos seguros, com a certeza exigida pela prova judicial, quer por via da prova plena, quer por via da conjugação da prova de acordo com as regras da experiência comum, no sentido de conclui que, de facto, o Autor entregou e pagou aos pais das Rés o declarado valor de 30.000,00€, pelo que o Tribunal a quo violou o preceituado nos art.ºs 342º, 347º, 358º, 369º, 371º, 374º e 376º, todos do Código Civil;
33- O recorrente impugna, pois, a decisão da matéria de facto supra identificada no que se reporta aos factos não provados da fundamentação de facto da sentença proferida, sob o ponto n.º1, a qual considera incorretamente julgada, constituindo um erro de julgamento, pois que em face da supra descrita prova por confissão, documental, e testemunhal, deveria tal factualidade ter sido dada como provada na fundamentação de facto da sentença proferida, assim requerendo a sua valoração “ex novo”, nos termos do preceituado nos art.ºs 607º, n.º 4, 640º, n.º 1, als. a) a c), e 642º, n.º 1, do Código de Processo Civil;
34- Em face de todo o exposto, e da alteração da factualidade considerada não provada sob o ponto 1., deveria o Tribunal a quo ter condenado as Rés à restituição da quantia de 30.000,00€ a título de preço pago pela outorga da escritura pública identificada no ponto 1º, alínea 28º da matéria de facto considerada provada, enquanto consequência derivada da anulação, sob pena da ocorrência de indevido locupletamento e enriquecimento indevido das Rés, enquanto herdeiras dos identificados acervos hereditários
35- Pelo que, porque assim não decidiu, o Tribunal a quo violou o preceituado nos art.ºs 289º, n.º 1, 473º, e 2097º, todos do Código Civil”.
Termina pedindo que se revogue a sentença recorrida e que se julgue procedente a presente ação.
8- A já referenciada, E…, respondeu a ambos os recursos, pugnando pela confirmação dos julgados.
9- Recebidos os recursos os recursos nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito dos recursos
A- Definição do seu objeto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto dos recursos em apreço, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil (CPC], cinge-se a saber se:
a) Não ocorre a exceção da autoridade do caso julgado, reconhecida na primeira decisão impugnada;
b) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto e, nesse caso, quais as respetivas consequências jurídicas.
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B- Fundamentação
B.1- No saneador sentença recorrido julgaram-se provados os seguintes factos:
a) E… intentou contra B… e F… acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, que correu os seus termos no Juízo Central Cível de Penafiel J1, Comarca de Porto Este;
b) Nessa ação foi foi proferida sentença datada de 4/04/2018 com o teor vertido no documento de fls. 43 a 69, que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo a referida sentença transitado em julgado.
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B.2- Por sua vez, na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1.º- Nos autos de Ação de Processo Comum n.º 1102/16.7T8PNF, que correu termos no Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, que E… moveu contra B… e F…, foram dados como provados os seguintes factos:
“1 - A autora e ré são filhas de C… e de D….
2- C… e D… nasceram em 17.05.1933 e 24.06.1930, respetivamente, tendo casado em 5.04.1952 e falecido, respetivamente, em 12.08.2013 e 11.07.2015.
3- Foram instauradas duas ações de interdição por anomalia psíquica dos pais da autora, que correram termos sob o n.º 1891/11.5TBPRD e 1960/12.4TBPRD, primeiramente nos extintos 3.º Juízo Cível e 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Paredes, respetivamente, e, após redistribuição, ambas na Comarca do Porto Este – Paredes – Inst. Local – Sec. Cível – J1.
4- Na referenciada ação de interdição n.º 1891/11.5TBPRD, relativa à mãe da autora, C…, foi proferida sentença, em 28.10.2013, confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.05.2015, transitado em julgado, em que foi decretada a inabilitação da mesma por motivo da sua anomalia psíquica, tendo sido fixada a data de 26.12.2009 como data de início da incapacidade.
5- Foi também prolatada sentença, em 14.11.2015, já transitada em julgado, na indicada ação de interdição n.º 1960/12.4TBPRD, respeitante ao pai da autora, D…, na qual foi decretada a interdição do mesmo, por anomalia psíquica, por se mostrar incapaz de governar a sua pessoa e os seus bens, fixando-se a data do começo da incapacidade em 20.04.2012.
6- D… sofreu episódios de AVC isquémico, pelo menos, nos anos de 2004, 2007, 2011 e 2012, sendo que desde o ocorrido em 2004, se iniciou um processo de deterioração cognitiva de caráter progressivo.
7- A 01.07.2014, data do exame médico, D… padecia de processo demencial e de afasia motora e hipoacusia sequelares, situação clínica irreversível, progressiva e de causa vascular, circunstância que o deixava completamente dependente do apoio de terceira pessoa para as atividades básicas do dia-a-dia.
8- No exame médico efetuado, o mesmo encontrava-se indiferente, com atenção dispersa, com alheamento da realidade envolvente, sem iniciativa e sem evidentes manifestações de vontade, sendo incapaz de se localizar no tempo e no espaço.
9- Os anúncios das ações de interdição foram publicados em 10 de Junho de 2011 e 6 de Julho de 2012, respetivamente quanto à mãe e ao pai da autora.
10- Em 26/12/2009, C… esteve internada vinte e cinco dias, por surto psicótico, encontrando-se em estado confusional, com interferência na sua capacidade de reconhecimento das pessoas e de localização no tempo e no espaço.
11- C…, pelo menos, desde os finais do ano de 2009, sofria de processo demencial e reação depressiva prolongada, sendo seguida em consulta hospitalar de psiquiatria.
12- Este seu estado mental foi-se deteriorando, uma vez que, para além da sua avançada idade, foi acometida, em 26/2/2011, de um enfarte cerebral.
13- Tal processo demencial foi considerado duradouro e irreversível, com tendência para o agravamento, mesmo com tratamento adequado, podendo haver alternância entre períodos de incapacidade para a regência da pessoa e bens e períodos de remissão quase total dos sinais e sintomas demenciais.
14- C… sofria de deficiência de discernimento e de entendimento, em consequência da doença mencionada no ponto 6, sendo que em setembro de 2012, apresentava embotamento intelectual do raciocínio, com défices no processamento da informação, na elaboração de conceitos e na capacidade de planeamento, bem como claudicação das capacidades mnésicas, sobretudo para acontecimentos recentes, e juízo crítico frouxo, não se encontrando capaz para reger a sua pessoa e bens, tornando necessários o seu acompanhamento próximo e a sua supervisão.
15- No ano de 2010, estando ainda os pais da autora a habitar na sua casa, em …, as filhas E… e F…, respetivamente, autora e ré, combinaram deslocar-se ali, uma semana alternada, para lhes confecionarem as refeições, dar-lhes banho, tratar das roupas e da limpeza da casa, porque aqueles não tinham condições para tratar das suas pessoas.
16- Durante a noite, na dita casa, permanecia um filho da ré, F…, que poderia assistir os avós em qualquer emergência.
17- C… já não tinha noção das horas, confecionava, quando conseguia, o almoço de manhã e o jantar à tarde, passava algumas horas à janela a falar sozinha e a berrar.
18- D… não sabia confecionar as suas refeições, nem conseguia fazer a sua higiene, ou seja, sendo dependente de sua mulher, não sabia as horas, não conhecia o dinheiro, não respondia a perguntas, permanecendo desinteressado e alheado da realidade envolvente.
19- Desta sua casa de …, C… foi transportada, primeiramente, ao H. S. João no Porto em 25.02.2011, tendo sido transferida em 26.02.2011, para o CHTS, mercê do enfarte cerebral mencionado no ponto 12.
20- Quando teve alta, em 9.03.2011, deixou de poder estar sozinha de dia e de noite, por imposição médica, tendo sido acordado entre a autora e a ré, que os pais passariam a morar um mês com cada uma, de forma alternada, iniciando-se a estadia com a autora.
21- Os pais da autora estiveram a viver com esta até ao dia 11.04.2011, data em que passaram a morar em casa do Réu, onde residia a ré, companheira daquele.
22- C… era titular da conta nº ……………. do K…, balcão da Rua …, .., em Paredes, de movimentação mista, ou seja, com a assinatura da titular, ou conjunta da autora e da ré.
23- Associada a essa conta à ordem existia um depósito a prazo com o nº ……………., “Poupança Esp. Reformado”, com capitalização de juros, que, à data de 13.05.2011, correspondia a 10.577,84€.
24- Tal depósito a prazo foi liquidado nesse mesmo dia, no dito balcão, seja antes do prazo do seu vencimento normal, pela mãe da autora, que não sabia ler, nem escrever, e somado ao montante à ordem, passou a representar 20.971,64€.
25- Em 13/05/2011, a mãe da autora deu ordem de transferência da importância de 20.965,70€ para a conta pertencente ao réu, o que, tendo em atenção as despesas de 5,24€, que lhe foram cobradas, deixou a conta com o saldo de 0,70€.
26- Quando a mãe da autora, que não sabia ler nem escrever, deu tal ordem de transferência, em 13/05/2011, de uma conta de depósito a prazo de que era titular para uma conta pertencente ao réu, de todo o dinheiro que tinha, no valor de 20.965,70€, nada devia ao réu.
27- A mãe da autora só deu tal ordem de transferência porque, em tal data, se encontrava incapaz de entender o significado de tal ato, o que era do conhecimento dos réus.
28- Por escritura pública datada de 03.06.2011, denominada de compra e venda, C… e D… declararam vender, pelo preço de 30.000,00€, já recebido, ao réu, B…, o prédio misto, composto de casa de rés-do-chão e andar, com quintal, com a superfície coberta de setenta e nove metros quadrados e a superfície descoberta de duzentos e cinquenta metros quadrados, e terrenos de cultura, com a superfície de mil, trezentos e cinquenta metros quadrados sito no …, freguesia …, concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 2010-…, inscrito a seu favor, com exclusão de parte dos fundos, pelas inscrições “Ap. 3 de 1954/05/06”, “Ap. 9 de 1972/03/23” e “Ap. 18 de 1981/08/11”, inscrito na respetiva matriz sob o artigo urbano 197.º e sob o artigo rústico 719.º, com os valores patrimoniais respetivos de 28.101,62€ e 29,46€, tendo o réu declarado que aceitava essa venda nos termos exarados.
29- A escritura pública de compra e venda celebrada no dia 03/06/2011, entre C… e D… (pais da autora) e pelo réu, relativa ao identificado prédio misto pelo preço de 30.000,00€, só ocorreu por os pais da autora se encontrarem, em tal data, incapazes de entender o significado de tal ato, o que era do conhecimento dos réus.
30- O valor de mercado do referido prédio não é inferior a 70.000,00€.”
2º- Por sentença proferida na supra identificada ação n.º 1102/16.7T8PNF, transitada em julgado, a ação foi julgada totalmente procedente, decidindo-se:
“a. Anular a doação da quantia de 20.965,70€, efetuada, em 13.05.2011, por C… ao ali réu, B…, nos termos descritos no ponto 25, quando aquela não se encontrava capaz de reger a sua pessoa e bens, sem o auxílio de um curador que protegesse os seus interesses;
b. Condenar o ali réu, B…, a restituir, de imediato, a referida quantia ao acervo hereditário de C…, para se proceder à respetiva partilha, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde 14.05.2011 e até efetivo embolso;
c. Ser declarada a anulação da escritura de compra e venda celebrada por C… e D… e pelo ali réu, em 3.06.2011, relativa ao prédio misto, composto de casa de rés-do-chão e andar, com quintal, com exclusão de parte dos fundos, sito no …, freguesia …, concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 2010-…, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo urbano 197 e sob o artigo rústico 719, por ter sido praticada quando aqueles não se encontravam capazes de reger as suas pessoas e os seus bens;
d. Condenar o ali réu a restituir, de imediato e livre de pessoas e bens, ao acervo hereditário de C… e D…, o mencionado prédio, para que se possa proceder à respetiva partilha.
e. Ser ordenado o cancelamento de todos os registos prediais que possam ter sido celebrados com base nessa mesma escritura.”
3º- Na escritura pública anulada foi declarado pelos falecidos que receberam o preço de 30.000,00€.
*
B.3 Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:
1º- O Autor tivesse pago e entregue aos pais das Rés o declarado preço de 30.000,00€.
2º- O Autor não tivesse pago aos pais das Rés o preço declarado como recebido na escritura de compra em venda em causa, no valor de 30.000,00€.
*
B.4- Análise dos fundamentos dos recursos
Começa por estar em causa a questão de saber se não ocorre a exceção da autoridade de caso julgado com que se decidiu na instância recorrida obstar à procedência dos pedidos de restituição ao A. da quantia de 20.965,70€ ou da compensação deste valor com o crédito de que as Rés são titulares.
Sustenta o A., em resumo, que essa exceção não ocorre porque a sentença proferida no Processo n.º 1102/16.7T8PNF, em que ele foi R., não versa objetivamente sobre a circunstância dele ter restituído à mãe das Rés, C…, a referida importância de 20.965,70€, mediante cheque que lhe passou e foi descontado para o efeito. Nesse processo, com efeito e do seu ponto de vista, “não foi apreciado nem deduzido pelo aqui Autor recorrente qualquer pedido reconvencional, limitando-se aí o Tribunal a retirar as consequências legais derivadas da declarada anulação”, pelo que não se pode falar da apontada exceção.
Ora, não é essa a nossa perspetiva.
Mas para o entender é necessário ter presente, antes de mais, em que se traduz a autoridade do caso julgado.
Pois bem, nos termos no artigo 619.º, n.º 1, do CPC, “[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 792.º”.
Como ensinava Manuel Andrade[1], “[o] caso julgado material (ou interno) vincula e obriga não só dentro mas também fora do processo em que foi proferida a respectiva decisão, impedindo uma nova e diversa apreciação – no mesmo ou em novo processo – da relação ou situação jurídica concreta sobre que ela versou (imutabilidade substancial)…”.
A regra, portanto, é a de que as decisões judiciais, transitadas em julgado, são imutáveis e vinculantes.
São imutáveis porque a situação jurídica substantiva por elas definida não mais pode ser jurisdicionalmente reapreciada[2]. A exceção do caso julgado, prevista e caracterizada nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º, do CPC, tem, justamente, esse efeito. É o chamado efeito negativo ou impeditivo.
E, por outro lado, as ditas decisões são também vinculantes, na medida em que, devido ao seu caracter impositivo, se tornam obrigatórias, nomeadamente para os tribunais, funcionando como condicionantes para a apreciação de outros objetos processuais em ações judiciais subsequentes. É o chamado efeito positivo ou vinculativo[3]/[4].
Em qualquer caso, o fundamento deste instituto (do caso julgado) é a certeza e segurança jurídicas, a maximização dos recursos processuais para a resolução dos conflitos com o menor dispêndio de meios, bem como, nalguma medida e reflexamente, o prestígio dos tribunais. Ou, dito por outras palavras, a autoridade do caso julgado material e a exceção de caso julgado, visam “evitar que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença (razão de certeza ou segurança jurídica), “evitar uma nova decisão inútil (razão de economia processual e, num plano secundário, “salvaguardar o prestigio dos tribunais”[5].
Mas enquanto na exceção do caso julgado tem de haver uma identidade perfeita entre os objetos processuais de cada uma das causas, isto é, uma tríplice identidade (de sujeitos, causa de pedir e pedido - artigos 580.º, n.º 1, e 581.º, do CPC), na autoridade do caso julgado já não é necessária essa coincidência[6].
Isto não significa, porém, que, nesta última hipótese, o caso julgado não seja definido em função dos precisos termos e limites do decidido. Pelo contrário, o artigo 619.º, n.º 1, do CPC, impõe que assim seja. Mas, como é hoje doutrina e jurisprudência dominantes, a extensão objetiva do caso julgado material não pode, por regra, ater-se apenas à parte decisória. Tem de levar em consideração outras circunstâncias, entre as quais não revestem menor importância, os antecedentes lógicos e os fundamentos da própria decisão.
Como se refere Ac. do STJ de 03/02/2011[7], “sendo as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nelas contida – temos como seguro que se tem de aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – art. 9º, nº2 -, tem identicamente, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial)”.
É este, no fundo, o método para determinar a extensão objetiva do caso julgado material e a sua força vinculativa[8].
Ora, munidos destes conceitos e confrontando-os com a situação em apreço, facilmente constatamos que o decidido no processo judicial já identificado, ou seja, no processo n.º 1102/16.7T8PNF, em que o ora A. foi parte (mais concretamente R), vincula-o quanto ao facto de aí não se ter provado que o mesmo restituiu à mãe das representantes das Rés o dito valor de 20.965,70€, não podendo essa questão voltar a ser reapreciada nesta ação.
Mas, vejamos mais em pormenor as razões deste impedimento:
Como se refere no relatório da sentença proferida naquele processo, os RR. (em que se inclui o ora A.), “na sua contestação, impugnaram os factos alegados pela autora [E…], referindo que a mãe da autora só efetuou tal transferência [dos 20.965,70€] para evitar que a autora se apropriasse de tal quantia, já que quando regressou do hospital, por ter sofrido um AVC, em 26/02/2011, constatou que a autora já se tinha apropriado da quantia de €4.000,00 e do ouro, de valor não inferior a € 20.000,00€ que aquela guardava no interior de uma lata, tendo ficado acordado com o réu que este lhe emitiria um cheque de igual valor. O réu, nos termos acordados com a mãe da autora, restituiu-lhe a totalidade do dinheiro a que se alude no ponto 1 por cheque”.
Ora estes factos foram todos aí expressamente julgados não provados.
E, esse julgamento, foi, entre o mais, assim justificado:
“A mãe da autora e da ré, pessoa inabilitada, pelo menos, desde 26/12/2009, que não sabia ler nem escrever tal como o seu marido (cfr. escritura de compra e venda junta a fls. 43 a 44), que tinha sofrido um enfarte cerebral em fevereiro de 2011, tendo tido alta em 9/3/2011, efetua uma transferência da totalidade das suas poupanças, em 13/5/2011, da avultada quantia de 20.965,70€, ficando totalmente descapitalizada de qualquer aforro, para a conta de uma pessoa que, por mera coincidência, era companheiro da sua filha, aqui ré, (facto que os réus tentaram, sem qualquer convicção pelas razões já apontadas, esconder do tribunal), sendo que o próprio réu reconhece, em julgamento, que a mãe da autora e da ré nada lhe devia e que tal transferência só foi feita para a sua conta porque a mãe da autora não tinha cheques para efetuar o levantamento.
Mais, o réu entrega à mãe da autora e da ré o cheque do mesmo valor (cfr. fls. 80) que, estranhamente, foi levantado por aquela, na sua totalidade, em dinheiro, apesar do cheque se encontrar cruzado (cfr. declarações da testemunha L…, bancário e frequentador da casa do réu, cuja assinatura se encontra no verso do cheque e que referiu que autorizou o levantamento porque a mãe da autora lhe pareceu uma pessoa normal e porque o réu telefonicamente lhe deu autorização, estando também autorizado pelo seu superior), estando a mesma acompanhada, precisamente, pela sua filha aqui ré, com quem se encontrava a viver e que a testemunha apelidou de “uma espécie de empregada do réu”.
Acresce, a justificação que a ré apresentou para tal insólita transferência - desconfiança da mãe que a autora se apoderasse do dinheiro e por não ter cheques efetua a transferência em causa para uma conta do réu.
Ora, tal justificação não merece qualquer credibilidade por parte do tribunal, sendo, no mínimo, bizarra, já que a conta era solidária mista, facto que a ré não podia desconhecer, razão pela qual, a autora nunca poderia, sozinha, apropriar-se de tal dinheiro, pelo que não faz qualquer sentido que a sua mãe efetuasse tal transferência para impedir que a autora se apropriasse do dinheiro depositado.
Ora, este esquema não poderia ser pensado e nem sequer aderido, de forma consciente, por uma pessoa que desde os finais do ano de 2009, sofria de processo demencial duradouro e irreversível, com tendência para o agravamento e reação depressiva prolongada, pessoa que tinha sofrido um ataque cerebral há três meses e que tinha saído do hospital há dois meses. E apesar de poder haver alternância entre períodos de incapacidade para a regência da pessoa e bens e períodos de remissão quase total dos sinais e sintomas demenciais, nunca a mesma teria capacidade de arquitetar ou aderir a tal plano e de perceber o alcance do seu ato”.
Ou seja, em resumo, não se provou a tese aí defendida pelo R., de que não tinha havido qualquer doação da indicada quantia (como a aí A., E…, defendeu), porque tinha havido restituição da mesma e, pelo contrário, julgou-se demonstrada essa doação que, por incapacidade da doadora, acabou por ser judicialmente anulada.
Neste contexto, não se pode consentir que o A. venha nestes autos tentar reeditar a sua versão e demonstrar o contrário do que ali foi decidido; ou seja, justamente, a tese que defendeu naquele processo de que não houve doação porque a quantia monetária que para si foi transferida (20.965,70€) pela autora da herança, C…, lhe foi restituída. A admitir-se essa possibilidade, o risco de contrariar o já decidido nesse processo é real. E tal não pode ser consentido. Nem a lei, de resto, como vimos, o permite, por força da autoridade do caso julgado.
Por conseguinte, a decisão tomada, a este respeito, pela instância recorrida só pode ser confirmada.
Vejamos, agora, se deve haver lugar à modificação da matéria de facto e, na afirmativa, quais as consequências jurídicas daí decorrentes.
Na sentença recorrida julgou-se não provado (ponto 1º do capítulo dos Factos não Provados) que “o A. tivesse pago e entregue aos pais das Rés o declarado preço de 30.000,00€”. Declarado – entenda-se - na escritura pública de compra e venda do prédio misto, sito no …, freguesia …, concelho de Paredes, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o n.º 2010-…, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo urbano 197.º e sob o artigo rústico 719.º.
O A., no entanto, defende o entendimento contrário; ou seja, que esse pagamento foi por si feito e, como tal, deve ser julgado provado.
Isto porque essa pretensa realidade “resulta evidente da conjugação da força probatória plena, ou pelo menos da apreciação segundo as regras da experiência comum que deverá ser retirada dos depoimentos de parte das Rés, da confissão extrajudicial que resulta da escritura de compra e venda em discussão nos autos quanto à declaração de quitação do preço aí declarado, do depoimento integral do Autor, e da conjugação de tais meios de prova com os testemunhos de G…, na passagem do seu depoimento com início ao minuto 05:04 e termo ao minuto 15:25, e do depoimento do testemunho de J…, com início ao minuto 02:17 e termo ao minuto 05:21”.
Ora, depois de analisar estes meios de prova e de convocar as pertinentes regras legais sobre a matéria, não podemos retirar a mesma conclusão.
Com efeito, começamos por ter presente que a escritura pública de compra e venda a que se reporta o questionado pagamento de preço foi anulada por sentença judicial já transitada em julgado. Mas não foi anulada por uma razão qualquer. Foi anulada porque os vendedores, C… e D…, não se encontravam, na altura, capazes de reger a sua pessoa e bens. Mais: segundo se julgou provado na sentença que decretou essa anulação, o referido “D… não sabia confecionar as suas refeições, nem conseguia fazer a sua higiene, ou seja, sendo dependente de sua mulher, não sabia as horas, não conhecia o dinheiro, não respondia a perguntas, permanecendo desinteressado e alheado da realidade envolvente”. Por sua vez, a indicada, C…, já antes dessa escritura estava incapaz de reger a sua pessoa bens. A tal ponto que veio a ser declarada interdita por anomalia psíquica, desde 26/12/2009. Ou seja, muito antes daquela escritura pública ter lugar. Aliás, provou-se que essa mesma escritura só ocorreu por os indicados intervenientes “se encontrarem, em tal data, incapazes de entender o significado de tal ato”, o que era do conhecimento do A.
Assim, neste contexto, não podem restar quaisquer dúvidas de que as declarações de tais intervenientes não têm qualquer relevância probatória. Nem mesmo, portanto, para efeitos confessórios.
Na verdade, para que a confissão tenha eficácia é indispensável que o confitente tenha capacidade de exercício dos direitos de que dispõe (artigo 353.º, n.º 1, do CPC)[9]. E isso, no caso em apreço, nenhum dos indigitados vendedores tinha.
Por conseguinte, este meio de prova a que o A. pretendia dar relevo decisivo na sua argumentação, não pode ser considerado.
Mas também não pode ser considerada a confissão que o A. imputa à representante das Rés, F…. Essa confissão, com efeito, para que pudesse vincular as Rés teria de ser produzida por ambas as herdeiras e não só por uma.
Como resulta do disposto no indicado artigo 353.º, n.º2, do Código Civil, num caso de litisconsórcio necessário, a confissão só é eficaz se for feita por todos os litisconsortes. Se o for apenas por um deles, não o é.
Na verdade, seria destituído de sentido que, em caso de litisconsórcio necessário, um dos litisconsortes pudesse “isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade de um facto que a todos é desfavorável” [10].
Assim, “se os efeitos que o facto confessado é idóneo a produzir forem contrários ao interesse de uma pluralidade de sujeitos e subjectivamente incindíveis, a legitimidade para confessar radicará, em consequência, nessa pluralidade, não podendo um desses sujeitos isoladamente produzir uma confissão que se traduziria no reconhecimento da realidade dum facto que a todos é desfavorável; mas se, embora o interesse seja comum a vários sujeitos, os efeitos do facto são subjectivamente cindíveis, por forma a poderem ser dados como verificados apenas relativamente a algum dos sujeitos, já a confissão isolada de um deles é admissível, visto que realizada a cisão, só o seu interesse resulta afectado em face de uma situação consequente ao facto confessado que, representado este, na sua parte relevante e ainda que por efeito da aplicação da norma sobre a redução dos actos jurídicos, como se o acto só a ele dissesse respeito, é amputada dos efeitos que o facto seria idóneo a produzir em outras direcções”[11].
Ora, a presente ação constitui, justamente, um caso de litisconsórcio necessário passivo, visto que, destinando-se a exigir um crédito sobre heranças, têm de obrigatoriamente estar todos os correspondentes herdeiros em juízo. É o que estipula o artigo 2091.º, n.º 1, do Código Civil.
Nessa medida, portanto, a alegada confissão da indicada, F…, não é eficaz.
Restam, assim, os depoimentos do A. e das testemunhas já referidas, articulados com a demais prova supra mencionada.
Pode dessa prova retirar-se que o A. pagou o preço já aludido; ou seja, os 30.000,00€?
Cremos que não.
Desde logo porque, face a tudo o já dito sobre o estado de saúde de qualquer dos vendedores e sobre a sua capacidade de entendimento, tal qual foi julgada demonstrada nos processos judiciais citados na matéria de facto provada, soa a inverídica a informação prestada pelo A., pela C… e pelo filho daquele, G…, no sentido de que o aludido D…, recebeu o dinheiro, em notas, do A. e contou-o. É que, como já vimos, resultou provado na anterior ação sobre idêntica temática que este pretenso vendedor não conhecia sequer o dinheiro. Mais: também resultou provado, como já demos conta, que no preciso dia da escritura publica aqui em questão, o mesmo D… e a esposa, C…, estavam incapazes de entender o significado da escritura que estavam a celebrar.
Neste contexto, pois, é inverosímil que estes últimos tenham recebido a quantia que aqui está em questão.
Mas, não é só por essa razão. Também não percebemos muito bem, nem, a nosso ver, o A. foi capaz de o explicar convincentemente, porque é que sendo um homem de negócios que lida com muito dinheiro, não fez este pagamento por cheque. É que estamos a falar de 30.000,00€. E, por muito menos, disse ele ter passado um cheque à dita C…, para lhe devolver o valor que aquela para ele tinha transferido. Sinal, portanto, de que alegadamente usava cheques. E, neste caso, se, como disse, chegou a pretender que este negócio não se concretizasse devido aos problemas entretanto surgidos, seria avisado que documentasse o seu pagamento do dito valor de 30.000,00€, por outro meio.
Ora, neste contexto, não é verosímil que tal pagamento tenha ocorrido. E menos certo ainda é que o valor entregue tenha sido aquele de 30.000,00€. Isto porque nenhum dos depoentes, para além do A., disse ter-se certificado desse valor. Apenas indicaram o modo como alegadamente as notas vinham e foram entregues ao D…, facto, repetimos, de que não estamos convencidos.
Em resumo, não se vê qualquer erro no julgamento efetuado na instância recorrida quanto ao facto da afirmação contida no ponto 1.º dos Factos não Provados ter sido enquadrada nesse capítulo.
E não estando demonstrado esse erro, também não há motivo para alterar a solução jurídica encontrada na sentença recorrida. Até porque a pretensão recursiva do A. estava absolutamente dependente daquela alteração em sede factual.
Por conseguinte, improcedendo ambos os recursos interpostos pelo A. serão mantidas as decisões recorridas.
*
III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento aos recursos em apreço e, consequentemente, confirmam-se as decisões recorridas.
*
- Porque decaiu na totalidade, as custas da ação e de ambos os recursos serão suportadas pelo A. - artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Porto, 27 de outubro de 2020
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
________________
[1] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, págs. 138 e 139.
[2] Ressalvada a hipótese de revisão (artigos 696 a 792.º do CPC).
[3] Como defendia Castro Mendes, em “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, citado no Ac. STJ de 19/01/2016, Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt, a “a eficácia do caso julgado – não apenas a fundamentação da respectiva excepção – pode traduzir-se em duas ordens de efeitos: pode impedir a colocação no futuro da questão decidia ou pode impedir a adopção no futuro da solução que a decidiu. Os fenómenos são diferentes e não apenas nos fundamentos - são formas distintas de eficácia do caso julgado. Com efeito, tal eficácia pode consistir num impedimento, proibição de que volte a suscitar-se no futuro a questão decidida - e estamos perante aquilo a que nós chamamos função negativa do caso julgado; ou pode consistir na vinculação a certa solução - e estamos perante a função positiva.”
[4] No mesmo sentido se pronuncia Teixeira de Sousa, quando refere que “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (“O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs.) [citação extraída do Ac. RC de 28/09/2010, Processo n.º 392/09.6TBCVL.C1, consultável em www.dgsi.pt].
[5] Manuel de Andrade, Ob cit. págs 139 e 140.
[6] Neste sentido, Acs. do STJ de 13/12/2007, Processo n.º 07A3739; de 06/03/2008, Processo n.º 08B402, e de 23/11/2011, Processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, Ac. RC de 06/09/2011, Processo n.º 816/09.2TBAGD.C1, consultável em www.dgsi.pt
[7] Proferido no Processo n.º 190-A/1999.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[8] Cfr. neste sentido também o Ac. STJ de 19/01/2016, Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt
[9] Neste sentido, por exemplo, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 296.
[10] Rita Barbosa Cruz, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, pág. 829.
[11] Lebre de Freitas, in A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, págs.109 e 110, citado no Ac. RLx de 11/11/2014, Processo n.º 2987/11.9TBPDL.L-71, consultável em www.dgsi.pt.