SEGURO DESPORTIVO
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

I - Por força do regime vertido no Decreto-Lei nº 10/2009, de 12.01, os agentes desportivos, os praticantes de actividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas devem, obrigatoriamente, beneficiar de um contrato de seguro desportivo que cubra os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português.
II - Em função das coberturas mínimas fixadas nesse diploma (artigos 5º, nº 2 e 16º), esse seguro assume natureza híbrida, com uma vertente de seguro de capitais - porque determina o pagamento de um capital por morte ou invalidez, total ou parcial, em cuja fixação não se aplica o princípio indemnizatório, que limitaria a prestação do segurador ao valor do dano decorrente do sinistro; e uma vertente de seguro de danos - já que cobre as despesas de tratamento e de repatriamento, onde, por contrapartida, se aplica o princípio indemnizatório.
III - A essa luz a cobertura do montante mínimo devido por invalidez permanente, absoluta ou parcial, deve ser configurada como prestação de capital predeterminada em função exclusiva da natureza da lesão e do grau de incapacidade fixado no caso de invalidez permanente parcial, independentemente do valor do dano efectivo e das consequências não patrimoniais decorrentes do acidente desportivo.

Texto Integral

Processo nº 6075/15.078VNG.P1
Origem: Comarca do Porto, Vila Nova de Gaia– Juízo Central Cível, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha

*
Sumário
………………………………
………………………………
………………………………
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

B… instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “C…, S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 57.760,22, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que era jogador de futebol amador e que no dia 5 de Junho de 2012, quando realizava um treino ao serviço do clube “D…”, sofreu uma lesão no joelho esquerdo, a que foi tratado e de que ficou curado sem qualquer incapacidade, tendo depois retomado aquela sua actividade desportiva.
Alega ainda que em meados do ano de 2013 passou a ser atleta do clube “E…”, sendo que, no dia 4 de Dezembro de 2013, durante a realização de um treino, sofreu nova lesão no joelho esquerdo e, apesar de ter recebido tratamento médico, não mais recuperou totalmente da lesão, tendo ficado impossibilitado de prosseguir a sua actividade de jogador de futebol.
Acrescenta que, em virtude do acidente em causa, sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial, que especifica, e que, aquando da ocorrência das lesões sofridas ao serviço dos referidos Clubes, estes haviam aderido ao seguro obrigatório de praticante desportivo, tendo transferido para a aqui Ré a responsabilidade pelos riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva desenvolvida pelos respectivos atletas, entre os quais se contava o Autor.
Contestou a Ré, deduzindo a excepção dilatória da ilegitimidade passiva, alegando que não celebrou, nem com os referidos Clubes desportivos, nem com qualquer outra entidade desportiva, nem com o aqui Autor, qualquer contrato se seguro, antes tendo celebrado com a Seguradora “F…” um contrato de prestação de serviços por meio do qual assumiu a gestão e regularização dos sinistros cobertos pelas apólices de seguros subscritas entre a “F…” e as G…. Invocou ainda as excepções materiais da exclusão do sinistro das garantias do contrato de seguro celebrado entre a “F…” e a H…; o incumprimento das obrigações contratuais por parte do tomador do seguro e da pessoa segura; a culpa do lesado na produção do sinistro e o abuso do direito.
Impugnou, no mais, a factualidade vertida na petição inicial.
*
A fls. 199 e seguintes o Autor requereu a intervenção principal provocada da “Companhia de Seguros I…, S.A.” e da “Companhia de Seguros F…, S.A.”, como associadas da Ré, tendo esta deduzido oposição quanto ao pedido de intervenção da primeira das mencionadas Seguradoras.
Por despacho proferido a fls. 229 dos autos, foi admitida a requerida intervenção principal subsidiária de ambas as Seguradoras.
*
A Interveniente “Companhia de Seguros F…, S.A.” apresentou articulado próprio, no qual invocou a excepção material da exclusão do sinistro das garantias do contrato de seguro e impugnou, no mais, a factualidade vertida na petição inicial.
A Interveniente “I…, S.A.” (actualmente designada “J…, S.A.”) também apresentou articulado próprio, no qual invocou a excepção da exclusão parcial dos danos invocados das garantias do contrato de seguro e impugnou, no mais, a factualidade vertida na petição inicial.
*
O Autor respondeu às excepções invocadas pela Ré e pelas Intervenientes, pugnando pela sua improcedência.
Teve lugar audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador, tendo-se considerado ultrapassada a questão da ilegitimidade passiva suscitada pela Ré em face da intervenção nos autos das referidas Seguradoras, procedendo-se à indicação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
*
Realizou-se a audiência final, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu julgar “a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condenar a interveniente principal “Companhia de Seguros F…, S.A.” a pagar ao autor B… a quantia global de € 4.310,22 (quatro mil trezentos e dez euros e vinte e dois cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
b) Absolver a interveniente principal “Companhia de Seguros F…, S.A.” do demais peticionado pelo autor B…;
c) Absolver a ré “C…, S.A.” e a interveniente principal “I…, S.A.” dos pedidos contra elas formulados pelo autor B…”.
Não se conformando com o assim decidido, veio o autor interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Apenas a interveniente “Companhia de Seguros F…” apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Recorreu ainda subordinadamente formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II. DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas
Do recurso (independente) interposto pelo autor:
. da (in)adequação da forma de determinação do quantitativo atribuído ao autor pela invalidez permanente parcial de que ficou portador na sequência do ajuizado acidente desportivo;
. da (in)existência de fundamento para atribuição de um montante para compensação de danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
Do recurso (subordinado) interposto pela interveniente Companhia de Seguros F…, S.A.:
. da ocorrência, in casu, da causa de exclusão contemplada no artigo 3º, nº 1, al. b) das condições gerais do contrato de seguro;
. da (não) ressarcibilidade das despesas realizadas pelo autor fora da rede de prestadores de serviço médico convencionada.
***
2. FUNDAMENTOS DE FACTO
2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 - O Autor nasceu a 28 de Maio de 1992;
2 - Desde a idade de seis anos, o Autor começou a praticar futebol nas escolas do “K…”, após o que foi convidado por pessoa responsável ligada ao “L…” para passar a ser atleta deste Clube;
3 - O Autor, desde tenra idade, foi materializando em si o sonho de vir a ser um futebolista profissional, treinando diariamente no referido Clube e competindo nos diversos escalões de formação;
4 - Sendo apontado por pessoas conhecedoras da modalidade, nomeadamente, treinadores de futebol, como um jovem com grandes capacidades futebolísticas e com uma carreira promissora na prática da modalidade;
5 - O Autor manteve-se desde sempre a praticar de forma regular a dita actividade, treinando diariamente, durante a semana, e competindo em jogos organizados, quer pela H…, quer pela M…;
6 - No início da época de 2011/2012, o Autor passou à categoria de sénior, terminando então a sua formação;
7 - O Autor foi inscrito, a 10/01/2012, junto da M…, como atleta do Clube “D…”, sendo-lhe então atribuído pela N… o nº de atleta ……;
8 - O “D…” aderiu ao seguro obrigatório de praticante desportivo, tendo o Autor passado a ser beneficiário desse seguro;
9 - Para além de outros, encontravam-se cobertos por tal contrato de seguro os riscos de acidentes pessoais que decorriam dos treinos, das provas desportivas e respetivas deslocações, dentro e fora do território português;
10 - O Autor optou, a partir da época futebolística de 2011/2012, pela prática do futebol a tempo inteiro, deixando de prosseguir a sua escolaridade e dirigindo-se quase diariamente às instalações desportivas do “D…”, cumprindo as regras do mesmo, mormente quanto ao horário em que deveria apresentar-se nas suas instalações, e aí executando os exercícios de treino que lhe eram fixados pelo respectivo treinador e demais equipa técnica;
11 – O referido clube competia na 2ª divisão nacional;
12 - No dia 05/06/2012, enquanto o Autor realizava um treino no campo de treinos do clube “D…” e no momento em que disputava uma bola com um outro seu colega de clube, num movimento de mudança de direção, sentiu o seu joelho esquerdo a “torcer” de forma anormal e, em simultâneo, percebeu que se deu um “estalido” no mesmo joelho, seguido de dores fortíssimas, que o obrigaram, de imediato, a cair ao chão;
13 - Impossibilitado de permanecer em pé ou de fazer esforço sobre a sua perna, foi retirado do recinto onde se efectuava o dito treino;
14 - Em resultado desse acontecimento, o Autor sofreu uma lesão no seu joelho esquerdo, tendo sido medicamente acompanhado com vista ao respectivo tratamento no Hospital …, no Porto, sob responsabilidade médica do Dr. O…, médico ortopedista;
15 – Foi-lhe então diagnosticado uma rotura do ligamento cruzado anterior (LCA) e lesão do menisco externo e pequena desinserção do menisco interno do seu joelho esquerdo;
16 - Foi efetuada participação do referido evento à Ré;
17 – Face à lesão sofrida, o Autor foi submetido a intervenção cirúrgica ao seu joelho esquerdo, no dia 6 de Julho de 2012, tendo realizado artroscopia do joelho, excisão de cartilagem semilunar do joelho e reparações dos ligamentos cruzados;
18 - Tendo ficado internado para ser submetido à referida cirurgia e para restabelecimento da mesma durante dois dias;
19 - Subsequentemente, o Autor sujeitou-se a diversos tratamentos de fisioterapia, acompanhado de diversas consultas médicas destinadas a aferir da evolução do seu estado de doença; 20 - Reiniciou a sua atividade normal desportiva, frequentando os treinos no seu clube de então, a partir de Janeiro do ano de 2013;
21 – A 26/08/2013 o Autor foi inscrito junto da M… como atleta do Clube “E…”, mantendo o mesmo número de atleta (nº……);
22 - O Clube “E…” aderiu ao seguro de praticante desportivo, passando o Autor a ser o beneficiário do mesmo;
23 - O Autor passou a representar o Clube “E…”, dirigindo-se para as suas instalações desportivas praticamente todos os dias, aí praticando os mais diversos exercícios de treino próprios da prática do futebol e participando nos jogos realizados pela respectiva equipa;
24 - Fazia-o sentindo dores no seu joelho esquerdo, particularmente nos momentos em que era sujeito a maiores “cargas físicas”, dores essas que, sendo incómodas, não eram impeditivas de continuar a treinar e a competir;
25 - Durante a realização de um dos treinos, no dia 4 de Dezembro de 2013, o Autor, no momento em que efectuava um exercício de passe de bola em corrida, sentiu novamente um estalido no seu joelho esquerdo, seguido de fortes dores, obrigando-o imediatamente a parar o seu treino e impossibilitando-o de pousar a sua perna esquerda no chão;
26 - Observado por médico especialista em ortopedia, e após exame, foi-lhe diagnosticado uma rotura do menisco externo do joelho esquerdo;
27 - O Autor foi informado que, face a tal lesão, impunha-se a realização de cirurgia a fim de proceder-se a meniscectomia alargada do menisco externo;
28 – Através de comunicação escrita datada de 16/01/2014, a Ré comunicou ao “E…” o seguinte: “(…). Acusamos a recepção da sua participação de sinistro (…). Após análise da documentação enviada (…), cumpre-nos informar que o pedido de assistência foi indeferido com base no nº 6 do Manual de Procedimentos do Seguro de acidentes pessoais de atletas, agentes desportivos e árbitros, da H…: 6 – Exclusões Ficam excluídas das garantias do contrato as doenças ou consequências dos acidentes pré-existentes à data de início do seguro (à data de participação de sinistro) quer as mesmas se tenham ou não manifestado tais como – mas não só – hérnias, tendinites e pubalgias. Após análise de relatório de Ressonância Magnética actual e Relatório de Ressonância Magnética de 20/06/2013, não existem novas lesões que refiram ao acidente desportivo de 04/12/2013. (…)”;
29 - Através de comunicação escrita datada de 19/02/2014, o Autor comunicou à Ré o seguinte: “(…). No seguimento da vossa decisão favorável à realização da cirurgia do menisco externo do joelho esquerdo do aqui subscritor, venho por este meio solicitar a V. Ex.as que a mesma cirurgia seja realizada no P…, pelo Sr. Dr. Q…, médico especialista em ortopedia. Tal solicitação, deve-se ao facto deste especialista ter acompanhado todo o processo e, da relação de confiança profissional depositada neste médico. Informo que, o especialista em causa aceita a realização deste ato médico e demonstra disponibilidade para o efeito no próximo dia 25/02/2014, nos termos e condições expressas no documento anexo (relatório clínico). (…). Mais agradeço, resposta urgente, uma vez que, já fui contacto via telefone para a realização desta cirurgia, para 21/02/2014, no Hospital … – Porto, com constantes marcações e desmarcações da mesma. (…)”;
30 – Através de e-mail datado de 26/02/2014, a Ré comunicou ao Autor o seguinte: “Após análise por parte da direção da companhia, somos a informar que poderá efectuar a cirurgia fora da rede médica (visto não existir acordos cirúrgicos no P…), no entanto a mesma será comparticipada pelos nossos serviços no valor de custo de rede, isto é, a cirurgia proposta tem o código da ordem dos médicos 33.08.01.32 Meniscectomia convencional ou artroscópica no valor de 1400Euros. Deverá solicitar o protocolo cirúrgico após a mesma para envio juntamente com as faturas da cirurgia para devido reembolso. (…)”;
31 - Em 17/02/2014, o Dr. Q… elaborou relatório clínico, mencionando que o Autor “(...) apresenta rotura do menisco externo do joelho esquerdo e tal como relatório anterior já elaborado na S…, deve ser operado, mesmo com antecedente de ligamentoplastia do mesmo joelho, em que foi operado no ano passado (…).”;
32 - O Autor foi sujeito a intervenção cirúrgica no dia 25 de Fevereiro de 2014, por artroscopia, ao seu joelho esquerdo, tendo sido confirmada “… rotura do 1/3 posterior e médio do menisco externo, bem como conflito do enxerto do Ligamento Cruzado Anterior (LCA), com pequena lesão em ciclop anterior que provocava conflito anterior, sendo que atenta a lesão meniscal apresentada procedeu-se a meniscectomia alargada do dito menisco externo do joelho esquerdo”;
33 - O Autor deu entrada no P… no dia em que foi sujeito à referida intervenção cirúrgica, tendo regressado a casa no dia 26 de Fevereiro de 2014;
34 - Com a referida intervenção cirúrgica, custo com internamento e honorários médicos, o Autor suportou a quantia de € 2.635,22;
35 – A Ré nada pagou ao Autor das despesas mencionadas em 34.;
36 - Logo após tal intervenção cirúrgica, o Autor iniciou fase de fisioterapia, com vista à sua recuperação física;
37 - Findo o período de recuperação, o Autor iniciou fase de treino físico;
38 - Essa fase iniciou-se com algumas limitações, porquanto o Autor continuava a sentir dores no seu joelho esquerdo, que se agravavam sempre que efectuava maior esforço e de forma mais continuada sobre o seu joelho esquerdo;
39 - O Autor, durante os meses que se seguiram, continuou a sentir tais dores, normalmente acompanhadas com um inchaço do seu joelho, que o limitavam durante horas;
40 - O Autor começou a constatar que a sua marcha deixou de aparentar normalidade, constatando que passou a ter uma marcha claudicante, decorrente das dores que sentia no seu joelho esquerdo;
41 - O Autor apenas lograva atenuar essas dores quando deixava de fazer esforço físico com o seu joelho e através da ingestão de medicamentos anti-inflamatórios;
42 - Tais dores foram impeditivas do normal desempenho por parte do Autor da prática desportiva que prosseguia;
43 - Tendo decorrido vários meses a sentir tais dores, verificando que não conseguia cumprir com os treinos físicos que lhe eram ministrados e não vislumbrando melhoria no seu estado de saúde, o Autor viu-se obrigado a deixar a prática do futebol, não ingressando em qualquer clube desportivo após o fim da temporada futebolística, que ocorreu em meados do ano de 2014;
44 - O Autor deixou de praticar qualquer outro desporto;
45 – Assim que faz qualquer esforço sobre o seu joelho, imediatamente regressam as dores e o inchaço do seu joelho esquerdo;
46 - O Autor, como consequência das lesões mencionadas em 32., ficou impedido de efectuar movimentos de corrida ou de efetuar qualquer tipo de esforço físico sobre o seu joelho esquerdo;
47 - À data dos factos, o Autor era saudável e sem defeito físico;
48 - Durante a sua formação, que se prolongou por vários anos, o Autor prescindiu de inúmeras horas de lazer e diversão, com familiares e amigos, para dirigir essas horas para aperfeiçoamento das suas capacidades e vocação para a prática do futebol;
49 - O Autor nunca pensou em qualquer outro projecto de vida que não envolvesse a prática do futebol de forma profissional;
50 - O Autor, durante semanas, recusou-se a admitir que não podia prosseguir a sua carreira futebolística, participando nos treinos não obstante as intensas dores que sentia no seu joelho sempre que o sujeitava a qualquer esforço;
51 - Porque as dores eram cada vez mais insuportáveis, os medicamentos que tomava cada vez sortiam menos efeito analgésico sobre a dor e porque o seu joelho apresentava inchaço por mais tempo e de forma cada vez mais notória, o Autor capacitou-se que não tinha condições de saúde para continuar a praticar futebol;
52 - No momento em que constatou que estava impossibilitado de praticar futebol, sentiu enorme tristeza, sentiu-se desgostoso e frustrado e durante semanas esteve fechado em casa, não saindo da mesma e recusando-se a falar com quem quer que fosse;
53 - Desde então, tem vivido angustiado e triste, sofrendo pelas dores que sente diária e consecutivamente no seu joelho esquerdo e porque foi obrigado a abandonar o seu projecto de vida;
54 - O Autor não gostava de falar sobre o assunto, tendo deixado de assistir aos jogos de futebol, quer pela televisão, quer ao vivo, porque a visualização de jogos de futebol passou a ser fonte de tristeza, angústia e frustração;
55 - Entre 05/06/2012 e Janeiro de 2013 o Autor não pôde praticar futebol porque disso estava impedido, quer fisicamente, quer por indicação médica;
56 - Após o sinistro aludido em 12. e durante cerca de seis meses, o Autor sofreu dores intensas, no momento da lesão e com os respetivos tratamentos de fisioterapia, cujos esforços de flexão e rotação do joelho eram causa de intensas dores;
57 – Após a cirurgia aludida em 32., o Autor teve um período de recuperação, sujeito a sessões de fisioterapia, com dores muito fortes, decorrentes da lesão e dos esforços que as sessões de fisioterapia impunham;
58 - O Autor deslocou-se ao Hospital … para consultas de fisioterapia e de ortopedia;
59 - Um futebolista que competir num clube de 1ª divisão do campeonato nacional aufere retribuição superior a € 3.000,00 por mês;
60 - Os clubes inscrevem os seus atletas na M… através das respectivas Associações de Futebol e são estas que celebram o seguro obrigatório de Acidentes Pessoais de Agentes Desportivos Não Profissionais;
61 - A H…, da qual o “E…” é associada, contratou, como tomadora, com a “F…, Companhia de Seguros, S.A.” o seguro mencionado em 60., do ramo Acidentes Pessoais Grupo, titulado pela apólice nº ………, com início às 00h de 01-07-2013 e término a 30-06-2014;
62 – À data aludida em 25., tal seguro encontrava-se em vigor;
63 – Consta do artigo 1º, al.a) das Condições Particulares de tal contrato que “O presente Contrato tem por objecto a garantia do risco de acidente resultante da prática desportiva, ou da prática de outras actividades culturais e recreativas, desenvolvida pelas Pessoas Seguras, em qualquer parte do Mundo, desde que em representação ou sob o patrocínio do Tomador do Seguro, em competição ou atuação, treino ou ensaio, estágio ou preparação, bem como das deslocações para e dos locais onde são exercidas as actividades referidas”;
64 – No capítulo I das Condições Particulares de tal contrato consta, de capitais por pessoa, para despesas de tratamento por acidente – € 7.500,00, com franquia de € 100,00 por pessoa, e para invalidez permanente por acidente - € 27.500,00;
65 – Consta do artigo 3º, nº1, al.b) das Condições Particulares do Contrato de Seguro referido em 61.que “Ficam excluídas do âmbito do contrato as situações seguintes: b) Consequências de doenças ou estados patológicos pré-existentes, bem como lesões resultantes de intervenções cirúrgicas ou outros actos médicos não motivados por acidente garantido pelo Contrato.”;
66 – Consta do artigo 3º, nº1, al.c) das Condições Particulares de tal contrato que “Ficam excluídas do âmbito do contrato as situações seguintes: c) Agravamento das consequências do Acidente por doença ou enfermidade anterior à data daquele.”; (…)”; 67 - Consta do artigo 2º, 1. do Capítulo II das Condições Particulares de tal contrato que “Sem prejuízo das exclusões mencionadas na Parte I destas Condições, ficam sempre excluídas da garantia do presente Contrato quaisquer indemnizações por danos morais”;
68 - Prevê o artigo 4º, al.b), 1. do Capítulo III das Condições Particulares de tal contrato que “Constituem ainda obrigações do Tomador do Seguro e das Pessoas Seguras declarar à F…, com exactidão, antes da data da celebração do Contrato ou da adesão, todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela seguradora (…)”;
69 - Consta das condições particulares da referida apólice nº202208046 que “1. Regularização de Sinistros com recurso a REDE CONVENCIONADA. A gestão de sinistros de presente contrato ficará a cargo da C…, sendo a assistência aos sinistrados prestada na rede respectiva e de acordo com Manual de Procedimentos a elaborar.”;
70 - No Manual de Procedimentos aludido em 69.consta que “4. A) O recurso a prestadores de serviços médicos não convencionados, só será admitido em casos de força maior ou impossibilidade material demonstrada, e desde que a Pessoa Segura apresente documentos justificativos e comprovativos do mesmo: b) Se existir interesse em o sinistrado recorrer à rede não convencionada, tal só será possível com o acordo da C…, sendo que nestes casos os actos médicos praticados só serão comparticipados na medida dos custos que os mesmos actos médicos teriam dentro da rede – previamente informados pela C… ao sinistrado ou à Associação e a comparticipação será efectuada em sistema de reembolso através da apresentação do original do recibo. F) (…) caso a Associação solicite, por qualquer meio escrito, uma intervenção de qualquer natureza sem que exista resposta no prazo de 5 (cinco) dias úteis, estes terão direito a recorrer a serviços fora da rede convencionada, sendo que havendo lugar a reembolso, essas despesas médicas serão comparticipadas na medidas dos custos que os mesmos actos médicos teriam dentro da rede convencionada.”;
71 – Por documento escrito datado de 01/07/2013 foi celebrado entre a Ré e a Interveniente “F…, Companhia de Seguros, S.A.” um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual a Ré “… aceita fornecer serviços administrativos, em representação da F…, com o propósito de assumir a gestão e regularização dos Sinistros cobertos pelas Apólices de seguro subscritas entre a F… e as … G….”;
72 – Consta da cláusula 1, nº1 al. c) do referido contrato de prestação de serviços que a Ré “… obriga-se perante a F… a manter uma rede de prestadores de serviços médicos e assumir a gestão e regularização dos Sinistros cobertos pela Apólice de seguro de acidentes pessoais de atletas e agentes desportivos comercializada por aquela, designadamente: (a) A gestão e regularização de Sinistros, ou seja, a análise e controle de participações de Sinistros, designadamente na óptica da sua conformidade com as coberturas do contrato de seguro; (…); (c) O pagamento atempado das indemnizações devidas às Pessoas Seguras.”;
73 - Consta do Anexo III (Circuito da Participação e Gestão dos Sinistros) do referido contrato de prestação de serviços que “3.7. Toda e qualquer hospitalização e/ou cirurgia deverá ser efectuada exclusivamente na rede convencionada, excepto nos casos de manifesta urgência em hospital público; Todas as cirurgias, excepto nos casos de manifesta urgência, deverão ser autorizadas pelo Departamento Médico da C…, no prazo de 24 h; Em situações verdadeiramente excepcionais e devidamente justificadas, a analisar e a autorizar casuisticamente pelo Departamento Médico da C…, poderão as cirurgias que não resultam de casos de urgência ser realizadas fora da rede.”.
74 - Foi a Ré quem participou diretamente na gestão dos sinistros aludidos em 12. e 25., assumindo e declinando responsabilidades;
75 - No exercício da sua actividade comercial de seguros, em 1 de Julho de 2011, a N… celebrou com a Interveniente “I…” um contrato de seguros do ramo Acidentes Pessoais Grupo, titulado pela apólice n.º ..........., que vigorou até 30/06/2013;
76 – Através do referido contrato, foi transferida para a Interveniente “I…” a responsabilidade emergente de acidentes “de risco extra profissional relacionado com a prática desportiva de Futebol Amador”;
77 - Consta das condições particulares de tal contrato de seguro que a responsabilidade da “I…” está limitada aos seguintes capitais:
a) € 30.000,00 por morte;
b) € 30.000,00 por invalidez permanente;
c) € 7.500,00 por despesas de tratamento;
d) € 3.000,00 por despesas de funeral;
78 - Aquando do acidente aludido em 12., o Autor foi acompanhado clinicamente pela Interveniente “I…”;
79 – Tendo-lhe sido conferida alta em 04/01/2013 sem que lhe tenha sido atribuída qualquer incapacidade, quer temporária, quer permanente;
80 - Por documento escrito datado de 01/07/2011 foi celebrado entre a Ré e a Interveniente “I…, S.A.” um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual a Ré “… prestará à I… serviços diversos no âmbito da gestão e regularização de sinistros de Acidentes Pessoais incluindo os Desportivos, tudo nos prazos fixados e termos e condições estabelecidos nos manuais de procedimentos (…) e decorrentes das Condições Gerais, Especiais e Particulares dos contratos de seguro firmados (…) .”;
81 - Após a fase de recuperação da lesão aludida em 12., foi conferida ao Autor cura clínica com indicação médica para retomar a prática do futebol sem qualquer restrição;
82 - O Autor, durante os meses que se seguiram à alta médica, treinou e competiu, sentindo dores incómodas episódicas quando ocorriam treinos mais intensos, mas que não o impediam de continuar a treinar e competir;
83 – Das conclusões do relatório da perícia médico-legal a que o Autor foi submetido no âmbito destes autos consta o seguinte: “- O examinado sofreu dois eventos traumáticos (…), um em Junho de 2012 e outro em Dezembro de 2013; - Período de Défice Funcional Temporário Total sendo assim fixável num período de 4 dias; - Período de Défice Funcional Temporário Parcial sendo assim fixável num período de 325 dias; - Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total sendo assim fixável num período total de 329 dias; - Quantum Doloris fixável no grau 3/7; - Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 6 pontos; - As sequelas descritas são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual (comercial de produtos de higiene industrial), mas implicam esforços suplementares. No entanto, são impeditivas do exercício da atividade profissional como jogador de futebol; - Dano Estético Permanente fixável no grau 1/7; - Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 1/7”;
*
2.2 Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou ainda não provadosos seguintes factos:
a) No âmbito da sua prática futebolística, o Autor tivesse sido campeão nacional pelo seu clube nas categorias de infantis, iniciados e juvenis;
b) O Autor tivesse sido capitão de equipa no “L…”;
c) O Autor tivesse sido selecionado para fazer parte da seleção de futebol da H…, tendo sido campeão nacional por esta Associação de Futebol na época de 2008/2009;
d) O Autor fizesse parte dos jogadores convocados pelo seu clube para torneios internacionais, tendo estado presente em diversos torneios realizados em Espanha, França, Holanda, Alemanha, Ucrânia e Coreia do Sul;
e) O Autor tenha participado em estágio da selecção portuguesa de futebol, nos escalões de sub-15, sub-16 e sub-17;
f) O Autor tivesse sido inscrito como atleta do Clube “D…” no início do segundo semestre do ano de 2011;
g) O Autor tivesse passado a ser atleta do Clube “D…” por causa da dificuldade dos jovens futebolistas de serem convocados e participarem com assiduidade nos jogos e demais competições em clubes como o “L…”;
h) O Autor tivesse competido nas mais diversas competições de futebol, nacionais e regionais, em representação do “D…”;
i) O Autor nunca tenha chegado a gozar férias de verão por ter estado sempre envolvido em treinos e competições, nacionais e internacionais;
j) Conhecedores do meio futebolístico preconizassem, a curto prazo, a celebração de contrato de trabalho profissional entre o Autor e um clube que militasse nos campeonatos profissionais de futebol nacional;
k) O Autor recebesse mensalmente do “D…” e do “E…”, respectivamente, a quantia de € 300,00, destinados a fazer face aos encargos com as suas deslocações para os treinos;
l) Um futebolista profissional em início de carreira aufira mensalmente, a título de retribuição, quantia pecuniária bruta de montante superior a € 3.000,00 por mês;
m) A Ré “C…” tivesse subscrito o contrato de seguro aludido em 8. e, através dele, tivesse aceitado transferir para si a responsabilidade pelos riscos de acidentes pessoais inerentes à atividade desportiva desenvolvida pelos atletas do clube “D…”;
n) A Ré “C…” fosse a entidade seguradora, aceitando transferir para si a responsabilidade pelos riscos de acidentes pessoais inerentes à atividade desportiva desenvolvida pelos atletas do clube “E…” através da apólice nº ………;
o) A Ré se tivesse responsabilizou pelos pagamentos de todas as despesas hospitalares decorrentes do sinistro referido em 12.;
p) A Ré tivesse acordos de cirurgia com o P…;
q) O Autor, como consequência das lesões mencionadas em 32., ficasse definitivamente impedido de efectuar caminhada ou subir ou descer escadas;
r) A incapacidade que afecta o Autor seja impeditiva do exercício de qualquer profissão que imponha a necessidade de se manter de pé durante muito tempo;
s) O Autor continue a não conseguir lidar com os sentimentos aludidos em 54.;
t) A fase de fisioterapia referida em 36. se tenha prolongado por cerca de três meses;
u) As sessões de fisioterapia aludidas em 57. fossem diárias, de segunda a sexta-feira, cerca de duas horas por dia;
v) Nas deslocações referidas em 58., o Autor fosse inicialmente conduzido pelo seu pai e, após o primeiro mês, através de transportes públicos, durante cinco meses;
w) Tais deslocações fossem, pelo menos, por nove vezes e tivessem sido suportadas pelo Autor, tendo tido um gasto de montante não inferior a € 125,00;
x) Após a lesão referida em 12., o Autor tenha submetido o membro lesionado a um esforço físico para o qual não tinha capacidade de resistência;
y) A lesão referida em 25. tenha relação com a lesão anterior aludida em 12., sendo uma recidiva e agravamento desta lesão;
z) Os médicos tivessem informado o Autor da possibilidade de ocorrência de nova lesão no mesmo local e pelo mesmo motivo;
aa) O Autor não tenha recuperado da lesão sofrida em 2012 e, mantendo os treinos normais, tenha forçado o joelho esquerdo a voltar a ficar lesionado;
bb) Cerca de um mês após a operação aludida em 17., o Autor se fizesse deslocar com o auxílio de canadianas.
***
3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
3.1. Do recurso (independente) interposto pelo autor

No terminus da peça processual com que deu início à presente ação declaratória o autor peticionou a condenação da parte contrária no pagamento da quantia global de €57.760,22 (sendo €20.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais, €35.000,00 para indemnização dos danos patrimoniais futuros e €2.760,22 referente às despesas de tratamento que suportou), filiando essa pretensão de tutela jurisdicional no facto de ter sofrido acidente desportivo que se mostra abrangido pelo âmbito de cobertura do contrato de seguro de que é beneficiário/pessoa segura.
Na decisão recorrida o juiz a quo condenou a “Companhia de Seguros F…, S.A.” no pagamento ao autor da quantia de €4.310,22, correspondente ao somatório do valor das despesas de tratamento que este liquidou (no montante de €2.760,22) e do capital atribuído pela invalidez permanente parcial de que ficou portador calculado de acordo com os valores estipulados no contrato de seguro (no montante de €1.650,00, deduzido da franquia de €100,00), julgando improcedente o pedido respeitante à compensação dos danos não patrimoniais.
O autor e ora apelante rebela-se contra esse segmento decisório sustentando que, ao abrigo do ajuizado contrato de seguro, tem direito a ser ressarcido pelos danos não patrimoniais decorrentes do acidente que sofreu enquanto “agente desportivo”, bem como à reparação integral dos danos patrimoniais que esse evento súbito lhe ocasionou.
Que dizer?
Como emerge do tecido fáctico apurado, o autor, no dia 4 de dezembro de 2013, durante a realização de um treino enquanto atleta ao serviço do “E…”, sofreu uma lesão no joelho esquerdo de que resultou um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 6 pontos. Nessa data encontrava-se em vigor (por imposição legal) um contrato de seguro desportivo, titulado pela apólice nº ………, celebrado entre a H… e a Companhia de Seguros F…, S.A., o qual cobria os riscos de acidentes pessoais sofridos durante a prática desportiva pelos atletas inscritos naquela Associação, entre os quais o autor.
Problema que desde logo se equaciona prende-se com a natureza desse contrato de seguro cuja regulação normativa consta hoje do DL nº 10/2009, de 12.01 (que estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório - doravante, LSD), dando, assim, concretização à determinação vertida no art. 42º da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (Lei nº 5/2007, de 16.01), no qual se impôs “[a] institucionalização de um sistema de seguro obrigatório dos agentes desportivos inscritos nas federações desportivas destinado a cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos”.
Esse desiderato é expressamente assinalado no preâmbulo do primeiro diploma citado onde se refere que presentemente “cobrir os riscos, através da instituição do seguro obrigatório, é uma necessidade absoluta para a segurança dos praticantes”, acrescentando, mais adiante, que “com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento”.
Desta forma, a LSD prevê (art. 2º, nº 1) que os agentes desportivos, os praticantes de actividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas devem, obrigatoriamente, beneficiar de um contrato de seguro desportivo; já o nº 2 desse mesmo normativo estabelece que a responsabilidade pela celebração desse contrato cabe às federações desportivas, às entidades que explorem infra-estruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas.
Por seu turno, o seu art. 5º veio estabelecer que esse seguro “[c]obre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas e respectivas deslocações, dentro e fora do território português” (nº 1), fixando como coberturas mínimas abrangidas (cfr. arts. 5º, nº 2 e 16º): i) “pagamento de um capital por morte – €25.000,00”, ii) “despesas de funeral - €2.000,00”, iii) “invalidez permanente absoluta - €25.000,00”; iv) “invalidez permanente parcial - €25.000,00, ponderado pelo grau de incapacidade fixado”; v) “despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar, e de repatriamento - €4.000,00”.
Em face do descrito regime normativo[2], na medida em que o seguro desportivo obrigatório cobre os riscos de acidentes inerentes à actividade desportiva, assume o mesmo natureza de seguro de acidentes pessoais (regulado, em termos gerais, nos arts. 210º a 212º do DL nº 72/2008, de 16.04, que aprovou o regime jurídico do contrato de seguro - LCS), sendo que, em função das coberturas mínimas fixadas – na esteira de MARGARIDA LIMA REGO[3] - será de qualificar esse seguro como uma figura híbrida, com uma vertente de seguro de capitais – porque determina o pagamento de um capital por morte ou invalidez, total ou parcial, em cuja fixação não se aplica o princípio indemnizatório, que limitaria a prestação do segurador ao valor do dano decorrente do sinistro; e uma vertente de seguro de danos – já que cobre as despesas de tratamento e de repatriamento, onde, por contrapartida, se aplica o princípio indemnizatório.
Neste conspecto, não será, aliás, despiciendo registar que integrando-se tal contrato na categoria mais vasta do seguro de pessoas, a respectiva normação (art. 175º, nº 2 da LCS) expressamente prevê a possibilidade de nele se garantirem prestações de valor predeterminado não dependente do efectivo montante do dano ao lado de prestações indemnizatórias[4].
Descendo ao caso dos autos, verifica-se que o ajuizado contrato de seguro (que assume igualmente natureza de seguro de grupo não contributivo)comunga das enunciadas características, tendo as partes contratantes - no que ao caso releva- estipulado (cfr. capítulo I das Condições Particulares) como coberturas: i) o pagamento de despesas de tratamento até €7.500,00, com uma franquia de €100,00 por pessoa; ii) o pagamento de um capital por morte de €27.500,00; iii) pagamento de um capital por invalidez permanente absoluta de €27.500,00, sendo que, por mor do disposto na al. c) do art. 2º do Capítulo II das Condições Particulares, no caso de invalidez permanente parcial a seguradora “pagará a parte do capital da cobertura, correspondente ao grau de desvalorização resultante do acidente”. De igual modo, no nº 1 do art. 2º, Capítulo II das Condições Gerais, consta uma cláusula de delimitação negativa do risco seguro “excluindo da garantia quaisquer indemnizações por danos morais”.
Isto posto, importa agora dilucidar se, ao abrigo do ajuizado contrato, o autor apelante terá direito à atribuição dos montantes que reclama, seja a título de reparação dos danos não patrimoniais, seja em relação ao capital devido em resultado da invalidez permanente parcial de que ficou portador.
Começando pela reclamada compensação pelos danos não patrimoniais, na sentença recorrida afastou-se a atribuição de qualquer montante a esse título com o fundamento que a reparação desse tipo de danos foi expressamente excluída no contrato de seguro.
No sentido de refutar esse sentido decisório, o apelante esgrime o argumento de que a referida cláusula de exclusão ter-se-á de considerar não escrita por aplicação do art. 6º da LSD[5], na medida em que afronta o regime imperativo desse diploma ao provocar “um esvaziamento do objecto do contrato do seguro”, sendo que esse regime não afasta que se indemnizem danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Esta problemática tem sido objecto de apreciação nos nossos tribunais, não se registando, contudo, uma resposta unívoca a respeito da ressarcibilidade deste tipo de dano ao abrigo do contrato de seguro desportivo[6].
Na nossa perspectiva, a resolução da equacionada questão (e bem assim, por identidade de razão, da questão atinente à impetrada reparação integral dos danos patrimoniais futuros) entronca, fundamentalmente, na natureza desse contrato como seguro de pessoas, cujo objeto, como se referiu, pode contemplar, simultaneamente, prestações convencionadas (ou de valor predeterminado) e prestações indemnizatórias.
Na verdade, como emerge do citado art. 16º da LSD, enquanto as coberturas previstas para as despesas de funeral (al. b)) e para as despesas de tratamento e repatriamento (al. e)) apontam para o montante dessas despesas dentro dos limites aí fixados, já as coberturas por morte (al. a)) ou por invalidez permanente absoluta ou parcial (als. c)e d)) encontram-se configuradas como prestações de capital predeterminadas em função exclusiva da natureza dessas lesões, devendo ainda a invalidez permanente parcial ser ponderada pelo grau de incapacidade que for fixado (al. d)).
Significa isto que estas últimas coberturas (por morte ou por invalidez permanente) se traduzem em obrigação de prestação convencionada independente do valor do dano efetivo e não em prestação indemnizatória propriamente dita, como no caso das referidas coberturas pelas despesas de funeral e de tratamento.
Esta linha de entendimento tem sido seguida em diversos arestos do STJ, designadamente em acórdão de 08.09. 2016[7], ao considerar-se que, na hipótese de invalidez permanente parcial, “a determinação do quantitativo da atribuição patrimonial devida à pessoa segura em função do sinistro se acha estritamente correlacionada com o grau de invalidez de que aquela ficou a padecer em consequência desse evento” sendo este “o único factor a atender”. Nessa mesma linha (relativamente à reparabilidade dos ditos danos morais) se decidiu no acórdão de 06.04.2017[8], ao concluir que não se vê “como pode ter-se por compreendida no capital por invalidez permanente, para além da estrita indemnização correspondente à percentagem da perda de capacidade aquisitiva, a indemnização por danos não patrimoniais.”
A esse propósito, no último aresto citado, é feita a seguinte observação crítica: «(…) a entender assim, teríamos de aceitar a incongruente solução de que a apólice apenas contemplaria a reparação de danos não patrimoniais em casos de menor gravidade, em que a invalidez permanente fosse de um valor percentual mais baixo, pois o valor do capital disponível para tal indemnização iria diminuindo à medida que fosse subindo o grau de desvalorização funcional permanente. E chegar-se-ia ao absurdo de, no caso de uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, correspondente a uma IPP de 100%, ou mesmo no caso de um IPP de 66% - potencialmente determinativas de maiores danos em bens de ordem espiritual, atenta a maior gravidade do dano corporal e as maiores limitações físicas que coenvolvem -, a apólice não contemplar a indemnização por danos não patrimoniais por não haver já capital disponível para o efeito».
Não se ignora, no entanto, a jurisprudência que admite a reparação dos danos não patrimoniais, em caso de invalidez permanente, no âmbito do contrato de seguro desportivo obrigatório, tal como foi entendido, nomeadamente no acórdão do STJ de 09.05.2019[9] (que, aliás, o apelante cita abundantemente nas suas alegações recursivas), a considerar que a alínea d) do art. 16.º da LSD, deve ser interpretada no sentido de determinar tão-só o montante máximo de capital devido pela seguradora, devendo, dentro deste limite, ser atendidos tanto os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais, considerando nulas as cláusulas que excluam tal atendimento por aplicação conjugada do art. 6.º da LSD e do art. 294.º do Cód. Civil.
Porém, salvo o devido respeito, uma tal solução não se afigura compatível com a já assinalada natureza do contrato de seguro desportivo obrigatório por acidentes pessoais tal como se encontra parametrizado em sede de coberturas mínimas no art. 16.º da LSD, ao prever uma prestação de capital pré-determinada, mormente para a invalidez permanente, total ou parcial, sem qualquer consideração pelo valor do dano efetivo.
De salientar que o art. 5.º, n.º 2, al. a), da LSD estabelece a cobertura mínima abrangida pelo seguro desportivo para o pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da atividade desportiva, o que se afigura não equivaler, juridicamente, a pagamento de indemnização propriamente dita em função do dano efetivo ainda que limitada àquele capital.
Poderá discutir-se, de jure condendo, se não seria mais adequado ou justo atender ao dano efetivo como fator complementar na fixação da prestação devida, mas o certo é que - como se evidencia no acórdão do STJ de 7.11.2019[10] - este fator não foi erigido como critério legal, nem era imperioso que o fosse, tanto mais que, em conformidade com o disposto no art. 175º, nº 2 da LCS, o contrato de seguro de pessoas pode garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efetivo montante do dano.
De resto, uma solução que se pautasse, sem mais, pelo atendimento do dano efetivo poderia levar até a que a “indemnização” por invalidez permanente ficasse aquém do valor do capital garantido, caso o montante daquele dano fosse porventura inferior a este capital.
Acresce que – como bem se sublinha no último aresto citado e que aqui seguimos de perto - atender ao valor do dano efetivo, incluindo dos danos não patrimoniais, poderá eclipsar a diferenciação da atribuição patrimonial devida por invalidez permanente absoluta e a devida por invalidez permanente parcial e, no âmbito desta, a que for devida em função dos graus de incapacidade fixados, diferenciação essa, de cariz objetivo, que se encontra bem patente no art. 16.º, als. c) e d) da LSD.
Não parece, por isso, que as exclusões previstas no art. 6.º desse diploma devam ter um alcance tal que conduzam à obliteração dessa diferenciação legal.
Em suma, a garantia do capital mínimo pela cobertura do contrato de seguro desportivo obrigatório para os casos de invalidez permanente do sinistrado, absoluta ou parcial, estabelecida nas als. c) e d) do art. 16.º da LSD, de forma taxativa, com a ponderação ainda do grau de incapacidade fixado, no caso de invalidez parcial, insere-se perfeitamente no quadro do contrato de seguro de acidentes pessoais na modalidade de prestações de valor predeterminado não dependente do montante efetivo do dano, de modo a proporcionar um ressarcimento do sinistrado a forfait, seja este dano superior ou inferior àquele valor.
Por outro lado, visando-se cobrir o risco de lesões corporais determinativas de invalidez permanente inerentes a acidente em atividades desportivas, nem sequer necessariamente associado à prática de ilícito civil no domínio da responsabilidade extracontratual, não se mostra imperioso que a prestação devida pelo segurador seja aferível pelo dano efetivo ou esteja limitada a este, segundo o princípio indemnizatório consagrado no artigo 128.º da LCS para o contrato de seguro de danos.
Nessa conformidade, ao invés do que sustenta o apelante, não se afigura que a “indemnização” desse modo pré-determinada na ajuizada apólice de seguro seja, sem mais, contrária à natureza da atividade desportiva ou provoque um esvaziamento do objeto do contrato de seguro nos termos e para os efeitos do art. 6.º da LSD.
No caso vertente, o contrato de seguro desportivo celebrado entre a apelante seguradora e a H…, tendo o autor como beneficiário aderente, garante, no caso de invalidez permanente, a cobertura mínima de € 27.500,00, por acidente, em função do grau de desvalorização sofrido pelo sinistrado, de acordo com a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, o que condiz com o critério objetivo imperativamente consagrado no art. 16.º, al. d), da LSD, sendo certo, outrossim, que esse seguro, na sua conformação legal, não é (contrariamente ao que parece ser entendimento do apelante) um seguro de responsabilidade civil destinado a reparar a integralidade dos danos sofridos pela pessoa segura (como é imposto, para esse tipo contratual, nos arts. 138º, nº 2 e 146º da LCS).
Nessa base, independentemente da natureza patrimonial ou não patrimonial dos danos sofridos pelo autor em consequência do acidente desportivo em causa e da repercussão patrimonial do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 6 pontos (de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil), o ressarcimento dos mesmos não pode, nos termos expostos, deixar de ser efetuado em conformidade o que está pré-determinado na ajuizada apólice de seguro, o que, in casu, passa por arbitrar– tal como se afirmou e decidiu na sentença recorrida -uma prestação (de capital) na proporção desse grau de incapacidade sobre o valor do capital garantido, o que equivale a €1.650,00 [€ 27.500,00 x 6%], tornando-se, por isso, também írrito discutir a (in)validade da cláusula contratual que exclui a “indemnização por danos morais” referida no ponto 67 da materialidade provada.
Improcedem, pois, todas as conclusões do recurso independente.
*
3.2. Do recurso (subordinado) interposto pela interveniente “F…”

Atento o sentido decisório sustentado relativamente às questões que constituem objecto do recurso independente, mostra-se, por isso, prejudicado o conhecimento do recurso subordinado, posto que, na sua economia, o mesmo somente deveria ser apreciado caso a sentença de 1ª instância não fosse integralmente confirmada.
***
III. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
i)- julgar improcedente a apelação interposta pelo autor, confirmando-se a decisão recorrida;
ii)- não tomar conhecimento do recurso subordinado apresentado pela interveniente principal “Companhia de Seguros F…, S.A.”.
Custas a cargo do autor.

Porto, 12 de outubro de 2020
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
_______________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Para maior desenvolvimento sobre a análise do diploma que instituiu o seguro desportivo obrigatório, cfr., inter alia, ANA BRILHA, O Novo Regime do Seguro Desportivo – Verdadeira inovação?, in Revista Jurídica do Desporto, ano VI (janeiro/abril de 2009), págs. 293 e seguintes e P F. ALVES, Decreto-Lei n.° 10/2009, de 12 de Janeiro, que estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório, in AAVV, A nova legislação do desporto comentada, 2010, págs. 153 e seguintes.
[3] O início da cobertura no seguro desportivo, in O desporto que os tribunais praticam, AAVV, Almedina, 2014, pág. 211 e seguintes, onde igualmente sustenta que este seguro pode ainda qualificar-se como um seguro por conta de outrem, dado que os sujeitos passivos do dever de segurar não coincidem com a pessoa dos segurados, titulares da cobertura – os agentes desportivos.
[4] Segundo JOSÉ VASQUES (in Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 47) serão seguros de prestações indemnizatórias todos aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro, sendo seguros de prestações convencionadas todos aqueles em que o conteúdo e montante dessas prestações estejam previamente definidos, dependendo apenas a sua realização da verificação de determinado evento.
[5] No qual se preceitua que “[a]s apólices de seguro não podem conter exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoque um esvaziamento do objecto do contrato de seguro”.
[6] Cfr., sobre a questão e por todos, acórdãos do STJ de 04.10.2018 (processo nº 4575/15.1T8BRG.G1), de 09.05.2019 (processo nº 1751/14.8TBVCD.P1.S1), de 7.11.2019 (processo nº 654/16.T8ABT.E1.S1) e de 6.04.2017 (processo nº 335/10.4TTOAZ-P1.S1), acórdão da Relação de Lisboa de 09.07.2014 (processo nº 1118/2002.L1.2), acórdão da Relação de Coimbra de 23.11.2018 (processo nº 4285/15.0T8CBR.C1), acórdãos desta Relação de 24.04.2018 (processo nº 293/13.9TBVFR.P1) e de 15.11.2018 (processo nº 1751/14.8TBVCD.P1), acórdão da Relação de Évora de 12.06.2019 (processo nº 945/13.8TVALR.E1) e acórdão da Relação de Guimarães de 28.11.2019 (processo nº 2541/17.1T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] Proferido no processo n.º 1311/11.5TJVNF.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Proferido no processo n.º 335/10.4TTOAZ-P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Proferido no processo n.º 1751/14.8TBVCD.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[10] Prolatado no processo nº 654/16.6T8ABT.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.