CÚMULO JURÍDICO
PROPORCIONALIDADE
PENAS
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I. O recorrente coloca em causa o cúmulo jurídico.
O arguido, que praticou mais de 25 crimes, já anteriormente condenado por violação, com um historial de 16 infrações disciplinares durante a reclusão, nomeadamente com a punição de internamento em cela disciplinar, insurge-se contra a pena única de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão e 600 (seiscentos) dias e a pena única de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), e pugna por uma pena da ordem dos 7 anos de prisão.
II. Sendo a ilicitude global dos factos elevada, e a culpa, lato sensu, intensa, analisadas as circunstâncias, parecem revelar uma personalidade com certa inconformação e até “hostilidade legal” ou “inimizade pelo Direito” (Rechtsfeindschaft), patente, nomeadamente, em invetiva à autoridade e na inconformação com o ambiente prisional. Um tal quadro revela desafeição do agente face aos valores socialmente aceites e imperantes na sociedade, ilustrada pela pluralidade dos bens jurídicos desrespeitados e violados. Ao mesmo tempo fortemente sugerindo uma perigosidade ou “potencialidade danosa” significativa, naturalmente indutora de profunda intranquilidade social e, portanto, sublinhando exigências de prevenção geral, tal como, concomitantemente, necessidade também de prevenção especial que se tornam muito evidentes quando se vê o arguido em ação, em interação (o que se pode aquilatar, com vívido recorte, em todo o pathos dos relatos das situações criminosas em que o recorrente sucessivamente se envolveu).
III. Dada a gravidade dos factos, a sua pluralidade, a reiteração no delinquir, e o próprio comportamento já depois do encarceramento, alguns aspetos que depõem em favor do recorrente (de índole familiar ou profissional), que foram, aliás, devidamente tidos em causa no Acórdão recorrido (e que agora se não ignoraram nem menosprezaram), não conseguem obnubilar nem atenuar significativamente o peso dos elementos claramente negativos.
IV. Há proporcionalidade e não severidade ou exagero, desajuste, ou desequilíbrio na pena única de 10 anos e 4 meses de prisão e de 600 dias de multa por adequada à culpa e às exigências de prevenção, tanto na componente da prisão como na da multa (sendo que, ainda quanto à primeira, não é critério legal da sua medida a possibilidade do pagamento em prazo mais ou menos breve da segunda).
V. Não há inconstitucionalidades na hermenêutica dos normativos aplicados.
VI. Acorda-se, consequentemente, em manter integralmente o Acórdão recorrido, por estrito cumprimento dos critérios determinados pelo art. 77, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, negando-se provimento ao recurso, e mantendo-se a pena de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão e 600 (seiscentos) dias a pena única de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).

Texto Integral

 

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I

Relatório




1. Por Acórdão proferido em 1.ª Instância pelo Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Central Criminal de … - Juiz …, foi o arguido AA (mais detidamente identificado nos autos, e atualmente preso no Estabelecimento Prisional da … à ordem do processo n.º 1590/04.4…), condenado, ao abrigo do disposto nos artigos 78, n.º 1 e 2 e 77, do Código Penal, em cúmulo jurídico das penas dos processos n.ºs 68/09.4…, 1262/08.0…, 144/05.2…, 177/11.0…, 199/11.0…, 158/07.8…, 1360/08.0…, 260/09.1…, 1590/04.4…, 2443/05.4…, 1253/08.1… e 652/06.8…, na pena única de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão e 600 (seiscentos) dias a pena única de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).


2. Tal condenação resulta do cúmulo jurídico determinado pela prática dos seguintes crimes, conforme a respetiva enunciação, feita no Acórdão do Tribunal a quo, que se transcreve:


1. No processo n.º 68/09.4…, do Juízo Peq. Inst. Criminal …, por decisão transitada em julgado em 22.05.2013, pela prática em 28.03.2009, como autor material, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 03.01, na pena de 90 dias à taxa diária de € 5,00, e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pela Lei n.º 5/2006, de 23.02 na redacção da Lei n.º 17/2009, de 06.5, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de e 5,00.

2. Em CÚMULO JURÍDICO, foi o arguido CONDENADO na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de € 5,00.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo, e em síntese, que:

No dia 28.3.2009, pelas 21h30m, na Av. …, na …, o arguido AA, conduzia um veículo automóvel sem que estivesse legalmente habilitado para o efeito e nessas circunstâncias detinha na sua posse uma arma de fogo, nomeadamente, uma pistola de alarme transformada para funcionar com munições verdadeiras de calibre 6.35 mm.

Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.


*


3. No processo n.º 1262/08.0…, do Juiz 2, Juízo Local Criminal de …, por decisão transitada em julgado em 09.07.2014, pela prática em 03.08.2008, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e um crime de dano, previsto e punível pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

4. Em CÚMULO JURÍDICO, foi o arguido CONDENADO na pena única de 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 03.08.2008, pelas 15h00m, o arguido desferiu um pontapé no veículo automóvel com a matrícula ...-...-CZ, que circulava no cruzamento entre a Rua … e a Rua … na … e era conduzido por BB, causando uma amolgadela na porta traseira, lado direito.

O arguido desferiu ainda um soco na face e uma mordidela na zona do omoplata esquerdo do ofendido.

Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente, querendo amolgar a porta traseira lateral direita do veículo automóvel e ainda atingir o corpo do ofendido.


*


5. No processo n.º 144/05.2…, do Juiz 3, Juízo Local Criminal de …, por decisão transitada em julgado em 10.02.2017, pela prática em 26.03.2005, como autor material, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e um crime de ameaça, previsto e punível pelo artigo 153.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 100 dias de multa e um crime de injúria agravada, previsto e punível pelo artigo 181.º, 184.º e 132.º, n.ºs 1e 2, al. j), do Código Penal, na pena de 60 dias de multa.

6. Em CÚMULO JURÍDICO (crime de ameaça e crime de injúria agravada), e foi o arguido CONDENADO na pena única de 130 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 26.03.2005, pelas 17h00m, em …, …, o arguido na sequência de uma abordagem policial, desferiu um murro no ombro direito da agente da PSP CC.

Ao ser-lhe dada voz de detenção na tentativa de escapar à mesma, desferiu pontapés nas pernas do agente de autoridade DD, provocando-lhe dores.

No interior da esquadra o arguido dirigiu-se à agente CC e disse em crioulo “se eu quiser digo ao meu irmão para te matar, ele sabe onde vives” e dirigiu-lhe ainda a expressão “puta”.

Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.


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7. No processo n.º 177/11.0…, do Juízo Peq. Inst. Criminal de …, por decisão transitada em julgado em 21.03.2011, pela prática em 26.02.2011, como autor material, de um crime de furto, previsto e punível pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

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8. No processo n.º 199/11.0…, do do Juízo Peq. Inst. Criminal de …, por decisão transitada em julgado em 23.02.2012, pela prática em 04.03.2011, como autor material, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão substituída por 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00 e um crime de injúria agravada, previsto e punível pelo artigo 181.º, 184.º e 132.º, n.ºs 1e 2, al. j), do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa de € 5,00.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 04.03.2011, pelas 11h30m, na …, …, o arguido dirigiu-se ao agente da PSP EE dirigiu as expressões “Se tirares a farda vais ver parto-te todo”, “não dou identificação nenhuma à bófia se quiseres tens de me prendeu bófia de merda, tira a farda que depois conversamos, eu fui preso mas tu não me vais prender.”

O arguido desferiu um empurrão atingindo o referido agente policial.

Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.


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9. No processo n.º 158/07.8…, da 2.ª Vara Criminal de …, por decisão transitada em julgado em 20.03.2012, pela prática em 08.10.2007, como autor material, de um crime de sequestro, previsto e punível pelo artigo 158.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, um crime de violação na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º e 164, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão e um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão.

Em CÚMULO JURÍDICO foi o arguido CONDENADO na pena única de 5 anos de prisão.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 08.10.2007, pelas 17h00m, na Estação da Código Penal na …, o arguido obrigou a ofendida FF a entrar no comboio até à estação da Código Penal de …, tendo-lhe desferido bofetadas, batido com a cabeça contra a parede, e ainda com o uso de um canivete que apontava à ofendida dizendo que a matava que tentasse fugir.

Desde a estação de … até ao quarto que o arguido ocupava na …, e para onde o arguido a obrigou também a entrar contra a vontade da ofendida, o arguido puxava-lhe os cabelos e agredi-a com pancadas na cara, tentou beijá-la na boca, o que a ofendida recusou, tendo o arguido dado uma dentada no lábio arrancando-lhe um pedaço de carne, conduziu-a ao quarto e fechou-a, impedindo-a de sair e de contactar com terceiros, aí se mantendo até por volta das 23h30mm quando a PSP entrou na habitação.

Durante aquele período de tempo, o arguido disse à ofendida que nunca mais ia sair dali, dando a entender que a matava ou ali iria permanecer até que o arguido quisesse. E desferiu-lhe bofetadas na cara e murros em várias partes do corpo.

O arguido rasgou as roupas que a ofendida trazia vestida, deixando-a nua, pela força, deitou-a na cama pela força, amarrou os pulsos da ofendida à cama, despiu-se e contra a vontade da ofendida pôs-se em cima dela para, com ela, manter relações sexuais, não tendo concretizado os seus intentos por ter sido surpreendido pela PSP.

Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.


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10. No processo n.º 1360/08.0…, do 5.º Juízo Crim. …, 3.ª secção, por decisão transitada em julgado em 21.01.2013, pela prática em 30.11.2008, como autor material, de dois crimes de ameaça, previstos e puníveis pelos artigos 153, n.º 1 e 155.º, n.º 1, als. a) e c), do Código Penal, na pena de 90 dias de multa e 90 dias de multa, por cada um dos crimes de ameaça, à taxa diária de € 5,00.

Em CÚMULO JURÍDICO foi o arguido CONDENADO na pena única de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 30.11.2008, pelas 15h30m, na loja … sita na Rua …, na …, o arguido foi conduzido à esquadra policial da Reboleira, e aí o arguido dirigiu-se aos agentes da PSP GG e HH, e disse-lhes “Não me esqueço da vossa cara. Isto não fica assim. Só vou descansar quando vos vir esticados”.

Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.


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11. No processo n.º 260/09.1…, do Juiz 3, do Juízo Média Inst. Crim. de …, por decisão transitada em julgado em 20.02.2013, pela prática em 04.05.2009, como autor material, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º 2, do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 6 meses de prisão, um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na pena de 6 meses de prisão, um crime de evasão, previsto e punível pelo artigo 352º, n.º 1, do Código Penal, na pena de na pena de 6 meses de prisão.

12. Em CÚMULO JURÍDICO foi o arguido CONDENADO na pena única de 12 meses de prisão suspensa na sua execução por um ano.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 04.05.2009, pelas 17h00m, o arguido conduzia o veículo automóvel com a matricula ...-...-CM, na Rua …, na …, sem que para o efeito tivesse carta de condução.

O arguido escondia ainda no bolso das calças que envergava uma navalha com lâmina de 13 cm de comprimento.

O arguido havia sido notificado pelo SEF para abandonar o território nacional até 27.04.2009.

O arguido foi transportado à esquadra policial mas cerca das 18h45m fugiu para parte incerta.

Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.


*


13. No processo n.º 1590/04.4P…, do Juiz …, Juízo Grande Inst. Crim. de …, por decisão transitada em julgado em 22.05.2013, pela prática em 04.08.2004, como autor material, de um crime de sequestro, previsto e punível pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão.

14. Em CÚMULO JURÍDICO foi o arguido CONDENADO na pena única de 2 anos de prisão.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 04.08.2004, na Rua …, lote …, 3º Esq., em …, …, o arguido trancou num quarto da referida residência II pedindo-lhe que mantivesse com ele relações sexuais, tendo-lhe despido as calças, mas parando após, por II se ter negado a fazê-lo.

Após II se ter recusado, o arguido pegou num cinto com o qual bateu em várias partes do corpo daquela, tendo-lhe ainda dado pelo menos a dentada no peito e puxado o postiço que esta trazia acoplado ao seu cabelo natural, arrancando parte dele.

II permaneceu no interior do apartamento do arguido até cerca das 19h50/20h00, altura em que a autoridade policial a libertou.

Em consequência das agressões perpetradas pelo arguido, II sofreu traumatismo do braço esquerdo com escoriações até ao hemi-tórax esquerdo, com hematoma e escoriação na coxa esquerda que determinaram 10 dias de doença com 3 de incapacidade para o trabalho.

Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.

15. Este processo n.º 1590/04.4… veio a proceder ao cúmulo jurídico de penas, englobando para além das penas em que foi condenado nesse processo, as penas dos processos n.ºs 652/06.8…, do extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial de …, 158/07.8…, da 2.ª Vara Criminal de …, 1360/08.0…, do 5.º Juízo Crim. …, 3.ª secção, 68/09.4…, do Juízo Peq. Inst. Criminal da …, 260/09.1…, do Juiz 3, do Juízo Média Inst. Crim. de …, 177/11.0…, do Juízo Peq. Inst. Criminal de … e 199/11.0…, do Juízo Peq. Inst. Criminal de …, com trânsito em julgado em 22.05.2013 e decisão proferida em 22.04.2013, tendo o arguido sido condenado em CÚMULO JURÍDICO na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão e 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00.


*


16. No processo n.º 2443/05.4…, da secção de recuperação de pendências de …, por decisão transitada em julgado em 26.09.2013, pela prática em 12.12.2005, como autor material, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punível pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos

143.º, n.º 1, 146.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. h), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão.

17. Em CÚMULO JURÍDICO foi o arguido CONDENADO na pena única de 3 anos de prisão.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 12.12.2005, cerca das 18h00m, na Rua …, na …, …, o arguido dirigiu-se a JJ e desferiu-lhe um empurrão, após o arguido retirou uma navalha do interior de um dos bolsos das calças que trajava e desferiu golpes, no braço e no ombro esquerdos de JJ.

JJ encetou fuga apeado procurando ajuda de soldados da GNR KK e LL, tendo sido perseguido pelo arguido.

O soldado KK ordenou ao arguido que atirasse a navalha para solo tendo este obedecido.

O arguido dirigiu aos soldados as palavras “Mato-vos a todos os que se aproximarem de mim, bófias do caralho”.

O arguido foi detido e continuou a dirigir aos soldados da GNR “Eu mato-vos a todos, apanho um a um e fodo-vos quando estiverem de patrulha na estação… eu mato-vos a todos, apanho um a um e fodo-vos”.

O arguido pretendia condicionar e impedir os soldados da GNR de praticar tarefas funcionais.

Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido de forma livre, voluntária e consciente.


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18. No processo n.º 1253/08.1…, Juiz …, JL Criminal de …, por decisão transitada em julgado em 30.05.2018, pela prática em 03.08.2008, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a) e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, na pena de

2 anos de prisão, um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a) e 132.º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão.

19. Em CÚMULO JURÍDICO foi o arguido CONDENADO na pena única de 3 anos de prisão.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 3 de Agosto de 2008, pelas 13h40m, na Rua …, na …, o arguido e MM, envolveram-se em confrontos verbais e físicos, por motivos relacionados com o trânsito e a passagem do primeiro numa passadeira, quando o segundo por ali passava de carro.

Devido aos confrontos acorreram ao local NN e OO, agentes da Polícia Municipal que ali se encontravam devidamente uniformizados e no exercício das duas funções, os quais procuraram por termo à contenda.

Chegados junto do arguido, o agente OO devidamente uniformizado procurou separá-lo de BB e, assim, pôr termo à contenda.

O arguido de imediato soltou-se do referido agente e desferiu-lhe diversos pontapés, atingindo-o no peito.

Acto continuo, o agente NN aproximou-se a fim de procurar imobilizar o arguido e de pôr termo às agressões de que estava a ser vítima o seu colega, momento em que o arguido o empurrou provocando a sua queda ao solo.

Nessa ocasião, o arguido agarrou o agente NN e deu-lhe uma dentada na zona da omoplata direita, mantendo-o agarrado.

Perante a postura do arguido, e a fim de libertar o agente NN, OO, desferiu-lhe com o cassetete bastonadas nas pernas, após o que conseguiram projectá-lo ao solo.

Uma vez, o arguido conseguiu soltar as mãos e pés desferir socos e pontapés no agente OO, atingindo-o em diversas partes do corpo.

O arguido só cessou com a sua actuação quando os agentes fazendo uso dos cassetetes lhe desfeririam com os mesmos pancadas no corpo.

Em consequência da actuação do arguido sofreu o agente OO as lesões que se traduziram num traumatismo toráco-abdominal, num traumatismo do joelho direito, num traumatismo da região gemelar da perna direita, numa escoriação e hematoma da região do último arco costal esquerdo, com zona eritematosa e eritema na região gemelar do joelho direito, que lhe demandaram um período de doença de 5 dias, dois deles com afectação da capacidade para o trabalho.

Como consequência directa da actuação do arguido, sofreu o agente NN, as lesões que se traduziram em escoriações nos cotovelos e mordedura na região da omoplata direita, que lhe demandaram um período de doença de 5 dias, dois dos quais com afectação para a capacidade de trabalho profissional.

Agiu o arguido com o propósito, concretizado, de molestar e atingir na sua integridade física os agentes OO e NN e de os impedir de praticar ato legítimo compreendido nas suas funções.

Os agentes da Polícia Municipal deslocaram-se ao local no exercício das suas funções de agentes de autoridade e procediam a um acto compreendido no exercício das suas funções, sabia o arguido que os agentes da Polícia Municipal estavam no exercício das suas funções policiais, tanto mais que se identificaram e que envergavam uniforme apropriado.

O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas penalmente puníveis.


*


20. No processo n.º 652/06.8…, do extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial de …, por decisão transitada em julgado em 16.03.2012, pela prática em 05.10.2006, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelos artigos 148.º, do Código Penal, na pena de 40 dias de multa à taxa diária de € 3,50, um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 3,50, um crime de injúria agravada, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1 e 184.º do Código Penal, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €3,50.

21. Em CÚMULO JURÍDICO foi o arguido CONDENADO na pena única de 130 dias de multa, à razão diária de €3,50.

Deu-se nomeadamente como provado neste processo e, em síntese, que:

No dia 05.10.2006, pelas 16h, o arguido encontrava-se no exterior do estabelecimento comercial …, na Rua …, em …, militares da GNR abeiraram-se do arguido e abordaram-nos por este se encontrar a cambalear, dando indícios de embriaguez.

Já depois de ter sido abordado, o arguido dirigiu-se ao militar da GNR PP, e aos gritos chamou-lhe “Filho da puta do caralho”.

Este militar comunicou ao arguido que estava detido pela prática de um crime de injúria.

De imediato o arguido preparava-se para fugir quando foi agarrado pelos militares.

Apesar disso, o arguido deu safanões aos guardas PP e QQ, a fim de se libertar, atingindo com o pé o tornozelo direito do primeiro militar, causando-lhe dores.

Durante o trajecto até ao Posto da GNR de …, o arguido dirigiu-se ao militar PP e disse-lhe “Filho da puta, vou-te matar”.

O arguido sabia que estava perante um militar da GNR em exercício de funções e quis proferir as palavras referidas com o propósito concretizado de atingir a honra e consideração e igualmente quis e conseguiu anunciar ao referido militar um mal futuro, de forma adequada a provocar-lhe medo, e ainda previu ofender o corpo e a saúde dos militares ao dar safanões.

O arguido actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo proibida por lei e criminalmente punida a sua conduta.”

 

O mesmo Acórdão imediatamente deixa registado ainda que:


“22. Consta ainda do Certificado de Registo Criminal do arguido que o mesmo foi julgado e condenado no seguinte processo: a) uma condenação em 31.10.2012, transitada em julgado em 24.01.2013, pela prática em 05.11.2011 de um crime de violação, previsto e punível pelo artigo 164.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 6 anos de prisão (processo n.º 492/11.2…, do Juízo Grande Instância Criminal de … .”


3. Inconformado, o arguido interpôs recurso per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, alegando o disposto nos artigos 399, 400 (a contrario), 401 n.º 1 alínea b) e 432 n.º 1 alínea c), todos do CPP, e os trâmites do artigo 379, n.º 3 do mesmo diploma legal.


4. Nas suas Conclusões, o arguido considerou:


“1.º

Consideramos a pena aplicada ao arguido neste cumulo exagerada, desajustada e, desequilibrada, por outro lado consideramos ainda a decisão recorrida ao outorgar tal pena não levou sequer em conta o teor da decisão proferida por este Douto Supremo Tribunal de Justiça de 01/07/2015 no âmbito dos presentes autos;

2.º

Na verdade se por um lado estamos perante um concurso de crimes que integra um número elevado de ilícitos, por outro estamos perante pequena criminalidade (conforme artigo 1 do Código Processo Penal), pois cada pena singular foi sempre igual ou inferior a 3 anos e, imprimindo assim um menor impacto da respetiva global da ilicitude (conforme acórdão STJ de 2011 identificado na motivação);

3.º

Tal leva a que a pena conjunta a aplicar neste cúmulo não possa ultrapassar ou igualar o valor daquela que seria aplicável ao somatório de crimes de media ou grande criminalidade, ainda que muito menos numerosos que o número de crimes do caso vertente (conforme acórdão do TRL de 27/06/2012 referido na motivação), sob pena de tal punição se tornar desproporcional em relação às infrações (conforme acórdão do STJ de 01/07/2015), o que desde logo violaria o disposto no artigo 49.º numero 3 da Carta Direitos Fundamentais da União Europeia (aplicável ex vi do artigo 16.º da Constituição da Republica Portuguesa);

4.º

Assim, a pena aplicada ao arguido é exagerada, porque excede em muito a necessidade da culpa, já que esta, por um lado, não reflete o devido valor do caracter puramente instrumental dos crimes instrumento, quando cometidos unicamente para lograr a consumação dos crimes fim e, o menor impacto que tal instrumentalidade imprime na perspetiva global da ilicitude, pelo que, sente sentido consideramos que o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 40.º numero 2 e, 71.º numero 2 ambos do Código Penal, o que desde já referimos para termos e efeitos d disposto no artigo 412.º numero 2 alíneas a) e b) do código Processo Penal;

5.º

Por outro lado na escolha da medida da pena aplicada ao arguido o Tribunal deveria ter considerado as exigências de prevenção proporcionais e adequadas à natureza, gravidade e, dimensão dos crimes cometidos (conforme artigo 71.º números 1 e 2 do Código Processo Penal) e, dos valores das penas aplicadas aos crimes (conforme artigo 1.º do código Processo Penal), à luz dessas exigências deveria ter optado por uma pena única de medida proporcional ao tipo de criminalidade em apreço (conforme artigo 77.º números 1 e 2 do Código Penal, artigo 49.º numero 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, o teor dos acórdãos do TRL de 27/06/2016, e desde Douto STJ de 01/07/2015, este ultimo no âmbito desde processo), o que não ocorreu;

6.º

Em face do disposto consideramos que o Tribunal recorrido violou também o disposto nos artigos 71.º números 1 e 2 e, 77.º números 1 e 2 ambos do Código Penal, quando aplicados conjuntamente com o disposto nos artigo 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (ex vi do artigo 16.º da Constituição da Republica Portuguesa), o que desde já se refere para termos e efeitos do disposto no artigo 412.º numero 2 alíneas a) e b) do Código Processo Penal.

7.º

A pena é desajustada, porque nos termos do artigo 40.º numero 1 do Código Penal, a finalidade desta é a proteção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, pelo que, neste termos, o pagamento dos valores aos quais foi condenado, princípio da reparação dos danos respeita a teleologia do sistema e é uma forma (retrospetiva) de proteção dos bens jurídicos;

8.º

Assim, atendendo-se ao supra exposto, a pena concreta aplicada ao arguido deveria ter sido ponderada de forma a ter em conta por um lado, os crimes por este praticados, a sua gravidade e, o desvalor dessas condutas; e, por outro, reinserção do mesmo na sociedade, bem como as condenações do arguido ao pagamento de multa, e a possibilidade real deste o poder fazer dentro de um prazo razoável (conforme artigo 6.º numero 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ex vi do artigo 16.º da Constituição da Republica Portuguesa), que permita à própria sociedade em geral concluir que foi feita justiça.

9.º

Neste sentido questionamos sobre até que ponto é uma pena de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva por crimes (cuja pena concreta mais grave não ultrapassa os três anos de prisão),que o condenado terá que cumprir e que só o colocará seguramente em liberdade condicional apenas aos 5/6 da mesma, será mais ajustada às necessidades de prevenção, ressocialização e a reintegração tempestiva do arguido á sociedade com vista à possibilidade real de poder dar cumprimento integral às decisões em que também foi condenado dentro de um prazo razoável para os ofendidos (conforme artigo 40.º numero 1 do Código Penal);

10.º

Face ao exposto, consideramos que o Tribunal recorrido ao aplicar a pena de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva ao arguido também violou o disposto no artigo 40.º número 1 do Código Penal, o que desde já se refere para termos e efeitos do disposto do artigo 412.º numero 2, alíneas a) e b) do Código Processo Penal;

11.º

A pena é desequilibrada porque esta deveria ter tido em conta que todos os crimes em que o arguido foi condenado e integram este cúmulo tem penas “baixas”, dos cinco processos que tem penas efetivas de prisão apenas duas das penas parcelares são de 3 (três) anos, todas as outras são mais baixas sendo quatro delas de 6 (seis) meses penas,

12.º

Neste sentido, entendemos que os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade (na atribuição da pena) e que á luz do teor do Douto Acórdão supra referido do Supremo Tribunal de Justiça, tal pena deveria ter sido calculada de forma a situar-se próxima de 1/3 da moldura do cúmulo jurídico, o que no caso concreto do recorrente seria igual ou ligeiramente superior a 7 anos de prisão

13.º

Neste sentido podemos afirmar que a pena de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão aplicada ao recorrente é desproporcional, violando o disposto no artigo 49.º numero 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (ex vi do artigo 16.º da Constituição da Republica Portuguesa), bem como os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, consagrados no artigo 13.º da Constituição da Republica Portuguesa;

15.º

Nesse sentido, é do nosso entendimento que o Tribunal recorrido violou os artigos 71.º, 77.º e, 78 todos do Código Penal, pela sua interpretação supra exposta e tornou o seu conteúdo inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade consagrados no artigo 13.º da Constituição da republica Portuguesa e artigo 49.º numero 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (ex vi artigo 16.º da Constituição da republica Portuguesa) o que desde já se refere para os termos e os efeitos do disposto no artigo 412.º numero 2 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal;

16.º

Assim, em face de tudo aquilo por nós já exposto, se ponderarmos de forma conjunta os todos os fatores supra expostos, a ressocialização a reintegração do arguido na sociedade e o acompanhamento dos filhos, fazendo uma vida pautada pelo respeito á lei, e a necessidade do Estado ser ressarcidos num prazo razoável (conforme artigo 6.º numero 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, (conforme artigo 1.º do Código Processo Penal) e a necessidade de pena aplicada ao mesmo, dever ser adequada e proporcional a esse tipo de criminalidade, os dados pessoais constantes do relatório social do recorrente; temos que concluir que o valor da pena única possível de se aplicar ao recorrente deverá ser ajustado e equilibrado á luz critérios supra expostos;

17.º

O que equivale a afirmar que a pena única do recorrente deverá situar-se em cerca de 1/3 da moldura penal do cúmulo jurídico, ou seja, perto dos 7 (sete) anos de prisão efetiva, sob pena de se criar um desequilíbrio entre a medida da punição, as finalidades e, as espectativas da sociedade em geral, quanto á finalidade das mesmas;

18.º

É neste sentido a interpretação que deverão ser aplicadas as normas constantes dos artigos 40.º numero 1 e 2, 71.º, 77.º números 1 e 2 e, 78.º números 1 e 2 todos do Código Penal, por respeito ao disposto do artigo 1.º do Código Processo Penal e de harmonia com o disposto no artigo 13.º da Constituição da Republica Portuguesa, artigo 49 da Carta dos Direito Fundamentais da União Europeia e, artigo 6.º numero 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (ex vi do artigo 16.º da Constituição da Republica Portuguesa), o que desde já aqui se refere para os termos e efeitos do artigo 412 numero 2 alíneas a) e b) do Código Processo Penal;

19.º

Sendo certo que apesar de o arguido já ter sido condenado em outro cúmulo, que está inserido nesta condenação, a pena desse cúmulo, não pode ter qualquer efeito bloqueador na fixação de uma nova pena conjunta pois tal teria que resultar expressamente da lei, o que não acontece;

20.º

Não se verifica qualquer caso julgado das anteriores penas conjuntas, pois agora o Douto Tribunal é chamado a fazer uma nova valoração dos factos e da personalidade do agente, podendo concluir por aplicar uma pena conjunta inferior a qualquer uma das penas que foram anteriormente aplicadas, desde que superior á pena parcelar mais grave, o referido efeito bloqueador só poderia ser fixado pelo legislador, não podendo ser estabelecido pelo interprete (neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, obra identificada na motivação).


Nestes termos e nos demais de direito deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida conforme ao direito e na qual a pena única aplicada ao recorrente posse ser correta, justa e equilibrada com os factos e crimes por si cometidos, o que no caso concreto, consideramos que corresponderia a uma pena de 7 anos de prisão efetiva.”


5. A resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal a quo, finalizou com as seguintes Conclusões:


1) - Nenhuma censura nos merece a medida concreta da pena única a que o recorrente foi condenado.

2) - Com efeito, e tendo em conta os critérios estabelecidos no art. 77º , nº 1 e 2 do C.Penal – os factos e a personalidade do arguido – afigura-se-nos ser justa e adequada a pena única de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão aplicada pelas Mmas. Juízas a quo.

Somos, pois, de parecer que o douto acórdão recorrido deverá ser mantido, negando-se provimento ao recurso.


6. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto igualmente se pronunciou no sentido da improcedência do recurso, subscrevendo e sublinhando a justeza das observações da argumentação do Ministério Público na 1.ª Instância, nomeadamente considerando:


“Em peça de qualidade, a Senhora Procuradora da República na 1ª instância contramotivou o recurso, explicitando proficientemente, com o apoio nos factos provados e nas disposições legais aplicáveis – as dos art.os 40º, 71º e 77º do CP, no mais importante –, a falta de razão do recorrente e a correcção das operações de determinação e cálculo da medida da pena única a que o Acórdão Recorrido procedeu.

E não deixou de anotar, com toda a pertinência face às críticas do recorrente, que, (bem) diversamente do por ele alegado, a ilicitude global dos factos é elevada; que a culpa, lato sensu, é intensa; que as exigências de prevenção geral são acentuadas em razão da pluralidade dos bens jurídicos atingidos e da «potencialidade danosa dos comportamentos praticados», tudo a provocar fortes sentimentos de intranquilidade social; e que as exigências de prevenção especial são bem significativas que, além das 27 condenações cumuladas, o arguido conta ainda com uma outra em 6 anos de prisão por crime de violação – tudo, assim, a denotar tendência criminosa que não mera (pluri)ocasionalidade –, e que, em meio prisional vem adoptando comportamento reiteradamente desconforme às regras disciplinares, nada prognosticando caminho fácil de reaproximação ao respeito pelos valores tutelados pelo direito penal.

Por tudo o que opinou pela confirmação do julgado, entendendo que a pena única de 10 anos e 4 meses de prisão e de 600 dias de multa se mostrava adequada à culpa e às exigências de prevenção, tanto na componente da prisão como na da multa, sendo que, ainda quanto à primeira, não constituía critério legal da sua medida a possibilidade do pagamento em prazo mais ou menos breve da segunda.”


7. Foi cumprido o art. 417, n.º 2, não tendo havido qualquer resposta.


8. O Acórdão recorrido contém os seguintes fundamentos “fáctico-conclusivos e jurídicos”, donde resulta o cúmulo jurídico já referido (ponto 1).


            “Nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º 1, do Código Penal se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo 77.º do mesmo diploma legal, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. Em caso de conhecimento de concurso criminoso a unificação das respetivas penas pressupõe que os crimes de que agora se tem conhecimento tenham sido praticados antes da condenação anteriormente proferida, ou seja, para a verificação de uma situação de concurso de infrações a punir por uma única pena exige-se que todas as infrações hajam sido cometidas antes de ter transitado em julgado.

Em sede de conhecimento superveniente do concurso (referido artigo 78.° do Código Penal) só relevam, os crimes que tenham sido cometidos antes de transitar em julgado a condenação por qualquer um deles, de onde resulta que, o momento decisivo para a verificação da ocorrência de um concurso de crimes a sujeitar a uma pena única é o trânsito em julgado da condenação: todos os crimes praticados antes daquele trânsito (considerando-se aqui sempre o primeiro trânsito na sucessão das condenações sofridas) devem ser objecto de cúmulo jurídico, deste não devendo, contudo, fazer parte, crimes cuja condenação transitou em julgado em data anterior à prática de outros crimes, pois verifica-se ser esse um caso de sucessão de crimes e não de concurso de crimes.

Os crimes por que o arguido foi condenado e referidos na factualidade provada em 1. a 21., estão entre si numa relação de concurso, de acordo com a respectiva definição, que nos é dada pelo artigo 77.°, n.° 1 do Código Penal, segundo a qual "quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena".

É o que sucede com esses crimes, que tiveram lugar antes de 21.03.2011, data do primeiro trânsito em julgado da condenação por algum deles, concretamente no Processo n.º 177/11.0… .

O trânsito em julgado da sentença condenatória do processo n.º 177/11.0…, demarca a barreira a partir da qual os novos crimes não podem ser tidos numa relação de concurso com os anteriormente cometidos, devendo ser punidos de forma autónoma, em cumprimento sucessivo das respectivas penas.

Com efeito, o momento decisivo para a verificação da ocorrência de um concurso de crimes e a sujeição a uma pena única constitui o trânsito em julgado da condenação. Ou seja, o objecto do cúmulo jurídico deve ser somente as penas aplicadas a crimes praticados antes do trânsito em julgado de qualquer das respectivas decisões condenatórias.

Ao cometer crimes após o trânsito em julgado da decisão, o agente revela desrespeito pela solene advertência que a decisão constitui, pelo que, os novos crimes não podem ser tidos em conta numa relação de concurso com os anteriormente cometidos e já julgados na decisão transitada em julgado, devendo ser punidos de forma autónoma, em cumprimento sucessivo das respectivas penas, conforme também vem sendo o entendimento, segundo cremos actualmente uniforme, do nosso mais alto Tribunal, afastando a orientação do chamado "cúmulo por arrastamento".

Assim, após essa designada "barreira", constituída pelo trânsito em julgado da sentença do processo mencionado no ponto 1. (177/11….), encontra-se o crime do processo indicado no ponto 22. (492/11.2…), cuja pena de 6 anos de prisão o arguido cumprirá sucessivamente à pena única resultante do cúmulo jurídico das demais penas.

A primeira decisão transitada em julgado constitui o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando-os em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objecto de unificação, ficando, a partir desta barreira, afastada a unificação, formando-se outras penas autónomas, de execução sucessiva, as quais podem estar, por sua vez, entre si, numa ou em várias relações de concurso, havendo então que unificá-las numa ou em várias penas únicas, de cumprimento sucessivo, sempre com referência à primeira das condenações que tiver transitado em julgado e aos factos antes da mesma praticados, conforme, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-11-2008, proferido no Processo n.º 08P3175, in www.dgsi.pt/jstj).

Ora, constata-se que, efectivamente, a pena sofrida no âmbito do processo n.º 1253/08.1… se encontra numa situação de concurso com as penas sofridas no domínio dos processos n.ºs 68/09.4PAAMD, 1262/08.0…, 144/05.2…, 177/11.0…, 199/11.0…, 158/07.8…, 1360/08.0…, 260/09.1…, 1590/04.4…, 2443/05.4… e 652/06.8…, pois que, os factos do citado primeiro processo ocorreram no dia 03.08.2008 e as decisões nestes processos transitaram em julgado, respectivamente, a 22.05.2013, 09.07.2014, 10.02.2017, 21.03.2011, 23.02.2012, 20.03.2012, 21.01.2013, 20.02.2013, 22.05.2013, 26.09.2013, 16.03.2012, sendo a condenação proferida no processo (1253/08.1…), a última condenação, com decisão proferida a 27.04.2018 (transitada em julgado a 30.05.2018) e naqueles outros autos foram as decisões proferidas, respectivamente, em 16.11.2009, 03.02.2011, 02.12.2009, 28.02.2011, 21.10.2011, 29.02.2012, 19.04.2010, 31.01.20103, 04.08.2008, 11.07.2013, 25.06.2007.

Desta feita irá ser operado cúmulo das penas sofridas nos referidos processos, ao abrigo do disposto no artigo 78.º, do Código Penal, impondo-se assim, condenar o arguido numa pena única, sendo de excluir do concurso a condenação no âmbito do processo n.º 492/11.2…, uma vez que não se encontra em concurso com as acima referidas penas.

Devendo ainda ser desfeitos os cúmulos já efectuados.”.


9. E considera o Acórdão recorrido sobre a determinação da medida concreta da pena:

“A pena única terá em conta a globalidade dos factos praticados, a personalidade do arguido, o período temporal em que os factos em concurso foram praticados e tipo e/ou a diferente ou mesma natureza dos crimes e as exigências de prevenção especial e geral que serviram de base à aplicação das respectivas penas parcelares agora em apreciação.

Quanto à moldura legal da pena única resultante do cúmulo, em face do preceituado no artigo 77.º, n.º 2, aplicável ex vi artigo 78.º, n.º 1 do Código Penal, situar-se-á entre a soma das penas parcelares concretamente aplicadas (não podendo ultrapassar os 25 anos de prisão) – limite máximo – e a pena mais elevada das penas parcelares concretamente aplicadas – limite mínimo (conforme artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal), pelo que in casu, a pena a aplicar ao arguido se situa entre:

Importa considerar as penas parcelares de:

1. No processo n.º 68/09.4… as penas de:

- 90 dias de multa

- 100 dias de multa

2. No processo n.º 1262/08.0… as penas de:

- 120 dias de multa

- 80 dias de multa

3. No processo n.º 144/05.2… as penas de:

- 5 meses de prisão.

- 100 dias de multa

- 60 dias de multa

4. No processo n.º 177/11.0… a pena de:

- 200 dias de multa

5. No processo n.º 199/11.0… as penas de:

- 4 meses de prisão.

- 100 dias de multa

6. No processo n.º 158/07.8… as penas de:

- 3 anos de prisão

- 2 anos e 6 meses de prisão

- 2 anos de prisão

7. No processo n.º 1360/08.0… as penas de:

- 90 dias de multa

- 90 dias de multa

8. No processo n.º 260/09.1… as penas de:

- 6 meses de prisão

- 6 meses de prisão

- 6 meses de prisão

9. No processo n.º 1590/04.4… as penas de:

- 1 ano e 6 meses de prisão

- 1 ano de prisão

10. No processo n.º 2443/05.4… as penas de:

- 6 meses de prisão

- 3 anos de prisão

11. No processo n.º 1253/08.1… as penas de:

- 2 anos de prisão

- 2 anos de prisão

12. No processo n.º 652/06.8… as penas de:

- 40 dias de multa

- 90 dias de multa

- 70 dias de multa

Assim, a pena de prisão terá o seu limite mínimo: 3 (três) anos de prisão e o seu limite máximo: em 19 (dezanove) anos e 9 (nove) meses de prisão.

A pena parcelar de multa mais elevada é de 200 dias, perfazendo a soma das penas de multa 1230 dias, pelo que a moldura abstracta da pena de multa situa-se entre os de 200 e os 900 dias.

Na medida concreta da pena única resultante da aplicação das regras do concurso de crimes deverá o Tribunal ter em conta os factos e a personalidade do arguido, bem como os fins de prevenção quer geral, quer especial.

Desta feita, importa ter em consideração as circunstâncias que militam desfavorável e favoravelmente, quanto às primeiras:

- A actuação sempre dolosa, na sua forma mais intensa (dolo directo);

- A elevada ilicitude adveniente da reiteração do comportamento;

- As condenações sofridas, denotando, por essa via, o arguido uma persistente conduta delituosa, reveladora de não interiorização do desvalor da conduta e de uma personalidade desconforme aos valores penais vigentes, à Lei e ao Direito;

- A intensidade da ilicitude da prática criminosa é elevada, considerando a potencialidade danosa dos comportamentos praticados;

Quanto às segundas:

- A estruturação familiar e possuir hábitos de trabalho regular.

Sem condescender que, as exigências de prevenção geral se revelam particularmente elevadas, dado o alarme social que os crimes sub judice provocam no sentimento de segurança no seio da comunidade jurídica e do tecido social envolvente.

Assim sendo e tudo ponderado, julga este Tribunal Colectivo adequada, justa e consentânea com os fins das penas e do instituto do cúmulo jurídico, a pena única ser fixada em 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão.

Quanto às penas de multa, acrescendo uma pena de 40 dias, 90 dias e 70 dias, não sobrevindo alteração significativa dos pressupostos em que assentou a fixação da anterior pena única, tem-se por adequado acrescer 90 dias àquela, fixando-se em 600 dias a pena única de multa, à mesma quantia diária, de 5,00 € (cinco euros).


*


No cumprimento da(s) pena(s) única(s) ora imposta(s) serão descontados todos os períodos de detenção ou prisão sofridos pelo Arguido à ordem dos processos cujas penas foram englobadas neste cúmulo jurídico.”


Não tendo sido requerida a audiência, o processo prosseguiu por julgamento em conferência (arts. 411, n.º 5 e 419, n.º 3, alínea c), ambos do CPP).


Tendo-se prescindido de Vistos dada a situação pandémica em curso, e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.



II

Fundamentação



1. Bem se sabe que, sem embargo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).


2. Nas Conclusões apresentadas, a única questão colocada é a da medida da pena única, que se pretende ver diminuída, com vários argumentos (que veremos infra), para 7 anos de prisão efetiva, correspondente a cerca de 1/3 da moldura penal do cúmulo jurídico.


3. O presente recurso é apenas de jure, da competência deste Supremo Tribunal de Justiça, nada obstando ao seu conhecimento, interposto com legitimidade e interesse do recorrente. É recurso per saltum e com efeito suspensivo e regime de subida imediata e nos próprios autos.


4. Não se vislumbram, além do mais, na decisão de facto quaisquer vícios ou nulidades relevantes no caso (art. 410, n.º 2 e n.º 3 do CPP). Dando-se assim os factos com estabelecidos.


5. Ao colocar em crise a pena única resultante do cúmulo jurídico efetuado, o recorrente essencialmente pretende sustentar que seria exagerada, desajustada e desequilibrada.

Seria exagerada por alegadamente exceder, e em muito, o que se considera ser a real medida da culpa, pelo que o Acórdão recorrido teria violado, do ponto de vista do recurso, o disposto nos artigos 40, n.º 2 e 71, n.º 2, do Código Penal.

Seria ainda desajustada e desproporcional porque alegadamente não teria tido em consideração a verdadeira gravidade e a dimensão efetiva do desvalor dos crimes (que são minimizados), por um lado, e, por outro, não teria tido em consideração a pretendida reinserção do arguido na sociedade, bem como as condenações no pagamento de multa e a possibilidade real deste o poder fazer dentro de um prazo razoável, pelo que o Acórdão recorrido teria violado o disposto nos artigos 40, n.º 1, 71, 77, n.os. 1 e 2 e 78, n.os 1 e 2, todos do Código Penal.

Mais alega que a interpretação dos referidos artigos feita pelo Tribunal a quo seria inconstitucional, por alegadamente violar o disposto no artigo 49, n.º 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (ex vi artigo 16.º da Constituição da República Portuguesa), assim como os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, consagrados no artigo 13.º da referida carta magna.

Concluindo, como se referiu já, requerendo a aplicação de uma pena de prisão da ordem dos 7 (sete) anos de prisão.


6. Além de as operações de determinação e cálculo da medida da pena no Acórdão recorrido serem irrepreensíveis (e crê-se ser fulcral, em tal tarefa, não cair em ardis meramente aritméticos - v. Ac. STJ de 20/3/2014, Proc. 273/07.8PCGDM.S1, Relator: Conselheiro Santos Cabral), é vultuosa a culpa do arguido, que não se pode considerar um delinquente ocasional e meramente de pequenas infrações. Já o número das aqui cumuladas poderia ter a virtualidade, por si só, de transformar qualitativamente o panorama das quantitativamente múltiplas infrações, porquanto não é, não pode ser epifenoménico ou fortuito delinquir (curando apenas dos crimes aqui considerados) nada menos que 27 vezes. 

A que se acrescenta (e não é de modo algum uma bagatela) a condenação em 6 anos de prisão por crime de violação. Não é de somenos. O que tudo considerado globalmente está muito longe do quadro traçado pelo recorrente. Concorrendo para uma ideia geral de profundo desvalor das condutas, e gravidade das mesmas.

 

7. Como foi acentuado pela Digna magistrada do Ministério Público e corroborado pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, a ilicitude global dos factos é elevada, e a culpa, lato sensu, é intensa. O que parece revelar uma certa personalidade de inconformação e até “inimizade pelo Direito”, que alguns traduzem por “hostilidade legal” (Rechtsfeindshaft), patente, nomeadamente, nas invetivas às autoridades e na inconformação com o ambiente prisional. Veja-se o seguinte passo da referida Resposta do Ministério Público:

“No meio prisional, o comportamento do arguido é (e foi) pautado por diversos registos de indisciplina – 16 infracções disciplinares, averbando a punição de 10 dias de internamento em cela disciplinar por infração de 21.05.2019 – cfr. Ponto 29 da fundamentação de facto do douto acórdão recorrido, que o arguido, ora recorrente, não contestou.”


8. Bastará ler com atenção o relato sucinto dos vários episódios criminais supra mencionados, para verificar uma profunda desafeição do agente face aos valores socialmente aceites e imperantes na sociedade, ilustrada pela pluralidade dos bens jurídicos desrespeitados e violados. Ao mesmo tempo fortemente sugerindo uma perigosidade ou “potencialidade danosa” significativa, naturalmente indutora de profunda intranquilidade social e, portanto, sublinhando exigências de prevenção geral, tal como, concomitantemente, exigências também de prevenção especial que se tornam muito evidentes quando se vê o arguido em ação, em interação (o que se pode aquilatar, com vívido recorte, em todo o pathos dos relatos supra transcritos).


9. Dada a gravidade dos factos, a sua pluralidade, a reiteração no delinquir, e o próprio comportamento já depois do encarceramento, alguns aspetos que depõem em favor do recorrente (de índole familiar ou profissional), que foram, aliás, devidamente tidos em causa no Acórdão recorrido (e que agora se não ignoram nem menosprezam, mas se colocam em contexto e diálogo com os demais), não conseguem obnubilar nem atenuar significativamente o peso dos elementos claramente negativos.

Contudo, note-se que há proporcionalidade e não severidade na pena única de 10 anos e 4 meses de prisão e de 600 dias de multa por adequada à culpa e às exigências de prevenção, tanto na componente da prisão como na da multa (sendo que, ainda quanto à primeira, não é critério legal da sua medida a possibilidade do pagamento em prazo mais ou menos breve da segunda).


10. De igual modo que não há desproporção, desajustamento, ou exagero na pena, também na interpretação que é feita dos aludidos artigos não existe inconstitucionalidade (nem inconvencionalidade, acrescentar-se-ia). De resto, nesta matéria, teria sido desde logo necessário ter-se explicitado como, muito concretamente, teria ocorrido qualquer desses vícios, sob pena de se contribuir, ainda que na melhor intenção e boa fé, para uma pletórica banalização infundamentada de recursos, mutando-se sociologicamente a natureza do labor concreto Tribunal Constitucional (cf. P. Ferreira da Cunha, Síntese de Justiça Constitucional, Oeiras, A Causa das Regras, 2018, p. 131 ss.). Com efeito, como consta do Acórdão do Tribunal Constitucional 244/2007, Processo n.º 63/07, Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos:


“Vem, com efeito, este Tribunal reiteradamente afirmando que não constitui “forma idónea e adequada de suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa a simples invocação de que seria inconstitucional (…) certa ou certas normas legais, na interpretação que a decisão das instâncias lhes conferiu, não suficientemente definida ou precisada pelo recorrente (…), cabendo sempre à parte que pretende suscitar adequadamente uma questão de inconstitucionalidade normativa o ónus de especificar qual é, no seu entendimento, o concreto sentido com que tal norma ou normas foram realmente tomadas no caso concreto pela decisão que se pretende impugnar perante o Tribunal Constitucional” (Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3, 2004, p. 8).” (apud v.g. Ibidem, p. 134, ou, v.g., P. Ferreira da Cunha, Direito Constitucional Geral, nova ed., Lx., Quid Juris, 2013, p. 451).

Correr-se-ia o risco de, no limite, qualquer interpretação não concorde com a perfilhada por qualquer recorrente ser ferida dessa mácula de alegada inconstitucionalidade. Dado ainda que não existem “casos claros”, nem uma única solução “correta” (sobre a matéria há abundante doutrina – notem-se, v.g., além da obra de Roberto Grau, Paul Van Den Hoven, Clear Cases: Do they Exist?, in “Revue Internationale de Sémiotique Juridique / International Journal for the Semiotics of Law“, Vol. III, n.º 7, 1990, pp. 55-63), impõe-se que se torne evidente e inequívoco em que é que o processo de raciocínio hermenêutico do intérprete judicador, e a sua conclusão, feriram o comando constitucional.

Não se vislumbra onde poderia estar a inconstitucionalidade, e não cumpriria, de todo o modo, a este Tribunal suprir a falta de concreta alegação do que pudesse enquadrar-se nessa categoria. Mas não o poderia de qualquer sorte fazer, precisamente por não alcançar onde poderia ter havido infração à Constituição.


11. De modo semelhante, também não se alcança que relação poderia haver, entre uma eventual atenuação da pena única de prisão aplicada e uma maior ou menor possibilidade ou celeridade de cumprimento da pena única de multa. Em que fundamento legal, jurisprudencial ou doutrinal se firmaria o recorrente para aventar uma tal hipótese, se bem interpretamos este seu ponto, que também parece ter intrigado o Ministério Público.


 12. E não pode deixar de citar-se, como síntese de elementos iluminadores de situações como a presente, também, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 17-10-2019, no Proc.º n.º 671/15.3PDCSC-C.L1.S1 (Relator: Conselheiro Vinício Ribeiro), sublinhando nós os momentos que particularmente se mostra, in casu, relevantes:


“Segundo preceitua o nº 1 do art. 77º do C.Penal, na medida da pena são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que significa que o cúmulo jurídico de penas não é uma mera operação aritmética de adição, nem se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas. Na verdade, o legislador elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.

Como esclareceu o autor do Projecto do Código Penal, no seio da respectiva Comissão Revisora (Acta da 28ª Sessão), a razão pela qual se manda atender na determinação concreta da pena unitária, em conjunto, aos factos e à personalidade do delinquente, é de todos conhecida e reside em que o elemento aglutinador da pena aplicável aos vários crimes é, justamente, a personalidade do delinquente, a qual tem, por força das coisas, carácter unitário, de onde resulta, como ensina Jescheck (Tratado de Derecho Penal Parte General, 4ª Ed., pág. 668), que a pena única ou conjunta deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção, em primeira linha, se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação entre si, sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente.

Posição também defendida por Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Págs. 290/292), ao referir que a pena conjunta deve ser encontrada, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, revelando, na avaliação da personalidade do agente sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro daquele, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluriocasionalidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta.”. (in dgsi: http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9e1a3420f3bc4e5480258497003474af?OpenDocument)


13. Ora o Acórdão recorrido precisamente teve em atenção quer factos quer personalidade do agente, sendo que o conjunto dos factos fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, tudo indicando que não se tratará de mera pluri ocasionalidade que não radica na personalidade.


14. Poderá considerar-se uma ligação de sentido entre os factos em concurso, atendendo ao número, natureza e gravidade dos crimes praticados (apesar da sua diversidade numa “microanálise”, bem se pressente um padrão – desde logo uma personalidade quiçá eticamente laxista ou cauterizada, denotada pela reiterada propensão criminosa – cf., v.g., mutatis mutandis, a deontologia jurídica de Rafael Gómez Pérez). Tudo se deve ponderar em conjunto com a personalidade do agente pelos factos evidenciada (que parece não suportar muito constrangimentos ou barreiras sociais necessárias à convivência social “civilizada” – limites, numa palavra). Sempre visando a obtenção de uma visão unitária do conjunto da factualidade, que permita aferir se (como se disse) o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente (e outro elemento a considerar é a reiteração de condutas criminosas e o seu prolongamento no tempo). Bem como procurando bases para fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso. E tendo ainda presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena poderá vir a ter sobre o arguido.


15. Recorde-se também (last but not the least), v.g., o Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça, 3.ª secção, de 23-09-2010, Proc.º 1687/04.0GDLLE.E1.S1 (Relator: Conselheiro Pires da Graça), que aglutina em síntese os elementos aqui também ponderados, em consonância, aliás, com o já realizado em 1.ª Instância:


“IX - Nos termos do art. 77.º, n.ºs 1 e 3, do CP, valorando o ilícito global perpetrado, na ponderação conjunta dos factos e personalidade do arguido, tendo em conta a natureza e gravidade dos factos integrantes dos ilícitos, o tempo em que ocorreram, a personalidade do arguido projectada nos factos e revelado por estes, que dá conta da propensão do arguido para delinquir, as exigências de prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização, sem prejuízo do limite da culpa que é intensa, e tendo ainda em conta o efeito previsível da pena no comportamento futuro do arguido, e os limites mínimo e máximo da pena do cúmulo  (...).” – assinala, no respetivo Sumário.


Tendo em consideração todos estes elementos, e na ponderação devida, a pena imposta pelo Acórdão recorrido afigura-se justa e bem doseada, não tendo mesmo deixado de ter em consideração os elementos atenuantes referidos, e estando ainda afastada do máximo legalmente possível, in casu, que seria de 19 (dezanove) anos e 9 (nove) meses de prisão. Encontrando-se, assim, plenamente concorde com os critérios definidos pelo art. 77, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.


III

Dispositivo



Nesta conformidade, acorda-se na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em manter integralmente o douto Acórdão recorrido, por estrito cumprimento dos critérios determinados pelo art. 77, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, negando-se provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente com taxa de Justiça fixada em 6 UC.



Supremo Tribunal de Justiça, 4 de novembro de 2020.


Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

(Atesto o voto de conformidade do Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4.º do CPP)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)