INVENTÁRIO TRAMITADO NOS TERMOS DO RJPI
DECISÃO CONFORME DO NOTÁRIO E DA 1.ª INSTÂNCIA
ADMISSIBILIDADE DE NOVO RECURSO
NULIDADES DA DECISÃO
Sumário

I - Relativamente aos inventários tramitados nos termos do RJPI, tem prevalecido nos tribunais superiores a corrente jurisprudencial na qual, em síntese, se preconiza a seguinte orientação: i) as decisões proferidas pelo Notário ao longo do processo de inventário são, em regra, impugnáveis judicialmente; ii) incumbe tribunal de 1.ª instância a competência para o conhecimento de tais impugnações; iii) as impugnações das decisões do Notário seguem o regime coincidente com o previsto nos artigos 57.º e 16.º do RJPI, aplicando-se subsidiariamente o regime do recurso de apelação.
II - Considerando a subsidiariedade do regime de apelação, suscita dúvida a situação em que as questões recursórias objeto da apelação tenham sido anteriormente julgadas por duas vezes de forma coincidente: o notário, que indeferiu os incidentes suscitados pela ora recorrente; o juiz, que confirmou na íntegra tais decisões.
III - Não se deverá considerar, no entanto, o regime restritivo da “dupla conforme”, na medida em que a regra enunciada no n.º 3 do artigo 671.º do CPC pressupõe a existência de duas decisões judiciais coincidentes, sendo que na situação em apreço uma delas é administrativa.
IV - A questão deverá ser dilucidada à luz dos princípios gerais, prevendo o artigo 627.º do Código de Processo Civil como regra geral a impugnabilidade das decisões, sem prejuízo da sua limitação por via legislativa, conciliando o interesse da segurança jurídica com a natural escassez de meios disponibilizados para administrar a justiça, pelo que qualquer limitação à regra geral enunciada só poderia ser legitimada por via legislativa.
V - Não havendo norma especial que preveja a irrecorribilidade da decisão judicial (de 1ª instância) que, recaindo sobre a decisão administrativa a confirme, haverá que concluir pela admissibilidade do recurso para a Relação.

Texto Integral

Processo n.º969/17.6T8AMT.P2

Sumário do acórdão:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B…, requereu perante a Notária C…, com Cartório Notarial em Amarante, a abertura de inventário com vista a pôr termo à comunhão hereditária relativamente ao acervo hereditário deixado por óbito de seu pai D…, tendo exercido as funções de cabeça-de-casal a irmã da requerente, E…, que substituiu a viúva do inventariado, F….
No âmbito do referido inventário os ora recorrentes G… e marido, H…, reclamaram: a) da relação de bens, arguindo, desde logo, a nulidade da peritagem efetuada; b) da ultrapassagem de prazos e prosseguimento para a conferência preparatória; c) do reconhecimento de dívida sem aprovação de todos os interessados e da e) da acusação da falta de relacionamento de bens.
Todas as referidas reclamações foram objeto de indeferimento por parte da Exma. Senhora Notária.
Interposto recurso das referidas decisões para o tribunal da respetiva comarca o Mº Juiz proferiu, em 25.09.2018, o seguinte despacho:
«A questão a decidir-delimitada pelas conclusões da alegação dos apelantes (artºs 635º, nº 4 e639, nºs 1 e 3 do CPC)- é a seguinte:
- Recorribilidade da decisão do notário que indeferiu a nulidade da perícia; que indeferiu a nulidade por ultrapassagem de prazos e decidiu prosseguir com a conferência preparatória; que reconheceu a dívida sem aprovação de todos os interessados; que indeferiu o relacionamento de bens e, finalmente, que indeferiu o pedido de esclarecimentos.
Como justa e certeiramente diagnosticou a Exma. Notária, a fls. 3 verso “o recurso em apreço, chamado de impugnação judicial do despacho determinativo da forma à partilha, não põe em causa tal despacho, conforme se pode apurar da sua motivação. Neste recorre-se, sim, de várias decisões interlocutórias que apenas poderão ser objecto de impugnação no recurso que vier a ser interposto da decisão judicial de homologação da partilha.
Há então que ajuizar. O Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI) aprovado pela Lei23/13, de 25.03-diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem e numera taxativamente as decisões do notário que admitem recurso para o Tribunal de 1ª instância da Comarca do Cartório Notarial.
São elas: a) a decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios comuns, feito ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 16º (nº 4 do mesmo preceito); b) o despacho determinativo da partilha (artº 57º, 4).
Ambos os recursos sobem imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, sendo o primeiro interposto no prazo de 15 dias e sendo o segundo interposto no prazo de 30 dias (artºs 16º,nºs 4 e 5 e 57º, nº 4).
Para além de intervir como Tribunal de recurso, naquelas duas situações, o Tribunal da 1ª instância intervém no processo de inventário apenas para proferir a sentença homologatória da partilha (artº 66º, nº 1).
Diz o nº 3 daquele artº 66º que da sentença homologatória da partilha cabe recurso de apelação, nos termos do CPC, para o Tribunal da Relação territorialmente competente, com efeito meramente devolutivo.
Repete o artº 76º, nº 1 que da sentença homologatória da partilha cabe recurso, dizendo ainda que se aplica, com as necessárias adaptações, o regime de recursos previsto no CPC.
Finalmente, diz o nº 2 daquele preceito que, salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do CPC, as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão da partilha.
Resta saber a que “decisões interlocutórias” se reporta o citado preceito. Já vimos que as decisões interlocutórias proferidas pelo Tribunal da 1ª instância são apenas as referidas nos artº 16º, nº 4 e 57º, nº 4. Trata-se de decisões que, em princípio, não têm cabimento nem na al. b) do nº 1 nem nas diversas alíneas do nº 2 do artº 644º do CPC, pelo que não admitem apelação autónoma, devendo ser impugnadas no recurso de apelação que venha a ser interposto da sentença homologatória da partilha. É o que sucede no caso dos autos, em que podemos considerar que a decisão recorrida não está abarcada pelo art. 644 do CPC, não está imbrincada na remessa para os meios comuns nem tange o despacho determinativo da forma à partilha embora se pretenda revestir dessa indumentária. Mas persiste a questão de saber se o nº 2 do artº 76º se refere apenas às decisões judiciais ou também às decisões notariais. Pode entender-seque, com a desjudicialização do processo de inventário, se pretendeu tornar definitivas todas as decisões do Notário, com excepção das referidas nos já citados artºs 16º, nº 4 e 57º, nº 4, não admitindo as mesmas recurso.
Ou seja, seriam definitivamente decididas pelo notário questões tão relevantes como, a recusa ou deferimento da cumulação de inventários (artº 18º, nº 2), a determinação de arquivamento do processo (artº 19º, nº 2), a nomeação, substituição, escusa ou nomeação do cabeça-de-casal (artº22º), a oposição e impugnação (artº 31º, nº 3), a decisão quanto à reclamação de bens e existência de sonegação (artº 35º, nº 3 e 4), o reconhecimento de dívidas (artº 39º) e outras.
Daí que a interpretação da norma do artº 76º, nº 2 no sentido de que as decisões notariais não podem ser impugnadas em sede de recurso tenha vindo a ser considerada inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito consagrado no artº 20º, nº 1 da CRP. Por outro lado, daquelas decisões do notário não pode haver nunca lugar a recurso directo para o Tribunal da Relação, porque este Tribunal reaprecia decisões já tomadas […].
De todo o exposto resulta que a única forma de ultrapassar a questão é admitir que as decisões do notário (com excepção das referidas nos artºs 16º, nº 4 e 57º, nº 4, como já vimos) possam ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha. Assim, no caso, a decisão da Sr.ª Notária que indeferiu a nulidade da perícia; que indeferiu a nulidade por ultrapassagem de prazos e decidiu prosseguir com a conferência preparatória; que reconheceu a dívida sem aprovação de todos os interessados; que indeferiu o relacionamento de bens e finalmente que indeferiu o pedido de esclarecimentos, não admite recurso para o Tribunal da 1ª instância, nem admite recurso autónomo para o Tribunal da Relação, mas pode ser impugnada no recurso que viera ser interposto da sentença homologatória da partilha e que ainda não foi proferida.
Impõe-se então, e na senda do diagnóstico notarial, não admitir o recurso de fls. 15 verso, interposto pelos interessados G… e marido H….
Custas pelos recorrentes.
Registe e notifique.».
Em 14.12.2018, a Exma. Senhora Notária remeteu ao Tribunal [Instância Local de Amarante - Secção Cível - J1, da Comarca do Porto Este] a ata de 23.11.2016, da Conferência Preparatória, para efeitos de homologação nos termos dos artigos 48.º, n.º 7 e 66.º, ambos do RJPI[1]
Consta do requerimento em apreço: «Mais se junta, após sentença transitada em julgado no âmbito do processo n.º 969/17.6T8AMT que não admitiu o recurso do despacho determinativo da forma de partilha, o mapa de partilha».
Em 17.12.2018 foi proferida a seguinte sentença:
«Homologo por sentença, nos termos do art. 48 n.º 6 e 66 n.º 1 do RJPI, a partilha constante da conferência de fls. 111, no presente inventário instaurado por óbito de D… e mulher F…, no qual foi cabeça-de-casal E….
Custas nos termos do art.º 67 do mesmo diploma.
Notifique e registe.»
Não se conformaram os interessados G… e marido H…, e interpuseram recurso de apelação, tendo os autos subido a este Tribunal, onde foi proferido acórdão, em 22.05.2019, do qual consta, relativamente à definição do objeto do recurso:
«O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
Importa porém que se decida em primeiro lugar qual é o tribunal competente em razão da hierarquia para conhecer das impugnações judiciais que os interessados em causa ao longo do processo apresentaram de decisões proferidas pela Notária, conhecendo dessas impugnações apenas no caso de se julgar competente em razão da hierarquia.».
Conclui-se no aludido acórdão com o seguinte dispositivo:
«Pelos fundamentos acima expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em declarar a incompetência desta Relação, em razão da hierarquia, para conhecer das impugnações judiciais das decisões da Notária apresentadas pelos interessados ao longo do processo, ordenando a baixa dos autos à 1.ª instância para o efeito. Mais anulam a sentença homologatória da partilha e os actos subsequentes».
Baixaram os autos à 1.ª instância, onde foi proferida sentença em 6.09.2019, com o seguinte teor:
«As questões a decidir – delimitadas pelas conclusões da alegação dos apelantes (artºs 635º, nº 4 e 639, nºs 1 e 3 do CPC) – são as seguintes, em número de 4:
- Recorribilidade da decisão do notário que indeferiu a nulidade da perícia; que indeferiu a nulidade por ultrapassagem do prazo do art. 41 n.º 3 do NRJPI e decidiu prosseguir com a conferência preparatória; que reconheceu a dívida sem aprovação de todos os interessados; que indeferiu o relacionamento de bens e, finalmente, que indeferiu o pedido de esclarecimentos.
Há então que ajuizar de todas estas nulidades arguidas pelos interessados G… e marido H….
E, para encetar o tema, socorremo-nos do escrito da autoria do Distinto Meritíssimo Juiz de Direito, Dr. Tiago Caiado Milheiro, intitulado “Nulidades da Decisão da Matéria de Facto”, publicado na Julgar online 2013, página 1 e ss:
“Através da imposição de um determinado ritualismo processual e a exigência de determinados pressupostos para a validade dos actos processuais, permite-se conferir segurança e estabilidade às partes, já que sabem como devem actuar no processo, para lograr os efeitos processuais pretendidos, sendo responsáveis pela omissão de actos processualmente impostos - princípio da auto-responsabilidade das partes – bem como, pela omissão da prática de actos processuais no momento processualmente definido para o efeito – princípio da preclusão.
Nas palavras de António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, 2.ª Edição, páginas 82 e 83 “Apresentando-se o processo como uma sucessão de actos tendentes a obter do tribunal uma decisão que defina os direitos no caso concreto, isso implica a previsão de fases e prazos processuais, a fim de estabelecer alguma disciplina necessária. O princípio da eventualidade ou da preclusão que emana de diversas disposições legais significa que, em regra, ultrapassada determinada fase processual, deixam as partes de poder praticar os actos que aí deveriam inserir-se. Tem ainda como consequência que, excedido um prazo fixado na lei ou determinado pelo juiz, se extingue o direito de praticar o acto.
De igual modo, tal segurança determina a confiança de que o julgador acate os pressupostos impostos processualmente para os actos processuais que pratica, sob pena de invalidade dos mesmos.
Assim, quando são adoptados actos no processo, quer seja pelo juiz, partes ou secretaria, que não respeitem o ritualismo e formalismo processual, bem como, os pressupostos impostos para a prática de actos processuais, deparamo-nos com uma nulidade.
Vigora, contudo, o princípio da manutenção dos actos imperfeitos, ou seja, o acto nulo produz os seus efeitos até que seja declarada a nulidade, e caso não seja arguida tempestivamente ou o juiz não a detecte e não a sane, os seus efeitos têm-se por adquiridos no processo, como se fosse um acto perfeitamente válido. No que se reporta às nulidades, estas podem caracterizar-se como principais, correspondendo às invalidades tipificadas no processo civil nos arts.193 a 199 do CPC (ineptidão da petição inicial, falta de citação e erro na formado processo) cominadas expressamente como nulidades, e regulamentadas, especificadamente, quer quanto ao tempo de arguição, pressupostos da nulidade e efeitos.
Quanto aos demais desvios aos requisitos impostos para a prática dos actos processuais ou ao ritualismo processual, são apelidados de nulidades secundárias.
Dispõe o art. 201, n.º 1 do CPC, que a prática de um acto que a lei não admita, bem como, a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, determinarão a nulidade, caso a lei assim o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa.
Declarada a nulidade serão destruídos todos os actos subsequentes que dependam desse acto. “Quando um acto tenha de ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependessem absolutamente. A nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes (cfr. art. 201 n.º 2 do CPC). É assim pressuposto da anulação de acto processual posterior a sua dependência absoluta do acto anterior inválido, ou seja, este tem de constituir um patamar essencial para a prática do subsequente acto, pois este, sem aquele, nunca teria sido praticado.”
Posto isto esta citação, urge percutir que, como é sabido, as nulidades processuais “são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, a que esta faça corresponder– embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa dos actos processuais” ( Cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1993,p. 176.), na medida em que os actos processuais são actos instrumentais que se inserem na complexa unidade de um processo, de tal sorte que cada acto é, em certo sentido, condicionado pelo precedente e condicionante do subsequente, repercutindo-se mais ou menos acentuadamente no acto terminal do processo, pondo em risco a justiça da decisão (Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, p. 103.).
Porém, como refere Alberto dos Reis (Cfr. Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 357.), há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos. As nulidades principais (tipificadas ou nominadas) estão previstas, taxativamente, nos arts. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e, por sua vez, as irregularidades (nulidades secundárias, atípicas ou inominadas) estão incluídas na previsão geral do art. 195º do CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art. 199º do mesmo diploma, a saber: - se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o acto não terminar, isto é, até ao termo desse acto; - se a parte não estiver presente ou representada, o prazo (de 10 dias – art. 149º, n.º 1 do CPC) para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte intervier em algum ato praticado no processo ou for notificada para qualquer termo dele, mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência. Atento o disposto no art. 195º e segs. do CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um acto prescrito na lei ou realização de um acto imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Tais irregularidades só determinam a nulidade do processado quando a lei assim o declare ou quando o vício cometido possa influir no exame ou na decisão da causa.
Por referência ao caso submetido à nossa apreciação não oferece dúvidas que os recorrentes reclamaram das nulidades que arguiram, posteriormente, em sede de recurso, pelo que nada obsta à nossa apreciação, o que se passa afazer.
Ultrapassada esta fase prodrómica, vejamos da justeza da argumentação recursiva:
- Arguição da nulidade da perícia:
Sustentam os recorrentes que a perícia está inquinada de nulidade, porquanto os relatórios de avaliação dos prédios remontam a 25/02/2016 e 25/03/2016 e, o compromisso de honra foi prestado pelo Sr. Perito em 28 de Abril de 2016, não tendo as partes sido notificadas para estarem presentes.
Ora, se efectivamente assim sucedeu, os autos não mostram, nem os recorrentes alegam, que reclamaram sem sucesso do relatório pericial nos termos do art. 485 do CPC, nem requereram 2.ª perícia nos termos do art. 487 do CPC, com o que, pela omissão da prática de actos processuais no momento processualmente definido para o efeito – princípio da preclusão e da autor responsabilidade das partes, a perícia se consolidou na ordem jurídica, por não terem sido accionados os dispositivos adrede e legalmente previstos na lei para invalidar essa perícia.
Termos em que se indefere a arguição da nulidade da perícia.
- Arguição da nulidade por ultrapassagem do prazo previsto no art. 41 n.º3 do NRJPI: Perscrutados os incisos alegados, arts. 24, 40 e 41 do NRPI não se vislumbra, não só, a estipulação de um prazo, como a obrigatoriedade da sua concessão pelo Notário, muito pelo contrário, de acordo com o art. 41 n.º 1 do NRJPI, “Se o credor exigir o pagamento, as dívidas vencidas e aprovadas por todos os interessados devem ser pagas imediatamente.”
Termos em que se indefere esta nulidade da decisão notarial por ultrapassagem de prazos e se decidir prosseguir automaticamente com a conferência preparatória.
- Nulidade do despacho que reconheceu o passivo da herança, malgrado não tenha sido aprovado por todos e que, subsequentemente, incidiu sobre a deliberação do pagamento por esta não vincular os não aprovantes.
Salvo o devido respeito, o passivo foi reconhecido porquanto a Ex.mª Notária julgou documentalmente provada a dívida e, como não havia acordo sobre o pagamento, inevitavelmente se teria de seguir a decisão sobre a venda de bens, nos termos do art. 41 n.º 2 do RJPI, porquanto esse é precisamente o passo legal subsequente. Assim nada a apontar à douta decisão notarial de fls. 112 verso, não deixando com o produto da venda e o pagamento, de se respeitar a responsabilidade de cada herdeiro, nos termos do art. 2071 n.º 1 do CC.
Nesta decorrência, indefiro a nulidade da decisão notarial que reconheceu a dívida sem aprovação de todos os interessados e ordenou a vendados bens, em ordem ao seu pagamento.
- Nulidade da decisão que indeferiu a reclamação da falta de relacionamento de bens, com suporte no art. 32 do NRJPI: Salvo o devido respeito, o relacionamento da madeira está implícito no relacionamento dos prédios, como seus frutos naturais – art. 212 do CC. Assim, embora por motivação diversa, nada há que censurar em termos de nulidade à decisão notarial, indo indeferida esta arguição.
- Nulidade da decisão que indeferiu o pedido de esclarecimentos aquando da conferência preparatória, com fundamento na sua preclusão nos termos do art. 48 n.º 4 do NRJPI, uma vez que tendo tido lugar a deliberação sobre a composição dos quinhões, aos interessados fica defeso deliberar sobre questões prévias que possam influir na partilha. E, mais uma vez, nada a apontar a este entendimento que mana de forma vítrea do art. 48 n.º 4 do RJPI, dando por improcedente a última arguição.
Em síntese e na nossa modesta óptica, o recurso não reúne condições para vingar.
DISPOSITIVO:
Pela recensão supra, julgo improcedente o recurso de impugnação judicialda(s) decisão notarial de fls. 15 verso, interposto pelos interessados G… e marido H…; que indeferiu a nulidade da perícia, que indeferiu a nulidade por ultrapassagem de prazos e decidiu prosseguir com a conferência preparatória; que reconheceu a dívida e ordenou a venda de bens sem aprovação de todos os interessados; que indeferiu o relacionamento de bens e finalmente que indeferiu o pedido de esclarecimentos
Custas pelos recorrentes.».
Em 28.10.2019 foi proferida sentença com o seguinte teor:
«Homologo por sentença, nos termos do art. 48 n.º 6 e 66 n.º 1 do RJPI, a partilha constante da conferência de fls. 111, no presente inventário instaurado por óbito de D… e mulher F…, no qual foi cabeça-de-casal E….
Custas nos termos do art. 67 do mesmo diploma.
Notifique e registe.».
Não se conformaram novamente os interessados G… e marido H…, e interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. - O Tribunal ad quo precedentemente à prolação da sentença de homologação da partilha decidiu sobre as matérias impugnada ao longo do processo pelo recorrentes, decidindo pelo seu indeferimento, dizendo, pelos fundamentos com os quais se discorda, que as nulidades arguidas não se verificam.
2. – De imediato, proferiu a sentença homologatória da partilha agora refutada.
3. – No entanto, entendem os recorrentes, que a mesma não contém todos os elementos, ainda que sucintamente, de uma sentença, nomeadamente, um relatório, identificação de todas as partes (mesmo as habilitadas) nos termos do disposto no artigo 152º, nº 2, do CPC e artigo 70º, nº 2 do RJPI.
4. - Por não conter todos os elementos que deveria conter, tal como foi proferida, além de outros, não pode ser tida, após trânsito em julgado, como título executivo.
5. – Por isso, está a sentença em juízo ferida de nulidade por violação das disposições legais acima indicadas. O que se invoca para os legais efeitos.
6. - O processo de inventário, nos termos da lei, tem substancialmente como objectivo “pôr fim à comunhão hereditária”.
7. – Visando, assim, tal processo que a partilha se processe de forma igual, justa e equilibrada entre todos os interessados.
8. - O que não sucede, por violação dos princípios e normas que chefiam o processo de inventário, entre outros, os princípios: da lei sucessória que pretende proteger uma parte da herança para os filhos (este um principio da ordem pública internacional do estado português), da intangibilidade da legitima, da unidade e universalidade da herança que impõe que todos os bens devam ser considerados na partilha (no caso não foram, considere-se a reclamação dos recorrentes), da equidade e a efectivação da justiça.
9. – Pelo menos, enquanto as arguidas várias nulidades não forem sanadas, o direito e, sobretudo, a Justiça não serão atingidos.
10. – Certo é que, todos os indicados princípios, foram desrespeitados e, assim, violados, pelo que quer a sentença recorrida está ferida de nulidade. O que se invoca para os todos os efeitos legais.
11. - Com a entrada em vigor da Lei nº 23/2013, de 5 de março, a competência para o processo de inventário foi atribuída ao cartório notarial, competência essa que tem subjacente que o Notário, órgão próprio da função notarial, exerce as suas funções em nome próprio e sob a sua responsabilidade, com respeito pelos princípios da legalidade, autonomia, entre outros – cfr. artigo 10º da Estatuto do Notariado.
12. – Chegada a altura, definida por lei (RJPI), o processo transita para Tribunal, para ser proferida sentença homologatória da partilha, ou não - artigo 66º do NRGPI.
13. – O Tribunal recorrido, mais uma vez, proferiu sentença homologatória da partilha, com a qual, de novo, os recorrentes apelantes não se conformam, por entenderem, entre outras, que tal sentença está, manifestamente, ferida de nulidades.
14. – Os recorrentes sabem que a “verdade” é quase sempre inalcançável.
15. – Mas, de igual forma, sabem a verdade do processo pode ser alcançada e, por isso, não deixarão de pelejar para que seja atingida, pelo menos, a “verdade” mais próxima possível do que é real e, esta seja causa imediata para a prolação de uma decisão/sentença/Acórdão equitativa e justa, que sane todas as nulidades, anulabilidades e/ou irregularidades que foram, desde o início, praticadas, as quais obstam, de forma clara e manifesta, a que este processo se mostre em completa desconformidade com os princípios e normas que o regem.
16. – Assim, a razão do presente recurso.
17. – O regime de recurso, domínio do processo de inventário a regra é a de que cabe recurso da sentença homologatória da partilha, devendo as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do mesmo ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da sentença de partilha.
18. – Aquelas decisões já foram proferidas, as quais os recorrentes não aceitam.
19. – Nomeadamente, as respeitantes à perícia, ao reconhecimento da dívida sem aprovação de todos os interessados e à reclamação da acusação de relacionamento de bens.
20. – As quais admitem, por terem um tratamento próprio em sede do processo e inventário ser impugnadas no recurso de apelação da sentença final homologatória da partilha – artigo 76ºdo NRJPI. O que se faz.
21. – O fundamento do indeferimento que recaiu sobre da nulidade da perícia, repetida e insistentemente arguida, parte de premissas erradas e, assim, erradamente julgada.
22. – Com efeito, o Tribunal recorrido partiu do seguinte:
- No “escrito da autoria do Distinto Meritíssimo Juiz de Direito, Dr. Tiago Caiado Milheiro, intitulado “Nulidades da Decisão da Matéria de Facto, publicado na Julgar online 2013, página 1 e ss”.
- Em “Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, 1993, p.176)”; … Anselmo de astro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, p.103”; “ … Alberto dos Reis (CFR. Comentário ao Código Processo Civil, vol. II, Coimbra Editora, 1945, p. 357)”
Para concluir que, relativamente a cada uma das arguidas nulidades, em resumo, o seguinte:
- “… se efectivamente assim sucedeu, os autos não mostram, nem os recorrentes alegam, que reclamaram sem sucesso do relatório pericial nos termos do art.485º do CPC, nem requerera, 2ª perícia nos termos do art. 487 do CPC, ela omissão da prática de actos processuais no momento processualmente definido para o efeito - princípio da preclusão eda auto-responsabilidade das partes, a perícia se consolidou na ordem jurídica, por não terem sido accionados os dispositivos adrede e legalmente previstos para invalidar essa perícia. Termos em que se indefere a arguição da nulidade da perícia”.
23. – Parte, assim, da premissa que os recorrentes arguiram a nulidade por não se conformarem com os valores atribuídos pelo perito aos prédios objecto de avaliação. O que não foi.
24. – Os recorrentes reclamaram da perícia, por esta ter resultado de actos antecipadamente praticados, conforme decorre dos fundamentos expostos nos artigos 19º 34º da dita reclamação, mormente, O compromisso de honra prestado pelo Sr. Perito que procedeu à avaliação dos bens relacionados ocorreu em 28 de Abril de 2016, depois de ter sido, por este, efectuada a respectiva avaliação e elaborado o relatório, que tem data de 4 de Abril e, ainda, porque os relatórios de cada um dos prédios em causa têm data de 25 de Março de 2016 e de 25 de Fevereiro de 2016 e, mais grave, os levantamentos topográficos que fazem parte de cada um dos prédios têm data de Agosto de 2015 e, as certidões que forma juntas a cada uma das avaliações têm data de 2014, 205 e 2016 e, também porque as partes, mormente, os recorrentes não foram notificados para estarem presentes naquela e nem sequer foram notificados da realização da mesma (neste a omissão de despacho que determine a notificação da realização da prova pericial às partes, está, também ferida de nulidade, por violação do exercício do direito do contraditório).
25. – Atos que forçosamente são nulos, quando chamados à colação as normas e princípios que fixam os termos e efeitos da prova pericial. Considerando o modo como a mesma foi realizada.
26. - A prova pericial encontra-se prevista nos artigos 467º e seguintes do CPC, e o nº 1 deste normativo determina que a perícia, requerida por qualquer das partes ou determinada oficiosamente pelo (notário), é requisitada (por aquele) a estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado ou, quando tal não seja possível ou conveniente, realizada por um único perito, nomeado pelo (notário) de entre pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa, podendo as partes sugerir quem deve realizar a diligência.
27. -- Daqui resulta, ainda, que conjecturando, por mera lógica, que o Sr. Perito, àquelas datas, não sabia se ia, não tinha como saber???, efectuar tal peritagem, por que razão aqueles trabalhos e actos foram praticados naquelas indicadas datas? Estranhíssimo.
28. - A Sra. Notária, com data de 13/09/2016, quanto a esta matéria decidiu “Relativamente ao facto do compromisso de honra não preceder a avaliação, determina o artigo 479º/2 que tal terá de ser feito nos casos em que o juiz (leia-se Notário) assista … pode ser prestado mediante declaração escrita e assinada pelo perito, podendo constar do relatório pericial. Não se verificando assim qualquer nulidade …”.
29. - Assim, o Tribunal recorrido não tem razão quando diz que os recorrentes “não mostram, nem os recorrentes alegam, que reclamaram sem sucesso …”.
30. - Como não tem razão quando assevera que “nem requereram a 2ª perícia nos termos do art.487 do CPC”.
31. – O objectivo dos recorrentes com a reclamação foi ver reposta a legalidade, isto é, conhecida a nulidade arguida, a qual não se destinava, como não destina, à realização da 2ª perícia, mas sim à repetição da primeira, da que está ferida de nulidade.
32. – Sendo a perícia nula, tudo se passa como se não tivesse sido realizada e, por conseguinte, dá lugar à realização de outra. Realizando esta dentro dos parâmetros definidos por lei, designadamente, na observância dos pressupostos apontados pelos recorrentes quando da reclamação que deduziram.
33. - Repetindo-se a perícia, como se espera, poder-se-á dar o caso de não merecer esta qualquer reparo. Mas, merecendo, os recorrentes podem sempre usar da faculdade permitida pelo artigo 487º e seguintes do CPC.
34. – Se os recorrentes com a arguida nulidade visassem a 2ª perícia tê-la-iam requerido. O que não foi.
35. - A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que, no que aqui aproveita, é do entendimento que a prova pericial está sujeita às exigências do artigo 6º, nº 1, Da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Convenção Europeia dos Direitos do Homem é direito interno e vigora na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional, com valor superior às leis ordinárias), percebidas como regra geral do direito a um processo equitativo, de que as alíneas do n.º 3 do preceito são mera concretização.
36. - “Uma perícia deve realizar-se em prazo razoável, deve sujeitar-se aos princípios da igualdade de armas e do contraditório e deve ser assegurada a imparcialidade do perito” e, dizemos nós, do Sr. Notário.
37. - Pelo que, ao contrário, do decido pelo Tribunal recorrido, os recorrentes não omitiram a prática de qualquer acto e, por isso, não ocorre a preclusão do direito que lhes assiste em, de novo, arguir a nulidade da perícia e, consequentemente, do despacho que indeferiu tal nulidade.
38. – Quanto à referida em segundo lugar nulidade, o Tribunal ad quo, nessa matéria, alicerça a sua decisão em “… de acordo com o artigo 41º nº 1 do NRJPI, “Se o credor exigir o pagamento, as dívidas vencidas e aprovadas por todos os interessados devem ser pagas imediatamente”.
Indeferindo, assim, a arguida nulidade.
39. – Da Ata da Conferência Preparatória de 23.11.2016, resulta que o passivo/dívida da herança não foi aprovado por todos os interessados, conforme determina o artigo 41º. nº 1, do NRJPIU.
40. - A recorrente mulher, interessada directa no processo de inventário, não a aprovou e, como tal, a deliberação da forma do seu pagamento nunca poderia vincular a recorrente, mas única e exclusivamente, os interessados que a aprovaram.
41. – Por isso, ou outros fundamentos, à cabeça-de-casal não lhe era permitido exigir daqueles mais do que a proporção da sua quota, e essa quiseram pagar, muito menos que o pagamento do passivo fosse efectuado com bens imóveis, porque, neste caso, a regra dos 2/3 não vale, mas sim o regime dos artigos 38º a 40º do NRJPI, por isso, reiteram que tal decisão é nula e, ainda, porque nos termos do disposto no artigo 513º e 2098º do CC, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.
42. - Quando à acusação de bens, a decisão do Tribunal recorrido foi “Salvo o devido respeito, o relacionamento da madeira está implícito no relacionamento dos prédios, como seus frutos, …”.
43. – O Tribunal recorrido não tem razão, porquanto, como se apura da reclamação apresentada a lenha, madeira em causa foi retirada, cortada das árvores dos prédios relacionados depois da apresentação da relação de bens, melhor, no decurso do presente inventário, depois da apresentação e reclamação da relação de bens. O que quer dizer que os valores atribuídos na perícia aos respectivos bens têm, após o dito corte ser deduzido., até porque foram utilizados em benefício de apenas alguns dos interessados na partilha.
44. - Ocorre, assim, a violação do disposto no artigo 32º, nº 5 do NRJPI.
Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o mui Douto suprimento de Vossas
Excelências deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser substituído por Douto Acórdão que decida pela verificação das arguidas nulidades e, assim, anule todos os actos que foram praticados após a ocorrência das mesmas, com as legais consequências, assim se fazendo a sempre, no caso, esperada e expectável
JUSTIÇA!
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Nota prévia
Tal como consta do relatório que antecede, estes autos já subiram anteriormente a este Tribunal, onde foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
«Pelos fundamentos acima expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em declarar a incompetência desta Relação, em razão da hierarquia, para conhecer das impugnações judiciais das decisões da Notária apresentadas pelos interessados ao longo do processo, ordenando a baixa dos autos à 1.ª instância para o efeito. Mais anulam a sentença homologatória da partilha e os actos subsequentes».
As questões suscitadas no primeiro recurso eram as seguintes, todas reportadas a decisões da Senhora Notária: despacho que indeferiu a nulidade da perícia; despacho que indeferiu a nulidade por ultrapassagem de prazos e decidiu prosseguir com a conferência preparatória; despacho que reconheceu a dívida sem aprovação de todos os interessados; despacho que “indeferiu o relacionamento de bens”.
Na sequência da anulação da sentença homologatória de partilha, dando cumprimento à decisão deste Tribunal, o Mº Juiz pronunciou-se sobre as questões enunciadas, que haviam sido objeto do recurso anterior, confirmando na íntegra as decisões da Exma Senhora Notária.
No presente recurso suscitam-se as mesmas questões.
No acórdão proferido nos autos, que nos vincula e ao qual aderimos sem reservas, segue-se um entendimento jurisprudencial firmado neste Tribunal em dois acórdãos relatados pelo Exmo. Senhor Desembargador Aristides de Almeida nos acórdãos de 27.06.2018[processo n.º 379/18.8T8GDM.P1], e de 27.06.2019[processo n.º 861/19.0T8VFR-A.P1]nos quais, em síntese, se preconiza a seguinte orientação: i) as decisões proferidas pelo Notário ao longo do processo de inventário são, em regra, impugnáveis judicialmente; ii) incumbe tribunal de 1.ª instância a competência para o conhecimento de tais impugnações; iii) as impugnações das decisões do Notário seguem o regime coincidente com o previsto nos artigos 57.º e 16.º do RJPI, aplicando-se subsidiariamente o regime do recurso de apelação.
Considerando a subsidiariedade do regime de apelação, suscita-nos alguma dúvida a situação que se nos depara nos autos, em que as questões recursórias objeto da presente apelação foram já julgadas por duas vezes de forma coincidente: a Senhora Notárias indeferiu os incidentes suscitados pela ora recorrente; o Mº Juíz confirmou na íntegra tais decisões.
A questão que se coloca é a seguinte: fará sentido eleger o inventário como um caso especial em que depois de uma “dupla conforme”[2] ainda há margem para um novo recurso?
Tal questão deverá ser dilucidada à luz dos princípios gerais, prevendo o artigo 627.º do Código de Processo Civil como regra geral a impugnabilidade das decisões, sem prejuízo da sua limitação por via legislativa, conciliando o interesse da segurança jurídica com a “natural escassez de meios disponibilizados para administrar a justiça”, como refere Abrantes Geraldes[3].
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o regime de recurso consagrado pela lei define-se como um genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais, cujo conteúdo pode ser traçado pelo legislador ordinário, com menos ou menos amplitude … estando vedada a sua redução intolerável ou arbitrária desse direito[4].
Em suma, qualquer limitação à regra geral enunciada no citado artigo 627.º do CPC só poderia ser legitimada por via legislativa.
Ora, tendo a primeira decisão (posteriormente confirmada por uma decisão judicial) natureza administrativa, não existe in casu, disposição judicial equivalente à que se contém no n.º 5 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho [Regime do Acesso ao Direito e aos Tribunais], onde expressamente se prevê a irrecorribilidade da decisão judicial (de 1ª instância) que recai sobre a decisão administrativa, ainda que a revogue.
Decorre do exposto que, apesar das dúvidas resultantes da incoerência do sistema de recursos, seguindo a interpretação proposta no acórdão proferido nos autos e transitado em julgado, não se vislumbra fundamento legal para rejeitar o recurso.

2. Definição do objeto do recurso
O objeto dos recursos delimitados pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, n.º 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 3.º, n.º 3, do diploma legal citado), consubstancia-se nas seguintes questões:
i) apreciação da invocada nulidade da sentença homologatória;
ii) apreciação da invocada nulidade da perícia;
iii) apreciação da invocada nulidade no reconhecimento do passivo; e
iv) apreciação da invocada nulidade no não relacionamento da lenha.

3. Fundamentos de facto
Para além do que consta do relatório que antecede, é a seguinte factualidade relevante provada:
3.1.A cabeça de casal E… requereu a avaliação de bens imóveis constantes da relação de bens.
3.2.Por despacho da Exma. Senhora Notária, de 27.01.2016 foi nomeado perito avaliador o Eng. I… [pág. 1026 do PE].
3.3.Face ao orçamento apresentado pelo perito nomeado, a cabeça de casal veio requerer a nomeação de um outro, declarando “não estar em condições de suportar tais custos”.
3.4.Por despacho da Exma. Senhora Notária, de 25.02.2016 foi nomeado perito avaliador J… [pág. 1028 do PE].
3.5.O Relatório de Avaliação foi elaborado no dia 4 de Abril de 2016.
3.6.O compromisso de honra foi prestado pelo Sr. Perito que procedeu à avaliação dos prédios relacionados, no dia 28 de Abril de 2016.
3.7. Em 5.04.2007, os ora recorrentes apresentaram recurso para o Tribunal da 1.ª Instância, sobre o despacho determinativo da partilha, no qual invocam a nulidade de despachos interlocutórios.
3.8.Em 3.07.2007 a Exma. Senhora Notária proferiu o seguinte despacho:
«Nestes autos de inventário, abertos por óbito de D…, processo 5014/15, a interessada G… e marido H… vieram através do requerimento inserido na plataforma em 05/04/2017 (documento 790297) interpor RECUSO DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL do despacho determinativo da partilha.
O despacho é recorrível (artigo 57°/4 RJP!).
Os recorrentes gozem de legitimidade e estão representados por advogado (artigo 1 3°/2 RJ PI).
O recurso foi interposto tempestivamente (artigo 57°/4 RJPI).
Decorridos os prazos de recurso e não tendo sido apresentado mais nenhum além do supra referido, admito a impugnação do despacho que determinou a forma à partilha, interposta pela interessada G… e marido H…, que segue os termos de apelação (artigo 57°/4 e 76°/2, Ia parte RJPI e 644°/2, alínea c) CPC) a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo (artigo 57°/4 RJPI).
Os autos serão remetidos ao Tribunal de Comarca deste Cartório Notarial (artigo 63°/7 RJPI).
PRONUNCIA SOBRE O RECURSO:
Conforma se pode verificar a fls. 7 foi proferido o seguinte despacho determinativo da forma da partilha pela Notária na conferência preparatória da conferência de interessados de 23/11/2016:
“O cônjuge sobrevivo, F… tem direito 5/8, somatório da sua meação e quinhão hereditário e cada uma das filhas a um oitavo, nos termos do artigo 2/39° do Código Civil.”
Tal despacho foi proferido em conformidade com as normas sobre o regime de bens do casamento do inventariado e o tipo de sucessão.
Estavam resolvidas todas as questões necessárias para a organização do mapa da partilha conforme despacho de 04/10/2016 (documento 588813) que em face disso procedeu à marcação da conferência preparatória.
Não foram levantadas até à realização da mesma ou na própria conferência novas questões, questões que ainda não tenham sido resolvidas e cuja resolução fosse necessária para a organização do mapa da partilha, conforme determina o n.º 2 do artigo 57°.
O recurso em causa chamado de “impugnação judicial do despacho determinativo da forma da partilha” não põe em causa tal despacho conforme se pode apurar da sua motivação. Neste recorre-se sim de várias decisões interlocutórias que apenas poderão ser objeto de impugnação no recurso que vier a ser interposto da decisão judicial de homologação da partilha.
Notifique-se».
3.9. Os autos subiram ao Tribunal de 1.ª instância, no qual foi proferida sentença em 25.09.2018 com o seguinte dispositivo:
«Assim, no caso, a decisão da Sr.ª Notária que que indeferiu a nulidade da perícia; que indeferiu a nulidade por ultrapassagem de prazos e decidiu prosseguir com a conferência preparatória; que reconheceu a dívida sem aprovação de todos os interessados; que indeferiu o relacionamento de bens e finalmente que indeferiu o pedido de esclarecimentos, não admite recurso para o Tribunal da 1ª instância, nem admite recurso autónomo para o Tribunal da Relação, mas pode ser impugnada no recurso que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha e que ainda não foi proferida
Impõe-se então, e na senda do diagnóstico notarial, não admitir o recurso de fls. 15 verso, interposto pelos interessados G… e marido H….
Custas pelos recorrentes.
Registe e notifique.
Comunique, com cópia, à Ex.mª Notária.»
3.10. Na reclamação contra o mapa de partilha (art.º 63.º do RJPI) apresentada pelos ora recorrentes em 25.10.2018, não alegam estes terem reclamado do relatório pericial (nos termos do art.º 485/2 do CPC), nem alegam ter requerido segunda perícia[5].
3.11.A Conferência Preparatória realizou-se no dia 23.11.2016, nos termos que constam da respetiva ata, tendo no decurso da mesma a interessada invocado a nulidade da avaliação.
Na mesma Conferência, tal como consta da ata, foi tomada a seguinte deliberação:
«Foi então deliberado pelas citadas E…, por si e na qualidade de procuradora de F… e Dra K… em representação de B… e marido L…, reunindo assim três quartos dos titulares do direito á herança que esta se realizasse do seguinte modo:
As verbas 3, 7, 10 e 12 são adjudicadas a E… pelo valor de 80.389 €.
A verba 5 é adjudicada a B… pelo valor de 94.708 €.
As verbas 6, 8, 9 e 11 são adjudicadas a G… pelo valor de 73.728 €.».
Consta da mesma ata, já após ter sido tomada a deliberação referida:
«A interessada G… [ora recorrente] requereu que ficasse consignada na presente ata o seguinte:
Não obstante a deliberação a que refere o artigo 48°/4 do RJPI por se afigurar de crucial relevância á matéria em causa designadamente á partilha, composição de cada um dos quinhões, pretende os seguintes esclarecimentos: existem áreas/porções de terrenos que fazem parte da herança aberta por óbito do inventariado que a interessada apesar de se ter esforçado não conseguiu vislumbrar a que prédio ou prédios da relação de bens essas mesmas áreas de terreno pertencem. Por isso, desconhecendo a interessada tais circunstancias entende que se esta meteria não for esclarecida, a composição de quaisquer dos quinhões, nomeadamente o seu poderá ser prejudicada porque poderá ser levada a pensar que as tais áreas de terreno acima referidas fazem parte dos prédios que foi deliberado pelos outros interessados e cabeça de casal no preenchimento do seu quinhão e o mesmo não suceder.
Por outro lado existem verbas da relação de bens, nomeadamente prédios rústicos, que entende dever ser esclarecidos quanto ás aguas que neles nascem e que são utilizadas em benefício de outros prédios.
Assim requerer-se a Va Exa Srª Notária que apesar da Lei ser omissa quanto a tal facto entendermos ser de aplicar as regras insertas lei do processo civil e civil por remissão do RJPI que diligencie no sentido de que a cabeça de casal venha prestar os referidos esclarecimentos. Espera deferimento.
Dada a palavra à mandatária de B…, marido e da cabeça de casal E…, por esta foi dito que o requerimento a que se responde foi interposto nesta conferencia após ter sido aprovada a deliberação da composição dos quinhões, deliberação essa aprovada pela maioria legal dos titulares do direito á herança prevista no artigo48°/1, a) do RJPI.
Face ao exposto e ao abrigo do disposto no artigo 48/1 a), n.° 2 e n.° 4 do RJPI deve tal requerimento ser indeferido na medida em que só poderia ter sido requerida a deliberação sobre tais questões e os devidos esclarecimentos em momento prévio à votação da deliberação da composição dos quinhões dos titulares do direito à herança que já teve lugar nesta conferencia,
Dada a palavra à cabeça de casal E… em representação de F… foi por esta declarado que reitera as declarações prestadas pela Mandatária Drª K…, supra transcritas».
3.12.O requerimento em apreço foi objeto do seguinte despacho da Exma. Senhora Notária, exarado na respetiva ata:
«Em face dos requerimentos e uma vez que já foi deliberada a composição dos quinhões nos termos do n.° 1 do artigo 48° RJPI e portanto nos termos do artigo 48/4 RJPI não haver lugar à deliberação de quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha, decido indeferir o requerido pela interessada G…, por ser de aplicar o referido artigo 48°/4 uma vez que existindo norma especifica que regula o funcionamento desta conferencia não são aplicáveis as normas gerais invocadas.».
3.13. Em 23.11.2018 a Exma. Senhora Notária proferiu decisão sobre a reclamação apresentada pelos ora recorrentes [facto 3.7], com o seguinte teor:
«Cumpre decidir.
Consoante determina o artigo 63° RJPI as reclamações que podem ser efetuadas contra o mapa visam requerer qualquer retificação ou reclamar contra qualquer irregularidade, nomeadamente contra a desigualdade dos lotes ou contra a falta de observância do despacho que determinou a partilha.
A reclamação em causa tem apenas como fundamento as várias decisões interlocutórias tomadas ao longo do processo que apenas poderão ser objeto de impugnação no recurso que vier a ser interposto da decisão judicial de homologação da partilha.
Face às deliberações aprovadas por maioria de dois terços dos interessados e às decisões tomadas em sede de Conferência Preparatória da Conferência de Interessados, o Mapa de Partilha é regular e correto.
Indefere-se a reclamação».

4. Fundamentos de direito
4.1. A invocada nulidade da sentença homologatória
Alegam os recorrentes [conclusões 1.ª a 13.ª], que a sentença homologatória “não contém todos os elementos, ainda que sucintamente, de uma sentença, nomeadamente, um relatório, identificação de todas as partes (mesmo as habilitadas), não podendo ser tida, após trânsito em julgado, como título executivo, estando por tal razão ferida de nulidade.
Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão, atenta a argumentação que se segue.
Dispunha o n.º 1 do artigo 66.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5.03 [doravante designado pelo acrónimo RJPI]: «A decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio é proferida pelo juiz cível territorialmente competente.».
Conforme expressamente se prevê na disposição legal transcrita, através da decisão judicial em apreço o Tribunal homologa a partilha constante do mapa e das operações de sorteio.
Tal homologação, nas palavras de Lopes Cardoso, «constitui uma verdadeira chancela do que se deliberou»[6], autenticando a partilha efetuada no processo[7], fixando definitivamente, após o seu trânsito em julgado, o direito dos interessados quanto aos bens que lhe foram adjudicados[8], constituindo título executivo[9].
Ao declarar que homologa a partilha, a decisão judicial remete expressamente para a partilha que consta do mapa e para as eventuais operações de sorteio, que passam a fazer parte integrante da mesma.
Acresce que, in casu, antecede a decisão homologatória a sentença proferida em 6.09.2019 (objeto do presente recuso), na qual se apreciam detalhadamente todas as questões suscitadas perante a Exma. Senhora Notária.
Finalmente, o dever de fundamentação cumpre-se sempre que os fundamentos da decisão judicial, apesar de algum eventual défice, permitem ao destinatário a perceção das razões de facto e de direito, revelando o iter «cognoscitivo» e «valorativo» que a justifica.
Pensamos que é o que ocorre in casu: o M.º Juiz homologa a partilha constante do mapa e das operações de sorteio, por entender que estão em conformidade com a lei.
Improcede o recurso neste segmento.
4.2. A invocada nulidade da perícia
Alegam os recorrentes [conclusões 16.ª a 38.ª], que ocorre nulidade da perícia realizada nos autos de inventário, nomeadamente, considerando que: «O compromisso de honra prestado pelo Sr. Perito que procedeu à avaliação dos bens relacionados ocorreu em 28 de Abril de 2016, depois de ter sido, por este, efectuada a respectiva avaliação e elaborado o relatório, que tem data de 4 de Abril e, ainda, porque os relatórios de cada um dos prédios em causa têm data de 25 de Março de 2016 e de 25 de Fevereiro de 2016 … e, também porque as partes, mormente, os recorrentes não foram notificados para estarem presentes naquela e nem sequer forma notificados da realização da mesma (neste a omissão de despacho que determine a notificação da realização da prova pericial às partes, está, também ferida de nulidade, por violação do exercício do direito do contraditório)» [conclusão 24.ª].
Consta da sentença recorrida:
«- Arguição da nulidade da perícia:
Sustentam os recorrentes que a perícia está inquinada de nulidade, porquanto os relatórios de avaliação dos prédios remontam a 25/02/2016 e 25/03/2016 e, o compromisso de honra foi prestado pelo Sr. Perito em 28 de Abril de 2016, não tendo as partes sido notificadas para estarem presentes.
Ora, se efectivamente assim sucedeu, os autos não mostram, nem os recorrentes alegam, que reclamaram sem sucesso do relatório pericial nos termos do art. 485 do CPC, nem requereram 2.ª perícia nos termos do art. 487 do CPC, com o que, pela omissão da prática de actos processuais no momento processualmente definido para o efeito – princípio da preclusão e da autor responsabilidade das partes, a perícia se consolidou na ordem jurídica, por não terem sido accionados os dispositivos adrede e legalmente previstos na lei para invalidar essa perícia.
Termos em que se indefere a arguição da nulidade da perícia.».
Vejamos.
No que respeita à prestação do compromisso por parte do perito, ao invés do que ocorria antes da reforma do processo civil introduzida pelo DL 395-A/95, tal formalidade pode ser cumprida após a realização da perícia, constando do relatório pericial[10].
Em suma, não invalida a diligência (avaliação) o facto de a mesma ter sido realizada antes da prestação do compromisso de honra (que pode ser inscrito no relatório pericial).
Não constando do relatório a prestação do compromisso, sendo a mesma feita em aditamento ao relatório, através de documento avulso, verifica-se uma irregularidade que, salvo melhor opinião, não nos parece suscetível de influir na boa decisão da causa: o perito é o mesmo, devendo lavrar o seu compromisso após a realização da avaliação, no respetivo relatório, caso não o faça por esquecimento, sempre se sanará a omissão com um aditamento do qual conste tal compromisso.
Os recorrentes não reclamaram oportunamente de tal omissão mas, caso o tivessem feito, a forma de sanação passaria pela prestação posterior do compromisso e não pela anulação da avaliação que, repete-se, pode ser efetuada em momento anterior à prestação do compromisso.
Quanto aos restantes fundamentos ora invocados, nomeadamente a ausência de notificação[11], cumpre referir que se trata de questões novas, nunca antes suscitadas para apreciação judicial.
Com efeito, o objeto do presente recurso delimita-se pela seguinte forma: haverá que considerar o teor da impugnação judicial[12], bem como da decisão do Mª Juiz que sobre a mesma recaiu [o presente recurso repondera, obviamente, a decisão da 1.ª instância, cujo âmbito de apreciação se define pelo conteúdo da impugnação dos atos do Notário].
Em suma, impugnação judicial (dos atos praticados pela Notária) delimita o âmbito de conhecimento da sentença recorrida e, nessa medida, o do objeto do presente recurso.
Face ao exposto, improcede o recurso neste segmento.
4.3. A invocada nulidade no reconhecimento do passivo
Alegam os recorrentes [conclusões 39.ª a 41.ª], que da Ata da Conferência Preparatória de 23.11.2016 resulta que o passivo/dívida da herança não foi aprovado por todos os interessados, conforme determina o artigo 41º, n.º 1, do RJPIU, já que a recorrente não a aprovou, pelo que a deliberação da forma do seu pagamento nunca poderia vincular a recorrente.
Decidiu-se na sentença recorrida:
«Salvo o devido respeito, o passivo foi reconhecido porquanto a Ex.mª Notária julgou documentalmente provada a dívida e, como não havia acordo sobre o pagamento, inevitavelmente se teria de seguir a decisão sobre a venda de bens, nos termos do art. 41 n.º 2 do RJPI, porquanto esse é precisamente o passo legal subsequente. Assim nada a apontar à douta decisão notarial de fls. 112 verso, não deixando com o produto da venda e o pagamento, de se respeitar a responsabilidade de cada herdeiro, nos termos do art. 2071 n.º 1 do CC.
Nesta decorrência, indefiro a nulidade da decisão notarial que reconheceu a dívida sem aprovação de todos os interessados e ordenou a venda dos bens, em ordem ao seu pagamento.».
Cumpre decidir.
Consta da ata da Conferência Preparatória, o seguinte despacho:
«Está documentalmente comprovada a divida supra pelos documentos apresentados junto ao incidente de prestação de contas de cabeçalato que não foram oportunamente impugnados. Sendo assim, nos termos do citado artigo 39° reconheço a existência da referida divida pelo que ordeno o seu pagamento».
Sob a epígrafe “Verificação de dívidas pelo notário”, dispunha o artigo 39.º do RJPI: «Se todos os interessados se opuserem à aprovação da dívida, o notário conhece da sua existência quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados.».
Preceituava o artigo 40.º do citado diploma legal: «Havendo divergências sobre a aprovação da dívida, aplica-se o disposto no artigo 38.º no que se refere à quota-parte relativa aos interessados que a aprovem, observando-se quanto à parte restante o determinado no artigo anterior.»
Nos termos do n.º 4 do artigo 41.º, o disposto nos números anteriores [nomeadamente no n.º 1, em que a lei determina que “se o credor exigir o pagamento, as dívidas vencidas e aprovadas por todos os interessados devem ser pagas imediatamente”] é igualmente aplicável às dívidas cuja existência seja verificada eplo Notário.
Finalmente, nos termos do artigo 44.º, «[s]e a dívida que dá causa à redução não for aprovada por todos os herdeiros, donatários e legatários, ou não for reconhecida pelo notário, não pode ser tomada em conta, no processo de inventário, para esse efeito.».
Em suma, e como referem Carla Câmara Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira, em anotação ao artigo 39.º do RJPI[13], “[r]econhecida pelo Notário a dívida, deverá, à semelhança do que se estatui no artigo 38.º do RJPI para as dívidas que sejam aprovadas por todos os interessados, ordenar-se o seu pagamento, constituindo a sentença homologatória da partilha, título executivo quanto às dívidas reconhecidas”.
Na situação subjudice, os recorrentes não impugnaram os documentos apresentados junto ao incidente de prestação de contas de cabeçalato, não se vislumbrando, salvo o devido respeito, fundamento jurídico que suporte a sua intempestiva discordância.
Concluindo, não nos merece censura, nem o despacho da Exma. Senhora Notária, nem a decisão judicial que o confirmou, sobre a qual foi interposto o presente recurso.
4.4. A invocada nulidade no não relacionamento da lenha
Alegam os recorrentes [conclusões 42.ª a 44.ª], que após a apresentação da relação de bens foi retirada lenha dos prédios relacionados.
O Mº Juiz pronunciou-se nestes termos: «- Nulidade da decisão que indeferiu a reclamação da falta de relacionamento de bens, com suporte no art. 32 do NRJPI: Salvo o devido respeito, o relacionamento da madeira está implícito no relacionamento dos prédios, como seus frutos naturais – art. 212 do CC. Assim, embora por motivação diversa, nada há que censurar em termos de nulidade à decisão notarial, indo indeferida esta arguição».
Na impugnação judicial e, posteriormente, no recurso, os recorrentes nada referem quanto ao valor da lenha, sendo certo que a mesma se define legalmente como “frutos naturais”, caracterizando-se pela periodicidade da sua produção e separabilidade da coisa que se produza, sem afetação da respetiva substância, incumbindo ao cabeça de casal o recebimento dos mesmos.
Como refere o Mº Juiz, a lenha não deve ser relacionada à parte, incluindo-se no relacionamento dos prédios como “frutos naturais”.
Encontrando-se já relacionados e avaliados os prédios rústicos dos quais foi, alegadamente, retirada lenha, o seu valor ficou fixado antes de ter ocorrido esse alegado aproveitamento da lenha, não se vislumbrando qualquer prejuízo, salvo para o interessado a quem tenha sido adjudicado o prédio rústico em causa.
Ora, os recorrentes não identificam o prédio (ou prédios), nem alegam a sua adjudicação (e consequente prejuízo decorrente da falta da lenha), concluindo-se que não merece provimento o recurso, também neste segmento.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, mantendo na íntegra a sentença recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes.

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Porto, 13.10.2020
Carlos Querido
José Igreja Matos
Rui Moreira
______________
[1] Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5.03, revogado pela Lei n.º 117/2019, de 13.09, que instituiu o Regime do Inventário Notarial.
[2] Em sentido impróprio, na medida em que a regra enunciada no n.º 3 do artigo 671.º do CPC pressupõe a existência de duas decisões judiciais coincidentes.
[3] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 19 e 20.
[4] Lopes do Rego, citado na obra anteriormente referenciada [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 20].
[5] Este processo é, salvo o devido respeito, em termos formais, um verdadeiro caos. A Senhora Notária remeteu para a plataforma Citius apenas algumas peças processuais que diziam diretamente respeito ao Tribunal. Quanto à tramitação ‘administrativa’, ficou ‘prisioneira’ numa plataforma à qual não temos acesso. Com vista a proferir uma decisão conscienciosa, fomos forçados a pedir aos serviços notariais as peças processuais restantes. Delas não consta, nem foi alegado: que a ora recorrente tenha reclamado nos termos do n.º 2 do artigo 485.º do CPC; que tenha sido requerida uma segunda perícia com fundamento na discordância dos valores.
[6] Regime do Processo de Inventário, Carla Câmara e outros, Almedina, 2013, 2.ª edição, pág. 352.
[7] Ac. da Relação de Coimbra, 24.09.2002, processo n.º 765/2002.
[8] Ac. da Relação de Lisboa, de 26.11.1992, processo n.º 0068172.
[9] Ac. desta Relação, de 19.11.2012, processo n.º 221/06.2TJVNF-E.P1.
[10] Dispõe o normativo em apreço: «Se o juiz não assistir à realização da diligência, o compromisso a que se refere o n.º 1 pode ser prestado mediante declaração escrita e assinada pelo perito, podendo constar do relatório pericial.».
[11] Os ora recorrentes tiveram conhecimento do resultado da avaliação na subsequente tramitação processual, nomeadamente na conferência preparatória, no despacho sobre a forma à partilha, no preenchimento dos quinhões, etc.
[12] Da impugnação judicial apenas consta a questão das datas, sendo as seguintes conclusões formuladas:
«1. – Os recorrentes, conforme consta da respectiva Acta, na conferência preparatória, contestaram determinadas materiais, actos e pediram determinados esclarecimentos.
2. – Fizeram-no porque entendem que ab inicio o processo está ferido de nulidades insanáveis, algumas de conhecimento oficioso a todo o tempo e sempre invocáveis a todo o tempo.
3. – Com efeito, tais nulidades inquinam todo o processado por violação dos directos plasmados nos artigos 20º, nº 4 da C.R.P. e artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
4. – As decisões que recairiam sobre aqueles carecem de fundamentação, sendo, por isso, nulas.
5. – Reiteram-se os fundamentos que presidiram à arguição da nulidade da peritagem, nulidade que é insuprível.
6. – Os prazos estipulados na Lei ou fixados pelo Juiz/Notário têm obrigatoriamente de serem cumpridos – artigo 24º, nº 3 e 4, do RJPI.
7. – Os prazos no processo não foram cumpridos.
8. - No que respeita à aprovação das dívidas, reconhecida pela Sra. Notária, cumpre referir que quem a aprovou pode decidir da sua forma de pagamento, mas a forma de pagamento não pode ser imposta – artigo 42º do RJPI.
9. – Cada herdeiro apenas responde pelos encargos da herança na proporção da sua quota.
10. – As obrigações dos herdeiros não são solidárias – artigos513º e 2098º do CC.
11. – Os recorrentes quiseram liquidar a dívida na proporção da sua quota.
12. – O que lhes foi negado.
13. – O pagamento do passivo foi-o, assim, contra a vontade dos recorrentes e com bens/imóveis de que a estes também pertenciam, uma vez que neste caso não vale o disposto nos artigos 38 a 40º do RJPI.
14. – Pelo que, a adjudicação de tais imóveis é nula.15. – Como está ferido de nulidade o despacho que indeferiu a reclamação de bens/valor da lenha sonegada à herança.
16. – Acusar o relacionamento de bens pode ocorrer até ao início da audiência preparatória - artigo 32º, nº 5, do RJPI.
17. – Tal decisão é igualmente nula por falta de fundamentação e porque influi na partilha.
18. – O despacho que indeferiu os vários pedidos de esclarecimentos é igualmente nulo porque influem na partilha.»
[13] Regime Jurídico do Processo de Inventário Anotado, Almedina, 2013, 2.ª edição, pág. 180 e 181.