SEGURO FACULTATIVO
RISCO DE FURTO OU ROUBO
PERDA TOTAL
Sumário


I- O conceito de perda total, no âmbito de um contrato de seguro facultativo, por danos próprios, decorrentes de “furto ou roubo”, depende em primeira linha, por respeito à autonomia privada, do que se encontra estipulado no próprio contrato, e, no mais, será aplicável o regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16 de Abril, na versão que lhe foi dada pela Lei nº 147/2015, de 16 de Abril, que aprovou o regime jurídico da actividade seguradora e resseguradora.
2. Só em caso de total omissão contratual será de recorrer ao regime subsidiário, nos termos do art. 4º do diploma citado.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

R. M., solteiro, mecânico, residente na Rua …, Vila Verde, instaurou a presente acção declarativa contra X – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA, pessoa colectiva n.º …, com sede no Edifício …, Rua …., em Lisboa, pedindo a condenação da ré ao pagamento da quantia de €12.000,00 (doze mil euros), correspondente ao valor da reparação do veículo automóvel da marca BMW, matrícula BX, quantia acrescida dos juros de mora vencidos desde a citação e dos vincendos até integral e efectivo pagamento, e acrescida da quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros), para compensação pelo dano de privação do uso do veículo desde o dia 1 de Fevereiro de 2018 até à presente data, acrescida dos juros de mora vencidos desde a citação e dos vincendos até integral e efectivo pagamento.

Para sustento da sua pretensão, alega, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de seguro, do ramo automóvel, tendo por objecto o veículo supra identificado, incluindo danos próprios, com cobertura de furto/roubo, ao qual foi atribuído a apólice n.º 01622583. No dia 6 de Janeiro de 2018 constatou que o veículo fora furtado e, embora mais tarde, tenha sido encontrado, faltavam-lhe várias peças e componentes. Realizada a peritagem, em 22 de Janeiro seguinte a companhia de seguros entendeu tratar-se de uma perda total, uma vez que o valor calculado para reparação, adicionado ao valor do salvado era superior em 120% ao valor venal do veículo. Em 28 de Janeiro, informou a ré que não aceitava a perda total do veículo, pretendendo a sua reparação, mediante um orçamento apresentado de € 9.589,39 (nove mil, quinhentos e oitenta e nove euros, trinta cêntimos). Porém, a ré propôs a liquidação do montante de € 3.597,00 (três mil, quinhentos e noventa e sete euros), correspondente ao capital seguro deduzido o valor do salvado, o que não pode aceitar porquanto não lhe permite adquirir outro veículo com as mesmas características do seu. Conclui, nesta parte, que a regra contida na alínea c) do art. 41º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, visa somente estabelecer meros parâmetros para a elaboração de uma "proposta razoável" por parte das seguradoras, e não afasta o princípio geral da reconstituição em espécie previsto nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil. Como tal, quando o montante estimado para reparação do veículo não é absolutamente desproporcional quando confrontado com o seu valor venal, deve a reparação ser realizada se tal for a vontade do lesado ou deve ser-lhe entregue o montante correspondente para suprimir o dano.

Acrescenta que dispôs de veículo de substituição apenas pelo período de trinta dias, e nessa medida, esteve, desde 30 de Janeiro de 2018 até ao presente, impedido de exercer os seus direitos de propriedade sobre o veículo, vendo-se obrigado a recorrer a outros automóveis cedidos por amigos e familiares para ir trabalhar pois onde reside não passam transportes públicos e deslocar-se de táxi é demasiado dispendioso.

Recorrendo a critérios de equidade, estima que seja de € 10,00 (dez euros) / dia a indemnização devida pela paralisação do veículo, o que perfaz um total de € 4000,00 (quatro mil euros) (400 x €10,00), a que acresce de juros de mora vincendos contados da citação até efectivo e integral cumprimento.

Pese embora as sucessivas interpelações para o efeito, a ré não procedeu à liquidação da quantia em falta, pelo que, nos termos peticionados, pretende a liquidação do montante indemnizatório peticionado.

Citada, a ré apresentou contestação, em síntese, confirmando a celebração do contrato de seguro em causa com a cobertura de furto ou roubo, com o capital seguro, na data do sinistro, de € 11.395,00 (onze mil, trezentos e noventa e cinco euros). Confirmou, ainda, que, após peritagem, se concluiu pela perda total do veículo, uma vez que o valor da reparação ascendia a € 36.153,07 e o valor do capital seguro, na data do sinistro em apreço, era de € 11.395,00, pelo que, aceitou indemnizar o autor, de acordo com as Condições Contratuais da Apólice, previstas na clausula 38º, alínea c), entregando-lhe a diferença entre o valor do capital seguro e o valor do salvado, calculado em € 7.798,00 (sete mil, setecentos e noventa e oito euros).
Salienta que, nos termos contratualmente previstos, o autor tinha direito ao veículo de substituição desde a data do sinistro até à data em que lhe foi comunicada a situação de perda total e colocado à disposição o montante indemnizatório de € 3.597,00, o que ocorreu, através de carta, datada de 22/01/2018, cessando, nesta data, a obrigação de garantir ao Autor um veículo de substituição.
Sabendo as partes que o contrato de seguro de danos celebrado em 30/12/2014, é regulado pelas estipulações da respectiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS e, subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e da lei civil (artigo 4.º do RJCS), sabem, do mesmo modo, que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro (cfr. artigo 138.º) e sabem que, por outro lado, nos termos da alínea s), da Cláusula 41ª das Condições Gerais da Apólice, na cobertura facultativa de danos próprios, fica excluído a privação do uso da viatura.
Conclui, face ao exposto, que deve improceder a pretensão do autor.

Foi dispensada a realização de audiência prévia.

Identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizou-se a audiência de julgamento.
Foi então proferida sentença que culminou com a seguinte decisão:
“Nestes termos, e nos melhores de Direito, demonstrado que ficou que a ré, X – Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA, está obrigada a entregar ao autor, R. M., a quantia indemnizatória proposta de € 3.597,00 (três mil, quinhentos e noventa e sete euros), julga-se a presente acção improcedente, por não provada, e em consequência, absolve-se a ré dos pedidos formulados pelo autor nos autos.

Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (cfr. artigo 644º,1,a, 645º,1,a, e 647º,1, todos do CPC).

Terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. Interpõe-se recurso da decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
II. Em abono da verdade, se calcorreada e escrutinada a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, a conclusão a alcançar só poderia ser aquela que conduzisse inevitavelmente à procedência total do pedido formulado pelo Recorrente, condenando-se a Ré a liquidar-lhe o montante global de €12.000,00 (doze mil euros).
III. Por assim ser, nada mais resta ao Autor/Recorrente do que interpor recurso, requerendo-se a reapreciação da prova gravada, e impugnando-se a matéria de facto.
IV. O tribunal a quo fundamentou a sua decisão com base no art. 38º e 41º do DL nº 291/2007 “o valor da reparação é de € 36.153,07, o qual somado ao valor salvado, de € 7.798,00, é muito superior a 120% do valor do veículo, (36.153,07 +7.798,00= €43.951,07) conforme prevê a al. C do nº 1 do art. 41º do DL nº 291/2007, e é superior à diferença entre o valor venal do veículo e o valor do salvado, (11.395,00-7.798,00= 3.597,00) conforme se estipulou na cláusula 38º. “; “Por esta via, está a ré obrigada a entregar a dita quantia, correspondente ao dano deduzido o valor do salvado, fixado em €7.798,00, o que perfaz a quantia de €3.597,00”.
V. E baseou a sua fundamentação apenas na aplicação do DL nº 291/2007, bem sabendo que, tal como vem sendo defendido maioritariamente na jurisprudência, os critérios enunciados no art. 41.º do Dec. Lei n.º 291/2007 – dado o mesmo não se aplicar à fase judicial, mas sim na fase extrajudicial no domínio da apresentação aos lesados de uma proposta de regularização do sinistro por parte das seguradoras ou do Fundo de garantia Automóvel, visando a resolução simplificada, rápida e amigável dos litígios entre as seguradoras, os seus segurados e terceiros – não derrogam as normas gerais indemnizatórias previstas nos arts 562.º a 566.º do CC, entre as quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano.
VI. Ora para efeito daquele cálculo utilizou como valor venal do veículo, o valor seguro e não o valor de mercado que é bem superior como ficou demonstrado pelas declarações de parte do Autor e bem assim das testemunhas F. C. e D. C., verificamos que tal facto deveria, efectivamente, ser dado como provado em virtude dos esclarecimentos prestados de forma isenta e credível por aqueles. Declarações do Autor R. M. Depoimento prestado que consta do arquivo (ficheiro 20200624152115_5684093_2870597wma), com início em 24-06-2020 pelas 15:21:09, e termo em 24-06-2020 15:42:26. Depoimento com a duração total de 00:21:16.; Depoimento da testemunha D. C. Depoimento prestado que consta do arquivo (ficheiro 20200624154316_5684093_2870597.wma), com inicio a 24-06-2020 pelas 15:43:11 e termo em 24-06-2020, pelas 15:51:01. Depoimento com a duração total de 00:07:50. Depoimento da testemunha F. C. Depoimento prestado que consta do arquivo (ficheiro 20200624155158_5684093_2870597.wma), com inicio a 24-06-2020 pelas 15:51:54 e termo em 24-06-2020, pelas 16:12:30. Depoimento com a duração total de 00:20:37.
VII. Aplicando o critério legal enunciado (primado da reparação in natura) a uma situação de indemnização por acidente de viação, o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 4 de Dezembro de 2007 (Processo n.º 06B4219, in www.dgsi.pt), cujo sumário se transcreve, decidiu que à seguradora cumpre a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar o princípio em causa, e que a mesma tem em conta dois factores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial: “1 - Em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente. 2 - Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção. 3 - Ao autor, que viu o seu automóvel danificado em acidente de viação, cabe a prova do em quanto importa a sua reparação, restaurando in natura o veículo danificado; à Ré seguradora, que acha essa reparação excessivamente onerosa, cabe a prova disso mesmo - que a reparação é não apenas onerosa, mas excessivamente onerosa. 4 - Um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação; o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado. 5 - Se a ré seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta «encostar-se» ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas»”.
VIII. Pelo exposto, deve ser reconhecido como valor de mercado o valor a ter em conta para efeitos de cálculo de reparação/indemnização, o valor de € 18.000,00.
IX. Ora importa aqui ter ficado provado o valor de mercado do veículo automóvel do autor, para demonstrar que pelo valor oferecido pela Ré, o autor não comprava outro veículo com as mesmas características, o que por sua vez a Ré, não logrou faze-lo.
X. Tal como consta dos factos provados na sentença do tribunal a quo, por carta datada a 29 de Janeiro de 2018, o autor/Recorrente informou a ré que não estava de acordo com o indicado pela ré no sentido do veiculo ser considerado em situação de perda total e do seu valor indemnizatório de €3.597,00, já que pretendia efectuar a reparação do veiculo, por considerar a mesma economicamente viável, uma vez que o veiculo satisfazia plenamente as suas necessidades nomeadamente para se deslocar para o trabalho.
XI. Para o efeito, juntou um orçamento para reparação, ainda que com peças usadas, no valor de € 9.589.30.
XII. Porem, o tribunal a quo desconsiderou aquele orçamento, por entender que se tratava de uma “mera conjuntura ou hipótese especulativa e não de uma estimativa concreta, real, do valor de reparação”, ao usar peças usadas.
XIII. Ora, é vontade do Recorrente proceder á reconstituição natural do seu veículo, que é sem dúvida, a forma mais perfeita de reparar um dano. O princípio geral no que se refere à reparação do dano é o estabelecido no art. 562º do CC, nos termos do qual «[q]uem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação». Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “o fim precípuo da lei nesta matéria é o de prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes”. No âmbito da obrigação de indemnização, a reconstituição natural (ou a indemnização específica) prevalece sobre a reconstituição por equivalente (ou a indemnização em dinheiro). Entre elas não existe uma relação de pura alternativa, havendo uma precedência necessária da primeira em relação à segunda. O que significa que é primordialmente através da reparação do objecto destruído ou da entrega de outro idêntico que se estabelece a obrigação da indemnização. Segundo o estabelecido princípio da reconstituição natural, a reparação do dano implica a reconstituição da situação que existiria (antes da lesão), ficcionando-se, deste modo, a eliminação (jurídica, que não material) do dano. Acórdão Tribunal da Relação de Guimarães de 25/06/2020, proc nº 1136/18.7T8PTL.G1.
XIV. O Recorrente apresentou um orçamento que se mostra suficiente para a reparação do seu veículo, que muito o estima, tendo feito um esforço financeiro para o comprar, conforme vem explanado nos factos provados, a apresentação daquele orçamento é da sua responsabilidade. Quer isto dizer que, se após o pagamento do valor de € 9.589,30 por parte da ré para a reparação do seu veículo, o mesmo não for suficiente, nada mais pode reclamar á Ré.
XV. Como explicou a Testemunha F. C., o que diferencia aquela carrinha de todas as outras, ainda que mais recentes é o seu ano. O facto de ser de 2006 permite ao autor beneficiar do pagamento do selo por um valor muito inferior, relativamente a uma carrinha igual de ano 2008. E o tribunal a quo não teve em consideração esse aspecto, pormenor que é relevante para a convicção do recorrente em manter o seu direito de reparação do veículo automóvel. Depoimento prestado que consta do arquivo (ficheiro 20200624155158_5684093_2870597.wma), com inicio a 24-06-2020 pelas 15:51:54e termo em 24-06-2020, pelas 16:12:30. Depoimento com a duração total de 00:20:37.
XVI. Em sede judicial vigora o primado da reparação in natura, competindo ao lesado demonstrar, entre o mais, os danos sofridos na sua viatura e o respectivo montante e à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor patrimonial do veículo, não o seu valor venal.
XVII. Entendemos que tal diferença não permite representar a excessiva onerosidade da restauração natural, dado que, da alegação da ré, não resultou quanto é que o autor recorrente precisava para adquirir uma viatura semelhante à sua de molde a poder-se concluir que havia desproporção clamorosa entre o valor de substituição e o da reparação. Para se concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural, além de não bastar um qualquer excesso do custo da reparação, face ao valor do veículo sinistrado, necessário se torna apurar que o valor apontado como venal ou comercial permite efectivamente a aquisição de um veículo idêntico ou similar ao acidentado e que de igual modo satisfaça as necessidades do lesado.
XVIII. Assim, para se concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural, além de não bastar um qualquer excesso do custo da reparação, face ao valor do veículo sinistrado, torna-se necessário apurar que o valor apontado como venal ou comercial permite efectivamente a aquisição de um veículo idêntico ou similar ao acidentado e que de igual modo satisfaça as necessidades do lesado. Só perante uma manifesta desproporção entre o interesse do lesado à total reparação do veículo, quando possível, e o custo que tal representa para a seguradora é que poderá ser afastada a obrigação da reconstituição natural. Devendo, na ponderação desse interesse do lesado, ser tidos em consideração, além do valor da reparação e de substituição do veículo, factores como o uso dado ao mesmo, a possibilidade de aquisição de veículo idêntico que satisfaça de igual modo as necessidades do lesado ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo.
XIX. Com efeito, sendo o bem danificado o único veículo automóvel que o seu dono utiliza para a sua vida particular, como é o caso, este tem para ele mais do que um valor comercial ou de troca. Assim, tendo em conta a prioridade da reconstituição natural, se, não obstante o valor da reparação do veículo acidentado exceder em pouco mais do dobro do seu valor de mercado, apenas apurado pela avaliação de perito da seguradora, este não permitir a aquisição de veículo similar ao que foi destruído no acidente, em bom estado de conservação e com poucos quilómetros, não é possível concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural, devendo a seguradora ser condenada a pagar o custo da reparação.
XX. O Recorrente discorda frontalmente da “descridibilidade” conferida pelo Tribunal recorrido às testemunhas F. C. e D. C., imputando-lhes, o facto de este ultimo trabalhar como mecânico com o recorrente. Acresce que, dada a razão de ciência revelada, nomeadamente por ser o representante da oficina para onde foi transportado e onde ainda se encontra o veículo do autor e dada a actividade profissional exercida, é de aceitar que essa testemunha venha a revelar-se como uma das que está melhor habilitada a descrever e explicitar o estado de conservação e o valor venal do veículo sinistrado. E para colocar em causa a credibilidade de tal depoimento não basta a mera alegação genérica da menção das relações que tal testemunha tem – ou que teve – com uma das partes da causa.
XXI. Por outro lado, acrescenta-se que, considerar como prova idónea, uma testemunha que é consultor automóvel da ré, retira-lhe imparcialidade que se lhe pudesse reconhecer. No entanto não pode o Recorrente ficar indiferente ao facto de o mesmo consultor automóvel, ter recorrido a uma base de dados de peças usadas- eurotax- para o apuramento do orçamento por parte da Ré, orçamento este que nunca foi junto aos autos.
XXII. Ora, atendendo ao facto de o Recorrente ser mecânico e aplicando os critérios do senso comum, qualquer mecânico tem facilidade em aceder a peças de automóveis usadas com maior rapidez e por menores valores.
XXIII. Ora, analisada a jurisprudência abalizada, retiramos precisamente a mesma conclusão: no caso em apreço a reparação do veiculo é possível, ainda que com recurso a peças usadas, a opção entre mandar reparar o veículo danificado ou optar por receber uma indemnização em dinheiro cabe ao Autor recorrente, pois é o lesado que nenhuma culpa teve na produção dos referidos danos materiais no seu veículo, uma vez que o mesmo tecnicamente reparável).

Do Dano de privação do uso

XXIV. Ficou provado que o autor necessita da utilização diária do veículo automóvel para se deslocar para o trabalho pois a localidade onde reside não está servida de transportes públicos.
XXV. É certo que a Ré entregou ao autor um veículo automóvel de substituição pelo período de 1 mês, e que após o seu termo o autor utilizou veículos cedidos por amigos e familiares, temporariamente.
XXVI. Isto porque no entender da Ré, só tem o dever de ceder um veículo de substituição até à data em que avisa o aqui Recorrente do resultado do valor da perícia. Porém, impugna-se esse argumento, uma vez que o recorrente não aceitou aquele resultado e estava no direito de o fazer. Pelo que não pode ficar prejudicado por optar pela reconstituição do seu veículo e que ainda só não o fez por culpa da Ré.
XXVII. A falta de reparação de uma viatura sinistrada ou, quando esta não seja viável pela sua onerosidade, a indemnização correspondente, não retiram ao lesado o prejuízo que este sofreu pela privação do veículo, pelo menos até à reparação ou disponibilização do pagamento dessa mesma indemnização.
XXVIII. Assim, o que se refere a danos decorrentes da paralisação do veículo, diga-se que o desvalor que essa privação representa constitui um dano patrimonial indirecto, uma vez que é consequência mediata do dano directo, isto é, do efeito imediato do facto ilícito ou da perda directa causada nos bens ou valores juridicamente tutelados (no caso, a violação do direito de propriedade motivada pela danificação do veículo), consistente na privação da faculdade de poder fruir o carro que comprou e que provoca uma diminuição no conteúdo do direito de propriedade de pleno uso e fruição, dano esse a ser ressarcido mediante um montante pecuniário fixado por recurso às regras da equidade (art. 566º,3 do Código Civil).
XXIX. privação de uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou o detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda que deve ser considerada e objecto de indemnização autónoma. Constituindo o simples uso do bem uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, a sua privação constitui um dano patrimonial, susceptível de ser indemnizado. Estando um automóvel, em regra e por sua natureza, destinado a proporcionar ao seu proprietário e legítimo detentor utilidades (designadamente a possibilidade de se deslocar para onde quiser e quando quiser) que só podem ser fruídas pelo seu uso, impedido este, há um prejuízo que se traduz na impossibilidade de fruir essas utilidades, situação que pode ou não implicar lucros cessantes, e/ou danos emergentes com tradução monetária imediata mas que, em regra, importa a frustração do gozo. Assim, se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda de utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. Fazer depender invariavelmente a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis directamente a essa privação é solução que pode justificar-se quando o lesado pretenda a atribuição de uma quantia suplementar correspondente aos benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do artigo 564º, nº 1 do Cód. Civil, ou às despesas acrescidas que o evento determinou, já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao prejuízo causado, isto é, aos danos emergentes. Acórdão da Relação de Lisboa de 11/12/2019.
XXX. Embora o Recorrente não tenha logrado provar que esta privação tenha importado algum dispêndio, o simples facto de ter ficado privado das comodidades que a viatura lhe proporcionava ou poderia proporcionar constitui um dano patrimonial merecedor de indemnização, a fixar, se necessário, segundo juízos de equidade.
XXXI. No entanto, e conforme tudo o explanado, entende o Recorrente face à produção de prova realizada e bem assim ao direito aplicável nesta sede, deveria o Tribunal a quo ter atendido à pretensão formulada pelo Autor, condenando a Ré na totalidade do petitório formulado em sede de Petição Inicial, fazendo-se assim uma inteira e SÃ JUSTIÇA.

A recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela total improcedência do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto
b) ocorreu erro no julgamento de direito, mais propriamente, se deveria ter sido condenada a ré na totalidade do pedido formulado pelo autor.

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. O Autor é dono e legitimo possuidor do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula BX, da marca BMW, modelo/versão SERIE 5 TOURING DIESEL - 535 DA TOURING, de cor preta.
2. Na manhã do dia 6 de Janeiro de 2018, o autor verificou que o sobredito veículo não se encontrava à porta da sua residência, sita na Rua …, Vila Verde.
3. O autor dirigiu-se à GNR de Vila Verde e participou o furto do referido automóvel.
4. Durante a participação do furto, comunicaram ao mesmo posto da GNR a presença de um veículo BMW abandonado, na freguesia de …..
5. No local, verificou-se que se tratava do veículo id. em 1., ao qual faltavam as peças seguintes: portas, capô, pára-choques frente completo, pára-choques trás completo, faróis da frente, faróis de trás, embaladeiras, jantes, pneus, banco condutor e banco de passageiro, volante completo, modulo Mulf, modulo regulador suspensão, bateria, sensores de estacionamento, verificando-se, ainda, estragos na pintura e chaparia.
6. Por escrito, datado de 30 de Dezembro de 2014, titulado pela apólice nº 01622583, a ré X, declarou aceitar o ressarcimento dos danos causados a terceiros pela circulação do veículo id. em 1., e aceitou o ressarcimento dos danos sofridos pelo autor em caso de furto/roubo do veículo.
7. Na Clausula 38º, alínea c), das Condições gerais do escrito referido em 6., estipulou-se que, por perda total, se entende o desaparecimento do veículo seguro ou destruição do mesmo quando se verifique uma das seguintes situações: a reparação seja possível, mas o seu custo exceda a diferença entre o valor venal do veículo seguro e o valor do mesmo após o acidente; ou a reparação não seja materialmente possível ou tecnicamente aconselhável, de modo a cumprir com os requisitos de segurança”.
8. Na Cláusula 44.ª, das mesmas Condições Gerais, estipulou-se que, em caso de perda total, o valor da indemnização corresponderá ao valor venal à data do sinistro, nos termos da alínea b) da cláusula 38.ª, deduzido da franquia contratualmente aplicável e, se for o caso, do valor atribuído ao veículo após o sinistro.
9. Na cláusula 41ª das ditas Condições gerais estipulou-se a exclusão dos lucros cessantes resultantes da privação do uso do veículo.
10. Nas cláusulas especiais do mesmo escrito estipulou-se a atribuição de um veículo de substituição, em caso de sinistro, por um período máximo de 30 dias.
11. Em 30 de Dezembro de 2014 foi acordado o valor seguro de € 21.813,00.
12. Em Janeiro de 2018, o montante do capital seguro era, em caso de furto ou roubo, de € 11.395,00.
13. No dia 08 de Janeiro de 2018 foi participado à ré o evento descrito em 2 e 5, o que deu origem ao processo interno nº P218M00156.
14. Por escrito, de 22 de Janeiro de 2018, a ré informou o autor que, após vistoria da viatura, a resolução deste sinistro seria equacionada, nos termos do disposto pela c) da cláusula 38.ª das Condições Gerais da Apólice, tendo por base a perda total do veículo, apurando-se o valor seguro de € 11.395,00 e o valor do salvado de € 7.798,00.
15. No dia 29 de Janeiro de 2018, foi transmitido à ré que o autor não aceitava a perda total da viatura e que pretendia a reparação da mesma.
16. Para o efeito, o autor apresentou um orçamento, no montante de € 9.589,30, para a reparação do veículo.
17. Por escrito, de 6 de Fevereiro de 2018, a ré comunicou ao autor que considerava o veículo em situação de perda total, uma vez que o valor da reparação excedia a diferença entre o valor venal do veículo e o valor do salvado, fixando o montante da indemnização em € 3.597,00, correspondente ao montante do capital seguro deduzido do valor atribuído ao veículo após o sinistro.
18. O autor transmitiu à ré não aceitar a perda total do seu veículo, pretendendo a sua reparação, ainda que com recurso a peças usadas.
19. A reparação do veículo ascenderá a cerca de € 36.153,07.
20. O autor estima o veículo id. em 1, tendo feito esforço financeiro para o comprar.
21. O autor necessita da utilização diária de um veículo automóvel para se deslocar para o trabalho.
22. A localidade em que reside não está servida de transportes públicos.
23. Por escrito, de 16 de Maio de 2018, a seguradora reiterou a posição descrita em 17.
24. Após a comunicação aludida em 13, a ré entregou ao autor um veículo automóvel de substituição pelo período de 1 mês.
25. Desde então, o autor utilizou veículos temporariamente cedidos por amigos e familiares.

IV

Conhecendo do recurso.
O recorrente parece querer começar por impugnar o julgamento sobre a matéria de facto.
Mas há regras apertadas para que o Tribunal superior possa reapreciar a prova e analisar a justeza do julgamento de facto.

Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):

“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

Ora, da leitura das alegações do recorrente temos de concluir, dando razão à recorrida, que o mesmo não respeitou o ónus que a lei lhe impõe.
E é muito simples de explicar: a matéria de facto provada está dividida em 25 pontos, ou itens. Se o recorrente entende que algum ou alguns deles estão mal julgados, apenas tem de afirmar, nas suas conclusões, o seguinte: os pontos a), b) e c) estão mal julgados. O que deveria ter sido dado como provado, era, antes: c), d) e e). E de seguida explicava porquê.
Sucede que o recorrente não foi capaz de apontar, nem nas alegações, nem nas conclusões, sequer um dos 25 pontos da matéria de facto provada que considerasse mal julgado. Pelo contrário, e salvo o devido respeito, espraiou-se num arrazoado argumentativo que misturou matéria de facto e matéria de direito, deixando o Julgador sem perceber qual foi o facto ou factos que o recorrente considerou mal julgado, e qual o facto ou factos que ele pretendia que fossem dados como provados.
É verdade que a certa altura o recorrente, na conclusão VIII, afirma que “pelo exposto, deve ser reconhecido como valor de mercado o valor a ter em conta para efeitos de cálculo de reparação/indemnização, o valor de 18.000,00”.
Porém, se formos ver os factos provados, não encontramos aquele que o recorrente, com esta formulação, parece querer impugnar. Encontramos no ponto 11 que “Em 30 de Dezembro de 2014 foi acordado o valor seguro de € 21.813,00”; no ponto 12 que “Em Janeiro de 2018, o montante do capital seguro era, em caso de furto ou roubo, de € 11.395,00”; no ponto 14 que “Por escrito, de 22 de Janeiro de 2018, a ré informou o autor que, após vistoria da viatura, a resolução deste sinistro seria equacionada, nos termos do disposto pela c) da cláusula 38.ª das Condições Gerais da Apólice, tendo por base a perda total do veículo, apurando-se o valor seguro de € 11.395,00 e o valor do salvado de € 7.798,00; no ponto 16 que “Para o efeito, o autor apresentou um orçamento, no montante de € 9.589,30, para a reparação do veículo”; e no ponto 19 que “A reparação do veículo ascenderá a cerca de € 36.153,07”. E com relevo e interesse para a decisão da causa, o único facto não provado foi: “A) O veículo descrito em 1 estava como novo”.
Assim, entendemos que o recorrente não cumpriu os requisitos formais da admissibilidade do recurso sobre matéria de facto, pelo que não iremos conhecer do mesmo.
A matéria de facto tem-se, assim, por definitiva.

Aplicação do Direito

Estamos perante um litígio de natureza contratual.

Sabemos que em 30 de Dezembro de 2014 o autor celebrou um contrato de seguro com a ré X, titulado pela apólice nº 01622583, pelo qual transferiu para esta o risco de ressarcimento dos danos causados a terceiros pela circulação do seu veículo automóvel BMW série 5 Touring, de matrícula BX, e ainda transferiu para aquela o risco dos danos que viesse a sofrer em caso de furto/roubo do mesmo veículo.
Sabemos que o referido veículo lhe foi furtado na manhã do dia 6 de Janeiro de 2018, e que posteriormente veio a ser encontrado pela GNR, mas sem portas, capô, pára-choques frente completo, pára-choques trás completo, faróis da frente, faróis de trás, embaladeiras, jantes, pneus, banco condutor e banco de passageiro, volante completo, modulo Mulf, modulo regulador suspensão, bateria, sensores de estacionamento, e verificando-se ainda estragos na pintura e chaparia.
Perante isso, no dia 8 de Janeiro de 2018 foi participado à ré esse evento.
A ré abriu um processo interno, e por carta de 22 de Janeiro de 2018, informou o autor que, após vistoria da viatura, a resolução deste sinistro seria equacionada, nos termos do disposto pela c) da cláusula 38.ª das Condições Gerais da Apólice, tendo por base a perda total do veículo, apurando-se o valor seguro de € 11.395,00 e o valor do salvado de € 7.798,00.
O autor informou a ré no dia 29 de Janeiro de 2018 que não aceitava a perda total da viatura e que pretendia a reparação da mesma.
E assim nasceu o presente litígio.
A primeira coisa a dizer é que não estamos perante um litígio emergente de acidente de viação, mas sim perante um litígio de natureza contratual. Esta percepção tem grande importância para a solução, como se verá a seguir.

Ora, o que fez a sentença recorrida ?
Começou por lembrar que é aplicável ao caso o regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16 de Abril, na versão que lhe foi dada pela Lei nº 147/2015, de 16 de Abril, que aprovou o regime jurídico da actividade seguradora e resseguradora.
De seguida lembra que é pacífica a celebração do contrato de seguro, titulado pela apólice 01622583, mediante o qual a ré/seguradora declarou assumir, perante o autor, que aceitou, a obrigação de indemnizar os danos causados a terceiros em consequência da circulação do veículo BX, aceitando, ainda, a título de cobertura facultativa, o pagamento de indemnização devida por “furto ou roubo”, com o capital de € 21.813,00.
É igualmente consensual a ocorrência do sinistro (furto) do veículo, bem como a apresentação de proposta de indemnização de montante igual à diferença entre o capital seguro, no momento do sinistro, e o valor do salvado, por entender, a ré, tratar-se de uma perda total.
O ponto de controvérsia situa-se na concretização do direito de indemnização do autor, que rejeita a perda total do veículo por entender ser viável e economicamente razoável a sua reparação, pretendendo que lhe seja entregue o montante correspondente em prol da fixação de uma indemnização de acordo com o princípio da restauração natural.
Ora, o Tribunal recorrido diz, e bem, que “a solução terá de buscar-se, como supra se adianta, nas estipulações contratuais previstas pelas partes, relativamente às quais não se levantaram os aludidos obstáculos de natureza material, enquadradas pelo regime jurídico do contrato de seguro”.
O recorrente vem alegar que o regime jurídico do contrato de seguro não derroga as normas gerais indemnizatórias previstas nos arts 562.º a 566.º do CC, entre as quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano.
Porém, não podemos concordar com tal afirmação. Como já referimos, o presente litígio não é um litígio emergente de responsabilidade civil extracontratual, como sucede com os litígios emergentes de acidentes de viação, v.g., é antes um litígio de natureza puramente contratual.
Como ficou provado, o autor celebrou com a ré um contrato de seguro que contém duas partes bem separadas: uma parte que corresponde ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, pelo qual transferiu para a ré a eventual obrigação de ressarcir os danos causados a terceiros pela circulação do supra identificado veículo. E outra parte, que corresponde a um puro contrato de seguro facultativo, no sentido de que a sua celebração não era imposta por lei, na qual o autor transferiu para a ré o ressarcimento dos danos próprios que venha a sofrer em caso de furto/roubo do seu veículo.
A primeira parte, essa sim, implicaria, se fosse caso disso, a aplicação do regime constante dos arts. 483º e ss do Código Civil, nomeadamente as normas sobre a obrigação de indemnização.
Já a segunda parte consiste num puro contrato de seguro facultativo, que o autor celebrou porque quis, e que se rege, naturalmente e necessariamente, pelas cláusulas em que as partes acordaram, e ainda pelo regime jurídico do contrato de seguro (1). E só se não se encontrasse nas cláusulas contratuais, nem no Regime Jurídico do Contrato de Seguro a solução para o caso é que, por via do disposto no art. 4º deste último diploma, é que se iria buscar, como Direito subsidiário, a lei comercial e a lei civil.

Estamos pois perante um típico contrato de seguro que integra, na parte que aqui importa, o tipo denominado “seguro de danos” (cfr. Título II do RJCS – arts. 123º a 174º). O art. 128º de tal diploma estipula que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.

Já o art. 130º preceitua que:

“1. No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.”

Por outro lado, o art. 131º (“Regime Convencional”) estipula que:

“1. Sem prejuízo do disposto no artigo 128º e no nº 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado.”

O citado art. 128º consagra o chamado “princípio indemnizatório”; tal princípio visa evitar um enriquecimento do segurado com o sinistro nos seguros de danos em coisas.
O anterior regime continha uma disposição que também consagrava o mesmo princípio – mais propriamente, o art. 435º do Código Comercial, que estipulava: “Excedendo o valor do objecto segurado, só é válido até à ocorrência desse valor.”.
Contudo, o nº 1 do citado art. 131º do RJCS expressamente prevê a admissão genérica de derrogação esse princípio indemnizatório, consagrando a prevalência sobre este do princípio da liberdade contratual.
Quanto ao capital seguro, rege o art. 49º RJCS.
Como referem Pedro Romano Martinez e outros (Lei do Contrato de Seguro – Anotada; Almedina, 2009, p. 200), “o número 1 dispõe sobre o plafonamento da prestação do segurador”.
E sublinham os mesmos Autores (ob. Cit., p. 201) que: “nos seguros de natureza indemnizatória – em geral seguros de danos – a prestação do segurador fica sempre limitada ao valor do efectivo prejuízo, sem ultrapassar o valor do capital seguro (artigo 128.º). Em caso de sub seguro (artigo 134.º) pode acontecer que o segurador, tendo em conta o montante do efectivo dano, só responda na proporção entre o valor do interesse em risco e o valor seguro. É o que ocorrerá se não houver convenção em sentido diverso”.

Relativamente ao artigo 49º,2 os mesmos Autores (ob. cit., p. 201) referem:

“-no âmbito dos seguros obrigatórios o capital ou valor mínimo a segurar decorrerá, em princípio, da lei que institua cada um deles ou de normativo que o regulamente;
-no âmbito dos seguros facultativos plenamente regidos pela autonomia privada a solução regra é a de que cumpre ao tomador do seguro indicar, de forma explícita e clara, o valor ou capital a segurar;
-no âmbito dos seguros facultativos regidos por normas imperativas de lei especial, como é o caso dos seguros que confiram coberturas relativas a danos próprios de veículos automóveis, regulados pelo Decreto-Lei n.º 214/97, de 16.08, cabe ao tomador do seguro fornecer ao segurador os dados que permitam a determinação do valor ou capital seguro, tendo em conta o regime estabelecido”. Mas o diploma em causa não define o que seja perda total, ficando pois esse conceito disponível para ser definido e configurado pela autonomia privada.

Foi o que se passou no caso destes autos, onde não só está contratualmente definido quando ocorre perda total, como ficou provado o valor do veículo à data do sinistro. Veja-se o ponto 12: em Janeiro de 2018, o montante do capital seguro era, em caso de furto ou roubo, de € 11.395,00.
Não se pode pois duvidar, face ao disposto no art. 128º (e não havendo acordo em contrário), que o segurador, atento o referido princípio indemnizatório, apenas é obrigado a pagar o valor da coisa no momento do sinistro.

Por outro lado, como bem notou a sentença recorrida, as cláusulas do contrato celebrado entre as partes permitem resolver o litígio, não sendo necessário o recurso ao direito subsidiário.
Pode ler-se na sentença recorrida: “analisando as cláusulas gerais do contrato de seguro em questão (cláusula 38.ª, al. c), verifica-se que o conceito de perda total foi definido, na parte que interessa à resolução do presente litígio, com recurso a um cálculo diferencial entre o valor do veículo antes e depois do sinistro, considerando-se em perda total e, logo, insusceptível de reparação, o veículo cujo custo de reparação exceda a diferença entre o seu valor venal e o valor do salvado. E, neste caso (da perda total), estipulou-se, na cláusula 44ª, que o valor da indemnização corresponderá ao valor venal à data do sinistro, nos termos da alínea b) da cláusula 38ª, deduzido da franquia contratualmente aplicável e, se for o caso, do valor atribuído ao veículo após o sinistro.
Depois é feita uma referência ao artigo 41º do DL 291/2007, de 21 de Agosto, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL 153/2008, de 6 de Agosto, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que densificou o conceito de perda total para os veículos intervenientes num acidente.
Regressando ao caso dos autos, o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral (art. 11º RJCS).
Ou seja, como decidiu e bem a sentença, o contrato dos autos irá reger-se pelas cláusulas estipuladas entre as partes, que não se revela extravasarem os limites da lei, de acordo com os termos da apólice vigente que previa, em caso de furto ou roubo, à data do sinistro, um capital seguro de € 11.395,00.
A partir daqui, diga-se, a sentença recorrida limitou-se a confirmar que de acordo com as cláusulas contratuais assentes pelas partes o sinistro ocorrido levou à perda total do veiculo (cfr. Parte II, do Seguro Facultativo, cláusula 38ª,c), segundo a qual, para efeitos do presente contrato entende-se por: (…) c) Perda Total, o desaparecimento do veículo seguro ou destruição do mesmo quando se verifique uma das seguintes situações: i. A reparação seja possível, mas o seu custo exceda a diferença entre o valor venal do veículo seguro (determinado pela aplicação da referida Tabela de Desvalorização) e o valor do mesmo após o acidente; ii. A reparação não seja materialmente possível ou tecnicamente aconselhável, de modo a cumprir com os requisitos de segurança).
O recorrente, tendo falhado na sua pretensão de ver alterada a decisão sobre matéria de facto, argumenta com a aplicação do DL 291/2007, e com a interpretação que lhe tem vindo a ser dada pela jurisprudência, de o mesmo não se aplicar à fase judicial mas sim na fase extrajudicial no domínio da apresentação aos lesados de uma proposta de regularização do sinistro, e de o mesmo não derrogar as normas gerais indemnizatórias previstas nos arts. 562º a 566º CC. Porém, olvida que nestes autos estamos no domínio do seguro facultativo (2), e o regime legal que cita aplica-se apenas ao contrato de seguro obrigatório.
Assim, toda a sua argumentação poderia fazer sentido perante um caso de seguro obrigatório, que não é aquele com que estamos a lidar.
E, desta forma, o recorrente não alega nada de relevante para o presente caso, nomeadamente não coloca em causa as cláusulas do contrato de seguro facultativo que celebrou, não coloca em causa a interpretação e aplicação que a sentença recorrida delas fez, e nem sequer ataca as referidas cláusulas por outra qualquer via, nomeadamente invocando a sua nulidade.
Donde, não merece censura a decisão da ré/recorrida em, aplicando as cláusulas constantes do contrato celebrado com o autor, concluir pela perda total do veículo. Ao fazê-lo, limitou-se a cumprir o contrato que celebrou.
Nesta parte improcede o recurso.

Resta agora averiguar a questão do dano de privação do uso.
Provou-se, em resumo, que nas cláusulas especiais do contrato celebrado entre recorrente e recorrida estipulou-se a atribuição de um veículo de substituição, em caso de sinistro, por um período máximo de 30 dias. Provou-se ainda que o autor participou o sinistro à ré no dia 8 de Janeiro de 2018, e que após essa participação a ré entregou ao autor um veículo automóvel de substituição pelo período de 30 dias.
Ora, o autor não se contenta com esses 30 dias, pois afirma que esteve 400 dias impedido de usar e dispor do bem. E durante todo esse tempo o autor teve de utilizar veículos que lhe eram temporariamente cedidos por amigos e familiares. Todos os dias necessita de um veiculo automóvel para ir trabalhar, pois de outro modo não é possível, onde reside não passam transportes públicos e deslocar-se de táxi é demasiado dispendioso.
Assim, o autor entende que o dano que sofreu pela privação do uso do seu veículo deve ser quantificado por recurso a critérios de equidade. E por isso pede €10,00/dia.
Porém, a sentença recorrida começa logo por chamar a atenção para uma realidade simples e incontroversa: de acordo com as cláusulas especiais do contrato (contrato de seguro facultativo, recordemos), estipulou-se um período máximo de 30 dias para o uso de veículo de substituição, em caso de sinistro. E a ré proporcionou ao autor um veículo de substituição pelo período contratualmente acordado. A sentença ainda nota que, nas condições contratuais acordadas, na sua cláusula 41ª, ficaram expressamente excluídos do valor indemnizatório os lucros cessantes resultantes da privação do uso do veículo; o que frustra, novamente, a pretensão do autor.
Assim, a situação é simples: o autor pode ter ficado privado de utilizar o seu veículo por muito mais do que 30 dias. Simplesmente, se quiser ser integralmente ressarcido desse dano, terá de demandar o desconhecido ou desconhecidos que lhe furtaram e destruíram o veículo. Ao demandar a ré seguradora, apenas pode exigir desta aquilo que resulta do contrato que com ela celebrou. E o que resulta do contrato é a concessão de veículo de substituição pelo período máximo de 30 dias.
Também esta parte do recurso improcede.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente, e confirma integralmente a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 12/11/2020

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. Cfr, a propósito, o Acórdão do STJ de 13.7.2017 (Maria da Graça Trigo), proferido no P. 188/14.3T8PBL.C1.S1
2. Embora, como vimos supra, seguro que é regido por algumas normas imperativas de lei especial.