AUTORIDADE DO CASO JULGADO
UNIÃO DE FACTO
EFEITOS PATRIMONIAIS
Sumário

I - Em regra o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão, ou melhor estes fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando desligados da respectiva decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamento da decisão e em conjunto com esta.
II - Esta regra comporta, todavia, excepções sendo que, a jurisprudência tem reiterado que são abrangidas pelo caso julgado as questões apreciadas que constituem antecedente lógico da parte dispositiva da sentença.
III - A união de facto embora seja reconhecida pela Lei nº 7/2001, de 11/05, revista pela Lei n.º 23/2010, de 30/08, como realidade sociológica e goze da protecção que este diploma lhe confere, não tem qualquer repercussão ao nível do património dos membros da união de facto, pelo que, exceptuando-se os casos em que os conviventes tenham, no gozo da sua autonomia privada e liberdade contratual, celebrado entre eles “contratos de coabitação”, em que pactuem na constituição de um património comum, a união de facto, por si só, é insusceptível de originar um património comum.
IV - A constituição desse património comum poderá ocorrer por força do funcionamento dos institutos do direito comum, nomeadamente através do regime próprio da compropriedade.

Texto Integral

Processo nº 214/14.6T2AND.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Central Cível de Aveiro-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, solteiro, residente em Rua …, bloco ., 3º Dtº., Oliveira de Frades, instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra C…, residente em Rua …, n.º .., …, Águeda, formulando os seguintes pedidos:
A) Condenação da ré a reconhecer o autor como dono e legítimo proprietário em comum e em partes iguais com a ré, e que, nessa qualidade, é dono e legítimo possuidor, na mesma proporção, do prédio identificado no artigo 4º de todas as benfeitorias e demais construções nele levadas a efeito, bem como dos móveis com que o dito imóvel urbano foi apetrechado, adquiridos pelo casal na constância da vida em comum;
B) Condenação da ré a abster-se de todo e qualquer acto que impeça o autor a normal administração, uso e fruição daqueles bens, naquela qualidade de possuidor e proprietário dos mesmos, em regime de compropriedade e na mesma proporção da ré;
C) Subsidiariamente, condenação da ré a restituir ao autor as quantias por este adiantadas para pagamento do imóvel urbano, das construções edificadas, benfeitorias, obras de conservação, reparação e manutenção e para pagamento dos móveis com que apetrecharam a casa de habitação, importâncias essas com que a ré se locupletou, assim como os juros legais, vencidos e vincendos, até efectivo reembolso do autor, nos termos do artigo 473º do C. Civil, quantia essa cujo apuramento se relega para liquidação em execução de sentença por de momento ser impossível determiná-la.
Sumariamente alega que correu seus termos, entre as mesmas partes, um processo judicial em que o autor impugnou uma escritura de justificação judicial outorgada pela ré, em que esta se declarou como exclusiva proprietária do imóvel identificado no artigo 4º da PI.
A acção foi contestada e a ré deduziu pedido reconvencional.
A acção foi julgada improcedente mas por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra foi revogada a decisão e declarada a nulidade da escritura de justificação notarial e julgado improcedente o pedido reconvencional.
No referido processo foram dados vários factos como provados, em concreto que autora e ré viveram em união de facto no imóvel em causa durante, pelo menos, 15 anos e em conjunto decidiram construir esse imóvel, tendo o autor contribuído, com dinheiro que ganhava, para a construção e pagamento de obras, tendo também realizado algum trabalho pessoal.
O autor elenca as obras que refere terem sido efectuadas pelo casal, na constância da relação de união de facto, referindo que foram feitas com as economias e rendimentos do casal. O mesmo raciocínio aplica à aquisição dos materiais e recheio do imóvel e outras construções efectuadas no logradouro, assim como vinhas e árvores.
Por terem sido efectuadas pelo casal, considera ser comproprietário, na proporção de metade das benfeitorias que foram efectuadas.
Subsidiariamente considera ter direito a metade do valor a título de enriquecimento sem causa.
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Devidamente citada a ré contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Por excepção e no concerne ao pedido subsidiário, invocou a sua prescrição.
Por impugnação nega qualquer direito por parte do autor, referindo ser a única e exclusiva proprietária do imóvel, e impugna também os factos em que aquele alicerça a sua pretensão. Concluiu pela improcedência da acção e absolvição do pedido.
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O autor respondeu às excepções.
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Realizou-se a audiência prévia e a ré exerceu o direito ao contraditório.
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Foi proferido o despacho de saneamento constante de fls. 238 a 242, constando do mesmo que não seriam atendidos no âmbito do objecto do litigio e dos temas de prova, sob pena de violação do alcance do caso julgado, os factos em que a ré defende que as obras realizadas no terreno a si pertencente, foram quase exclusivamente a suas expensas para se concluir não assistir ao autor qualquer direito de compropriedade ou crédito por benfeitorias implantadas no dito imóvel.
Definido o âmbito da discussão da causa, foi fixado o objecto do processo e foram elencados os temas de prova.
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Após incidentesvários teve lugar a audiência de julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final, foi proferida decisão que:
A) Considerou o autor como comproprietário, com um direito qualitativamente e quantitativamente igual ao da ré (e da ora habilitada) sobre a edificação, construções, bens móveis, videiras e árvores de fruto, identificados nos artigos 8º a 58º dos factos provados, e condenar a ré a reconhecê-lo e;
B) Condenou a ré a abster-se de impedir o autor de exercer os direitos de uso e fruição sobre os bens identificados na alínea anterior.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Ré interpor recurso quer da sentença final quer da decisão interlocutória proferida em 05/10/2016 concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
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Não forma apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- Decidir em conformidade face a alteração, ou não, do quadro factual, ou não se alterando este saber se a sua subsunção jurídica se mostra, ou não correctamente efectuada.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1º O Autor intentou contra a Ré, no Juízo de Grande Instância Cível de Anadia, da Comarca do Baixo Vouga, onde correu seus termos pelo Juiz 2, sob o Proc. nº. 676/05.2TBAGD, uma Acção Ordinária, onde se pedia a final que, na procedência da acção:
- Fosse julgada validamente impugnada a escritura de justificação notarial lavrada a fls. 89 a 90 verso do Livro de Notas 282/H do Cartório Notarial de Águeda, outorgada no dia 26 de Janeiro de 2005, declarando-se a mesma nula e de nenhuns efeitos.
2º Autor e Ré, naquela acção, alegaram os factos que tiveram por convenientes, quer como causa de pedir e fundamento da Acção, quer como defesa, causa de pedir e fundamento da Reconvenção (esta deduzida pela Ré), onde pedia que fosse declarada válida a escritura e a Ré reconhecida como única e exclusiva proprietária do imóvel justificado.
3º Tendo, após recurso da decisão de Primeira Instância, que fora desfavorável ao Autor, sido proferida a seguinte decisão pelo Tribunal da Relação de Coimbra:
“Nestes termos se decide:
Julgar procedente a presente apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, substituindo a mesma por outra em que:
A) – Se declara a nulidade da escritura de justificação notarial lavrada a fls. 89 e 90 verso do Livro de Notas nº. 282-H, do Cartório Notarial de Águeda e ali outorgada em 26 de Janeiro de 2005 e;
B) – Improcedente, por não provado o pedido reconvencional deduzido e, consequentemente, dele se absolve o Autor”.
4º Na decisão referida no artigo anterior, foram considerados como provados, para além de outros, os seguintes factos:
“1 – Por escritura pública de justificação notarial de 06/01/2005, lavrada a fls. 89 a fls. 90 verso do Livro de Notas para escrituras diversas nº. 282-H do Cartório Notarial de Águeda, a Ré declarou ser dona e possuidora, com exclusão de outrem, do prédio urbano, constituído por “casa de habitação, de cave e rés-do-chão, com a superfície coberta de cento e quarenta e oito metros quadrados, e quintal com trezentos e setenta metros quadrados, sito na freguesia …, a confrontar do norte com D…, do sul com E… e outros, do nascente com a estrada e do poente com F…, inscrito na matriz em nome dela, sob o artº. 1958º, omisso do registo predial.
2. Declarou ainda a Ré que esse prédio “foi por ela construído num terreno, com as mesmas confrontações e área, que veio à sua posse, já no estado de viúva, por doação que lhe foi feita por G…, solteira, maior, residente que foi no aludido lugar e freguesia …, H… e mulher, I…, residentes que foram em …, freguesia …, concelho de Leiria, e L… e marido, K…, residentes que foram no Brasil, respectivamente, mãe, tios e padrinhos dela, justificadamente, no ano de 1976, por negócio sem a forma legal.
3. Mais declarou a Ré que a partir dessa data vem exercendo “naquele prédio todos os poderes inerentes ao direito de propriedade fruindo como dona as utilidades possíveis, construindo a casa, habitando-a, pagando as contribuições devidas, nela efectuando as obras necessárias à sua conservação, convicta de actuar aquele direito, e tudo isto sem interrupção, à vista de todos e com exclusão do próximo, sem discussão nem oposição de ninguém”, invocando a aquisição do seu direito de propriedade, originariamente, por usucapião (…)
5- O projecto de construção da casa de habitação referida em A) apresentado na Câmara Municipal … e a licença de construção foram emitidos em nome da Ré, bem como a declaração para inscrição do prédio na matriz predial (Modelo 129).
6- O Autor e a Ré viveram em economia de mesa e habitação, desde, pelo menos, 1987 a 1999, na casa de habitação referida em A) (…).
7- O Autor e a Ré viveram juntos, em comunhão de mesa e habitação, durante, pelo menos, 15 anos e até pelo menos ao ano de 2000.
8- E em conjunto decidiram proceder à construção do prédio identificado em A) da matéria de facto.
9- Para essa construção o Autor contribuiu com dinheiro que ganhava e foi também utilizando para efectuar pagamentos para a obra.
10- Também com algum trabalho seu pessoal.
11- Desde que a casa foi edificada o Autor ali viveu até pelo menos ao ano de 2000, compartilhando a casa com a Ré.
12- Fruindo da casa e dela tirando todas as utilidades.
13- Utilizando-a para a sua residência, para ali dormir e guardar os seus bens e pertences.
14- O Autor procedeu a algumas obras de conservação e melhoramentos–construção de um lagar, com lagarete, curral para ovinos e vedação de parte do prédio-, bem como a renovação de pés de vinha, plantação de algumas árvores de fruto, edificação de pombal e criação de pombos.
15- Sempre agindo (o Autor) como se fosse dono e na convicção de que exercia um direito próprio.
16- O prédio identificado em A) da matéria de facto assente foi doado verbalmente à ré e ao então marido, no ano de 1976 (…)
17- Desde essa data–1976–a ré vem fruindo como dona, de todas as utilidades desse prédio, construindo a casa de habitação, pagando as contribuições devidas, nela efectuando as obras necessárias à sua conservação, sendo que em tal teve a colaboração do autor,
18.º Sempre na convicção de se tratar de coisa sua e de não lesar direitos de quem quer que fosse;
19. Ininterruptamente;
20- Á Vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém.
21.º Foi a Ré quem pagou o projecto de construção, bem como a licença de construção e despesas inerentes à construção da casa de habitação referida em A), nestas despesas tendo beneficiado da ajuda do Autor.
22.º É a ré quem paga a energia eléctrica, telefone e água da casa de habitação que ocupa e onde recebe os seus amigo e familiares.
5. Da fundamentação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, supra referido consta, para além do mais, o seguinte:
«(…) É indiscutível que o Autor e Ré viveram em condições análogas às dos cônjuges, durante largos anos – 15 a 20 anos.
Período durante o qual Autor e Ré tiveram economia comum, faziam vida em comum e ambos trabalhavam.
O Autor realizou vários serviços e trabalhos na casa em questão.
É da lógica e da experiência comum que a iniciativa de concluir a casa de habitação, onde ambos passaram a residir e na qual o Autor viveu até que se separou da Ré, fosse de ambos e não apenas de um, nada nos autos apontando para que cada um deles tivesse “economias separadas”, inculcando o contrário o facto de a vivência em conjunto ter perdurado por período não inferior a 15 anos (trata-se, pois, de uma relação com alguma estabilidade e duradoura) e de o Autor ter realizado vários trabalhos na casa em questão e seus anexos e onde passou a residir, compartilhando-a com a Ré.
Em tais condições, o normal e lógico é que a casa tenha sido feita com as economias de ambos, bem como as demais despesas inerentes a uma vida conjunta, por ambos tenham sido suportadas.
Não é crível que ”um casal” que vive junto durante 15 anos e durante tal vivência construa uma casa, onde possam viver juntos, sem que se tivessem feito munir de um qualquer documento de onde se fizesse constar que, não obstante isso, a casa era pertença de apenas um deles, fizesse uma separação de dinheiros, de molde a concluir no sentido de que a casa era apenas de um deles, por só um deles ter custeado a respectiva construção.
Não se trata de uma compra, doação ou de aquisição por via sucessória, casos em que seria mais crível que a mesma pudesse pertencer apenas a um deles.
Ao invés, trata-se de construção de raiz de uma casa por duas pessoas que durante um longo período (no qual se abarca a construção da casa) vivem juntos, como “um verdadeiro casal”, pelo que tudo inculca a ideia de que foi por decisão e contribuição de ambas as partes, que a casa foi construída e sem que se possa dizer o que foi pago com que dinheiro, separadamente. Resultava do “bolo comum”.
E nem a tal obsta o facto de a licença ter sido requerida apenas por um deles.
Efectivamente, o normal é que da licença conste apenas um dos nomes, aquele em cuja propriedade está inscrita a propriedade do prédio sobre o qual se leva a cabo a edificação.
De igual modo, também não releva o facto de as facturas respeitantes à aquisição de materiais constarem apenas em nome de um deles, pois que tal não significa que fossem pagas apenas com dinheiro da pessoa que delas consta como comprador».
6- No processo identificado nos artigos que antecedem, a ré, deduziu contestação e reconvenção.
7.º Na sua reconvenção a ré formulou o seguinte pedido:
“(…) procedente por provada a presente contestação/reconvenção e por via disso ser declarada válida a escritura de justificação notarial e o autor/reconvindo condenado a reconhecer como única e exclusiva proprietária do imóvel melhor identificado na petição inicial(…)”
8º Durante o tempo em que viveram em economia comum, como se de marido e mulher se tratassem foram praticados pelo casal os actos necessários à construção da casa.
9º Foi edificada a casa de habitação composta de rés-do-chão (cave) e 1º andar.
10º No rés-do-chão, foi implantado um salão amplo destinado a garagem,
11º Uma divisão destinada a arrumos,
12º Um quarto de banho de serviço,
13º Umas escadas de acesso ao 1º andar,
14º Essas divisões foram delimitadas, entre si, por paredes de alvenaria de tijolo,
15º Foram aplicadas massas grossas e finas nas paredes, tectos e pavimentos das instalações sanitárias e cozinha;
16º Foram executados trabalhos de pichelaria, instalando ali o sistema de fornecimento de água e saneamento,
17º Foram aplicadas torneiras, sistema de água fria e quente, louças sanitárias, nomeadamente no quarto de banho e cozinha.
18º Foram executados os trabalhos de instalação e distribuição de energia eléctrica, aplicando ali lâmpadas, interruptores, apliques, tomadas, e todo o material eléctrico em todas as divisões, sendo que a instalação eléctrica existente é composta de equipamentos avulsos de baixa qualidade e que não respeita os requisitos mínimos em termos legais e regulamentares e está por acabar.
19º O pavimento, com excepção do da cozinha e da casa de banho encontra-se executado em massante de argamassa de cimento, sem qualquer acabamento. O piso da cozinha e casa de banho estão revestidos a massas finas,
20º As paredes da casa de banho a azulejos,
21º Não foram pintadas as paredes e demais compartimentos e os tectos de todos eles;
22º Foram instaladas portas nas divisões dos compartimentos interiores, com excepção da comunicação da garagem com a adega;
23º Portas e janelas nas paredes e acessos ao exterior.
23º Foi aplicada uma placa de cobertura, separadora do tecto do piso inferior e pavimento do piso superior em lage aligeirada de betão pré-esforçado.
24º Sobre essa placa foi aplicado o 1º andar,
25º Onde foram construídos três quartos,
24º Uma sala comum,
25º Uma cozinha,
26º Um quarto de banho completo, com banheira.
27º Um hall de entrada,
28º Foi edificada uma escada de acesso exterior ao primeiro andar,
29º Equipada com corrimão e gradeamento de segurança,
30º Foram executadas no 1º andar, 5 varandas,
31º Para servir os quartos e a sala comum, assim como o hall de entrada e a cozinha
32º Varandas essas vedadas com gradeamento de segurança.
33º Foram aplicadas massas grossas e finas nas paredes, tectos e pavimentos de todos os compartimentos do 1º andar.
34º Foram executados os trabalhos de pichelaria, instalando sistemas de fornecimento de água e saneamento,
35º Aplicadas torneiras, sistema de água fria e quente, louças sanitárias nomeadamente no quarto de banho,
36º As louças da cozinha,
37º Executaram os trabalhos de instalação de rede eléctrica, respectiva distribuição e iluminação dos compartimentos,
38º Foram colocados candeeiros, lâmpadas, interruptores, apliques, tomadas, existindo energia eléctrica em todos os compartimentos, mas a rede de distribuição não está completa, faltando todo o equipamento de protecção.
39º Foram revestidos os pisos do quarto de banho e cozinha a mosaico,
40º E as paredes respectivas a azulejo.
41º Foram pintaram as paredes dos demais compartimentos, sendo que a maioria das paredes apresenta revestimento a papel de parede.
42º Bem como os tectos de todos eles,
43º Foi realizada uma lareira na sala comum,
44º Foram instaladas duas chaminés exteriores, uma maior para saída de fumos da lareira, outra para saída dos fumos e gazes na cozinha.
45º Foram aplicadas portas nas divisões interiores,
46º Portas de acesso às varandas, à cave, e ao exterior,
47º Janelas para o exterior em todos os compartimentos.
48º A cozinha foi instalada com todo o equipamento necessário, incluindo a banca, esquentador, armários, fogão, frigorífico e todo o demais equipamento e electrodomésticos.
49º Foi aplicada uma laje de tecto do tipo aligeirada com elementos pré-esforçados,
50º Foi construído o telhado, com estrutura em vara e ripa de betão pré-esforçado e cobertura em telha.
51º No terreno, destinado a quintal e logradouro da casa foi modulado ou pelo menos alisado e contido entre os muros de suporte;
52º Vedado com muros com uma estrutura de cimento e blocos também de cimento;
53.º Foram construídos nele anexos,
54º Foi construído um lagar e um lagarete no piso inferior da moradia,
55º Foi edificado um curral para ovinos,
56º Foram plantados e renovados pés de vinha,
57º Foram plantadas árvores de fruto,
58º Foi edificado no terreno um pombal, sobre os currais.
59º Uma vez concluída a casa de habitação mudaram-se para esta, onde passaram a viver;
60º Fruindo da mesma, das benfeitorias nela executadas, dos bens adquiridos para a apetrechar.
61º De forma permanente e continuada, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, agindo na convicção de que eram donos e legítimos possuidores do imóvel urbano (benfeitorias), de tudo o que o compõe, e de que não lesavam, nem lesam, qualquer direito ou interesse alheio;
62º: O alvará de obras foi emitido em Março de 1983 (fls. 93) e a licença de utilização foi emitida em Novembro de 1987 (fls. 108)
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Factos não provados:
Petição Inicial:
Dos factos alegados pelo autor nos artigos 35º a 96º da petição, provaram-se apenas os factos constantes dos artigos 8º a 59º dos factos provados;
102º: provado apenas o que consta dos factos provados na primeira sentença e mencionados no artigo 4º da fundamentação de facto.
104º
Contestação:
Não existem factos a considerar como não provados, com interesse para a decisão a proferir, tendo-se em consideração que a factualidade vertida nos artigos 12 e seguintes, estão excluídos, por força dos efeitos externos do caso julgado que se formou no âmbito do processo identificado no artigo 1º dos factos provados, factualidade que é uma repetição da que foi alegada pela ré em sede de contestação/reconvenção, nesse mesmo processo.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como se evidencia das alegações recursivas a recorrente discorda do julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 8º, 9º, 10º a 58º e 61º dos factos provados, não só por estarem em contradição com a matéria de facto provada sob os pontos 6º e 7º da primeira acção, como também por não ter sido feita prova sobre tal factualidade.
Quid iuris?
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
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Importa, desde logo assinalar que não se percebe o porquê da impugnação dos pontos 10º a 58º, quando os mesmos retractam a composição do imóvel quer na sua estrutura quer nas suas divisões e materiais aí aplicados, ou seja, trata-se da discrição do imóvel tal como ele foi observado in loco pelo Sr. perito aquando da realização da vistoria que verteu no respectivo relatório e cujo conteúdo não foi objecto de impugnação.
Como assim e não obstante a força probatória da perícia possa ser fixada livremente pelo tribunal–artigo 389.º do Cód. Civil-, o certo é que a recorrente não convoca qualquer outro elemento probatório que contrarie o referido relatório pericial, razão pela qual se devem manter na fundamentação factual os citado pontos, evidentemente por referência à situação do imóvel tal como ele foi percepcionado pelo Sr. perito e não por referência ao que consta dos pontos 8º e 9º da fundamentação factual .
Analisemos agora a impugnação dos citados pontos 8º e 9º da fundamentação factual.
Esses pontos têm, respectivamente, a seguinte redacção:
“-Durante o tempo em que viveram em economia comum, como se de marido e mulher se tratassem foram praticados pelo casal os actos necessários à construção da casa”;
“- Foi edificado a casa de habitação composto de rés-do-chão (cave) e 1º andar”.
Entende a recorrente que os referidos factos deviam ter sido dados como não provados, tecendo para o efeito um extenso conjunto de considerações e que na sua maioria são totalmente inócuas para os efeitos pretendidos-impugnação da matéria nos indicados pontos.
Ora, desse conjunto de considerações e com algum relevo refere a recorrente que os referidos factos estão em contradição com os pontos 6º e 7º da fundamentação factual constante da decisão proferida no âmbito do processo nº. 676/05.2TBAGD que correu seus termos Juízo de Grande Instância Cível de Anadia.
Os referidos pontos tinham, respectivamente, a seguinte redacção:
“- O Autor e a Ré viveram em economia de mesa e habitação, desde, pelo menos, 1987 a 1999, na casa de habitação referida em A) (…)
- O Autor e a Ré viveram juntos, em comunhão de mesa e habitação, durante, pelo menos, 15 anos e até pelo menos ao ano de 2000”.
Ora, salvo o devido respeito não vemos onde exista a invocada contradição, pois que a única diferença entre eles é que estes aludem ao momento temporal em que Autor e Ré terão vivido juntos e os primeiros não, sendo que naqueles se refere que foi durante esse tempo que foram praticados pelo casal os actos necessários à construção da casa e que ela foi edificada.
Depois e também com algum relevo alega a recorrente que a licença de construção do imóvel foi emitida e datada de 22 de Março de 1983, que a Câmara Municipal … emitiu alvará de licença de construção, em nome da primitiva Ré, com data de 22 de Março e que o alvará de utilização–que só pode ser emitido após a conclusão das obras e de ter sido efectuada a vistoria–data de Novembro de 1987, donde conclui que nunca as obras poderiam ter sido efectuadas durante a vivência em conjunto dedo Autor com a primitiva Ré.
Não se acompanha, salvo o devido respeito, esta asserção.
Como se evidencia da sentença proferida no âmbito do processo nº. 676/05.2TBAGD atrás referido, aí também se deu como provado e na sequência do ponto 7º dessa fundamentação factual que: “Já viviam juntos quando a Ré iniciou a construção da casa de habitação do prédio identificado em A dos factos assentes”-(cfr. ponto 8º dessa fundamentação factual).
Para além disso nos pontos 6º e 7º dessa mesma fundamentação factual o que aí se deu como assente é que “pelo menos” desde 1987 o Autor e a Ré viveram em economia de mesa e habitação, ou seja, essa vivência podem ter começado antes o que é perfeitamente possível quando a própria recorrente-filha da primitiva Ré-admite no seu depoimento que o relacionamento da sua mãe com o Autor começou no final de 1983/início de 1984.
Diante do exposto e não convocando a recorrente qualquer elemento probatório constante dos autos que infirme o iter decisório da fundamentação factual feito pelo tribunal recorrido, a sua argumentação não é de molde, para além de toda a dúvida razoável, a convencer este tribunal no sentido de eliminar da fundamentação factual os citados pontos 8º e 9º.
Insurge-se por último a recorrente quanto ao ponto 61º da fundamentação factual no sentido de que também ele devia ser considerado não provado.
Alega para o efeito que o apelado, a quem competia o ónus da prova, não logrou apresentar elementos probatórios que confirmassem essa realidade, tanto mais que tais actos a terem existido apenas podiam ser considerados entre o ano de 1987 e 1999.
Quanto a este último aspecto-datas-valem, “mutatis mutandis”, as mesmas considerações supra expostas a propósito dos pontos 8º e 9º da fundamentação factual.
No mais o tribunal recorrido além de ter aderido à fundamentação vertida pela Relação de Coimbra no anterior processo, referiu que sobre a intenção, ou seja, a forma de actuação do autor como se dono fosse, já havia sido matéria dada como assente no âmbito do mesmo processo.
E assim é, efectivamente, bastando para o efeito ter em consideração os pontos 9º a 15º dessa fundamentação factual.
E contra isso não se argumente que, para esses efeitos, não colhe a figura de caso julgado, aliás, na lógica da recorrente esses efeitos só valeriam, quanto a alguma matéria (pontos 6º e 7º).
É que o caso julgado tem uma dupla função: vale como excepção, actualmente dilatória, através da qual se alcança o efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção e ainda, como autoridade, pela qual se alcança o seu efeito positivo, que é o de impor uma decisão como pressuposto indiscutível de uma segunda decisão, assentando por isso numa relação de prejudicialidade.
O objecto da primeira decisão de mérito constitui pressuposto necessário da decisão de mérito a proferir na segunda acção, não podendo a decisão de determinada questão voltar a ser discutida, tal como decorre do disposto no artigo 621.º do CPCicil
A excepção do caso julgado não se confunde pois com a autoridade do caso julgado.
Como refere Teixeira de Sousa[6] “a autoridade do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior, o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não só a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente, mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto de maneira idêntica. Já quando vigora a autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada”.
A jurisprudência tem reiterado que são abrangidas pelo caso julgado as questões apreciadas que constituem antecedente lógico da parte dispositiva da sentença[7].
Com a autoridade do caso julgado, os tribunais ficam vinculados às decisões uns dos outros, quanto a questões essenciais. Se a decisão da questão em causa foi decisiva para a procedência ou improcedência da acção, impõe-se aquela autoridade, não podendo o tribunal da segunda acção julgá-la em contrário, mesmo que a causa de pedir seja diferente.[8]
As questões essenciais são as que respeitam aos factos judiciais, os factos concretos que são determinados e separados de todos os outros pela norma aplicável, e foram tornados certos através da decisão que sobre eles recaiu após transitar em julgado e perante as mesmas partes, nela cabendo, entre outras as relações de prejudicialidade entre os objectos quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objecto numa acção posterior[9] bem como nas relações sinalagmáticas entre prestações, assim se o autor pede a condenação do réu na entrega do automóvel comprado, a validade do contrato do contrato de compra e venda não pode ser questionada na acção em que o vendedor pede o cumprimento da prestação sinalagmática, isto é, o pagamento do preço.
É claro que, nesta perspectiva, só as questões essenciais poderão ter a autoridade de caso julgado, o que significa que só a terão as decisões sobre questões relativas à causa de pedir da acção transitada. Mas, mesmo que a sua causa de pedir seja diferente, aquela autoridade deve impor-se na segunda acção.
Ora, os tribunais superiores e a doutrina têm entendido, e bem, que a imposição da autoridade do caso julgado não exige a coexistência da tríplice identidade prevista no já citado artigo581.º do CPCivil.[10]
Tal entendimento justifica-se como já se referiu, pela necessidade de evitar que um tribunal possa definir uma concreta situação controvertida de forma válida, de modo contraditório e incompatível com outra anterior transitada em julgado.
Como referia Manuel de Andrade,[11] a definição dada pela sentença à situação ou relação material controvertida que estiver em causa, deve ser respeitada para todos os efeitos em qualquer novo processo, tendo este novo processo de ter por assente que a mesma situação já existia ou subsistia a esse tempo tal como a sentença a definiu.
Postos estes breves considerando, torna-se evidente que os pontos 9º a 15º, como também os 6º e 7º constante da fundamentação factual da decisão proferida no âmbito do processo 676/05.2TBAGD foram o lastro em que assentou a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra ao julgar procedente a apelação em que:
a) – declarou a nulidade da escritura de justificação notarial lavrada a fls. 89 e 90 verso do Livro de Notas nº. 282-H, do Cartório Notarial de Águeda e ali outorgada em 26 de Janeiro de 2005 e;
b) –e julgou improcedente, por não provado o pedido reconvencional deduzido pela então primitiva Ré cuja pretensão era que fosse declarada válida a escritura de justificação notarial e o autor/reconvindo condenado a reconhecê-la como única e exclusiva proprietária do imóvel melhor identificado na petição inicial.
Daqui resulta não poder voltar-se a discutir aquela questão essencial-sobre a actuação do Autor em relação ao imóvel em questão, excludente da então primitiva Ré ser reconhecida como única e exclusiva proprietária desse imóvel, matéria exceptiva alegada pela recorrente e que nesta acção também não podia voltar-se a discutir.
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Decorre do exposto que a apreciação da Mmª juiz a quo-efectivada no contexto da imediação da prova-, surge-nos assim como claramente sufragável, não sendo os argumentos aduzidos pela recorrente bem como a prova documental capazes, para além de toda a dúvida razoável, sustentar a tese que por ela vem expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo pois que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem, não existindo, portanto, fundamento probatório convocado pela recorrente para que este tribunal dê como não provados os pontos 8º, 9º, 10º a 58 e 61º da fundamentação factual.
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Improcedem, assim, as conclusões “A a Z” formuladas pela recorrente.
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Mantendo-se inalterada a fundamentação factual vejamos agora se o tribunal recorrido:
b)- procedeu, ou não à sua correcta subsunção jurídica.
Importa, desde logo, assinalar que, o tribunal recorrido, e bem, analisou em primeiro lugar os pedidos principais formulados pele recorrente, pois que só no caso de improcedência destes pedidos, teria que analisar o pedido subsidiário fundado no enriquecimento sem causa.
Não oferece dúvida que tal como se refere na decisão que o Autor e Ré (primitiva) viveram numa relação como de marido e mulher se tratassem, ou seja, numa relação de união de facto enquanto realidade sociologicamente afirmada a que o legislador tem vindo aos poucos a atribuir alguns efeitos jurídicos, desde logo na Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, posteriormente alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30/08, e mais recentemente pela Lei n.º 2/2016, de 29/02.
Não obstante, a citada Lei nº 7/2001, de 11/05, tenha regulado a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (cfr. artigo 1.º, n.º 1), e tenha adoptado medidas de protecção desta realidade sociológica, que é a união de facto, conferindo aos membros desta relação protecção da casa de morada de família em caso de ruptura da união de facto [artigos 3.º, n.º 1, al. a) e 4.º] ou de morte do membro da união de facto proprietário ou comproprietário ou arrendatário da casa de morada de família e do respectivo recheio [artigos 3.º, n.º 1, al. a) e 5.º], confira aos membros da união de facto o direito de beneficiarem do regime jurídico aplicável a pessoas casadas em matéria de férias, feriados, faltas, licenças e de preferência a colocação dos trabalhadores da Administração Pública-artigo 3.º, n.º1, al. b)-, conceda-lhes o direito a beneficiarem de regime jurídico equiparado ao aplicável a pessoas casadas vinculadas por contrato de trabalho, em matéria de férias, feriados, faltas e licenças-art. 3.º, n.º 1, al. c)-, assim como o direito a ser-lhes aplicável o regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens-art. 3.º, n.º 1, al. d)-, além do direito a beneficiarem de protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e nos termos enunciados nessa Lei–arts. 3.º, n.º 1, al. e) e 6.º-, bem como lhes reconheça o direito a beneficiarem de prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e dessa Lei–arts. 3.º, n.º 1, al. f) e 6º- e, por último, lhes confira o direito a receberem pensão por preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos e daquele Lei–arts. 3.º, n.º 1, al. f) e 6.º-, a protecção conferida pela lei cinge-se a estes aspectos, não tendo sido intuito do legislador, até sob pena de incorrer em flagrante inconstitucionalidade por violação da liberdade individual dos cidadãos, equiparar a união de facto ao casamento.
Com efeito, a união de facto não é casamento.
Quem recorre à união de facto faz a sua opção por não celebrar um casamento, constituindo uma intolerável violação da liberdade individual introduzir-se efeitos imperativos na área da união de facto destinados a equipará-la ou aproximá-la do casamento e que não foram queridos pelos cidadãos que recorreram a este meio informal de constituir família e que, de contrário, caso quisessem ser equiparados aos cônjuges, sem dúvida alguma teriam contraído matrimónio.
De resto, dentro do princípio da autonomia privada, onde se insere a liberdade contratual (artigo 405.º do CCivil), esses cidadãos que recorrem à união de facto como modo de constituir família, podem, querendo, regular as suas relações jurídicas, designadamente em caso de morte de um dos elementos da união de facto ou de ruptura desta, mediante a celebração de acordos a que a doutrina designa de “contratos de coabitação”.
Deste modo é que se subscreve integralmente o entendimento sufragado por Guilherme de Oliveira e pela generalidade da doutrina e da jurisprudência, segundo o qual “a união de facto deve continuar a ser não jurídica”.[12]
Resulta do que se vem dizendo que, embora a relação de união de facto esteja reconhecida pelo legislador como realidade sociológica e goze da protecção legal que lhe é conferida pela citada Lei n.º 7/2001, revista pela Lei n.º 23/2010, com os inerentes efeitos jurídicos, o estatuto jurídico que lhe é conferido por aquele diploma legal nenhuma repercussão têm ao nível do património dos membros da união de facto, já que o legislador, intencionalmente, ciente da necessidade de respeitar a liberdade individual dos cidadãos que recorrem a esta forma informal de organização familiar, entendeu não regular em termos específicos as relações patrimoniais que se venham a desenrolar entre os conviventes.[13]
Deste modo, ao contrário do que acontece no âmbito do casamento celebrado segundo o regime da comunhão geral ou da comunhão de adquiridos, na união de facto não se pode falar da existência de um património comum dos conviventes, uma vez que a união de facto é insusceptível de, só por si, originar um património comum entre os membros da união de facto.
É certo que tal como demonstra a realidade da vida, a comunhão de vida própria da união de facto, tal como o casamento, gera, na maioria das vezes, a contribuição (quer com a percepção de rendimentos do trabalho, quer com a realização de tarefas domésticas indispensáveis para a aquisição de bens e serviços, inerentes à vida do casal) de ambos os membros para a aquisição de bens e serviços, inerentes à vida do casal, como sejam a alimentação, o vestuário ou a casa onde habitam e, inclusivamente, a aquisição de outro património, designadamente casas de férias, para arrendar ou que consubstanciam puro investimento do casal.
No entanto, não estipulando os membros da união de facto, no domínio da sua autonomia privada, cláusulas sobre a propriedade dos bens adquiridos na vigência da união de facto, designadamente para o caso de ocorrer a morte de um deles ou a ruptura da união de facto–os denominados “contratos de coabitação”, cuja licitude resulta das regras gerais-, não existe regulamentação específica aplicável à união de facto, geradora de um património comum dos conviventes.
Note-se que nas notas sobre o artigo 5.º-A do Decreto da Assembleia da República n.º 349-A, de 2009, vetada pela Presidência da República, e que foi excluída do texto da Lei n.º 23/2010, de 30/08, previa-se no seu n.º 2 que “quando haja dúvida sobre a propriedade exclusiva de um dos membros da união de facto, os bens imóveis ter-se-ão como pertencentes em compropriedade a ambos” e no seu n.º 4 que “no momento da dissolução, e na falta de disposição legal aplicável ou de estipulação dos interessados, o tribunal, excepcionalmente, por motivos de equidade, pode conceder a um dos membros o direito a uma compensação dos prejuízos económicos graves resultantes de decisões de natureza pessoal ou profissional por ele tomadas, em favor da vida comum, na previsão de carácter duradouro da previsão”.
O n.º 2 daquele artigo 5.º-A previa para a união de facto um regime semelhante ao que vale para as pessoas casadas em regime de separação de bens–artigo 1736.º, n.º 2 do CCivil–e ao remeter para as normas da compropriedade, admitia implicitamente que se na pendência da união de facto se adquirissem bens em partes diferentes ou em partes iguais, se presumia que as quotas, na falta de acordo, eram iguais (artigo 1403.º, n.º 2 do CC), e que no termo da união de facto, se dividissem os bens através da acção de divisão da coisa comum.[14]
Já mediante o n.º 4 do referido artigo 5.º-A, procurava-se introduzir mecanismos de correcção de injustiças excepcionais e intoleráveis, manifestando situações de exploração e de abuso de um dos membros da união de facto pelo outro.
No entanto, como dito, esse artigo 5.º-A foi vetado pela Presidência da República e foi excluído do texto da Lei n.º 23/2010, de 30/08, pelo que em face do ordenamento jurídico vigente a união de facto não é susceptível de criar, por si, um património autónomo.
Sem dúvida alguma que a constituição desse património comum, poderá acontecer (reafirma-se, não pelas regras da união de facto), mas por força do funcionamento dos institutos do direito comum, nomeadamente do regime próprio da compropriedade.
Para que assim aconteça será no entanto necessário que a parte que pretenda ter adquirido a compropriedade sobre aquele alegado património comum, como acontece com o apelante, alegue e prove os pertinentes factos essenciais destinados a comprovar a existência desse património comum, detido pelos membros da união de facto, em regime de compropriedade.
Neste sentido se pronunciam Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira Martins, ao ponderarem que “Os membros da união de facto em princípio são estranhos um ao outro, ficando as suas relações patrimoniais sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais e havendo que partilhar o património do casal, cessada que seja a união de facto, porque aqui não vale o regime dos arts. 1688º e 1689º, respeitantes unicamente ao casamento, “as regras a aplicar são as que tenham sido acordadas no contrato de “coabitação” eventualmente celebrado e, na sua falta, o direito comum das relações reais e obrigacionais”.[15]
Também França Pitão escreve que “(…) é óbvio que não poderá falar-se da existência de um património comum, muito embora a maior parte das vezes os bens tenham sido adquiridos com dinheiro de ambos ou, pelo menos, com o esforço de ambos, prevendo-se neste caso a hipótese em que um deles não tem profissão remunerada, mas contribui com a sua força de trabalho na vida do lar que constituíram”.[16]
Aqui chegados é indiscutível que a união de facto, por si só, não é susceptível de gerar um património autónomo para os conviventes e, consequentemente, de gerar a aquisição do direito de compropriedade de que o apelante se arroga titular sobre os bens imóveis e móveis, não é incompatível com essa aquisição nos termos gerais de direito, contanto que se alegue (e posteriormente, prove) os pertinentes factos que lhe permitam, nesses termos gerais, isto é, por força dos institutos do direito comum, adquirir esse direito de compropriedade sobre os bens em causa.
Sendo a compropriedade uma das modalidades do direito de propriedade em que há uma pluralidade de titulares (contitularidade) do direito de propriedade sobre a mesma coisa[17] (cfr. artigo 1403.º, n.º 1 do CCivil), ou dito por outras palavras, “um caso de contitularidade num único direito de propriedade sobre a coisa comum”[18], a compropriedade pode ser adquirida por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação e demais modos previstos na lei (artigo 1316.º do CCivil)
Isto dito e como bem se refere na decisão recorrida, a Ré não beneficia da presunção do registo uma vez que foi declarada nula a escritura de justificação notarial.
Por outro lado não se discute que o prédio rústico, sobre o qual foi edificada a casa que serviu de habitação ao Autor e Ré (primitiva), é propriedade exclusiva da apelante.
Todavia, o mesmo já não acontece com a casa que foi edificada sobre o prédio rústico, o que decorre dos factos que foram dados como provados nos artigos 8º, 11º e 15º do primeiro processo e reproduzidos no artigo 4º da fundamentação factual.
Ora, dos fatos mencionados resulta que a decisão de proceder à construção da casa, foi conjunta do então casal, imóvel onde o autor habitou com a ré, até pelo menos o ano de 2000, compartilhando a casa com a ré, como se dono fosse e com a convicção de que exercia um direito próprio.
Mais resulta provado que:
-o Autor contribuiu com dinheiro que ganhava e que também utilizava para efectuar pagamentos para a obra;
-o Autor trabalhou na obra (facto 9º da primeira sentença), realizou a construção de anexos e divisões (facto14º da primeira sentença)
- o Autor e Ré, enquanto casal e durante o tempo em que assim viveram, decidiram proceder à construção da casa e das demais construções, em concreto das identificadas nos pontos 8º a 58º da fundamentação factual.
Perante esta factualidade nada temos a censurar à decisão recorrida quando nela se conclui que o Autor recorrido adquiriu por usucapião o direito de compropriedade sobre o imóvel em questão, pois que ao contrário do que refere a apelante decorreu o prazo de 15 anos estatuído na lei para esse efeito (cfr. artigo 1296.º do CCivil), pois que, tal como foi dado como provado no ponto 7º da anterior decisão (descrito no ponto 4 da actual fundamentação) Autor e a Ré viveram juntos, em comunhão de mesa e habitação, durante, pelo menos, 15 anos e até pelo menos ao ano de 2000”.
Evidentemente que não se sabendo qual a extensão do seu direito de compropriedade, termos de recorrer ao que se encontra preceituado na lei.
Ora, diz-nos o artigo 1403.º, n.º 2 do CCivil que: “Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário no título constitutivo”.
Assim e como bem se refere na decisão recorrida, aplicando a norma legal ao caso em apreço e porque não se provou qual a comparticipação quantitativa do autor, deve ser aplicada a presunção legal, ou seja, presume-se que Autor e Ré são comproprietários com direitos e quotas qualitativamente e quantitativamente iguais.
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Procedendo o pedido principal e como noutro passo já se referiu, não há que apreciar o pedido subsidiário estribado no enriquecimento sem causa, sendo dessa forma inócuo o que a esse respeito vem alegado pela recorrente sobre o eventual direito de crédito do Autor adveniente da sua comparticipação nas benfeitorias feitas no imóvel em questão.
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Improcedem, desta forma, as conclusões AA) a YY) formuladas pela Ré recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Ré apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 12 de Outubro de 2020.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[6] In O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325,p. 171.
[7] Cfr. a basta jurisprudência citada por Teixeira de Sousa, obra citada pág. 580.
[8] Cfr. Silva Carvalho, O Caso Julgado na Jurisdição Contenciosa (como excepção e como autoridade-limites objectivos) e na Jurisdição Voluntária (haverá caso julgado?).
[9] O Prof. Teixeira de Sousa na obra citada pág. 581 dá o exemplo de numa acção em que o réu é absolvido quanto ao pedido de pagamento do capital com fundamento na inexistência de qualquer contrato de mútuo celebrado entre as partes, é vinculativa numa acção posterior em que o mesmo autor pede contra o mesmo réu o pagamento de juros relativos ao mesmo capital.
[10] Cfr., entre outros, Ac. desta Relação 13/01/20011 da RG de 15/03/2011 e de 12/07/2011, da RC de 15/05/2007, do STJ de Ac. do STJ de 12/11/1987, todos publicados em www.dgsi.pt e ainda, Manuel Andrade, “Lições Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 320 e 231.
[11] Obra citada.
[12] In “Crónicas Legislativas, Notas Sobre a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto (Alteração à Lei das Uniões de Facto)”, pág. 140.
[13] Ac. STJ. de 24/10/2017, Proc. 3712/15.0T8GDM.P1.S1, in base de dados da DGSI.
[14] Guilherme de Oliveira, ob. cit., pág. 150.
[15] Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, “Curso de Direito da Família”, 2ª ed., vol. I, págs. 102 e 109.
[16] França Pitão, “Uniões de Facto e Economia Comum”, pág. 172.
[17] Ana Prata “Dicionário Jurídico”, vol. I, 5ª ed., Almedina, pág. 323.
[18] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 344.