ACÇÃO TUTELAR COMUM
RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
Sumário

I – Exercendo ambos os progenitores o “direito de custódia” da criança, o qual inclui o “direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular o direito de decidir sobre o lugar da sua residência” [art. 5º, al. a), da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980], a deslocação do Brasil e permanência em Portugal da menor por decisão unilateral da progenitora, contra a vontade do progenitor e sem autorização judicial, constitui uma deslocação ou retenção ilícita de tal menor (art. 3º, al. b), daquela Convenção);
II – Tendo decorrido um período de menos de 1 ano entre tal deslocação ou retenção e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa de Estado contratante naquela Convenção onde a criança se encontra, deverá, conforme se dispõe no art. 12º da mesma, ser ordenado o regresso imediato da criança;
III – Tal regresso imediato só não será de ordenar caso se apure de alguma das situações previstas no art. 13º da Convenção.

Texto Integral

Processo nº2220/19.5T8GDM.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia – Juiz 3)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

O Ministério Público, em representação da menor B…, nascida a 7/8/2009,instaurou em 17/6/2019 acção tutelar comum urgente contra C…, mãe daquela, residente na …, nº.., 3º Dto., …, Valongo, pedindo que, de acordo com o disposto nos arts. 3º, 7º e 12º da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25/10/1980, se determine o regresso imediato da menor ao Brasil por, em seu entender, se configurar uma situação de retenção ilícita da mesma por parte da progenitora.
Alegou para tal o seguinte:
- que a menor é filha da Requerida e de D…, ambos de nacionalidade brasileira;
- que, devido à separação dos seus progenitores, por decisão judicial proferida em 21 de Junho de 2018 no âmbito de Acção de Reconhecimento e de Dissolução de União Estável cumulada com Partilha de Bens e Pensão Alimentícia, da 13ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza e com o nº0048904-89.2012.8.06.0001, foi fixada a residência da menor com a progenitora, regime de convívios com o pai e valor da pensão de alimentos a pagar por este;
- que no processo judicial ora referido foi remetido para decisão em processo autónomo o pedido da progenitora de autorização de saída do Brasil com aquela sua filha para o estrangeiro e de ali fixar residência, no caso, em Portugal;
- que por decisão judicial proferida em 14/5/2018 no âmbito da Acção de Suprimento de Autorização de Viagem ao Exterior, que correu termos na 3ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Fortaleza sob o nº0125659-47.2018.8.06.0001, foi indeferido o pedido da progenitora de se ausentar do Brasil com a filha;
- que, apesar disso, em 6/8/2018 a Requerida abandonou o Brasil com aquela menor sua filha sem consentimento do progenitor, passou a residir com ela na morada supra referida não mais regressando à sua casa sita no Brasil e mantém a filha a viver em Portugal contra a vontade ou sem consentimento do progenitor, o qual, desde o momento da saída daquela do Brasil, se encontra impossibilitado de com ela conviver e de exercer as suas competências parentais.
Juntou documento relativo à identificação da menor e seus progenitores (fls. 19 dos presentes autos), cópias das decisões judiciais e dados dos processos que referiu (fls. 20 a 60 dos presentes autos) e ainda documento que integra um pedido de retorno da referida menor ao Brasil formulado pelas autoridades judiciárias brasileiras ao abrigo da Convenção de Haia de 1980 Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, na sequência de solicitação do seu progenitor (fls. 7 a 13 dos presentes autos).
Citada a Requerida, pela mesma foram apresentadas as alegações constantes de fls. 85 a 88, pugnando pela improcedência do pedido, porquanto, em suma, a acção carece de fundamento fáctico e legal, por assentarem errados pressupostos, sendo certo que, no seu entendimento, da sentença proferida no processo 0048904-89.2012.8.06.0001 resulta confirmada a autorização para que a menor B… viaje para o exterior na companhia da mãe, inexistindo qualquer outra decisão judicial posterior que revogue ou altere tal autorização.
Foi solicitado e junto relatório social sobre as condições sociais, morais, económicas, habitacionais e familiares da progenitora e acerca da situação pessoal, escolar, social, habitacional e familiar da criança.
Procedeu-se à audição da progenitora e da criança.
Notificado o progenitor para, em dez dias, alegar o que tivesse por conveniente, o progenitor nada disse, apenas constituindo mandatário nos autos.
Face às alegações apresentadas pela progenitora, foram solicitados esclarecimentos junto da 13.ª Vara acerca do teor da sentença proferida no processo 0048904-89.2012.8.06.0001, acima referido (os quais constam dos ofícios constantes de fls. 108, 152 e 153 dos presentes autos).
O Mº Pº promoveu se considere ilícita a deslocação da criança, determinando-se o seu regresso imediato ao Brasil, a executar no prazo máximo de 30 dias,cabendo à progenitora diligenciar por tal regresso (fls. 154 a 162 dos presentes autos).
De seguida, foi proferida sentença na qual se decidiu nos seguintes termos (transcreve-se):
Pelo exposto, julga-se procedente a presente acção e, em consequência:
- Declara-se ilícita a deslocação da criança B… do Brasil para Portugal;
- Determina-se o regresso imediato da criança ao Brasil, a executar no prazo máximo de trinta dias, cabendo à progenitora diligenciar por tal regresso.

De tal sentença veio a Requerida interpor recurso – e com este apresentar o documento constante de fls. 184 a 193 (constituído pelo acórdão, datado de 4 de Fevereiro de 2020, proferido no processo nº0048904-89.2012.8.06.0001 na sequência de recursos interpostos da decisão da primeira instância) –, tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:

A) A requerida viajou do Brasil para Portugal com a menor mediante autorização judicial, como se alcança dos documentos juntos aos autos.
B) A decisão de impor o regresso ao Brasil foi apenas fundamentada pelo teor da informação prestada pela justiça brasileira em 3/01/2020.
C) Essa informação não foi notificada à recorrente, violando o princípio do contraditório.
D) Tal informação é omissa, errada, e de todo não assegura com certeza e convicção a viagem sem autorização, como foi retirado e interpretado pelo tribunal a quo.
E) Tanto assim o é que foi proferido acórdão sobre a guarda da aqui menor, e o mesmo dispõe que a menor viajou para Portugal mediante autorização judicial. – documento n.º 1 que se requer a sua admissão.
F) Assim resulta que o tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, sendo que a sua interpretação resulta, de forma inequívoca, um resultado totalmente diverso.
G) Até é a própria justiça brasileira que o diz!
H) Além disso, e sem prescindir, o requerido progenitor não cumpre nem nunca cumpriu os seus direitos de visita à menor, mesmo quando esta estava no Brasil, como resulta das declarações da progenitora, por nada impugnadas, pelo que, a Convenção de Haia exclui, nestes casos, a sua aplicação.
I) A decisão não contempla nem afere do interesse da menor, como deveria.
J) Perante esta factualidade, a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que considere a viagem da menor para Portugal realizada mediante autorização, ou mesmo que assim não se considere, atento o incumprimento da regulação do poder parental do progenitor, a aplicação da Convenção de Haia está excluída.

Pelo Sr. Procurador da República foi apresentada resposta ao recurso da Requerida (fls. 207 e sgs.), na qual, após análise de dados recolhidos nos autos que referiu e considerando, designadamente:
- que, “contrariamente ao defendido pela progenitora (…) e resulta da leitura dos documentos juntos ao saltos, a justiça brasileira não autorizou a mesma a fixar residência fora do Brasil (e mais concretamente em Portugal) na companhia da criança sem o consentimento do progenitor. Com efeito, quaisquer dúvidas que subsistissem nesse prisma foram dissipadas com as informações fornecidas pela 13ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza e que constam do já citado ofício junto a fls. 152 dos autos”;
- que, como resulta do art. 13º da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, “o regresso da criança ao seu país de origem apenas não seria determinado se fosse comprovada a existência de risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, então, da criança ficar numa situação intolerável e ainda se a autoridade judicial ou administrativa verificar que a criança se opõe ao regresso e que a mesma já tem idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto”;
- que “incumbe a quem se opõe ao regresso da criança o ónus de alegação e prova das situações que legitimam a recusa na sua determinação” (refere dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa nesse sentido), que “no caso presente a progenitora não juntou prova minimamente consistente de que o regresso da B… ao Brasil a coloca em eventual situação de “risco grave”” e que “dos elementos recolhidos nos autos também não se retira, de todo, a existência de tal risco” e que, “por outro lado, é de assinalar que aquando da sua inquirição a criança não se opôs ao regresso ao país natal”, pois a mesma “declarou de forma convicta que gosta de estar em Portugal mas preferia viver no Brasil, que gosta muito dos dois progenitores e que quando vivia no Brasil convivia regularmente com o pai, de quem tem muitas saudades, e que desde que está em Portugal não tem falado com o pai, nem por telefone”;

concluiu que, no seu entendimento, a decisão proferida não merece qualquer censura ou reparo, devendo ser integralmente confirmada.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Considerando que o objecto do recurso – sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso – é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar:
a) – apurar se a menor B… saiu do Brasil para Portugal sem autorização;
b) – apurar se se verificam os pressupostos para ordenar o seu regresso ao Brasil.

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II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da primeira questão enunciada.
Uma vez que o recurso se restringe a matéria de direito– pois nele não se evidencia qualquer impugnação da matéria de facto, quer provada quer não provada, da sentença recorrida, nos termos exigidos pelo art. 640º nº1 do CPC –, há que dar conta da factualidade provada a ter em conta.
É ela a seguinte [a referida na decisão sob recurso, com o acrescento de mais alguns detalhes constantes dos documentos juntos aos autos referentes aos processos e decisões judiciais proferidas pelos tribunais brasileiros,o que se faz ao abrigo do disposto nos arts. 663º nº2 e 607º nº4, 2ª parte, do CPC]:

1 – B… nasceu em 7 de Agosto de 2009, em Fortaleza, no Brasil, sendo filha de C… e de D…;
2 – No âmbito da “acção de suprimento de autorização para viagem ao exterior”, instaurada pela ora Requerida em representação daquela menor na data de 4 de Abril de 2018 com a menção de “Urgência”, cujo processo correu termos sob o n.º 0125659-47.2018.8.06.0001 na 3.ªVara de Infância e Juventude da Comarca de Fortaleza, no Brasil, foi em 14 de Maio de 2018 proferida decisão nos seguintes termos (que se transcrevem):
Indefiro a tutela de urgência, negando autorização para que a progenitora possa levar a criança para o exterior, porquanto não vislumbro os rígidos requisitos do art. 300 do Código de Processo Civil.
Após triangularização processual, o juízo reanalisará o pleito da parte.
[fls. 50 a 55 destes autos e fls. 1 a 8 e 25 a 27 do respectivo processo, como se vê do canto superior direito de tais folhas]
3 – Consta de tal processo um requerimento manuscrito e subscrito com o nome da progenitora da menor, datado de 12 de Julho de 2018, a requerer a desistência de tal acção.
[fls. 55-verso destes autos e fls. 34 do respectivo processo]
4 – Tal processo – na sequência de um requerimento feito pelo Defensor Público, já em 17 de Abril de 2019, a tal requerer – foi extinto sem o exame do seu mérito.
[fls. 60 dos presentes autos, correspondente a fls. 75 do respectivo processo, e fls. 108 também dos presentes autos]
5 –No âmbito da acção de reconhecimento e de dissolução de união estável cumulada com partilha de bens e pensão alimentícia, instaurada pela progenitora, que corre termos sob o n.º 0048904-89.2012.8.06.0001 na 13.ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza, no Brasil, por sentença disponibilizada no processo em 3 de Agosto de 2018, foi:
- julgada procedente a acção de união estável, reconhecendo o período de Outubro de 2005 a Agosto de 2012, como início e término da convivência entre as partes, C… e D…;
- julgada procedente a acção de guarda, estabelecendo o seu exercício na modalidade compartilhada, em proveito dos progenitores da menor;
[fls. 21 a 33 dos presentes autos e fls. 1806 a 1818 do respectivo processo, tendo em conta as menções constantes do lado direito de cada uma de tais folhas sobre assinatura digital e data da colocação nos autos de tal sentença]
6 – Nessa sentença, para além de se fixar que as responsabilidades parentais são partilhadas por ambos os progenitores, foi fixada a residência da criança com a progenitora, um regime de convivência com o pai (aos fins-de-semana alternados, de sexta-feira pelas 18 horas até às 18 horas de Domingo, além de um dia da semana, preferencialmente quarta-feira, no horário das 18 às 21 horas, na semana em que a criança não esteja de fim-de-semana com a mãe) e nas férias escolares e o valor da pensão de alimentos a pagar pelo pai à filha, tendo-se ali ainda referido que “Confirmada a autorização para que a menor B… viaje para o exterior na companhia da mãe, fica assegurado ao genitor dela a prerrogativa de tê-la em sua companhia nos períodos integrais de férias escolares, ficando cada um dos pais responsável pelo deslocamento de vinda ao Brasil e ida a Portugal, de forma alternada, em cada viagem” e que aquele regime de convivência com o pai supra referido era ali regulamentado para prevalecer “Como medida de cautela, até que dirimida a matéria sobre o suprimento da viagem da menor, no juízo competente”;
[fls. 33 dos presentes autos e fls. 1818 do respectivo processo]
7 –Nos próprios autos do processo que se vem de referir (nº0048904-89.2012.8.06.0001 da 13.ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza), foi interposto pela progenitora em representação daquela menor, em 3 de Julho de 2018, com a menção “Em carácter de urgência”, um pedido de “Autorização Judicial de Suprimento de Autorização Paterna” para a realização de viagem ao exterior [fls. 40 a 42-verso dos presentes autos e fls. 1777 a 1782 do respectivo processo], sobre o qual recaiu a decisão que consta de fls. 1801 do respectivo processo [fls. 43 dos presentes autos], proferida a 5 de Julho de 2018, a qual termina com o seguinte segmento (que se transcreve):
Indefiro a postulação de fls. 1777/1782, pelas razões acima mencionadas, devendo a parte interessada ingressar com pleito perante o Juízo próprio
8 – No seguimento do referido sob os anteriores números 6 e 7, foi informado pela 13ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza, a 19 de Dezembro de 2019, que a decisão proferida no processo nº0048904-89.2012.8.06.0001 “não autorizou ou denegou a fixação da residência da menor em outro país, apenas regulamentou a convivência caso houvesse a autorização do juízo competente” e foi informado ainda que tal processo “encontra-se em grau de recurso”;
[ofício nº 135/2019, constante de fls. 152 dos presentes autos]
9 – Existem outras duas acções, nomeadamente uma acção “Cautelar Inominada para Renovação de Passaporte” (proc. n.º 0148550-29.2019.8.06.001) e uma acção “Cautelar de Busca e Apreensão” (proc. n.º 0165183-51.02018.8.06.0001), esta última instaurada pelo progenitor;
10 – A B… residia em Fortaleza, no Brasil, com a progenitora;
11 – Em 6 de Agosto de 2018, a progenitora abandonou o Brasil e veio para Portugal com a filha B…, sem a concordância e contra a vontade do progenitor;
12 – Desde essa data, a B… reside em Portugal com a mãe;
13 – Até 6 de Agosto de 2018, a B… sempre viveu no Brasil;
14 – A progenitora viajou para Portugal com a filha com visto de turista, o qual se encontra caducado, estando a diligenciar junto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para regularizar a situação;
15 – A B… não possui passaporte válido, por oposição do progenitor, estando a progenitora a diligenciar pela sua regularização;
16 – Quando vieram para Portugal, a progenitora e a B… ficaram algum tempo a residir em …, em casa de uma amiga da progenitora, também de nacionalidade brasileira;
17 – No final de Janeiro/início de Fevereiro de 2019, passaram a residir em Vila Nova de Gaia na casa de E…, com quem a progenitora estabeleceu relação de união de facto;
18 – Actualmente, o agregado é constituído pela progenitora, pela B…, pelo companheiro da progenitora e, em semanadas alternadas, por uma filha deste, com seis anos de idade;
19 – Residem num apartamento de tipologia dois, com boas condições de habitabilidade, organizado e higienizado, aí possuindo a B… um quarto equipado com um beliche, o qual partilha com a filha do companheiro da progenitora, nas semanas em que esta criança reside no agregado;
20 – O companheiro da progenitora é engenheiro informático, auferindo cerca de € 1.600,00;
21 – A B… frequenta o 4.º ano de escolaridade, na EB1 …, sendo aluna assídua, pontual, interessada, participativa, encontrando-se bem integrada no contexto escolar e sendo caracterizada como uma criança com bom relacionamento com os pares e adultos;
22 – A progenitora trabalha numa loja, num centro comercial, em Vila Nova de Gaia;
23 – A progenitora revela competências parentais e afecto para com a B…, contando com o apoio do companheiro para a prestação de cuidados e para garantir a satisfação das suas necessidades básicas;
24 – A B… gosta muito dos dois progenitores e, quando vivia no Brasil, convivia regularmente com o pai;
25 – Desde que está em Portugal, a B… não tem falado com o pai, nem por telefone, tendo muitas saudades dele;
26 – A B… gosta de estar em Portugal, mas preferia viver no Brasil.

Face à factualidade supra elencada, parece-nos ser claro de concluir que, como se fez na sentença recorrida, a menor B… saiu do Brasil para Portugal sem o consentimento do seu progenitor e também sem qualquer autorização judicial que pudesse suprir tal falta de consentimento.
Que saiu sem o consentimento do seu progenitor, é matéria que consta desde logo apurada sob o nº11 dos factos provados da sentença recorrida, onde se explicitamente se refere que a saída da menor do Brasil ocorreu sem a concordância e contra a vontade do progenitor (aliás, é este progenitor que figura como requerente do pedido de retorno da referida menor ao Brasil formulado pelas autoridades judiciárias brasileiras ao abrigo da Convenção de Haia de 1980 Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, como consta documentado de fls. 7 a 13 dos presentes autos).
E que saiu também sem qualquer efectiva autorização judicial que pudesse suprir a falta de consentimento do progenitor, é também evidente.
Vejamos.
Sobre a autorização judicial para a menor poder sair do Brasil – que a sua mãe e ora Requerida tentou obter junto das autoridades judiciais brasileiras –, temos o seguinte:
- uma primeira “acção de suprimento de autorização para viagem ao exterior”, instaurada pela ora Requerida em representação da menor na data de 4 de Abril de 2018 com a menção de “Urgência”, cujo processo correu termos sob o n.º 0125659-47.2018.8.06.0001 na 3.ª Vara de Infância e Juventude da Comarca de Fortaleza, na qual foi em 14 de Maio de 2018 proferida decisão a indeferir a tutela de urgência e a expressamente negar autorização para que a progenitora possa levar a criança para o exterior (nº2 dos factos provados);
- dessa acção consta depois um requerimento manuscrito e subscrito com o nome da progenitora da menor, datado de 12 de Julho de 2018, a requerer a desistência da mesma e, depois ainda, um requerimento feito pelo Defensor Público, já em 17 de Abril de 2019, a requerer a extinção do processo sem o exame do seu mérito, como acabou por ocorrer(nºs 3 e 4 dos factos provados);
- além de tal acção, a Requerida, nos próprios autos da acção de reconhecimento e de dissolução de união estável cumulada com partilha de bens e pensão alimentícia, por si instaurada, que corre termos sob o n.º 0048904-89.2012.8.06.0001 na 13.ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza, interpôs em 3 de Julho de 2018, em representação da menor e com a menção “Em carácter de urgência”, um pedido de “Autorização Judicial de Suprimento de Autorização Paterna” para a realização de viagem ao exterior, sobre o qual recaiu a decisão proferida a 5 de Julho de 2018, que indeferiu tal pedido (constante de fls. 1777 a 1782 do respectivo processo) por motivos ligados à competência específica de tal tribunal (como se vê do teor de fls. 43 dos presentes autos, onde consta a mesma) e ordenou à parte interessada (à ora Requerida na qualidade de representante da menor em que ali se apresentava) para propor esse pedido de autorização perante o Tribunal/Juízo competente para tal (“devendo a parte interessada ingressar com pleito perante o Juízo próprio”, como ali se diz) – nº 7 dos factos provados e documentos ali referidos;
- na sequência desta decisão – de remeter a interessada para o (outro) Tribunal/Juízo próprio competente para decidir de tal pedido de autorização judicial para suprimento de autorização paterna –, veio a referir-se na sentença final proferida pelo tribunal de primeira instância naquele processo nº0048904-89.2012.8.06.0001 que o regime de convivência da menor com o pai ali regulamentado (aos fins-de-semana alternados, de sexta-feira pelas 18 horas até às 18 horas de Domingo, além de um dia da semana, preferencialmente quarta-feira, no horário das 18 às 21 horas, na semana em que a criança não esteja de fim-de-semana com a mãe) era para prevalecer como medida cautelar“até que dirimida a matéria sobre o suprimento da viagem da menor, no juízo competente”, já que, adiantava-se ali também, caso viesse a ocorrer (no Tribunal/Juízo competente para dirimir tal questão, para onde foi remetida a ora Requerida) a autorização para que a menor pudesse viajar para o exterior na companhia da mãe ficava assegurado ao seu progenitor “a prerrogativa de tê-la em sua companhia nos períodos integrais de férias escolares, ficando cada um dos pais responsável pelo deslocamento de vinda ao Brasil e ida a Portugal, de forma alternada, em cada viagem” (nº6 dos factos provados);
Estes são os dados que temos e deles, face ao seu conteúdo, decorre o seguinte:
-no processo nº0125659-47.2018.8.06.0001, como supra se anotou, foi proferida decisão liminar de indeferimento da tutela de urgência e a expressamente negar autorização para que a progenitora possa levar a criança para o exterior e, posteriormente, tal processo foi extinto sem exame do seu mérito;
- no processo nº0048904-89.2012.8.06.0001 não chegou a ocorrer qualquer decisão a conferir tal autorização, apenas se tendo ali adiantado que, caso viesse a ocorrer– no Tribunal/Juízo competente para dirimir tal questão, para onde foi remetida a ora Requerida – a autorização para que a menor pudesse viajar para o exterior na companhia da mãe ficava assegurado ao seu progenitor “a prerrogativa de tê-la em sua companhia nos períodos integrais de férias escolares, ficando cada um dos pais responsável pelo deslocamento de vinda ao Brasil e ida a Portugal, de forma alternada, em cada viagem” (tudo aliás conforme a informação referida sob o nº8 dos factos provados, proveniente do tribunal que proferiu a decisão em causa).
Por outro lado, não há mais nenhum dado sobre algum eventual outro pedido de autorização formulado pela Requerida, em representação da menor, na sequência da decisão incidentalmente proferida no processo nº0048904-89.2012.8.06.0001 em 5 de Julho de 2018 que acima se deu conta (que lhe ordenou que viesse a formular tal pedido perante o Tribunal/Juízo competente para tal).
Nesta sequência, cumpre ainda dizer que o documento junto pela Recorrente com as suas alegações de recurso (como doc. nº1 e constante de fls. 184 a 193, constituído pelo acórdão, datado de 4 de Fevereiro de 2020, proferido no processo nº0048904-89.2012.8.06.0001 na sequência de recursos interpostos da decisão da primeira instância) – que ora se admite por ele próprio só ter sido produzido em data posterior à da sentença recorrida (arts. 651º nº1 e 425º do CPC) – não adianta nada que possa infirmar as conclusões que acima se acabaram de retirar dos documentos que se analisaram.
Efectivamente, em tal acórdão mais não se faz do que, por unanimidade de votos dos respectivos desembargadores, negar provimento aos recursos interpostos da decisão da primeira instância (vide último parágrafo de fls. 184, que integra fls. 2001 do respectivo processo) e nele – assim como já acontecia na sentença sobre que se debruça, como supra se analisou – não se decide nada no sentido da autorização de saída da menor para fora do Brasil.
Como tal, a alusão que ali consta (fls. 191 dos presentes autos e fls. 2008 do respectivo processo) e referida pela Recorrente sob o nº 17 da motivação do seu recurso, no sentido de que a menor filha do casal veio para Portugal com a mãe “mediante autorização judicial”, é manifestamente errada e derivará, com certeza, de alguma falta de atenção do Sr. Desembargador relator, pois tal autorização judicial, como se viu (decorre dos próprios autos do processo onde foi proferido tal acórdão, se analisados nos termos que acima referimos), efectivamente não existe (apenas se refere tal autorização como uma possibilidade futura, na sequência de se ter remetido a ora Requerida para um outro Tribunal/Juízo competente para dirimir tal questão e, por outro lado, nada se apurou no sentido de que a ora Requerida tenho ido a tal Tribunal/Juízo competente para assim fazer).

Deste modo, por tudo quanto se vem de referir, é de concluir pela não existência de qualquer autorização judicial das autoridades brasileiras para a menor poder sair do Brasil.
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Passemos ao tratamento da segunda questão.
Conforme se dispõe no art. 3º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída na Haia em 25 de Outubro de 1980, que entrou em vigor em Portugal em 1 de Dezembro de 1983 (conforme Decreto do Governo nº33/83 de 11/5 e Aviso publicado no DR nº126/84, I Série, de 31/5/1984):
A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:
a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e
b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.
O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado”.

Tendo sido reguladas as responsabilidades parentais sobre a menor nos termos referidos sob o nº6 dos factos provados, em sede do qual foi estabelecido um regime de convivência com o pai, é de concluir que tais responsabilidades se encontram partilhadas entre a mãe e o pai.
Assim, e no mesmo sentido do que se refere na sentença recorrida, exercendo ambos os progenitores o “direito de custódia” da criança, o qual inclui o “direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular o direito de decidir sobre o lugar da sua residência” (art. 5º, al. a), daquela Convenção), a deslocação e permanência em Portugal da menor por decisão unilateral da progenitora, contra a vontade do progenitor e sem autorização judicial – como supra se concluiu –, constitui uma deslocação ou retenção ilícita de tal menor (art. 3º, al. b), daquela Convenção).
Nos termos do art. 12º daquela mesma Convenção, “Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança”.
Ora, tendo a deslocação da menor para Portugal ocorrido em 6 de Agosto de 2018 (nº11 dos factos provados) e tendo-se iniciado os presentes autos junto do tribunal português em 17/6/2019 (como referimos no relatório desta peça e consta de fls. 2 dos autos), é de concluir que entre tais datas decorreu o período de menos de um ano ali referido.
Como tal, como ali se prevê, deve ser ordenado o regresso imediato da criança ao Brasil.
Tal regresso imediato só não seria de ordenar se, como previsto no art. 13º do diploma em referência:
- tivesse sido produzida prova pela Requerida no sentido de que o pai da menor não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência [alínea a) do primeiro parágrafo];
- tivesse sido produzida prova pela Requerida no sentido da existência de risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou, então, da criança ficar numa situação intolerável[alínea b) do primeiro parágrafo];
- ou a autoridade judicial (o tribunal português) verificar que a criança se opõe ao regresso e que a mesma já tem idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto [segundo parágrafo].
Ora, como decorre da matéria de facto apurada (que a Recorrente aceitou, pois, como já se anotou acima, no recurso não se evidencia qualquer impugnação da matéria de facto da sentença recorrida, quer provada quer não provada, nos termos exigidos pelo art. 640º nº1 do CPC), nenhuma de tais situações se verifica, sendo aqui especificamente de anotar que de tal matéria de facto nada resulta provado no sentido do que a Recorrente faz constar sob a conclusão H) da sua peça recursiva, de que o progenitor da menor “não cumpre nem nunca cumpriu os seus direitos de visita à menor, mesmo quando esta estava no Brasil”.
Aliás, a própria menor, como decorre dos factos provados sob os nºs 24, 25 e 26 e bem anota o Sr. Procurador da República na sua resposta ao recurso interposto, declarou que gosta de estar em Portugal mas preferia viver no Brasil, que gosta muito dos dois progenitores, que quando vivia no Brasil convivia regularmente com o pai, de quem tem muitas saudades, e que desde que está em Portugal não tem falado com o pai, nem por telefone.

Assim, na decorrência de tudo quanto se vem de referir, é de confirmar integralmente a sentença recorrida.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
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Porto, 12/10/2020
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim