SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
FUNDAMENTOS SUCESSIVOS
CONTRADIÇÃO ENTRE AS DECISÕES DE FACTO
Sumário

I - É correta a suspensão da instância ao abrigo do art.º 272º, nº 1, do Código de Processo Civil, se noutro processo, interposto em primeiro lugar, não havendo uma situação de litispendência, se debatem entre as mesmas partes, ainda que numa posição processual qualitativamente diferente, essencialmente os mesmos factos, podendo a decisão de uma influenciar a decisão a proferir na outra, de tal modo que o alheamento à suspensão da instância poderia conduzir a contradições nas respetivas decisões em matéria de facto e incompatibilidade de fundo nas respetivas decisões finais.
II - Não obsta ao despacho determinativo da suspensão da instância ao abrigo do art.º 272º, nº 1, do Código de Processo Civil, o facto de a instância já se encontrar suspensa com fundamento nas medidas legislativas excecionais de proteção do inquilino no âmbito da pandemia Covid 19, pois que a suspensão da instância pode ter mais do que um fundamento no processo, mantendo-se pela subsistência de um quando cessar o outro ou os outros.

Texto Integral

Proc. nº19228/19.3T8PRT.P1 (apelação)
Comarca do Porto - Juízo Local Cível do Porto– J 2

Relator Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, LDA., com o NIPC ………, com sede no …, .. a .., …. – … Porto, representada pela gerência a cargo de C…, instaurou, em 27.9.2019, ação declarativa com processo comum (despejo) contra D…, divorciada, titular do Cartão de Cidadão n.º…….. …., com o NIF ………, com residência conhecida na Rua …, nº …, 6º Esq. Frente ….-… …, formulando o seguinte pedido:
«Deverá a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência ser decretada a resolução do contrato de arrendamento aqui em causa e, em consequência,
I. Deverá a Ré ser condenada no despejo imediato do locado, devendo entregar o prédio referido em 1º à Autora, livre de pessoas, bens e sem animais.
II. Deverá a ré ser condenada ao pagamento da indemnização prevista no artigo 14º nº 2 do NRAU, uma indemnização igual ao valor da quantia/renda a determinar de acordo com os critérios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.º, ou seja, resultado do cálculo de 1/15 do valor patrimonial tributário, desde o termo do prazo para contestar até à entrega efetiva da habitação, cujo valor será apurado por mera soma aritmética em execução de sentença;
III. Deverá a ré ser condenada ao pagamento das custas judiciais devidas dos presentes autos.» (sic)
No essencial, a A. alegou que é locadora e que a R. se apresenta como locatária do 3º e 4º andares de um determinado prédio, pelos quais foi combinada uma renda mensal de € 85,00, admitindo, por isso, a A. que a R. é arrendatária.
Em 2018 a A. realizou obras no edifício, mas não nos compartimentos ocupados pela R. por ela ter impedido a sua realização.
Já naquela ocasião, a R. mantinha dezenas de cães e gatos a viver no interior do prédio, na parte por ela ocupada.
A R. mantém os 3º e 4º andares, desde há mais de um ano, ininterruptamente, em estado de abandono, ocupados apenas com os seus pertences sem lá residir, servindo apenas como depósito, armazém dos móveis fora de uso, deteriorados que foi acumulando durante vários anos, e como abrigo de dezenas de animais sem condições de higiene, salubridade e até segurança, para a R. e restantes ocupantes do prédio e dos prédios vizinhos.
Durante o ano de 2018, foi efetuada uma limpeza geral e desinfestação do prédio que incluiu o 3º e 4º andares com a anuência de familiares da R. Desde julho que a R. não é vista nas redondezas, mas continua a dar ali alimentação e guarida a animais, por intermédio de familiares e amigas, mantendo-se as suas condições de insalubridade pela presença de animais abandonados, com informação dada à Delegação de Saúde e à Câmara Municipal ….
À atitude da A. não é alheio seu processo psicótico, com incapacidade de se auto gerir, auto cuidar, de gerir as suas tarefas domésticas ou fazer a sua própria higiene.
A R. deixou de habitar no locado, nele não tem residência permanente, e só vai lá alimentar os animais, por si ou por interposta pessoa, o que ocorre há mais de um ano.
Ocorre ainda que a R. vem liquidando as rendas com atraso, em termos que justificam a resolução do contrato.
Entende a A. que a R. deve ser condenada a indemnizá-la em valor a determinar, pelo tempo correspondente à soma aritmética de todo o período da pendência dos presentes autos até à data da efetiva entrega do imóvel.
Os fundamentos da ação assentam na violação de regras de higiene, de sossego e de boa vizinhança, no incumprimento relativo ao dever de pagar as rendas do locado e no não uso do locado por mais de um ano, nos termos do art.º 1083°, n.° 2, al. a) e al. d) do Código Civil.
A R. contestou a ação, ali pedindo, a título de questão prévia, a suspensão da instância nesta ação em razão de uma ação por ela interposta contra a aqui A. que considera diretamente relacionada com a presente demanda.
Impugnou os fundamentos da resolução invocados pela A., alegando designadamente que a situação em que o locado se encontra não é consequência das condutas da R., mas sim da A. ao não realizar as obras de conservação e reabilitação a que se comprometeu e que lhe foram impostas pela autarquia, daí resultando a impossibilidade de a contestante habitar no imóvel, encontrando-se privada do seu uso.
Também não se verifica o fundamento de resolução alegado por falta de pagamento de rendas, não obstante alguns atrasos que pormenorizou como justificados, nem o não uso do locado por mais de um ano, tendo estado ausente por doença, mas visitando-o e guardando nele os seus pertences.
Conforme certidão junta aos autos a pedido da R., em 23.9.2019 a mesma instaurou uma (outra) ação contra a aqui A. (ali ré) que corre termos sob o nº 18817/19.0T8PRT, na qual deduziu o seguinte pedido:
«Pelo exposto, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e em consequência ser a Ré condenada a:
a) Realizar as obras de recuperação/reabilitação, do 3º andar e águas furtadas com vista a dotar os mesmos de condições de habitabilidade, nomeadamente reparação dos soalhos, tetos, paredes, portas, janelas e caixilharias, rede de distribuição de água, instalação elétrica e iluminação, quartos de banho, e cozinha.
b) Realojar a A. desde já e até entrega do imóvel em perfeitas condições de habitabilidade.
c) A indemnizar a A. pela privação do uso do imóvel arrendado, pelo menos desde Agosto de 2018 e durante todo o período em que se mantiver essa privação, ou até ao seu realojamento, ao valor mensal correspondente à renda paga pela A, € 85, e que nesta data se computa em € 1.190,00;
d) A indemnizar a A. a título de danos morais em montante nunca inferior a € 5000,00.» (sic)
Como é bom de ver em função deste pedido, a aqui R. alegou como fundamento daquela ação, relativamente ao mesmo locado, que a aqui A. (ali ré) se obrigou a fazer obras de adequação, recuperação e reabilitação no espaço arrendado, que se encontrava bastante degradado, e a manter a renda pelo mesmo valor pago, sem atualizações futuras. Porém, não efetuou essas obras como havia sido acordado e como lhe é exigido enquanto atual senhoria, limitando-se a realizar pequenas intervenções ao nível de pinturas de algumas paredes e teto, retirada de algumas alcatifas e a tapar alguns buracos existentes no soalho, alguns deles provocados pelas obras por si realizadas nos andares inferiores.
Após o regresso da aqui R. de um internamento hospitalar de julho de 2018, dada a falta de obras, teve de passar a dormir numa casa pertença da filha E…, o que se mantém até ao momento, pois, não obstante todos os dias se deslocar ao local arrendado, aí não pode permanecer por falta de condições.
Está assim a ali autora, pelo menos desde agosto de 2018, privada de habitar a sua casa, não obstante pagar uma renda mensal de € 85, o que na data da petição inicial perfaz o montante de € 1.190,00, bem como as que venham a ser pagas pela A. enquanto se mantiver privada do uso do imóvel, ou até ao seu realojamento.
Toda esta situação tem causado também transtornos de ansiedade e agitação, não conseguindo dormir ou sequer descansar convenientemente, o que justifica a condenação da ali ré no pagamento de uma indemnização que calcula em € 5.000,00.
Cumprido o contraditório relativamente ao pedido de suspensão da instância, o tribunal a quo proferiu decisão fundamentada a 3.7.2020, com deferimento da pretensão da R., concluindo assim: “Pelo exposto, e nos termos do art. 272°, n° 1, do CPC, determino a suspensão da presente instância até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida no Proc. n.° 18817/19.0T8PRT, no Juízo Local Cível do Porto – Juiz 5, no qual são partes as aqui A. e R., e nos quais se discutirá a matéria de excepção (peremptória) invocada pela R. nestes autos.

Inconformada com esta decisão, dela apelou a A., tendo alegado com as seguintes CONCLUSÕES:
«I. A A., ora recorrente, não se conforma com a douta decisão de suspensão da instância, por entender que no presente caso não ocorre o aludido “motivo justificado” para que fosse tomada a decisão de suspensão da instância;
II. Não se afigura à recorrente a possibilidade de ocorrer decisões de fundo ou de mérito contraditórias, porquanto os objetos em litigio são distintos, apenas coincidindo alguns dos factos alegados pela ré, quer em sua defesa nos presentes autos, quer como fundamento do direito a obras que alega e peticionou naqueloutra ação, factos esses contrariados pela A, aqui recorrente, como não poderia deixar de ser;
III. Entende a recorrente que as decisões a proferir em ambas as ações não poderão vir a ser contraditórias, porquanto os seus objetos são distintos, assim como a matéria de fundo o são;
IV. Não poderá o tribunal exercer um poder discricionário o poder de suspender a instância, sem qualquer prazo previsto, só porque em ambas as ações se discutem factos conexos entre si, mas não prejudiciais ou dependentes;
V. A matéria factual que consta da defesa da Ré/recorrida nos presentes autos e que integra a excepção peremptória - a falta de condições de habitabilidade imputável à senhoria- terá que ser sujeita a prova nos presentes autos, por se tratar de matéria controvertida, cujo ónus estará a cargo da recorrida, pelo que em nada contende com a prova dos factos por si alegados e sujeitos a prova naqueloutra ação de obras, porquanto não há coincidência dos objetos das ações, pelo que não ocorrerá incompatibilidade de fundo das decisões a proferir em ambas as ações.
VI. Estava impedido o tribunal a quo, durante o período em que a instância se encontrava suspensa, ou seja, durante a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS - CoV -2 e da doença COVID -19] decidir-se por uma suspensão, agora por tempo indeterminado, por entender estar dependente do conhecimento de uma outra ação com a qual não apresenta qualquer relação de dependência.
VII. A verificarem-se os pressuposto da suspensão da instância, o que só por mera hipótese se concebe, esta nunca poderia ser conhecida no momento em que o foi, pois só o podia ser após o decurso do prazo de suspensão decretado pelo tribunal aquando da suspensão da instância decretada a 08.05.2020, o que aconteceria a partir de 30 de setembro, por força do regime jurídico protecionista dos arrendatários habitacionais decretado durante a pandemia do Covid-19 e das respetivas normas previstas do art. 7.º, n.º 11, da Lei n.º 1-A/20, de 19/3,na redação dada pela Lei n.º 4- A/20, de 6/4.
VIII. A questão da suspensão da instância a ser conhecida só o podia ser no despacho saneador e após o decurso do prazo de suspensão decretado pelo tribunal aquando da suspensão da instância decretada por força das normas previstas do art. 7.º, n.º 11, da Lei n.º 1-A/20, de 19/3,na redação dada pela Lei n.º 4-A/20, de 6/4.
IX. O tribunal a quo violou as normas dos artigos 7.º, n.º 11, da Lei n.º 1- A/20, de 19/3, na redação dada pela Lei n.º 4-A/20, de 6/4, alterada pelo artigo 8º da lei nº 14/2020 de 9 de maio, assim como o artigo 272, nº 1 do cpc.» (sic)
Pretende obter da relação acórdão que revogue a decisão que declarou suspensa a instância, a substituir por outro que determine o seu normal prosseguimento.

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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
A matéria a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- está delimitada pelas conclusões da apelação da A., acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil[1]).

Com efeito, está para apreciar e decidir:
1.Se há fundamento para a suspensão da instância com base em motivo justificado.
2. Na afirmativa, se não podia ter sido declarada a suspensão no momento em que o foi, por estar em curso o prazo de suspensão decretado pelo tribunal a 08.05.2020, por força do regime jurídico protecionista dos arrendatários habitacionais em razão da pandemia do Covid-19 e das respetivas normas previstas no art.º 7.°, n.° 11, da Lei nº 1-A/20, de 19/3, na redação dada pela Lei n.° 4-A/20, de 6/4.
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III.
Os factos relevantes são os que resultam do relatório que antecede.
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IV.
1. Há fundamento para a suspensão da instância com base em motivo justificado?
O art.º 272º, nº 1 do Código de Processo Civil prevê que “o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado».
No despacho recorrido, o tribunal admite que não é de uma questão prejudicial que se trata, fazendo assentar a sua decisão de suspender o processo no que considera ser “outro motivo justificado”.
Não obstante, para um a melhor compreensão do que possa ser enquadrado no conceito indeterminado de “outro motivo justificado”, para feito de suspensão, importa delinear a ideia do que seja o nexo de prejudicialidade ou de dependência.
Aquele nº 1 do art.º 272º tem a mesma redação do art.º 279º do anterior Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-lei nº 44129 de 28 de dezembro de 1961, pelo que se mantém pertinente a doutrina e a jurisprudência que se produziu à luz do último normativo, já revogado.
Também o Código de Processo Civil de 1939, determinava já no corpo do seu art.º 284º que “o juiz pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta e quando entender que ocorre outro motivo justificado; (…)
Alberto dos Reis explicava assim a causa prejudicial ou dependente[2]: “estão pendentes duas acções e dá-se o caso de a decisão duma poder afectar o julgamento a proferir na outra. Aquela acção terá o carácter de prejudicial em relação a esta.”[3]
A suspensão torna-se razoável quando a causa prejudicial está proposta e o julgamento dela pode destruir a razão de ser ou fundamento da outra causa, a causa subordinada.
Citando e concordando com o Prof. Andrade, Alberto dos Reis[4], refere que a “verdadeira prejudicialidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é reprodução, pura e simples, da primeira. Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal”.
J. Lebre de Freitas[5] entende por prejudicial a causa que tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada. Dando exemplo, indica a ação de nulidade de um contrato como sendo prejudicial relativamente à ação de cumprimento das obrigações dele emergentes.
A suspensão da instância com fundamento na pendência de outra ação (ação prejudicial), só é de decretar quando da decisão desta dependa a resolução do conflito configurado naquela, ou quando a sua procedência retira a razão de ser da ação dependente.
A procedência da causa indicada como prejudicial terá de revestir a virtualidade de uma efetiva e real influência na causa suspensa, por forma a poder concluir-se que a decisão desta depende incontornavelmente daquela.[6] Dito de outro modo, a prejudicialidade advém da impossibilidade de apreciar um objeto processual, o objeto processual dependente, sem interferir na análise de um outro, o objeto processual prejudicial[7], ou ainda, a questão da causa prejudicial poder destruir o fundamento ou razão de ser da causa dependente, ou, pelo menos, quando o julgamento da causa dependente possa ser atrasado ou decisivamente influenciado ou afetado pela decisão a proferir na causa prejudicial.
A razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos; uma causa é prejudicial em relação à outra quando a decisão da primeira possa destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda.[8]
Ainda que se verifiquem os requisitos da prejudicialidade, o juiz deve negar a suspensão quando o estado da causa tornar gravemente inconveniente a suspensão ou nos termos do nº 2 do art.º 272º.
Mas o juiz pode ainda ordenar a suspensão da instância “quando ocorrer outro motivo justificado” (parte final do nº 1 daquele art.º 272º).
Alberto dos Reis explicava assim o conteúdo do conceito indeterminado de “outro motivo justificado”: “Nesta parte dá-se ao juiz grande liberdade de acção. O juiz pode ordenar a suspensão quando entenda que há utilidade ou conveniência processual em que a instância se suspenda.
Este pensamento é acompanhado por A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa[9] quando afirmam que o juiz, “nesta campo, goza de uma larga margem de discricionariedade, devendo aquilatar se efetivamente se justifica tal medida”.
Pois bem.
A nosso ver, ao menos numa visão mais restritiva do que seja a causa prejudicial, não há verdadeira dependência de uma ação relativamente à outra, no sentido de que uma não possa ser julgada e decidida antes da outra. Qualquer uma delas pode ser decidida em primeiro lugar, sem necessidade da decisão que houvesse de ser proferida na outra. O objeto de qualquer uma delas pode ser apreciado e definitivamente decidido sem que o seja o objeto processual da outra.
No entanto, parece-nos inegável que existe um nexo de influência entre ambos os processos, por existir também um núcleo essencial de factos que lhes é transversal, mas com diferentes versões ou justificações, consoante o interesse prosseguido em cada uma delas, pela respetiva autora ou contestante.
Por exemplo, se na ação instaurada em 23.9.2019 (proc. 18817/19.0T8PRT) a aqui R. (ali autora) alega uma situação de insalubridade e falta de higiene da habitação locada, fá-lo imputando essa situação à aqui A. para justificar o pedido da realização de obras, o seu realojamento e a atribuição de uma indemnização a seu favor por ter sido prejudicada pela ali ré na utilização da habitação. Já a aqui A. alega a falta de higiene e salubridade do locado como efeito de comportamento imputável à aqui R. para justificar a resolução do contrato e o despejo peticionado, matéria que constitui simultaneamente defesa por exceção naquela primeira ação.
Embora não se configure propriamente uma situação de litispendência --- desde logo porque são diferentes os pedidos deduzidos numa e noutra ações ---, os fundamentos das pretensões deduzidas pela A. na presente ação estão incluídos no objeto da ação 18817/19.0T8PRT, sendo que os factos em discussão são, essencialmente, os mesmos em ambos os processos.
Não há dúvida que a decisão de uma das ações em primeiro lugar, seja ela qual for, pode influenciar a decisão da segunda ação, maxime se transitar em julgado, porque em ambas se alegam, no essencial, os mesmos factos, com justificações diferentes e com resultados incompatíveis face ao pedido de cada ação. Pois, se na primeira ação se reconhecer que a falta de higiene e salubridade da habitação da R. é imputável à aqui A. (ali ré) por não ter efetuado obras a que se comprometeu, é manifesto que o fundamento de resolução por aquele facto, invocado nesta ação, não procederá, a não ser que nesta se demonstre uma versão diferente relativamente à falta de higiene e salubridade, agora no sentido diverso, de que a mesma é devida a conduta culposa da aqui R., o que sempre significaria uma evidente contradição sobre uma mesma situação da vida que os tribunais devem evitar, tanto no interesse legítimo das partes como da imagem dos próprios Tribunais, em qualquer caso pela realização de uma justiça unívoca, coerente e que assegure a certeza das situações jurídicas apreciadas.
Não esqueçamos que, muito embora, em regra, os fundamentos de facto não adquiram, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de modo a poderem impor-se para além dessa mesma decisão, os mesmos já relevam quando acoplados a uma decisão implícita de uma exceção invocada na defesa da ação condicionante e pressuposto lógico da concreta decisão final, transitada em julgado.
O ideal seria mesmo que os fundamentos de uma e outra ações fossem discutidos no mesmos processo e no mesmo julgamento. Não nos competindo verificar eventual fundamento e decidir pela apensação de ações (art.º 267º do Código de Processo Civil), a evidente influência que o resultado da primeira ação pode ter sobre a decisão da segunda, justifica bem a utilização que o tribunal a quo efetuou do mecanismo da suspensão da instância previsto no art.º 272º, nº 1, do Código de Processo Civil, suspendendo a instância nesta ação enquanto não estiver decidida a que foi instaurada em primeiro lugar, “por motivo justificado”.
Não sendo assim, é real o risco da existência de uma incompatibilidade de fundo nas decisões que podem vir a ser proferidas nas duas ações, como aconteceria se na ação nº 18817/19.0T8PRT se demonstrasse a culpa da ali ré na situação de falta de higiene e salubridade da habitação arrendada (3º e 4º andares), conducente à condenação da ré (aqui A.) na realização as obras, e nesta ação fosse a de imputar aquela responsabilidade à R. (ali autora), conducente à resolução do contrato e ao despejo.[10]
Também o não uso do locado pode estar associado a uma causa imputável à R., alegada nesta ação, ou imputável à A. nos termos da ação nº 18817/19.0T8PRT, com efeitos diversos e antagónicos, conforme os casos.
Por conseguinte, justifica-se, de pleno, a suspensão da instância nos presentes autos, nos termos do art.º 272º, nº 1, in fine, do Código de Processo Civil, e não naquela primeira ação, não apenas por se tratar de foi interposta em primeiro lugar, mas por o seu fundamento não justificar a suspensão da instância ao abrigo da legislação relativa às medidas excecionais relacionadas com a Covid 19, dando, assim, garantias de um regular andamento do processo.
Procede a primeira questão da apelação.
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2. Pode ser declarada a suspensão da instância neste momento processual, estando em curso o prazo de suspensão decretado pelo tribunal a 08.05.2020, por força do regime jurídico protecionista dos arrendatários habitacionais em razão da pandemia do Covid-19 e das respetivas normas previstas no art.º 7.°, n.° 11, da Lei nº 1-A/20, de 19/3, na redação dada pela Lei n.° 4-A/20, de 6/4?
Por despacho de 8 de maio de 2020, a 1ª instância decidiu o seguinte:
«Nos termos do art. 7.º, n.º 11, da Lei n.º 1-A/20, de 19/3, na redacção dada pela Lei n.º 4-A/20, de 6/4, “Durante a situação excepcional referida no n.º 1 [situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS -CoV -2 e da doença COVID -19], são suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Assim sendo, tratando-se a presente de uma acção por força do preceituado no aludido dispositivo legal, a presente acção de despejo mostra-se suspensa.
Notifique.»

A Lei nº 16/2020, de 29 de maio, que alterou as medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19, manteve a suspensão das ações de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Esta situação excecional manteve-se com aquela lei, pelo que a instância já está suspensa neste processo. No entanto, trata-se agora de um fundamento de suspensão diferente que se vem juntar àquele. Cessado um manter-se-á o outro, nada nos parecendo obstar à prolação do despacho recorrido, designadamente para efeito do art.º 275º do Código de Processo Civil, pois que não implica a prática de qualquer ato processual que conflitue ou prejudique a suspensão já determinada. É apenas mais um fundamento de suspensão. Cessada uma das causas prossegue a outra pelo respetivo fundamento. Aquela norma a mais não se destina do que ditar a inviabilidade da prática de atos processuais que se seguiriam ao evento suspensivo, ainda assim com várias exceções que aquele normativo também prevê nos nºs 3 e 4, mas também no âmbito da produção antecipada de prova (art.º 420º) e da tutela cautelar (art.º 362º, nº 1, também do Código de Processo Civil).
A associação de um novo fundamento de suspensão do processo em nada contraria --- antes reforça --- a anterior decisão e suspensão.
O tribunal a quo não deixou de referir o prazo da suspensão da instância, ainda que sujeito a termo incerto, necessariamente dependente do momento do trânsito em julgado da decisão final que vier a ser proferida na ação nº 18817/19.0T8PRT (nº 3 do art.º 272º).
A apelação deve improceder.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a decisão impugnada.
Custa da apelação pela apelante, dado o seu decaimento.
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Porto, 5 de novembro de 2020
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Tinha então o corpo do art.º 284º do Código de Processo Civil de 1939 uma redação muito semelhante, quanto a esta matéria, à do atual nº 1 do art.º 272º.
[3] Código de Processo Civil anotado, vol. I, pág. 384.
[4] Comentário, vol. 3º, pág. 269.
[5] Código de Processo Civil anotado, Vol. 1º, Coimbra, 1999, pág. 501.
[6] Acórdão da Relação de Lisboa de 7.4.2005, proc. l09l/2005-8, inwww.dgsi.pt.
[7] Acórdão da Relação de Lisboa de 17.6.2004, pro. 4181/2004-2, inwww.dgsi.pt.
[8] A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Almedina, 2019, anotação ao art.º 272 (pág. 314), citando Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pág.s 268 a 285, e, num exemplo que integra a ação de anulação de deliberação de amortização de quota e o processo especial de inquérito judicial, Relação de Lisboa 12-4-11,1207/10).
[9] Citado código anotado, pág. 315.
[10] Sobre a questão incompatibilidade de fundo, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.2.1993, BMJ 424, pág. 587.