HABEAS CORPUS
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
VIGILÂNCIA ELETRÓNICA
PRISÃO ILEGAL
Sumário


I. Uma peticionante de Habeas Corpus, em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica, em cumprimento de uma pena de 2 anos de prisão (que iniciou a 28.11.2019) invoca que o país que aplicou a pena de prisão ora em execução, em 16 de maio de 2017 teria determinado que os presos com penas de prisão entre um e os dois anos de prisão deveriam ser libertados provisoriamente após quatro meses de detenção.
II. Independentemente do regime concretamente em vigor nesse outro Estado, e dos seus requisitos, o cumprimento de pena em Portugal não fica afetado por eventuais alterações de legislação estrangeira (lato sensu), quanto a libertação provisória de reclusos, e muito menos se aplica norma estrangeira no caso de alguém que, não se encontrando preso em estabelecimento prisional, não é recluso.
II. Determinações dirigidas ao sistema prisional de um outro país, pelas suas autoridades, não poderão influenciar o curso normal do cumprimento de pena que se encontra sob a alçada do imperium do Estado português (que passou a cabalmente exercer o jus puniendi) e em território nacional.
IV. Consequentemente, e não se verificando, no caso, nenhum das situações a que se refere o art. 222, n.º 2 do CPP, obviamente, a manutenção da peticionante em regime de permanência na habitação não configura “prisão ilegal”.
V. Pelo que, nos termos do art. 223, n.º 4, al. a), se indefere o pedido, por falta de fundamento bastante.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I

RELATÓRIO



       1. AA, em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica, em cumprimento de uma pena de 2 anos de prisão que iniciou a 28.11.2019 (estando assim o termo da pena previsto para 28.11.2021), com origem em sentença estrangeira, procurou ser devolvida a uma plena situação de liberdade, tendo no culminar das suas diligências apresentado a presente petição de Habeas Corpus, que se transcreve:

“A aqui Peticionante encontra-se em cumprimento de pena de 2 (dois) anos de prisão, desde 28 de Novembro de 2019, em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, que teve origem em decisão penal condenatória estrangeira – Bélgica – transitada em julgado em 11.02.2014.

No país que aplicou a pena de prisão em execução, por instrumento executivo emitido por quem tem competência legal para o efeito no respectivo país - Bélgica, determinou-se em 16.05.2017, que os presos com penas de prisão entre um e os DOIS ANOS DE PRISÃO deviam ser LIBERTADOS provisoriamente após QUATRO MESES DE DETENÇÃO.

No nosso humilde entendimento, a Requerente observa todos os requisitos para o perdão da pena no país de que a aplicou, devendo por isso ser aplicada a lei e instrumentos reguladores do país “condenante” que determinaram o perdão concedido a essas mesmas penas. Repare-se que o Estado português não aplicou qualquer pena à aqui Requerente – limita-se a executar uma pena aplicada noutro ordenamento jurídico que a veio a perdoar parcialmente.

Imagine-se que o Estado belga decidia despenalizar o crime que a Requerente foi condenada. Continuaria a aberração de um TEP português decidir que isso não tinha qualquer relevância por prevalecer sempre o MDE, a pena aí prevista!!! Nem amnistias nem nada! Era a loucura total!

De tão simples nos parece a matéria em causa, que nem vamos enfastiar Vossas Excelências com citação de doutrinas ou jurisprudências. Mais simples que isto não pode ser.

Quanto a nós e salvo o mui devido respeito pelo sempre mais Douto entendimento de Vossas Excelências, transcorridos que foram QUATRO MESES após 28 de Novembro de 2019, a Requerente encontra-se ilegalmente privada de liberdade pelo que importa determinar a imediata libertação da Requerente que já devia ter visto a pena declarada extinta por cumprimento desde 28 de Março de 2020 conforme foi determinado elas autoridades competentes do país que aplicou a pena e pedir ao Estado português que a executasse. O que, com devida vénia se requer.

Suscitando-se dúvidas sobre a genuinidade do diploma em que assentamos a nossa pretensão, julgamos ser da mais elementar justiça que se determine a libertação provisória até esclarecimento junto das instâncias belgas. O que também se requer.”

  2. Este Habeas Corpus não a primeira tentativa da ora peticionante no sentido de ser devolvida à plena liberdade, embora não com os atuais argumentos. Consta, com efeito, da Vista de 21 de abril do corrente ano, que a ora peticionante requerera a aplicação da aplicação da Lei n.° 9/2020, de 10 de abril, no sentido de lhe ser perdoada a pena de 2 anos de prisão. O que não obteve ganho de causa, com base no âmbito de aplicação da referida Lei, que não se estende senão a reclusos, com o fito de minorar ou estancar os efeitos da difusão da pandemia COVID-19, em curso. Ora parece razoável, na verdade, que o regime de “confinamento” sui generis, a que a peticionante se encontra obrigada pelo cumprimento da sua pena, pareceria ser até mais favorável à manutenção da medida privativa da liberdade que à satisfação da sua pretensão. (Sobre a aplicação, em sede de Habeas Corpus, desta Lei, cf., desde logo, o Acórdão proferido por este STJ, no Proc. n.º 207/15.6TXPRT-S (Relator: Conselheiro Manuel Matos) e o Acórdão, igualmente deste STJ, no Proc. n° 833/19.4TXPRT-E.S1 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves).


3. Efetivamente, a decisão de 28 de abril, sobre o requerimento de libertação ao abrigo daquele normativo excecional, é muito clara:

“AA cumpre pena de 2 anos de prisão em regime de permanência na habitação, desde 29.11.2019, à ordem do processo n.° 2775/18. 1…, do JLC de …, Jl. Vem requerer que lhe seja aplicado o perdão de pena previsto na Lei 9/2020.

Resulta inequívoco quer dos trabalhos preparatórios, quer do preâmbulo quer do texto da lei 9/2020 que o universo de aplicação da referida lei são os reclusos em cumprimento de pena efectiva nos estabelecimentos prisionais portugueses. Com efeito, a lei destina-se a minimizar o risco de contágio na população prisional devido à pandemia vivida pela contaminação por Covid-19. Assim, uma vez que a arguida se encontra a cumprir pena em casa, devidamente confinada, não pertence à população alvo desta Lei e como tal é manifesto que não se lhe aplica o regime em causa.

Pelo exposto indefiro o requerimento da arguida no sentido da aplicação da Lei n. ° 9/2020, de 10 de abril, uma vez que a mesma não se encontra recluida num estabelecimento prisional, mas sim a cumprir a pena de 2 anos de prisão em que foi condenada em regime de permanência na habitação. Notifique”

  4. Reiterada foi a decisão a 15 de outubro p.p., aliás contendo, na sua concisão, elementos significativos, de que curaremos infra:

“Mantém-se o já decidido a 28.4.2020, não havendo lugar à aplicação da Lei 9/2020, de 10/4 à situação da arguida. Aliás, tal despacho não mereceu reclamação ou recurso.

A sentença foi reconhecida em Portugal e a pena está a ser cumprida ao abrigo das disposições legais do Estado português, não havendo obviamente que considerar qual a lei mais favorável ao arguido porque essa questão só se poderia colocar ' dentro do mesmo ordenamento jurídico, in casu o português, e não relativamente a um ordenamento juridico estrangeiro.

Vai, assim, indeferida a pretensão da arguida.

Notifique.”


II

FUNDAMENTAÇÃO


A. Enquadramento geral

1. Há um especial timbre (e até simbolismo, que a sua historicidade evidencia) na providência de Habeas Corpus, que tem sede constitucional, além de, obviamente, consagração na lei penal. Esse como que ADN do instituto confere-lhe uma feição muito particular, que se tem mantido numa linha de grande coerência jurisprudencial, e não consente tergiversações nem utilizações ultra- ou extra-, além do seu património e sentido, legal e constitucionalmente determinados e consolidadíssimos entre nós. Não deixa de ser eloquente, porém, que o Tribunal Constitucional tenha sido chamado a proferir (no seu Acórdão 10/2005) a seguinte decisão: “Não é inconstitucional a taxatividade dos requisitos previstos no artigo 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal para a concessão de habeas corpus”. Por vezes, uma subtil “força normativa dos factos” (ou, rectius, força de factos com pretensões normativas) obriga a que, numa reiteração da normatividade, as instâncias judiciais declarem o que deveria ser evidente. Mas é importante que tal seja feito, para separar as águas e não deixar dúvidas para futuro.

2. O Habeas Corpus incorpora, assim, a sua “história” e a sua vivência; o seu ser não é alheio ou desentranhável do seu modo-de-ser. É essa, aliás, a grande lição da jurisprudência como fonte do Direito. Como ainda recentemente se recordou, para bem enquadrar institucionalmente o instituto, nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2020, no Proc.º 421/15.4GESLV-A.S1, e de 31 de julho de 2020, no Proc.º 39/20.0PHSNT-B.S1, a Constituição da República Portuguesa (CRP) –  que seguiu uma tradição muito antiga, radicada no velho direito britânico e entre nós recebida por influência brasileira, por sua vez colhida na experiência dos EUA – consagra plenamente a providência do Habeas Corpus, a exemplo, aliás, do que vinha ocorrendo desde a Constituição de 1911 (art. 3.º, 31.º). Apesar de anteriormente desconhecida no constitucionalismo moderno português, de influência francesa, que era avessa ao instituto (Blandine Barret Kriegel, Les Droits de l'homme et le droit naturel, Paris, P.U.F., 1989, pp. 96-97). Não se limita a enunciar a providência. Fá-lo com sede sistemática nos Direitos Fundamentais, o que é reconhecer-lhe uma especial dignidade (cf., v.g., Ponto I do Sumário do Acórdão deste STJ de 23-05-2018, proferido no Proc. n.º 965/18.6T8FAR-A.S1 - 3.ª secção, tendo como Relator o Conselheiro Lopes da Mota). Ora essa dignidade tem também uma contrapartida de requisitos claros e distintos, e não se pode confundir nunca com aquele uso retórico da Constituição a que Eça de Queiroz aludia na polémica da proibição das Conferências do Casino. Na verdade, os preceitos constitucionais não podem ser meros arietes retóricos. A proeminência constitucional (a que Paulo Bonavides chamou “hegemonia vinculante” - Do Estado Liberal ao Estado Social, 7.ª ed., 2.ª tiragem, São Paulo, Malheiros Editores, 2004, p. 18) passa pelo rigor na aplicação dos institutos. E se na Constituição, como ensinava Pellegrino Rossi (Cours de droit constitutionnel, nova ed., Paris, Droz, 2012), ao menos grosso modo, se encontram as “cabeças de capítulo” de todas as matérias jurídicas, o corpo jurídico e a atividade jurisdicional em especial necessitam muitas vezes de mediação legal infraconstitucional mediadora, que concretize, especifique, densifique as grandes ideias, para que se não quedem num “céu dos conceitos” proclamatório. Ora o Habeas Corpus está concebido como grande providência de digníssima consagração na Carta Magna, mas deve a sua estrutura a rigorosos requisitos, que são inultrapassáveis.

3. Encontra-se, pois, bem recortada a figura, de forma a que o seu bom uso, apropriado e nas circunstâncias para que foi pensada, surta efeitos. É sabido que o Habeas Corpus é, v.g. recordando Cavaleiro de Ferreira, uma providência extraordinária destinada a pôr termo a situação ilícita que é a prisão ilegal (Curso de Processo Penal, 1956, II, p. 477). O problema é saber se a manutenção da situação da recorrente será ilegal, e se se verificam os pressupostos para a concessão da providência em apreço.

4. Inter alia, podemos ver no acórdão de 10-08-2018, referente ao processo n.º 11/17.7GAMRA-A.S1 - 3.ª Secção, tendo como Relator o Conselheiro Pires da Graça:

“I - A providência de habeas corpus visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação. Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

II – O habeas corpus não se destina a sindicar as decisões judiciais sobre crime verificados, penas aplicadas, nomeadamente a pena conjunta, nem sobre os pressupostos desta, ou sobre incidentes no cumprimento da pena, é assim e, apenas, um meio extraordinário de controlo da legalidade actual da prisão, estritamente vinculado aos pressupostos e limites determinados pela lei».

E, ainda não há muito, recorde-se a lição do Acórdão deste STJ de 06-06-2019, proferido no Proc. n.º 146/19.1SELSB-A.S1 - 5.ª Secção, tendo como Relator o Conselheiro Nuno Gomes da Silva:

“I - A providência de “habeas corpus” tem uma natureza excepcional destinando-se a assegurar o direito à liberdade mas não é um recurso. É, por assim dizer, um remédio único, a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade mas não pode ser utilizado para impugnar quaisquer deficiências ou irregularidades processuais que têm no recurso a sua sede própria de apreciação. (...)”.

5. Nunca será demais recordar que os requisitos para a concessão do Habeas Corpus no caso de prisão ilegal são os que se encontram enunciados no n.º 2 do art. 222 CPP in fine, para os casos de a prisão:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

6. Nenhuma possibilidade de aplicação se vislumbra, no caso vertente, de qualquer das alíneas do referido normativo. E apenas é alegada matéria que poderia eventualmente ser considerada à luz da previsão da alínea c), mas sem qualquer plausibilidade, como se verá.

7. Sinteticamente, tal como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Fevereiro de 2005, entende-se que

No âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso de actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis.

8. Nesta providência, há apenas que determinar, se na manutenção da situação da peticionante algo se poderá descortinar que se possa acolher aos fundamentos referidos no artigo 222, n.º 2 do CPP, ou neles, de algum modo se subsumir.

9. A providência em causa assume uma natureza excecional, a ser utilizada quando de algum modo claudicarem as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para obviar a casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a medida não pode ser utilizada para impugnar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação. É o que ocorre no caso vertente, em que fundamentalmente se nos afigura que a via indicada a seguir seria porventura um recurso ordinário do indeferimento decidido pela Meritíssima Juíza do TEP, datado de 15 de outubro, p.p., não o Habeas Corpus.

Não se verificando aqui, evidentemente, qualquer situação de “possibilidade de habeas corpus em alternativa ao recurso ordinário, quando este se revele insuficiente para dar resposta imediata e eficaz à situação de detenção ou prisão ilegal” (J. J. Go Ca / V , Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, 2007, C, Coimbra Editora, p 510).

10. Só pode fundamentar a referida providência a existência de uma afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve demonstrar-se, sem qualquer margem para dúvida, que quem está preso (ou em situação de limitação da sua liberdade, nomeadamente sendo tal o caso sub judice) não o deve estar e que a sua situação afronta o seu direito fundamental a estar livre. Estão em causa, pois, e apenas, situações de flagrante ilegalidade em que, por estar em causa uma clara postergação ou ataque a um valor fundamental, a reposição da legalidade – repondo a normal ordem das coisas e sanando esse ostensivo mal e disfunção na ordem jurídica – tem um carácter urgente. E a considerar mesmo o prazo para o seu julgamento, constitucionalmente imposto, dir-se-ia mesmo “inadiável” (art. 31, n.º 3 da CRP).

11. Insiste-se e matiza-se: a providência excecional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as possíveis situações de ilegalidade de uma medida limitadora da liberdade. Está outrossim reservada para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão a tomar com a imposta celeridade de julgamento.

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal, no seu Acórdão de 16 de Dezembro de 2003, trata-se aqui de “um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)”.

12. Acrescente-se ainda que a natureza excecional da decisão de Habeas Corpus, não entra no mérito da causa, mas apenas num dado conjunto de aspetos da legalidade –, limitando-se à questão do devido processo legal na privação da liberdade do arguido, dentro de limites que a Constituição e a Lei determinaram claramente.

B. Especificamente no caso

1. Não se verifica qualquer obstáculo ao conhecimento da providência com base no especiosismo literalista de que se não estaria perante pena de prisão propriamente dita, nem qualquer outro. A situação em causa é perfeitamente equiparável, ainda que mutatis mutandis, à fórmula geral “prisão”, que deve ser entendida como geral privação da liberdade, ainda que não absoluta ou limitada (há pelo menos um fumus dessa equiparação, v.g., no art. 215, n.º 8 do CPP).

Como se refere no Ac. Deste STJ, Proc. n.° 833/19.4TXPRT-E.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves):

“A jurisprudência deste Supremo, sem uniformidade, vai maioritariamente no sentido de que, pese embora a norma constitucional e o regime legal se reportar, ipsis literis, à prisão, haverá de convir-se que a manutenção ilegal, por abuso de poder de uma pessoa em regime de permanência na habitação, deve poder fundamentar um pedido de habeas corpus. A sua conceção como modalidade de execução da pena privativa da liberdade em “prisão domiciliária”, implica que o próprio condenado ou qualquer outra pessoa em seu benefício, possa reagir através desta garantia privilegiada do direito fundamental à liberdade, com assento na Lei Fundamental, contra o grosseiro, abusivo excesso de prazo.”

2. É certo que o peticionante invoca o art. 223 do CPP, mas muito aproveitaria à sua causa que, mesmo sem vã “citação de doutrinas ou jurisprudências”, a peticionante esclarecesse este tribunal sobre qual ou quais das alíneas do art. 224 do mesmo diploma se aplicariam em abono da pretensão apresentada. Tem-se presente que é jurisprudência firme deste Supremo Tribunal de Justiça que

“os fundamentos do ‘habeas corpus’ são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão” (Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196, reiterado ainda recentemente, v.g., no Ac. Proc. n° 833/19.4TXPRT-E.S1, Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves).

Não cremos que resulte da petição apresentada nenhuma possível subsunção que a ela aproveite. Porquanto, parece óbvio que a situação de privação da liberdade em causa foi ordenada por quem de direito. Mais: motivada por facto permitido por lei. E finalmente não ultrapassou prazos fixados legal ou judicialmente.

3. Eventualmente quanto a este último ponto se poderia, não sem alguma audácia retórica (e pouco acolhimento lógico e nenhum jurídico) esgrimir o argumento de prazo fixado por lei. Sim, mas seria (de acordo com o invocado) apenas infração de lei estrangeira, a qual obviamente não se aplica no território nacional, no caso. Porquanto, ao contrário de outras diligências, o habeas corpus atual já não menciona, como antes, lei nacional.

4. Como decorre da citada decisão de 15 de outubro, o despacho não terá merecido reclamação ou recurso, e não existe escolha de lei mais favorável ao arguido entre diversos ordenamentos jurídicos, estando atualmente, de pleno direito, a peticionante sob a alçada da lei nacional, não se projetando sobre ela nenhuma sombra do ocorrido, e, mais ainda, do atualmente a decorrer, nas mutações legislativas (ademais excecionais e de contingência) do país que inicialmente a condenou.


5. Ao ter-se passado do ordenamento jurídico belga para o português, vieram os commoda e os incommoda respetivos, não sendo possível usufruir, a um tempo, como diz a sabedoria milenar do Povo, de “sol na eira e chuva no nabal”. No já citado Proc.º, também de Habeas Corpus, n° 833/19.4TXPRT-E.S1, explicitamente se desenvolve o problema, com interessantes similitudes com o vertente, afirmando-se também: “Não pode, pois, como certamente compreenderá, usufruir apenas do melhor dos dois regimes.

Em Portugal, está submetido ao regime de permanência na habitação que requereu e obteve. A partir de então, a execução da pena de prisão em que foi condenado em França e que a justiça portuguesa reconheceu, rege-se exclusivamente pelo edifico normativo português (…)”.

Aliás, e incidentalmente se diga, ainda, que nada nos permite concluir dos autos que estaria garantida automaticamente a libertação, na própria Bélgica. Porquanto parece inferir-se dos autos que se trata de uma possibilidade não taxativamente determinada, a apreciar eventualmente de forma casuística, ou, de todo o modo, de acordo com condições estabelecidas pela Circular ministerial 1807, que a Peticionante não junta. Nada nos autos permite assim concluir que seria uma libertação automática.

6. Não se verificando nenhum dos pressupostos legalmente admitidos como fundamento de concessão de Habeas Corpus, o pedido evidentemente improcede, por muito chocantes que possam parecer os paralelos que se possam estabelecer por uma Justiça que, como dizia Pascal, pode ser separada por um ribeiro, ou mudar para lá ou para cá dos Pirenéus. A “soberania” tem manifestações que podem ser mais ou menos bem compreendidas nas suas implicações judiciais concretas (inter alia), mas não pode deixar-se de se aplicar a Lei. A qual, aliás, tem uma evidente razão de ser. O infrator não ganha direito à lei que, no momento, lhe seja mais favorável, neste ou naquele dos países com que tenha conexão.

7. Encontrando-se a peticionante em cumprimento de uma pena de 2 anos de prisão, no regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica (embora com saídas permitidas, em horário determinado, para ir buscar um neto à escola), situação que iniciou em 28.11.2019, só em 28.11.2021 se cumprirá a pena. Encontrando-se, pois, longe de estar esgotado ou excedido o tempo de cumprimento e assim não se verificando o pressuposto da alínea c) do art. 222 do CPP. Quanto aos demais possíveis pressupostos, não parece sequer cogitar-se a hipótese da sua verificação.


III

DISPOSITIVO



Termos em que se acorda, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir, conforme o art. 223, n.º 4, al. a), a providência de habeas corpus requerida, por falta de fundamento bastante.

Custas pelo requerente, com 3 UC de taxa de justiça (Tabela III e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).


Supremo Tribunal de Justiça, 4 de novembro de 2020


Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)


Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.


Dr. António Pires da Graça (Presidente)