RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO AGRAVADO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
BEM JURÍDICO
MEDIDA DA PENA
Sumário

Texto Integral

§I. – RELATÓRIO.

O arguido/recorrente, AA, foi condenado, no processo supra epigrafado, “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência às Tabelas I-A e I-B na pena de 5 (cinco) anos de prisão e 3 (três) meses de prisão”.

Em discrepância com o julgado, pretende ver alterada a qualificação jurídico-penal do ilícito pelo qual foi condenado e, subsidiariamente, se tal não vier a colher adesão por parte do tribunal de recurso, modificada a pena que lhe foi irrogada.

Para a pretensão que requesta, alinha a fundamentação constante de fls.  que resume no epítome conclusivo que a seguir queda extractado (sic):


§I.a). – QUADRO CONCLUSIVO.

A) O arguido AA foi condenado, nestes autos, pela prática do crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punido pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto – Lei 15/93 de 22 de janeiro, na pena de cinco anos e três meses;

B) Analisados os factos, dados como provados pelo douto acórdão, entende o recorrente que os mesmos se enquadram na previsão do artigo 25.º alínea a) do Decreto – Lei 15/93 de 22 de janeiro (Tráfico de menor gravidade);

C) Deveria o mesmo ser condenado por este normativo;

D) O que resultaria numa medida da pena diferente, muito menor do que a aplicada;

E) O douto acórdão fez uma aplicação errada da lei, pensamos que a qualificação jurídica dos factos não é aquela pela qual o douto acórdão recorrido optou;

F) Por tudo isto, a pena aplicada terá de ser outra, inferior a cinco anos, susceptível de ser suspensa na sua execução;

G) Pelo que, ao arguido concerne, e na aplicação da pena os artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, foram violados pelo douto acórdão, diga-se em abono da verdade, única e exclusivamente devido à qualificação jurídica dos factos pela qual se optou;

H) Enfim, a decisão tomada não foi, de modo algum, a mais correta, justa e adequada ao caso concreto;

I) A pena aplicada deve ser suspensa na sua execução, tendo em atenção a situação pessoal do arguido, o tempo decorrido desde a prática dos factos;

J) Quer se entenda, que os factos cometidos pelo arguido se enquadram no artigo n.º 21 n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de janeiro, ou por outro lado, se venha a entender que os mesmos têm assento no artigo 25.º alínea a) do mesmo diploma, a pena aplicar deverá ser suspensa na sua execução.

Pelo exposto, entende-se que deve ser revogado, o douto acórdão recorrido, condenando-se o arguido AA pelo artigo 25.º alínea a) do Decreto – Lei 15/93 de 22 de Janeiro, suspendendo-se a execução da pena aplicada.”


§I.b). – RESPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DA COMARCA.

Inane a um esforço de síntese (conclusiva), o Ministério Público, junto da comarca, pervaga e consente na exposição argumentativa que a seguir se deixa transcrita.

Salvo melhor entendimento, estamos em crer que o presente recurso poderá, talvez, merecer provimento, pois as razões avançadas pelo arguido fazem sentido, são razoáveis, e seguramente que não repugnam ao sentido de justiça e equidade que o caso convoca. Mas isso que não significa que o tribunal tenha decidido mal ou que o douto acórdão em crise seja erróneo ou injusto, nem nada que se pareça, pois o que aí ficou decidido, sobretudo quando considerado o conjunto da factualidade imputada aos diversos arguidos, incluindo os que dele não apresentaram recurso, releva de um sentido muito apurado do equilíbrio, da proporcionalidade e da equidade, sentido esse que importa não prejudicar com a decisão que a final vier a ser tomada relativamente ao arguido recorrente.

Neste contexto, o nosso esforço, necessariamente breve e seguramente mais desequilibrado que o do tribunal recorrido, será no sentido mostrar que as questões levantadas têm efectivamente o seu sentido e são portadoras de uma razoabilidade que as torna merecedoras de que com elas o julgador se demore mais algum tempo, ao menos o necessário para mais uma vez testar a justeza do entendimento de sempre ou até para, quem sabe, acabar por temperá-lo ou reformula-lo neste ou naquele aspecto mais ou menos decisivo.

Começando pela questão da qualificação jurídica dos factos, e começando também por uma consideração que talvez mereça o acordo mais ou menos generalizado da doutrina e jurisprudência, o que se nos oferece dizer em primeiro lugar é que o caso dos autos, tal como emerge do douto acórdão ora em crise, se situa sensivelmente entre os limites inferiores do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artigo 21º da Lei 15/93 de 22 de Janeiro e os limites superiores do crime de tráfico de menor gravidade a que se refere o artigo 25º do mesmo diploma.

Dizemos que “talvez” esta observação mereça o acordo generalizado da doutrina e jurisprudência não tanto por uma questão de dúvida metódica, que também poderia ter o seu cabimento, mas sim por verdadeira cautela, uma vez que a temática do tráfico e consumo de estupefacientes, apesar de longeva, continua ainda hoje a constituir uma efectiva e real fonte geradora dos entendimentos mais diversos e dos juízos mais discordantes, senão mesmo fonte de alguma inflamação mais ou menos ideologicamente penetrada. De tal modo que lograr o reconhecimento de que uma situação como a dos autos pode reconduzir-se a um crime de tráfico de menor gravidade, conseguir a abertura espiritual necessária à admissão honesta e genuína de que essa possibilidade é efectivamente pensável e de que cabe nos limites do razoável e do plausível é já, só por si, em certos meios que não são assim tão distantes, mesmo em contextos de discussão mais qualificados, um feito digno de nota.

A sensação que fica, vistas as coisas do lado de quem insiste na plausibilidade da questão e até se sente tentado a optar pela menor gravidade do tráfico – o que, como já se percebeu, é o caso do subscritor –, é a de que a degradação deste como de outros casos semelhantes em tráfico de menor gravidade é percebida, numa lógica um tanto populista, para não dizer mesmo algo terrorista, como o primeiro passo de um caminho que conduzirá inexoravelmente ao descrédito do direito positivo, à frustração da política legislativa em matéria de estupefacientes e à descriminalização do tráfico. O que é um manifesto exagero, pois as mais das vezes a moldura penal do tráfico de menor gravidade (1 a 5 anos de prisão) é suficientemente abrangente para cobrir, por assim dizer, a pena que para este tipo de casos acaba por ser encontrada em sede de tráfico simples (4 a 12 anos de prisão); e quando isso não sucede, como é precisamente o caso dos autos, a diferença está apenas em condenar o autor do tráfico a pouco mais ou a pouco menos de 5 anos de prisão, o que, não sendo uma questão de somenos, mormente por causa da possibilidade de suspensão de execução da pena, também não pode nem deve ser artificialmente inflacionada.

Tudo isto foi percebido e expressamente pensado e equacionado pelo tribunal a quo, o que não pode deixar de aqui se registar e assinalar com o devido vigor e realce.

Segundo se pode ler no acórdão condenatório, o tribunal reconheceu que «dada a expressividade desta moldura [do crime de tráfico de menor gravidade], o tráfico aqui considerado não é só o de menor importância, mas aquele que sendo já significativo, fica aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do artigo 21º e ainda encontra sancionamento adequado dentro das molduras penais previstas no artigo 25º» (fls.1665). Ou seja, dando expressão a uma certa intuição fundamental de justiça – não há outra forma de dizer do que se trata –, o tribunal operou segundo uma linha argumentativa que, sendo pouco habitual, nem por isso se revela menos justa e adequada, para não dizer que se trata de uma linha de pensamento necessária em face do elevado grau de indefinição de que o legislador fez uso na determinação do que se deva entender por menor gravidade do tráfico e, reflexamente, na determinação também daquilo que se deva entender por tráfico simples. E essa linha argumentativa passa encontrar na própria moldura penal abstractamente fixada para um e outro caso um índice a tomar em conta na determinação de qual seja a matéria criminosa num caso, e no outro, tipificada.

E este não é um índice qualquer. Os índices de gravidade do tráfico que o tribunal elencou no douto acórdão em crise determinam-se reciprocamente e, no seu conjunto, podem ou não sustentar uma imagem global de maior, mediana ou menor gravidade. Mas o caso é que tais índices não devem nunca deixar se ser equacionados à luz de uma certa e determinada moldura penal, que acaba por constituir como que um índice final, uma espécie de controlo final de qualidade do bem produzido, leia se, da solução encontrada. Por outras palavras: numa situação de tão elevado grau de indeterminação como é o da definição recíproca do tráfico simples e do de menor gravidade, discutir se a ilicitude do caso é ou não sensivelmente diminuída carece em absoluto de sentido sem que primeiro nos preocupemos em saber quais é que são as molduras penais de referência; e sabendo que essas molduras são, num lado, de 4 a 12 anos de prisão, e, no outro, de 1 a 5 anos, o sentido que o bom julgador e realizador do direito daí pode extrair não pode ser outro senão o de que o tráfico de menor gravidade não é, afinal, de tão pouca gravidade, antes nele cabem situações que são graves, indubitavelmente graves, ou não pudesse a respectiva pena ir até aos 5 anos de prisão, mas não tão graves quanto as que cabem no tráfico simples. A diminuição de ilicitude de um caso para o outro deve ser sensível; mas como partimos de uma moldura de 4 a 12 anos de prisão, isso não significa que o caso tipificado como de menor gravidade não seja grave, e até que não seja bastante grave.

Deste modo, dizer que a ilicitude do tráfico de menor gravidade deve ser sensivelmente diminuída acaba por ter um sentido relativamente natural: se a diminuição da gravidade do ilícito não fosse sensível, tudo se passaria apenas ao nível da determinação concreta da medida da pena, sem reflexos na moldura abstracta aplicável. Mas para além desse sentido mais básico, a referida exigência tem também – ou melhor, deve ter, segundo os ditames de um adequado processo de interpretação e realização do direito – o sentido de afirmar que o crime de tráfico de menor gravidade visa uma realidade que de algum modo se possa dizer diferente da visada pelo tráfico simples; tem o sentido de afirmar que uma realidade e outra devem ter mais aspectos a separá-las do que a uni-las, embora naturalmente não deixem as duas de constituir tráfico; tem o sentido chamar a atenção para a necessidade ou pelo menos para a conveniência de que o critério de distinção encontrado não seja apenas de grau mas que, de algum modo ainda incerto, possa remeter o intérprete para uma outra realidade; tem o sentido de afirmar, para o que agora nos interessa, que algumas realidades próprias do tráfico de estupefacientes, embora possam eventualmente achar-se potenciadas neste ou naquele aspecto de grau, irão sempre esgotar-se no tipo criminal de menor gravidade pela simples razão de que constituem, por força de uma natureza que o legislador não soube ou não quis definir – mas a cuja especificação o intérprete e realizador do direito não pode fugir –, sempre e apenas tráfico de menor gravidade.

Uma dessas realidades – vistas as coisas desde …, lugar onde o arguido e a sua família residiam e traficavam – é a do pequeno vendedor terminal que, mediante contacto telefónico prévio, vende o estupefaciente directa e frequentemente aos seus clientes consumidores finais, na rua, em casa ou em lugar a combinar, disponibilizando-lhes umas poucas doses de cada vez, as necessárias para a manutenção do consumo regular, a troco de dinheiro que pouco mais serve do que para tapar os buracos financeiros que a sua ocasional ou temporária actividade profissional deixa em aberto, fazendo disso como que uma segunda profissão. A organização é mínima, os meios são os básicos, as quantidades são contidas e os lucros modestos.

Naturalmente, quem assim procede pode vender durante mais ou menos tempo, pode vender um mês, meio ano, um ano ou dois ou mais ainda, mas não é isso que o faz sair deste tipo, digamos, sociológico. Aliás, o que a experiência mostra é que quando o encontrado tempo de tráfico é reduzido, isso só quer por regra dizer que a investigação não se alargou por mais tempo, pois se o tivesse feito mais ocasiões de tráfico teriam sido encontradas. O alongamento no tempo, maior ou menor, pertence à natureza da própria realidade visada. O mesmo se passa com os traficantes-consumidores: também estes podem traficar o tempo que quiserem que não deixam de ser apenas e só traficantes-consumidores. É claro que o grau de disseminação de estupefacientes proporcionado por anos de tráfico-consumo é extremamente elevado, tal como o é no caso do pequeno vendedor terminal que vimos considerando. Mas para o legislador, pelo menos no caso do traficante-consumidor – e, julgamos nós, também no caso do traficante de menor gravidade – nem por isso o agente do tráfico deixa de ser o que é apesar dos anos que leva na actividade, seja um mero traficante-consumidor ou, como pretendemos, um traficante de menor gravidade.

E o mesmo se diga quando a variável não reside no tempo mas sim no tipo de estupefaciente traficado: se o agente vende haxixe ou heroína isso é pouco mais que indiferente a este tipo sociológico – que é também, pensamos, pelo menos tendencialmente, um tipo legal. A gravidade do caso e a ilicitude da sua conduta variam, com certeza; a heroína é sabidamente um estupefaciente bem mais poderoso e destrutivo que o haxixe, o que não pode deixar de relevar, e até de forma muito importante, na medida da pena. Mas o caso é que, do ponto de vista que vimos sustentando, um vendedor terminal de heroína não deixa de fazer essencialmente o mesmo que um vendedor terminal de haxixe.

Atente-se que, olhando para a matéria de facto dada como provada, o ora recorrente não parece ter vendido mais vezes ou mais quantidade de heroína e cocaína do que aquelas que no mesmo período teria vendido se ele próprio fosse um consumidor de longa data daqueles estupefacientes e, portanto, vamos admiti-lo, traficante-consumidor.

Mas se fosse traficante-consumidor seria punido apenas com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa (artigo 26º), invariável em função do tempo da actividade ou do tipo de estupefaciente traficado, ao passo que não sendo consumidor mas apenas traficante será punido, por causa do tempo e do tipo de estupefaciente, a optar-se pela qualificação do caso como relevando de um tráfico simples, com pena de 4 a 12 anos de prisão. Como sustentar esta diferença logo ao nível da moldura abstracta? O grau diminuído de culpa que sustenta a moldura do traficante consumidor é suficiente para esse efeito? Mas o grau de disseminação foi igual, o estupefaciente traficado foi o mesmo, o lucro obtido foi idêntico e todos os demais aspectos resultam invariáveis … E se o tráfico tivesse sido levado a cabo nas imediações de uma escola, circunstância que poderia conduzir à qualificação do tráfico simples [artigo 24º al. h)] mas não já à qualificação do tráfico-consumo? Como justificar então uma diferença de moldura penal que, no caso do tráfico agravado, se situaria então entre os 5 e os 15 anos de prisão? Como justificar que as mesmas circunstâncias relevem apenas na medida da pena para o traficante-consumidor mas representem uma agravação de ¼ na pena mínima e máxima de um traficante simples?

Não queremos demorar-nos muito mais nesta questão da qualificação dos factos nem ainda percorrer por muito mais tempo a linha argumentativa que vimos trilhando. O que ficou dito, sendo já talvez excessivo, vale sobretudo para afirmar e concluir, embora não naturalmente em definitivo – pois o debate continuará sempre em aberto, pelo menos até que o legislador se decida a intervir fixando critérios um pouco mais determinantes e esclarecedores –, no sentido de que à luz da lei penal vigente o vendedor terminal de estupefacientes a que nos vimos referindo deverá ser sempre e apenas punido a título de traficante de menor gravidade (artigo 25º); ou então, se ele próprio também for consumidor e se a venda se destinar apenas a angariar fundos que lhe permitam continuar a fazê-lo, a título de traficante-consumidor (artigo 26º). Os tipos sociológicos em que assentam os tipos criminais assim interpretados são mais ou menos bem definidos, as molduras penais aplicáveis a um e outro caso aparentam ser ajustadas e suficientemente largas para que através delas possam ser adequadamente sancionadas todas as variantes pensáveis e, por último, mas nem por isso menos importante, a segurança e previsibilidade na aplicação do direito resultam potenciadas. O tipo criminal de tráfico simples (artigo 21º) deve ser reservado para o traficante-grossista.

Passando para a questão da escolha e medida da pena, agora de uma forma necessariamente mais breve, estamos em crer que as coisas resultam mais facilitadas: o deslocamento da moldura penal de referência de 4 a 12 anos para uma outra de 1 a 5 anos obriga-nos legalmente a pensar na possibilidade de suspensão da pena de prisão que vier a ser encontrada e a observar que, efectivamente, tal como referido na peça recursiva a que ora se responde, o arguido AA tem o seu trabalho (feirante) – que não o ocupa continuadamente mas que lhe mais dando algum sustento, a juntar ao RSI –, tem uma mulher e filhos que o apoiam, não consome estupefacientes e não há registo de que alguma vez tivesse sido condenado por tráfico mas apenas por crimes pessoais ou contra a autoridade pública. Tudo isto abona necessariamente em seu favor.

Contrariamente, o arguido não manifestou arrependimento pelo sucedido e, como nunca é demais observar – embora com todas as ressalvas acima expostas a propósito da qualificação jurídica dos factos –, o tempo a que se dedicou ao tráfico (quase dois anos) e o tipo de estupefaciente traficado (heroína e cocaína) demandam sabidamente especiais cautelas em sede de prevenção geral, sobretudo numa pequena localidade do interior como é o caso de … . A isto acresce a observação, que talvez até tenha sido aquela que mais decisivamente levou o tribunal a optar pela prisão efectiva deste arguido e não dos demais, de que o arguido AA, sendo pai de família, era também, por assim dizer, o seu chefe, e, portanto, a sua responsabilidade na direcção dos destinos familiares era muito particular e acrescida, levando a que de algum modo talvez não inteiramente jurídico se possa encontrar nele o responsável não só por aquilo que ele próprio fez como por aquilo que fez toda a família, pois realmente a actividade de tráfico que emerge da factualidade dada como provada aparenta ter sido um verdadeiro negócio de família. E talvez tenha sido mesmo esta a razão da distinção deste arguido, pois, se bem vemos, não parece que ele tenha traficado nem durante mais tempo nem de forma mais intensa ou que tenha traficado coisa diversa do que traficou qualquer um dos seus dois filhos também arguidos.

Tudo ponderado, temos que confessar uma certa atracção pela suspensão de execução da pena de prisão. Mas mais importante do que isso, são, do nosso ponto de vista, as consequências que esta linha de entendimento poderá ter no equilíbrio do douto acórdão condenatório: a suspensão da pena de prisão do arguido AA após desqualificação da sua conduta em tráfico de menor gravidade até pode fazer algum sentido, e a moldura penal deste tipo criminal é tal que ainda consegue suportar uma certa distinção entre a conduta deste arguido e a dos seus filhos, tal como muito adequadamente procurou fazer o tribunal a quo; mas o que não faz sentido é que este arguido seja punido por tráfico de menor gravidade quando os seus dois filhos, que seguramente não fizeram mais nem pior do que ele, se acham condenados por tráfico simples (artigo 21º). O sentido de justiça aponta na direcção de que, no fundo, tendo todos os arguidos prestado a sua contribuição para uma mesma e só coisa, um negócio de família, todos eles deveriam ser punidos por igualmente terem participado numa mesma e só coisa, seja, como nos achamos inclinados a pensar, um tráfico de menor gravidade. Se este desequilíbrio pode ou não ser ultrapassado é coisa que deixaremos ao douto entendimento do tribunal de recurso. Mas talvez os normativos processuais relativos à definição do âmbito do recurso (402º e 403º do Código de Processo Penal) não sofram excessivamente se também os arguidos BB e CC puderem oficiosamente beneficiar da desqualificação do tráfico, embora mantendo intactas as penas que muito ajustadamente lhes foram encontradas pelo tribunal a quo.

É o que se nos oferece ponderar sobre o caso.”

§I.c). – PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO (JUNTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA) 

1. Do acórdão de tribunal coletivo proferido em 14.10.2019, no âmbito do qual o arguido AA foi condenado na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, interpõe o mesmo recurso para o STJ , em 16.12.2019, impugnando matéria de direito, concretamente a qualificação jurídica dos factos imputados, considerando que a mesma deve ser enquadrada na previsão do art. 25º do DL 15/93; e pugnando por aplicação de medida da pena inferior a 5 anos de prisão, suspensa na respetiva execução.

2. A tal recurso respondeu o Magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido, considerando admissível a subsunção dos factos imputados à previsão do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25º do DL 15/93, considerando a diminuição da medida da pena e a suspensão da sua execução.

3. Do parecer

1. Questão prévia – da qualificação jurídica dos factos

Da parte decisória do acórdão, proferido em 16.12.2019, consta a condenação do arguido AA, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 21º nº1 e 24º al. a) do DL 15/93 de 221.01, por referência às tabelas I-A e I-B, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão.

Porém, a fls. 38 do citado acórdão refere-se terem os arguidos AA, BB e CC incorrido na prática do crime de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º do DL 15/93, e ser a respetiva moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão, moldura que corresponde ao art. 21º do DL 15/93- crime de tráfico base.

Jamais se fazendo alusão, ao longo do acórdão, à circunstância qualificativa prevista na alínea a) do art. 24º do DL 15/93, a qual dispõe: “se as substâncias ou preparações foram entregues ou se destinavam a menores ou diminuídos psíquicos”, afigura-se ter ocorrido na parte decisória do acórdão lapso material, cuja correção se promove, devendo passar a constar “condenação do arguido AA, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº1 do DL 15/93 de 22.01, por referência às tabelas I-A e I-B, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão.” (fls, 48 e 41 do acórdão recorrido)

2. O arguido/recorrente pugna pela subsunção dos factos provados ao art. 25º do DL 15/93 de 22.01. De qualquer modo, alega que” quer se entenda que os factos cometidos pelo arguido se enquadram no artigo n.º 21 n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 de 22 de janeiro, ou por outro lado, se venha a entender que os mesmos têm assento no artigo 25.º alínea a) do mesmo diploma, a pena aplicar deverá ser suspensa na sua execução.”

Afigura-se não lhe assistir razão

Em face da matéria de facto fixada, particularmente nos pontos 1 a 8 dos factos provados, tendo-se o arguido dedicado à atividade de tráfico de estupefacientes - cocaína e heroína - no período decorrente entre Outubro de 2013 e 29.06.2015, ou seja, face ao universo de consumidores a quem o estupefaciente foi vendido e à frequência de tal venda, pelo menos 10 consumidores a quem foram vendidas, por diversas vezes, tais substâncias, atividade de tráfico baseada numa estrutura organizativa de tipo familiar, com utilização de diversos telemóveis e linguagem cifrada inerente à atividade de tráfico, não se vê que a conduta global do recorrente seja molde a permitir concluir que a ilicitude do facto se possa considerar consideralmente diminuída, por forma a ser subsumível à previsão do crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25º do DL 15/93

É que, para além do tipo de estupefaciente em causa- heroína e cocaína (ao contrário do invocado pelo recorrente que alega ter sido vendido maioritariamente haxixe- art. 18 da motivação), importa realçar a dispersão em que o tráfico ocorreu por força da atuação conjugada do ora recorrente e dos seus filhos, - “a consumidores, entre outros, residentes nos concelhos de …, de …, de … e de …, cedendo a estes doses de heroína e cocaína, em troca de dinheiro, nomeadamente pelo preço de 20,00 € (vinte euros) cada dose.

Assim, considera-se corretamente subsumida a conduta do recorrente à prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º do DL 15/93, efetuada pelo acórdão recorrido, acompanhando-se os fundamentos exarados a fls. 36:

“Na realidade, a quantidade de estupefaciente transaccionado, a sua natureza – heroína e cocaína, a exclusiva intenção lucrativa (nem sequer se lhes conhece hábitos de consumo), a sua intensidade e desenvolvimentos, e o período de tempo em que levaram a cabo a actividade, apenas sendo interrompidos por força da intervenção da ordem jurídica, os meios humanos envolvidos – ainda que circunscritos à própria família, e sua organização, e os modos de entorpecimento da actuação das autoridades, e o número de pessoas identificadas como adquirentes, a repetição e volume das vendas e/ou cedências, os montantes pecuniários envolvidos no negócio, permitem-nos concluir que estes arguidos – AA, BB e CC, cometeram de facto o crime que lhes é imputado.”

Relativamente à medida da pena aplicada, acompanham-se os fundamentos aduzidos a fls. 40 do acórdão, realçando-se o elevado grau de ilicitude do facto, considerando o modo de atuação do arguido e o período de tempo em que a atividade penalmente ilícita perdurou; o dolo direto do arguido, logo intenso; a circunstância de não se ter provado que era consumidor de estupefaciente; a ausência de arrependimento, as condenações criminais que averba, ainda que por ilícitos de natureza diversa.

Fundamenta ainda o acórdão a diferença de idades dos arguidos- o ora recorrente tinha 45 anos de idade à data dos factos, tendo os seus filhos BB e CC, 23 e 22 anos de idade, factor que foi sopesado na distinta medida de pena aplicada a cada um destes arguidos.

A medida da pena aplicada ao ora recorrente, de 5 anos e 3 meses de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº1 do DL 15/93 de 22.01, por referência às tabelas I-A e I-B, afigura-se justa e adequada ao grau de culpa “global” com que atuou, tendo sido equilibradamente ponderadas as circunstâncias previstas no art. 71 do CP.

Pelo exposto, pronunciamo-nos pela improcedência do recurso interposto, com a retificação do lapso constante de fls. 48 e 41 do acórdão, quanto à qualificação jurídica dos factos, devendo passar a constar a condenação do arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº1 do DL 15/93 de 22.01, por referência às tabelas I-A e I-B.”


§I.d). – QUESTÕES PARA A SOLUÇÃO DO PEDIDO FORMULADO NO RECURSO.

O recurso interposto pelo arguido, AA, ensarta duas questões para cabal conhecimento, a saber:

i) – Qualificação jurídico-penal da factualidade comprovada (relativamente ao arguido/recor-rente);

ii) – Determinação Judicial da Pena a impor pela incriminação que vier a resultar da análise/

ponderação da questão enunciada no item antecedente.


§II. - FUNDAMENTAÇÃO.

§II.A). – DE FACTO.

Alçapremando o recurso, para conhecimento do respectivo objecto, as questões jurídicas enunciadas supra, e não se descortinando, a existência de qualquer dos vícios indicados nas alíneas a) a c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, haverá que ter por adquirida, a factualidade que vai extractada, na sequência (sic): 

1 - Em data não concretamente apurada, mas seguramente no ano de 2013, os arguidos AA, BB, CC, DD e EE formularam o plano de dedicarem-se à actividade de compra e venda de heroína e cocaína, com o propósito de auferirem lucros pecuniários, resultantes da diferença existente entre o preço de compra de tais produtos estupefacientes e o preço de venda dos mesmos.

2 - Em obediência ao referido plano, no período compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, os arguidos AA, BB, CC, DD e EE em comunhão de esforços e intentos dedicaram-se à actividade de compra e venda de heroína e cocaína, com o propósito concretizado de auferirem lucros pecuniários a consumidores, entre outros, residentes nos concelhos de …, de …, de … e de …, cedendo a estes doses de heroína e cocaína, em troca de dinheiro, nomeadamente pelo preço de 20,00 € (vinte euros) cada dose.

3 - No citado período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, os arguidos AA, BB e CC procederam à venda dos referidos produtos estupefacientes a consumidores no interior ou à porta da sua residência sita na Rua …, …, bem como no largo da feira de …, sendo que em algumas ocasiões os arguidos AA, BB e CC deslocaram-se ao encontro dos consumidores em estradas do concelho de … para venderem heroína e cocaína.

4 - Nas ocasiões em que combinaram com os consumidores vender heroína e cocaína nas estradas do concelho de … os arguidos AA, BB e CC faziam-se transportar nos seguintes veículos automóveis:

- Veículo com a matrícula ...-...-DE, de marca Honda, modelo Civic;

- Veículo com a matrícula ...-...-XE, de marca Ford, modelo Transit, pertencente ao arguido CC;

- Veículo com a matrícula ...-...-SZ, de marca Ford, modelo Transit, pertencente ao arguido AA;

- Veículo com a matrícula ...-...-HA, de marca Mercedes-Benz, modelo 190D, pertencente ao arguido AA;

- Veículo com a matrícula ...-...-MP, de marca BMW, modelo 320I, pertencente ao arguido BB;

- Veículo com a matrícula ...-...-JO, de marca Audi, modelo A3;

5 - No mencionado período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, no interior da residência dos arguidos sita na Rua …, …, as arguidas EE e DD procederam à venda de heroína e cocaína a consumidores, nomeadamente quando os arguidos AA, BB e CC não se encontravam na mencionada residência.

6 - No citado período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, os arguidos AA, BB, CC e EE foram contactados por consumidores de heroína e de cocaína para os telemóveis com os números 93…85, 93…98, 93…38, 93…98, 93…51, 93…00, 93…51, 93…32 e 91…24 com os quais mantiveram conversações alusivas à aquisição de produtos estupefacientes, preços, quantidades, locais de encontro, conversas essas mantidas em código, dissimuladas, por forma a serem de difícil percepção na eventualidade de estarem a ser escutadas pela polícia.

7 - Em tais conversas telefónicas os arguidos AA, BB, CC e EE utilizaram sobretudo as expressões:

- “Café”, “cafezinho”, “cafézito”, “pneus” para se referirem ao produto estupefaciente, nomeadamente para identificar o número de doses de heroína e cocaína;

- “Jogar às cartas, “jogar à sueca”, “beber um copo”, “tomar um café”, “tomar um cafézito”, “jogar matraquilhos” para combinarem encontros para venderem o produto estupefaciente;

- “Tá tudo porreiro”, “está tudo bem”, “tá-se bem”, “está tudo” para comunicarem que tinham produto estupefaciente;

- “Piscinas, barragem, estrada do nabo, capelas, zona dois” para identificarem o local onde iriam entregar o produto estupefaciente;

8 - No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, o arguido AA, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado, procedeu às seguintes vendas de produto estupefaciente:

- Vendeu heroína - por diversas vezes (normalmente duas doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose) – a FF para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e no largo da feira de …;

- Vendeu heroína - por diversas vezes (normalmente três doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose) – a GG para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu heroína - por diversas vezes (ao preço de €20 [vinte euros] cada dose) a HH para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de …;

- Vendeu cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a II para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …, no largo da feira de … e em estradas do concelho de …, nomeadamente na estrada que liga … à freguesia do …;

- Vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (normalmente, uma ou duas doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a JJ para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a KK para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de …, nomeadamente na estrada que liga … à freguesia do …;

- Vendeu heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a LL para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu cocaína e heroína, por diversas vezes (normalmente duas a três doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a MM para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e na estrada que liga … à freguesia do …;

- Vendeu heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a NN para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu cocaína e heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a OO para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e na estrada que liga … à freguesia do … .

9 - No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, o arguido BB, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado, procedeu às seguintes vendas de produto estupefaciente:

- Vendeu heroína - por diversas vezes (normalmente três doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose) – a GG para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (normalmente, uma ou duas doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a JJ para consumo deste, tendo algumas das referidas vendas ocorrido em 9-2-2015, pelas 16:13 horas, e em 16-5-2015, pelas 2:56 horas - ambas tiveram lugar junto da sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a KK para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de …, nomeadamente na estrada que liga … à freguesia do …;

- Vendeu heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a LL para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Em 25-2-2015, pelas 19:20 horas, junto da barragem …, vendeu uma dose de heroína, com peso não concretamente apurado, pelo preço de €20,00 (vinte euros) a PP;

- Vendeu cocaína e heroína, por diversas vezes (normalmente duas a três doses de heroína e de cocaína, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a MM para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e na estrada que liga … à freguesia do …;

- Vendeu heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a NN para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu cocaína e heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a OO para consumo deste, tendo as vendas ocorrido, por regra, na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de …, nomeadamente junto à barragem …, na Zona Industrial de … e na localidade de … e tendo duas das mencionadas vendas ocorrido em 1-2-2015, pelas 18:30 horas e em 3-2-2015, pelas 18:17 horas;

- Vendeu cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a II para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …, no largo da feira de … e em estradas do concelho de …, nomeadamente na estrada que liga … à freguesia do … e tendo algumas das referidas vendas ocorrido em 5-2-2015, pelas 21:31 horas (na estrada que liga … à freguesia do …), em 24-2-2015, pelas 13:00 horas (na localidade de …), em 12-3-2015, pelas 18:00 horas (na estrada que liga … à freguesia do …) e em 16-3-2015, pelas 18:51 horas (na estrada que liga … à freguesia do …).

10 - No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, o arguido BB, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado, vendeu heroína por diversas vezes (ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose) a HH para consumo deste - tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de … e concretizando algumas das referidas vendas:

- Em 5-2-2015, pelas 18:40 horas, na localidade de …, o arguido BB vendeu duas doses de heroína pelo preço global de €40,00 [quarenta euros]) a HH;

- Em 6-2-2015, pelas 11:39 horas, à porta da mencionada residência sita na Rua …, o arguido BB vendeu uma dose de heroína pelo preço de €20,00 [vinte euros]) a HH e no mesmo dia pelas 18:52 horas, na Rua …, …, vendeu àquele duas doses de heroína pelo preço global de €40,00 [quarenta euros]);

- Em 10-2-2015, pelas 18:40 horas, junto ao Centro de Saúde de …, o arguido BB vendeu três doses de heroína pelo preço global de €60,00 [sessenta euros]) a HH;

- Em 11-2-2015, pelas 19:10 horas, nas proximidades dos correios de …, o arguido BB vendeu duas doses de heroína pelo preço global de €40,00 [quarenta euros]) a HH;

- Em 27-2-2015, pelas 19:45 horas, na localidade de …, o arguido BB vendeu duas doses de heroína pelo preço global de €40,00 (quarenta euros) a HH;

- Em 18-3-2015, pelas 18:26 horas, na Rua … …, o arguido BB vendeu duas doses de heroína pelo preço global de €40,00 (quarenta euros) a HH;

- Em 26-4-2015, pelas 12:49 horas, na Rua …, …, o arguido BB vendeu uma dose de heroína pelo preço de €20,00 (vinte euros) a HH.

11 - No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, o arguido BB, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado, vendeu heroína, por diversas vezes (normalmente, duas a três doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a QQ para consumo deste, tendo as vendas ocorrido, por regra, nas proximidades da sua residência sita na Rua …, …, e na estrada que liga … à freguesia do …, e concretizando algumas das referidas vendas:

- Em 5-2-2015, pelas 16:40 horas, na estrada que liga … à freguesia do …, o arguido BB vendeu duas doses de heroína pelo preço global de €40,00 (quarenta euros) a QQ;

- Em 10-2-2015, pelas 17:40 horas, na estrada que liga … à freguesia do …, o arguido BB vendeu duas doses de heroína pelo preço global de €40,00 (quarenta euros) a QQ;

- Em 25-2-2015, pelas 16:52 horas, o arguido BB vendeu heroína, com peso não concretamente apurado por preço não concretamente apurado a QQ.

12 - No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, o arguido CC, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado, procedeu às seguintes vendas de produto estupefaciente:

- Vendeu heroína - por diversas vezes (normalmente três doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose) – a GG para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (normalmente, uma ou duas doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a JJ para consumo deste, tendo algumas das referidas vendas ocorrido em 9-2-2015, pelas 16:13 horas, e em 16-5-2015, pelas 2:56 horas - ambas tiveram lugar junto da sua residência sita na Rua …, …;

- Vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a KK para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de …, nomeadamente na estrada que liga … à freguesia do …;

- Vendeu heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a LL para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …;

- No dia 31-3-2014, pelas 16:28 horas, no interior da sua residência sita na Rua …, …, vendeu duas doses de heroína, com o peso líquido de 0,476 gramas, pelo preço global de €40,00 (quarenta euros) a RR;

- No dia 28-2-2015, pelas 13:32 horas, numa estrada do concelho de …, vendeu uma dose de heroína, com peso não concretamente apurado pelo preço de €20,00 (vinte euros) a PP;

- Vendeu cocaína e heroína, por diversas vezes (normalmente duas a três doses de heroína e de cocaína, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a MM para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e na estrada que liga … à freguesia do …;

- Vendeu cocaína e heroína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a OO para consumo deste, tendo as vendas ocorrido, por regra, na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de …, nomeadamente junto à barragem …, na Zona Industrial de … e na localidade de …;

- Vendeu cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a II para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, …, no largo da feira de … e em estradas do concelho de …, nomeadamente na estrada que liga … à freguesia do … e tendo uma das referidas vendas ocorrido em 16-2-2015, pelas 1:01 horas;

- No dia 20-2-2015, pelas 11:48 horas, na estrada que liga … à freguesia do …, vendeu produto estupefaciente não concretamente apurado por preço não concretamente apurado a KK, também conhecido pela alcunha “SS”;

- Vendeu heroína - por diversas vezes (ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose) a HH para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e em estradas do concelho de … e duas das referidas vendas ocorreram em 15-3-2015, pelas 20:00 horas e em 29-6-2015, pelas 13:15 horas.

13 - No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, no interior da residência dos arguidos sita na Rua …, …, a arguida DD, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado, procedeu às seguintes vendas de produto estupefaciente:

- Vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (normalmente duas a três doses de heroína e de cocaína, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a MM para consumo deste;

- Vendeu heroína, por duas vezes, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose, a QQ para consumo deste.

14 - No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, no interior da residência dos arguidos sita na Rua …, …, a arguida EE, em obediência ao referido plano previamente elaborado, vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (normalmente duas a três doses, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a MM para consumo deste.

15 - No dia 29 de Junho de 2015 os arguidos AA, BB, CC, DD e EE guardavam na cozinha da sua residência, sita na Rua …, …, nomeadamente em cima do parapeito da chaminé dentro de uma lata dois pacotes de heroína com o peso global de 0,43 gramas.

16 - Nesse mesmo dia, foram apreendidos num dos quartos da mencionada residência dos arguidos sete munições da marca Knall 380 e partes de uma pistola de calibre 6,35 milímetros, designadamente punho, cano, mecanismo de disparo e carregador.

17 - No mencionado dia foram apreendidos num outro quarto da citada residência dezassete telemóveis.

18 - Os arguidos AA, BB, CC, DD e EE conheciam as características, quantidade, qualidade e a natureza dos referidos produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína e heroína, e tinham consciência de que a aquisição, detenção, venda, transporte e cedência a qualquer título de tal tipo de substâncias são actos proibidos e punidos por lei penal.

19 - Os arguidos AA, BB, CC, DD e EE agiram de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão e conjugação de esforços e intentos, com o propósito concretizado de deterem, prepararem, transportarem e comercializarem tais produtos estupefacientes por inúmeros indivíduos.

Mais se provou:

20 – Os arguidos não demonstraram arrependimento.

Condições pessoais dos arguidos

Dos relatórios sociais dos arguidos consta que:

21 - Do arguido AA

AA nasceu na localidade de …, …, onde habitou até cerca dos 15 anos.

De etnia cigana, o arguido cresceu com os valores inerentes à sua etnia. Quando AA contava 4 anos de idade, a sua mãe faleceu vítima de homicídio.

Pertencente a um agregado extenso, e sendo o penúltimo de sete irmãos, o arguido foi criado pela sua irmã mais velha, que assumiu um papel parental feminino substitutivo.

Os seus pais praticavam a actividade de vendedores ambulantes, continuando a família a desenvolvê-la após o óbito da mãe do arguido. Neste sentido, AA iniciou precocemente esta actividade, não tendo sequer frequentado a escola, quer porque era mais um elemento necessário para trabalhar, quer porque a própria família não valorizava o percurso académico.

Quando contava 15 anos foi viver com uma irmã em …, continuando aí a sua actividade de vendedor ambulante e feirante na qualidade de auxiliar da irmã. O seu pai faleceu quando o arguido contava 20 anos, não tendo este voltado ao agregado familiar de origem.

Ainda em … conheceu TT, tendo ambos casado segundo os rituais ciganos.

Com cerca de 23 anos mudou-se com a companheira para … onde tinha um irmão a residir em …, uma aldeia na periferia da cidade. Deste relacionamento marital existem três filhos, todos rapazes.

Na zona de … manteve a actividade de feirante de artigos de vestuário, que desempenhava com a colaboração da companheira.

Contava cerca de 29 anos quando foi preso, época em que os seus dois filhos mais velhos já eram nascidos. Nessa época era consumidor de estupefacientes e a problemática aditiva reflectia-se negativamente na sua estabilidade pessoal bem como na vida familiar.

Durante o cumprimento da pena de prisão, o arguido conseguiu ultrapassar o comportamento aditivo, sem registo de recidivas até à presente data.

Quando foi preso, o seu agregado ficou numa situação de acentuada precariedade, não possuindo sequer habitação uma vez que tinham sido desalojados de uma antiga fábrica que tinham ocupado. Assim, passaram a residir numa barraca de lona, situação que se manteve durante um largo período de tempo, designadamente durante o período de tempo da sua liberdade condicional.

Aproximadamente há 10 anos mudaram-se para …, onde residia o seu sogro, e aí arrendaram casa. Têm mantido residência nessa localidade desde então, na companhia dos filhos, sendo que recentemente se autonomizaram os dois mais velhos.

O quotidiano do agregado continua a ser marcado pela actividade laboral de feirantes, que realizam juntamente com os filhos.

Há 7 anos o arguido foi alvejado … por um familiar, situação que lhe tem trazido problemas até à presente data. Mantém a realização de curativos três vezes por semana e perdeu a capacidade de mobilidade que tinha anteriormente.

O arguido apresenta outros problemas de saúde, sendo a psoríase o que lhe traz maiores limitações.

À data dos factos subjacentes aos presentes autos, AA mantinha residência com a companheira e com os três filhos em …. Habitavam casa arrendada, com fracas condições habitacionais.

Mantinham actividade de feirantes, com excepção do seu filho mais novo, UU, estudante.

Presentemente, os seus dois filhos já constituíram agregados autónomos e saíram de casa, embora se tenham fixado também em … com as respectivas companheiras e filhos.

O mais novo frequenta um curso profissional de …, que lhe dará a equivalência ao 12º ano. O sucesso escolar deste filho é valorizado e motivo de orgulho para o arguido. Apesar dos dois mais velhos já terem constituído os seus próprios agregados, mantêm um convívio diário com o núcleo familiar de origem, denotando laços afectivos coesos.

O agregado do arguido é beneficiário de Rendimento Social de Inserção. Não estão a pagar renda de casa por desentendimentos surgidos com os senhorios.

Na comunidade AA continua a manter uma boa integração, convivendo de forma ajustada com os demais residentes. (Por desinteressantes para a economia e decisão do recurso, dado tratar-se de elementos de natureza estritamente pessoais, familiares e socioprofissionais suprime-se da descrição factual os excertos dos relatórios sociais que constituem fls.   da sentença e atinam com os arguidos, TT; BB; CC e VV.)

Antecedentes criminais dos arguidos

Do registo criminal dos arguidos consta o seguinte:

24 - Do arguido AA

O arguido AA já sofreu a seguinte condenação:

- Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de … – Instância Local de …, proferida no Proc. n.º 127/13.9… foi condenado na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a obrigação de pagar aos ofendidos a quantia atribuída a título de compensação, pela prática em 20/01/2013 de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 1, do C.Penal;

- Por decisão do Juízo Local de Competência Genérica de …, proferida no Proc. n.º 322/15.6… foi condenado na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 5,00€, pela prática em 25/08/2015 de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324.º, por referência ao artigo 323.º, do DL 36/2003, de 05 de Março.

- Por decisão do Juízo Local de Competência Genérica de … – J1, proferida no Proc. n.º 578/17.0… foi condenado na pena de 15 (quinze) meses de prisão suspensa na sua execução por igual período e com a obrigação de pagar aos ofendidos os valores determinados em sede de pedido de indeminização civil, pela prática em 13/12/2017 de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a), do C.Penal. (Por economia e por se tratar de elementos estritamente pessoais suprimem-se as referências aos antecedentes criminais dos arguidos BB; CC; e das arguidas TT e VV.)


FACTOS NÃO PROVADOS:

a) No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, o arguido AA, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado, vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de 20,00 € [vinte euros] cada dose), a XX para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e no largo da feira de …;

b) No referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, o arguido BB, em obediência ao mencionado plano previamente elaborado vendeu heroína e cocaína, por diversas vezes (uma dose, de cada vez, ao preço de €20,00 [vinte euros] cada dose), a XX para consumo deste, tendo as referidas vendas, por regra, ocorrido na sua residência sita na Rua …, … e no largo da feira de … .

c) Os arguidos faziam da venda de estupefaciente um modo de vida.

Convicção do Tribunal

Em sede de motivação da decisão de facto o tribunal formou a sua convicção em todo o acervo probatório produzido em audiência, em conjugação com o teor da prova documental e pericial já junta aos autos.

Assim, de salientar no que respeita à prova já junta aos autos, a seguinte:

II – Prova Pericial:

1) Relatório de exame pericial (fls. 185 e 706).

III - Prova Documental:

1) Pesquisa na base de dados do IMT (fls. 5 e 6);

2) Registo de veículo automóvel (fls. 7, 8, 16, 20, 24, 26, 28, 49, 68, 69, 76 a 78, 85, 93, 104, 105, 133, 156, 554 a 557, 903 e 904);

3) Pesquisa de contrato de seguro automóvel (fls. 9, 10, 21, 25 e 212);

4) Fotografias (fls. 15 e 568 a 573);

5) Relato de diligência externa (fls. 17, 19, 189, 261 a 263, 280 a 282, 313, 314, 351, 375 e 489);

6) Relatório de vigilância (fls. 18, 22, 23, 27, 47, 63, 64, 70, 71, 79, 80, 86, 87, 94, 95, 99, 100, 120, 121, 126, 127, 134, 135, 138, 139, 155, 160, 161, 167, 168, 552, 553, 259 e 260);

7) Fotogramas (fls. 48, 65 a 67, 72 a 74, 81 a 84, 88 a 92, 96 a 98, 101 a 103, 122 a 125, 128 a 132, 136 e 137, 140 a 143, 162 a 166, 169 a 172, 283, 284, 315 a 321 e 343 a 350);

8) Auto de ocorrência (fls. 157 e 558);

9) Auto de teste rápido (fls. 158, 559 e 567);

10) Guia de entrega (fls. 612);

11) Termo de entrega (fls. 173);

12) Relatório de busca (fls. 563 e 564);

13) Auto de busca e apreensão (fls. 565, 566 e 593 a 596);

14) Auto de exame directo de arma de fogo (fls. 574 e 575);

15) Auto de exame directo (fls. 576 a 592);

16) Lista de objectos apreendidos (fls. 660 a 662);

17) Informação da Segurança Social (fls. 715 a 717, 773, 774 e 778);

18) Certificado de Registo Criminal dos Arguidos (fls. 890 a 901);

19) Lista de objectos (fls. 660 a 662);

20) Ficha de identificação civil (fls. 726 e 727 e 729);

21) Auto de reconhecimento de pessoas (fls. 743, 753 e 754);

22) Transcrições de intersecções telefónicas (Apensos I, II, III e IV);

23) CD – IMG 1, 2, 3, 4 e 5 (que contém vídeos e fotogramas);

24) CD nºs 1, 2, 3 (que contém fotogramas).

Vejamos com mais detalhe.

Os factos inscritos sob o número 1 e 2 resultam desde logo do auto de notícia a fls. 3, sendo que a partir de 15.01.2014 iniciaram-se as diligências externas de vigilância, conforme documentam os autos a fls. 17, sendo que a actividade dos arguidos só cessou em virtude da detenção de dois ocorrida no dia 29 de Junho de 2015.

Os relatos de diligência externa de fls. 19 e ss. documentam o número de pessoas conotadas com o consumo de estupefacientes, ou que evidenciam a aparência de ser consumidores, que se dirigiam à residência dos arguidos, onde entravam e que ali permaneciam por alguns minutos, algo que se percebe no contexto da actividade levada a cabo pelos arguidos. Alguns dos referidos consumidores foram arrolados como testemunhas e vieram a concretizar e contextualizar a sua relação com os arguidos.

Os locais onde os arguidos procediam à venda do produto estupefaciente (facto provado sob o n.º 3) e os veículos utilizados pelos arguidos (facto provado sob o número 4), para além de resultarem das diligências externas levadas a cabo pelo OPC, bem como dos documentos juntos aos autos relativos aos veículos, resultam ainda dos depoimentos de algumas testemunhas, as quais, mesmo depondo sob um clima de intimidação, resultante de relatados episódios protagonizados pelos arguidos - com excepção da arguida DD - fora das instalações do tribunal, sendo que um deles ocorreu mesmo no seu interior, foram esclarecendo os locais onde os arguidos levavam a cabo a actividade, os veículos utilizados e, bem assim, os veículos em que se faziam transportar.

Assim, o facto descrito sob o n.º 4 extrai-se não só dos depoimentos das testemunhas como também dos relatos de vigilância e documentos de fls. 7, 8 e 9.

O facto inscrito sob o n.º 5 está directamente relacionado com os factos provados sob os números 15 e 16, os quais respeitam à actividade desenvolvida pela arguidas DD e EE.

A arguida EE, a qual de entre os arguidos foi a única a não fazer uso da faculdade legal de se remeter ao silêncio, negou a prática dos factos e apresentou uma versão fantasiosa, sem um mínimo de credibilidade, em manifesta colisão com a prova produzida. Referiu mesmo que os arguidos nunca se dedicaram à venda de estupefaciente, vivendo exclusivamente dos rendimentos provenientes da sua actividade como feirantes e das jeiras.

Pois bem, para além de outras, a testemunha QQ prestou um depoimento credível, mesmo que envolto em alguma tensão por ter sido ameaçado pelo arguido BB, segundo relatou. Consumidor de heroína, por referência ao período em causa nos autos, referiu que durante mais de um ano comprou heroína ao arguido BB, ao preço de € 40, 00 por duas doses, pois comprava para si e para a testemunha MM. Esclareceu os termos que utilizavam para se referirem ao produto, como, entre outros, “pneus”, “cafés”, “par de meias”, tá-se bem”, etc. Mas no que às arguidas respeita, esclareceu que chegou a comprar heroína no interior da habitação dos arguidos, sendo que foi a arguida DD quem procedeu à entrega. Esta testemunha confirmou as escutas em que teve intervenção, confirmando também os fotogramas de fls. 318 a 321, onde se encontra retractado quando adquiria estupefaciente a um dos arguidos.

Em tudo foi corroborado pela testemunha MM, o qual também se dirigia à residência dos arguidos parar adquirir heroína e, uma vez lá, “comprava a quem estivesse em casa”, incluindo as duas arguidas, tendo esclarecido que à rapariga mais nova (trata-se como é vidente da arguida VV) também chegou a comprar, embora num número de vezes.

Tudo para não chamarmos à colação os depoimentos de outras testemunhas que também confirmaram que compravam heroína e cocaína às arguidas, quase sempre quando os arguidos se encontravam ausentes.

Dúvidas não restaram ao tribunal sobre a comparticipação das arguidas nos factos, nos exactos moldes constantes da acusação.

O facto provado inscrito sob o n.º 6 está abundantemente documentado nos autos, sendo aliás significativo o número de telemóveis apreendidos aos arguidos (veja-se p auto de apreensão de fls. 565 e 567), o que é justificado com a tentativa dos arguidos de se furtarem às eventuais diligências de investigação da actividade delituosa que levavam a cabo.

O facto provado sob o n.º 7, está também documentado nos autos e também não levanta dúvidas.

Os arguidos utilizavam efectivamente as expressões ali descritas para dissimuladamente se referirem ao produto estupefaciente ou aos locais de entrega, sendo que “Café”, “cafezinho”, “cafézito”, “pneus” para se referirem ao produto estupefaciente, nomeadamente para identificar o número de doses de heroína e cocaína (cfr. sessões 74, 174, 238, 239, 242, 245, 246, 251, 257, 261, 263, 328, 329, 332, 568, 636, 666, 697, 698, 787, todas do Apenso I); - “Jogar às cartas, “jogar à sueca”, “beber um copo”, “tomar um café”, “tomar um cafézito”, “jogar matraquilhos” para combinarem encontros para venderem o produto estupefaciente (cfr. sessões 3, 57, 64, 97, 171, 242, 245, 246, 257, 261, 263, 282, 329, 332, 383, 386, 387, 415, 454, 489, 499, 529, 532, 537, 545, 551, 568, 573, 583, 607, 611, 617, 638, 662, 670, 697, 698, 787, 894, todas do Apenso I e sessão 8851 do Apenso III); - “Tá tudo porreiro”, “está tudo bem”, “tá-se bem”, “está tudo” para comunicarem que tinham produto estupefaciente (cfr. sessões 439, 504, 785, 810, 817, 901, todas do Apenso I); - “Piscinas, barragem, estrada do nabo, capelas, zona dois” para identificarem o local onde iriam entregar o produto estupefaciente (cfr. sessões 7, 97, 165, 171, 239, 245, 321, 332, 478, 505, 509, 523, 626, 672, 732, todas do apenso I e sessão 8674 do apenso III).

É também o que resulta dos depoimentos das testemunhas ouvidas, que foram confirmando o teor das conversas telefónicas mantidas com os arguidos e esclareceram o sentido das expressões utilizadas – veja-se a título de mero exemplo os depoimentos de II; HH; PP; OO (este referindo mesmo que café também se reportava ao local da entrega do estupefaciente);

De resto, se considerarmos que a generalidade das testemunhas, note-se que todas elas consumidoras (com excepção dos elementos das forças de segurança) quando questionadas referiram não ter qualquer relação de grande proximidade com os arguidos e que apenas se relacionavam com estes no quadro da sua problemática aditiva, para lhes adquirir produto estupefaciente, o número dos contactos mantidos entre os arguidos e as testemunhas ao longo do período em causa nos autos e o tipo de expressões reiteradamente utilizadas em jeito de código, associados às regras da experiência comum, permitem a ilação de que tais expressões tinham origem na necessidade de os arguidos usarem de grande cuidado na linguagem, utilizando palavras com um sentido codificado no intuito de dispersarem a atenção das autoridades e/ou impedir ou dificultar a prova dos factos.

No que concerne às vendas efectuadas por AA (facto provado sob o n.º 8, à semelhança do que sucede com os arguidos BB e CC, as diligências de escuta foram efectivamente relevantes, em conjugação com os depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento.

Assim o tribunal atentou na sessão 313 do Apenso I e sessões 7069 e 7071 do Apenso III, relativamente ao produto estupefaciente cedido a JJ, o qual confirmou que comprava heroína aos arguidos em vários locais, o qual quando confrontado com as escutas (designadamente documentadas a fls. 313, foi confirmando que as entregas de produto estupefaciente eram efectuadas pelos arguidos AA, BB e CC, embora comprasse mais vezes ao BB.

Também a testemunha FF, o qual declarou ser consumidor de heroína e cocaína, lhe comprava estupefaciente a vinte euros por dose. Outrossim também as testemunhas GG, HH, II referiram que compravam heroína ao arguido AA e BB (sendo o arguido AA muitas vezes identificado como “o mais velho”), a 20 euros a dose.

Sobre as vendas alegadamente KK, esta testemunha, pese embora o modo reservado, sempre referiu que conhecia os arguidos, mas não tinha relações próximas com estes. Confirmou apenas que comprou uma vez heroína ao BB, quando confrontado com os relatórios de vigilância (designadamente de fls. 79, 260 e 280) e escutas, deu respostas ilógicas, como por exemplo quando referiu que marcou por telefone um encontro com o arguido CC, sendo que este último chegou ao local e disse que não tinha nada para lhe entregar. Certo é que também fez contactos com o arguido AA, para compra de heroína, embora tentasse sempre negar as concretas aquisições, acabou por as confirmar.

Por seu turno a testemunha LL, consumidor de heroína e cocaína (presentemente em tratamento), também declarou que comprava aos arguidos AA, CC e BB (utilizando para o efeito diversos códigos). Comprava em casa dos arguidos em locais a combinar, em algumas ocasiões mais que uma vez por dia, sendo que prestou um serviço àqueles tendo o pagamento sido efectuado em produto estupefaciente. Referiu-se ainda aos automóveis utilizados pelos arguidos.

Outrossim, MM, confirmou que comprava heroína e cocaína aos arguidos, incluindo na residência destes. Normalmente quem estava em casa era quem fazia a entrega, incluindo, como declarou, o “ZZ”, alcunha pelo qual era e é conhecido o arguido AA, e os arguidos BB, CC e a mãe deste e “a menina”, por referência à arguida VV.

Confirmou ainda que o encontro documentado a fls. 321 destinou-se a adquirir estupefacientes aos arguidos na Estrada do …, ocorrido no dia 25.02.2015.

Confirmou ainda as sessões 901 e 902, e o contacto ali efectuado destinou-se a adquirir produto estupefaciente, sendo que o termo “tasquinho” reportava-se ao local onde a entrega deveria processar-se, em concreto a Estrada do … .

À semelhança deste, a testemunha OO alegou que durante dois anos comprou heroína aos arguidos, a cerca de 20 euros a dose, incluindo junto a residência destes, sendo que para o efeito estabelecia contacto através de um número de telemóvel, sendo atendido por qualquer um dos arguidos.

Confirmou também o auto de vigilância onde é retractado, sendo que tal encontro destinou-se a adquirir produto estupefaciente.

A testemunha NN também declarou que comprava heroína aos arguidos, apesar de o fazer por intermédio de outra pessoa, esta identificada como AAA.

No que concerne aos factos imputados ao arguido BB, as testemunhas prestaram depoimentos muito idênticos, confirmando no essencial os conteúdos das intercepções telefónicas e os relatos de vigilância onde surgem mencionados e retractados.

Dúvidas não existem, pois, que este arguido, BB, teve uma participação nos facos mais intensa por comparação às actividades desenvolvidas pelos arguidos CC, EE e DD, sendo só superado por AA, o qual se nos afigura teria um ascendente sobre os demais.

As testemunhas GG, JJ, KK, LL, PP, MM, NN, OO, II, HH, QQ confirmaram no essencial os actos de venda de heroína e/ou cocaína por parte deste arguido no período descrito na acusação.

Para se apurar exactamente alguns dos momentos em que este arguido procedeu à venda de estupefaciente foi relevante, além do tudo mais, atentou-se no teor das seguintes sessões transcritas:

- sessão 313 do Apenso I e sessões 7069 e 7071 do Apenso III, das vendas efectuadas a JJ;

- Sessão 645 do Apenso I, das vendas efectuadas a PP;

- Sessões 74, 75, 171 e 173, todas do Apenso I, das vendas efectuadas a OO para consumo deste;

- Sessões 245, 611, 871, 923, todas do Apenso I, das vendas efectuadas a II;

- Sessões 239 e 328 do Apenso I, das vendas efectuadas a QQ.

No que concerne aos factos imputados arguido CC, atendeu-se ao teor dos depoimentos de GG, JJ, KK, LL, RR; PP, MM, OO, II, HH, os quais no essencial confirmaram os factos que lhes são imputados.

Relevaram também o teor das vigilâncias e das intercepções telefónicas, entre estas, as registadas na sessão 313 do Apenso I e sessões 7069 e 7071 do Apenso III, relativa a vendas de produto estupefaciente a JJ III; sessão 670 do Apenso I, relativa a vendas efectuadas a PP; sessão 523 do Apenso I, relativa a venda KK; e sessão 909 do Apenso I, relativa a HH.

Os factos sob os números 15 a 17 estão documentados nos autos, tendo sido extraídos do Auto de Busca de fls. 565 e ss..

Os factos 18 a 19 respeitam aos elementos subjectivos do tipo legal em análise. Eles extraem-se dos factos não só dos factos objectivamente provados, como das regras da experiência. Não há nenhuma razão válida, nem nenhuma prova se produziu nesse sentido, para considerarmos que os arguidos estavam limitados na sua acção e por isso não agiram de modo livre, voluntário e consciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Aliás, é do conhecimento da generalidade dos cidadãos que tais condutas são ilícitas e penalmente puníveis, como também eram os arguidos sabedores, tanto mais que se desdobraram em esforços para que a sua actividade não fosse detectada pelas autoridades, designadamente utilizando vários telemóveis e uma linguagem codificada quando contactados telefonicamente pelos consumidores que pretendiam adquirir heroína ou cocaína.

As condições pessoais dos arguidos extraem-se não só dos depoimentos das testemunhas, de onde se retira muito sobre o modo de vida dos arguidos,

Como também dos relatórios sociais juntos aos autos.

Os antecedentes criminais extraem-se do teor dos certificados criminais juntos aos autos.

Quanto aos factos não provados, nenhuma prova foi produzida em audiência de julgamento que permita concluir que no referido período de tempo compreendido entre o mês de Outubro de 2013 e o dia 29 de Junho de 2015, os arguidos AA e BB venderam heroína e cocaína a XX.

Outrossim, também não se provou que os arguidos faziam da venda de estupefaciente um modo de vida. Com efeito, entende este tribunal não ser possível concluir que os arguidos faziam da venda do produto estupefaciente um modo de vida. Na realidade, como aliás consta também de algumas observações feitas pelo OPC nos relatórios vertidos das diligências externas, e bem assim referências feitas por algumas testemunhas – entre as quais II; os arguidos exerciam também à data a actividade de vendedores ambulantes, designadamente vendendo roupa em feiras, sendo de admitir em abstracto que poderiam também retirar algum lucro de tal actividade, embora se desconheça ou montante ou se efectivamente retiravam algum lucro.

Por fim, apesar de o terem verbalizado no último momento, o tribunal não se convenceu do arrependimento dos arguidos, sendo que o declararam sem qualquer sinceridade e toda a sua postura ao longo do processo, que incluiu a intimidação de testemunhas, permite ilação contrária.”


§II.B. - DE DIREITO.

§II.B.i). – QUALIFICAÇÃO JURÍDICO-PENAL DA FACTUALIDADE ADQUIRIDA

A legislação indígena que regula a actividade de combate ao tráfico (ilícito) de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, pretendeu cobrir, segundo se anuncia no respectivo preâmbulo, no seu espectro normativo três frentes: “Em primeiro lugar, privar aqueles que se dedicam ao tráfico de estupefacientes do produto das suas actividades criminosas, suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal e evitando, do mesmo passo, que a utilização de fortunas ilicitamente acumuladas permita a organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis.

Em segundo lugar, adoptar medidas adequadas ao controlo e fiscalização dos precursores, produtos químicos e solventes, substâncias utilizáveis no fabrico de estupefacientes e de psicotrópicos e que, pela facilidade de obtenção e disponibilidade no mercado corrente, têm conduzido ao aumento do fabrico clandestino de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.

Em terceiro lugar, reforçar e complementar as medidas previstas na Convenção sobre Estupefacientes de 1961, modificada pelo Protocolo de 1972, e na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, colmatando brechas e potenciando os meios jurídicos de cooperação internacional em matéria penal.

A transposição para o direito interno dos objectivos e regras que, num processo evolutivo, vão sendo adquiridos pela comunidade internacional mostra-se necessária ao seu funcionamento prático, acontecendo que as disposições mais significativas daquela Convenção das Nações Unidas não são exequíveis sem mediação legislativa.”

Na verdade, estatui o artigo 21º Decreto-lei nº 81/95, com as sucessivas alterações que lhe foram sendo introduzidas [vinte e uma (21)], que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer meio título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparar compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de 4 a 12 anos.”          

A previsão contida no citado constitui-se como o ilícito radical ou axial de todos os sub-tipos, exasperados e/ou mermados, que a lei contempla – cfr. artigos 24º e 25º do mesmo diploma legal. (A este propósito pode ver-se, com interesse, o acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 2013, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa, onde se escreveu (sic): “O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico de estupefacientes é o do art. 21.º, n.º 1 do DL 15/93 – tipo esse que, pela amplitude da respectiva moldura penal – 4 a 12 anos de prisão - e pela multifacetada descrição típica, abrange os casos mais variados de tráfico de estupefacientes, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevada – tão elevada que justifique a pena de 12 anos de prisão. Esse tipo fundamental corresponde, pois, genericamente, a casos que são já de média e de grande gravidade.

Quanto à posição dilemática que surgiu na jurisprudência em torno da distinção entre crime-regra (artigo 21º do Decreto-lei nº 15/93, de 13 de Janeiro) e crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25º do mesmo diploma legal), veja-se o que vem escrito no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 23.11.2011, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho, de que se respiga, por interessante, o seguinte trecho: “Por uma lado, pela orientação política que permanece arreigada na grande maioria dos países de que o tráfico de estupefacientes tem de ser atacado de forma particularmente severa, sem laxismos e num combate permanente. O crime regra é grave. Não é de gravidade diminuída. Não estamos em condições de aqui abordar a questão de saber se essa é uma opção justa e eficaz, já que está fora das nossas atribuições a discussão de opções políticas, muito menos as tomadas à escala global, mediante tratados a que Portugal se comprometeu.

Por outro lado, se ao traficante for passada a mensagem de que há um tratamento especial na pena para os casos «tidos» sistematicamente como de menor gravidade, ainda que na realidade não o sejam, tudo fará para adaptar o seu grande ou pequeno tráfico aos «modelos» concebidos jurisprudencialmente, por exemplo, transportando sempre pequenas quantidades de droga, embora o tenha de fazer por um maior número de vezes por dia, pois sabe que assim será menos penalizado.

A nosso ver, o legislador adoptou um esquema de tipificação penal em que leva em conta que a grande maioria dos casos que chegam aos tribunais se apresentam como pouco investigados, pois que as polícias só detectam, em regra, a parte mais visível dos factos (por exemplo, a apreensão de determinada quantidade de droga num certo dia). Na verdade, outro tipo de investigação, mais profunda, seria deveras dispendioso e, porventura, ineficaz (ineficácia, contudo, parcialmente colmatada nos últimos anos pelo crescente uso de escutas telefónicas como meio de prova). 

Tal esquema parte da constatação de que há uma «zona cinzenta» em que o juiz fica na dúvida sobre a real dimensão do tráfico em causa e, nesses casos, deverá, tendencialmente, aplicar uma pena cuja medida concreta é coincidente na moldura penal abstracta do crime de tráfico comum e na do crime de tráfico menor gravidade, a qual, conforme se pode verificar pelos artigos 21.º e 25.º, se situa entre os 4 e os cinco anos de prisão. 

Mas, enquanto essa pena de 4 a 5 anos de prisão pertence à moldura menos gravosa da que está prevista para o art.º 21.º, já fica na moldura mais gravosa do art.º 25.º, sendo, portanto, muito mais fácil justificar a aplicação da primeira do que a da segunda, face ao «peso» negativo ou positivo das demais circunstâncias do caso. Bem difícil seria justificar que um determinado crime de tráfico de menor gravidade tem uma elevada ilicitude para esse quadro legal e, em face disso, aplicar uma pena de 5 anos de prisão, pois estar-se-ia à beira da incongruência; os 4 ou 5 anos de prisão nesse tipo de crime ficarão reservados, deste modo, para outro tipo de casos em que intervêm circunstâncias agravantes não ligadas à ilicitude, como a reincidência.

Naqueles casos a que chamámos de «zona cinzenta», o legislador apontou para que se aplicasse o crime regra – o do art.º 21.º - mas permitiu que a sua moldura mais baixa convergisse com a penalidade própria do art.º 25.º, reservando este tipo criminal para outras situações de muito menor ilicitude, pois que “A tipificação do art. 25.º, do DL 15/93, parece significar o objectivo de permitir ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, ficam aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do art. 21.º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma indicada em primeiro lugar.”  

O bem jurídico que a proibição das acções tipificadas na norma do artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro pretende salvaguardar é a indemnidade ou protecção da saúde pública, capacitada pela nocividade e descontrole que as substâncias elencadas nas tabelas anexas são susceptíveis de provocar no equilíbrio físico-psíquico dos indivíduos e reflexamente, no ambiente societário e/ou comunitário em que indivíduos adictos se integrem, susceptíveis de induzir disfunções e factores de perturbação da pauta socialmente dominante e, de passo, indutores de malefícios e comportamentos desviados dos padrões comummente aceites e tidos por relevantes pelo legislador penal. (“Pode entender-se por bem jurídico todo o facto (interesse, recurso ou valor) que é reconhecido legitimamente como merecedor de protecção penal a partir de uma discussão baseada em princípios (discussão que pode ser ético-critica ou politico-pragmática)”. Com isso, o conceito de bem jurídico expressa o estatuto jurídico-penal qualificado que obtêm determinadas realidades. E ao mesmo tempo mantém o seu conteúdo crítico, enquanto que se conforma em torno de princípios críticos aceites.” – cfr. Gerhard Seher, “la legitimación de normas penales en princípios e el concepto de bien jurídico, in Roland Hefendehl (ed.), La teoria del Bien Jurídico, Fundamento de legitimación del derecho penal ou juego de abalorios dogmático, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 92. Para uma distinção entre bem jurídico e objecto de acção, veja-se no mesmo livro “El Bien Juridico como eje material de la norma penal, de Roland Hefendehl, págs. 179 a 196. Sobre o conceito de bem jurídico como instrumento de critica legislativa, veja-se o artigo de Claus Roxin, na Revista Electrónica de Ciência Penal e Criminologia, nº 15-1, 2013, págs. 1 a 27 (“El concepto de Bien jurídico como instrumento de critica legislativa sometido a examen”); Claus Roxin, no artigo citado na nota antecedente, questiona a legitimidade constitucional da punibilidade da posse determinadas drogas para consumo próprio, dado que nestes casos “está ausente toda a afectação de outros”. Neste caso os representantes de um conceito de bem jurídico critico relativamente à legislação defendem a impunidade e a não punibilidade das condutas pela não afectação dos direitos e da esfera pessoal de quaisquer outras pessoas. Op. loc. cit. p. 7.)       

A coonestação do afirmado no parágrafo antecedente – quanto ao bem jurídico que a norma pretende tutelar, proteger e sancionar - colhe assento no asserido no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Junho de 2011, quando expressa que “O crime de tráfico de estupefacientes tutela a saúde pública em conjugação com a liberdade da pessoa.” (Disponível em www.dgsi.pt.)]

A incriminação jurídico-penal dos comportamentos decorrentes da detenção, compra, venda e consumo de estupefacientes, decorre da indicação feita pela Organização Mundial de Saúde do que se pode entender por droga. Para esta entidade por droga deve entender-se toda a substância, natural ou sintética, cujo consumo repetido, em doses diversas, provoca nas pessoas: i) o desejo opressivo “abrumador” ou a necessidade de continuar ou consumindo-a (dependência psíquica); ii) a tendência a aumentar a dose (tolerância) e iii) a dependência física ou orgânica dos efeitos da substância que torna verdadeiramente necessário o seu uso prolongado, para evitar a síndrome da abstinência” (Cfr. Francisco Muñoz Conde,  “Derecho Penal – parte especial”, Tirant lo Blanch, Valência, 2001, p.629.)

Tornou-se incontestado – por vezes, nem tanto – que o tráfico de estupefacientes concita uma necessidade ingente de combate permanente pela danosidade social que comporta. Não sendo este o lugar apropriado para uma discussão que enfrente esta temática, mas não querendo deixar de debuxar a questão, temos para nós que a criminalização absoluta do “tráfico de droga”, como soe apelidar-se, pode assumir e comportar efeitos perversos e servir de álibi a actividades potenciadoras de conflitualidade gerada e gestionada, que induzem interesses e estratégias que pouco ou nada tem a ver com a preocupação do bem-estar social. Bastaria ler alguma literatura descomprometida para se adquirir a ideia dos fins para que podem ser utilizados o tráfico de droga e o dinheiro por ele gerado. (Observatoire Geopolitique des Drogues – Geopolitique des Drogues, 1995, Editions la Decouverte, 1995 e Geopolitique de la Drogue, Campagne européenne dínformation sur la drogue, Paris, 1991. Com proveito poder-se-á ainda consultar Pierre Kopp, in A economia da Droga, Edição Livros do Brasil, Lisboa.)

Retornando ao normativizado, o legislador na configuração de um tipo de ilícito, recortou um tipo modelar ou nuclear, aquele que esmerilhou no artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, passando, depois i) a exasperá-lo no artigo 24º, em face das repercussões económicas, sociais, financeiras que uma actividade, em exclusivo e de grandes dimensões acarreta, e ii) a doseá-lo, de acordo com a intensidade da acção objectiva, a reduzida penetração e disseminação no tecido social e diminutos efeitos danosos que poderiam percutir nomeio onde se desenvolve um tráfico de cingido espectro no artigo 25º e, iii) finalmente, com a qualidade e motivação subjectiva do agente no artigo 26º. (Não sendo esta última previsão contemplada pela legislação espanhola, nem por isso a jurisprudência e a doutrina têm deixado de considerar uma realidade que engolfa comportamentos tidos por atípicos, por não legalmente consignados, e que se conformam na figura do agente que adquire, detêm, consome e cede mediante contrapartidas monetárias a outros para auto-sustentação das suas próprias, concretas e especificas necessidades dimanantes da dependência que ostenta e mantém. Em decisão da Segunda Sala do T.S. – sentenças de 25 de Setembro de 1987 e 20 de Janeiro de 1989, considerou-se que o sujeito adicto ao consumo de determinado tipo de estupefacientes se pode transformar em “delinquente funcional” “que ingressa no pernicioso tráfico com o duplo fim de procurar a droga e um meio de vida”. As questões teóricas desencadeadas por este razoamento valorativo não deixa de merecer comentários de um autor espanhol Bacigulpo Zapater que alerta para a perversão que pode ocorrer quanto à natureza do tipo de ilícito e a imputação jurídico-objectiva em que se transformará um balizamento da acção de mera detenção de produtos estupefacientes. (Cfr. a propósito Luís Fernando Rey Huidobro , “El Delito de Tráfico de Drogas – Aspectos  Penales y Processales”,Tirant lo Blanch, Valência, 199, p. 73 e segs.)

A jurisprudência deste Supremo Tribunal é inabarcável quanto ao tema da qualificação jurídica dos tipos de crime base e crime agravado pelas circunstâncias [“Circunstância do crime é, em geral, aquilo que está em torno (em redor) do crime (circum stat)”. O que caracteriza a circunstância em sentido técnico é o facto de que ela determina em regra (di regola) uma maior ou menor gravidade do crime e em todo (in ogni) caso uma modificação (agravamento ou atenuação) da pena” (tradução nossa). (Francesco Antolisei, Manuale di Diritto Penale, Parte general, Giuffrè Editore, Milano, 1997.)

O autor que vimos citando considera não deverem ser as circunstâncias agravantes imediata ou automaticamente valoradas, ao contrário do que parecia acontecer no pretérito ordenamento jurídico-penal italiano – antes de Fevereiro de 1990. Do mesmo passo considera que a reincidência não se pode incluir no rol das circunstâncias em sentido técnico. O artigo 70º do Cód. Penal italiano trata-as como “circunstâncias inerentes à pessoa do culpado, pelo que estas pretensas circunstâncias mais não são do que qualificações jurídicas subjectivas “as quais, por isso, ainda que influam na medida da pena, não podem considerar-se como “acessórias” do crime”. (Cfr. op. loc. cit., p. 433. Traz em socorro da sua tese, que refere não ser a maioritária, autores como Bettiol e Mantovani- vide nota à página citada.]

Qualquer circunstância (elemento acessório do crime principal) que tenha por função interferir na valoração da conduta de um sujeito responsável por uma acção delitiva, tem, para ser considerada no agravamento da responsabilidade penal, que ser traduzida em factualidade de referência típica, ou seja aquela factualidade que o legislador pretendeu incutir na descrição agravativa como relevante para a densificação do sentido axiológico-normativo com que pretende a salvaguarda de específicos bens jurídicos e a protecção dos valores ético-socialmente prevalentes.)

Seja-nos permitido socorrermo-nos, data venia, do doutrinado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2013, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça em que se escreveu que (sic): “O crime de tráfico de estupefaciente abarca todas as condutas não autorizadas previstas no artº 21º do Dec-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro: “cultivar, produzir, fabricar, exportar, preparar, oferecer, puser a venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III.

À sua consumação é-lhe indiferente a intenção lucrativa, ou o destino do produto estupefaciente, desde que não para consumo, sendo, porém, relevante, a quantidade total do produto integrante da acção proibida.

O crime de tráfico como crime de perigo abstracto, centraliza-se na perigosidade da acção, uma vez que o perigo, não sendo elemento do tipo, se apresenta como “motivo da proibição”, sem que disso resulte qualquer violação do princípio constitucional da presunção de inocência – (cfr. AC Tribunal Constitucional de 02-04-1992, “in” BMJ 411, p. 56).

Nos termos do art.º 24.º do Dec- Lei n.º 15/93, a pena prevista no art.º 21.º é aumentada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, pela verificação de alguma das circunstâncias ali descritas.

Não constitui um tipo autónomo, é circunscrito por circunstâncias especiais (agravantes) modificativas da pena, mas a sua aplicação não resulta obrigatoriamente da sua verificação, ou seja, a sua aplicação não deve ter-se por automática – v. Ac. STJ de 09/01/1997, Proc. n.º 210/96, 3.ª Secção

Como já dava conta, o acórdão de 11/03/1998, deste Supremo, (v. Col. Jur. - Acs. do STJ, 1998, T. I, p. 228) as circunstâncias previstas no art.º 24.º referido apenas operam se em concreto revelarem uma agravação acentuada – considerável – da ilicitude ou da culpa do agente, em comparação com a subjacente para o crime principal do art.º 21.º, o que implica a ponderação em termos globais do facto e do seu agente.

No mesmo eito se surpreende o doutrinado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Outubro de 2008, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa. O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico é o do art. 21.º, n.º 1 do DL 15/93 – tipo esse que corresponde aos casos de tráfico normal e que, pela amplitude da respectiva moldura penal – 4 a 12 anos de prisão – abrange os casos mais variados de tráfico de estupefacientes, considerados dentro de uma gravidade mínima, mas já suficientemente acentuada para caber no âmbito do padrão de ilicitude requerido pelo tipo, cujo limite inferior da pena aplicável é indiciador dessa gravidade, e de uma gravidade máxima, correspondente a um grau de ilicitude muito elevada – tão elevada que justifique a pena de 12 anos de prisão.

Os casos excepcionalmente graves estão previstos no art. 24.º, pela indicação taxativa das várias circunstâncias agravantes que se estendem pelas diversas alíneas do art. 24.º, enquanto que os casos de considerável diminuição da ilicitude estão previstos no art. 25.º, aqui por enumeração exemplificativa de algumas circunstâncias que, fazendo baixar a ilicitude para um limiar inferior ao requerido pelo tipo-base, não justificam (desde logo por não respeitar o princípio da proporcionalidade derivado do art. 18.º da Constituição) a grave penalidade prevista na moldura penal estabelecida para o tráfico normal.

Por conseguinte, a grande generalidade do tráfico de estupefacientes caberá dentro das amplas fronteiras do tipo matricial; os casos de gravidade consideravelmente diminuída (pequeno tráfico) serão subsumidos no tipo privilegiado do art. 25.º e os casos de excepcional gravidade serão agravados de acordo com as circunstâncias agravantes do art. 24.º. Este último normativo rege para situações que desbordam francamente, pela sua gravidade, do vasto campo dos casos que se acolhem à previsão do art. 21.º e que ofendem já de forma grave ou muito grave os bens jurídicos protegidos com a incriminação – bens jurídicos variados, de carácter pessoal, mas todos eles recondutíveis ao bem jurídico mais geral da saúde pública. São, em suma, situações que, pelo que toca às quantidades e aos lucros obtidos, devem atingir significativas ordens de grandeza, que não se compadecem, de um modo geral, com a venda de substâncias estupefacientes ao consumidor final por um traficante que vai satisfazendo as necessidades de um pequeno círculo de pessoas, ainda que se venha dedicando, por tempo significativo, a essa actividade e tenha a sua subsistência assegurada exclusivamente através dela.

Como se anota no acórdão de 4/5/2005, Proc. n.º 1263-05, da 3.ª Secção (Henriques Gaspar - relator, Antunes Grancho, Silva Flor e Soreto de Barros), publicado nos Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 91, p. 122, (…) A agravação supõe, pois, uma exasperação do grau de ilicitude já definido e delimitado na muito ampla dimensão dos tipos base - os artigos 21º, 22º e 23º do referido Decreto-Lei, e consequentemente, uma dimensão que, moldada pelos elementos específicos da descrição das circunstâncias, revele um quid específico que introduza uma medida especialmente forte do grau de ilicitude que ultrapasse consideravelmente o círculo base das descrições-tipo. A forma agravada há-de ter, assim, uma dimensão que, segundo considerações objectivas, extravase o modelo, o espaço e o grau de ilicitude própria dos tipos base.

(…) O crime base do artigo 21º está projectado para assumir a função típica de acolhimento dos casos de tráfico de média e grande dimensão, tanto pela larga descrição das variadas acções típicas, como pela amplitude dos limites da moldura penal, que indiciam a susceptibilidade de aplicação a todas as situações, graves e mesmo muito graves, de crimes de tráfico. As circunstâncias – e especificamente, no caso, a da alínea c) do artigo 24º – não podem deixar de ser integradas, especialmente nos espaços de indeterminação, por considerações de gravidade exponencial de condutas que traduzam marcadamente um plus de ilicitude.” [Ambos os arestos citados se encontram disponíveis em www.dgsi.pt. Sobre a qualificação do crime descrito no artigo 24º salienta-se ainda o escrito no acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 2013, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa, em que se escreveu (sic): “Frequentemente designado como um tipo privilegiado de tráfico, não o será em termos próprios, se atendermos ao que FIGUEIREDDO DIAS assinala a propósito da teoria das circunstâncias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, p. 199), afirmando que «estas situações circunstâncias modificativas agravantes ou atenuantes distinguem-se das consideradas de qualificação ou privilegiamento, porque, enquanto nestas a modificação da moldura penal se opera por efeito de alterações ao nível do tipo ou dos elementos típicos – seja, como é geralmente, do tipo-de-ilícito, seja, menos frequentemente, do tipo-de-culpa -, na situação de que agora tratamos ela verifica-se por força de circunstâncias modificativas. Circunstâncias são, nesta acepção, pressupostos ou conjuntos de pressupostos que, não dizendo directamente respeito nem ao tipo-de-ilícito (objectivo ou subjectivo), nem ao tipo-de-culpa, nem mesmo à punibilidade em sentido próprio, todavia contendem com a maior ou menor gravidade do crime como um todo e relevam por isso directamente para a doutrina da determinação da pena».

Por conseguinte, de acordo com tal doutrina, do que estamos em face, quer no caso do art. 24.º, quer no caso do art. 25.º, é de circunstâncias modificativas, agravantes (art. 24.º) e atenuantes (art. 25.º).]

A norma epigrafada como “tráfico de menor gravidade”, faz depender, ou impõe, como critérios de aferição/ponderação referente para que a ilicitude do facto se possa reputar e crismar de “consideravelmente diminuída” (i) a natureza dos meios utilizados; (ii) a modalidade ou as circunstâncias da acção; (iii) e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações. 

A ilicitude, ou antijuridicidade (material), traduz-se, na lição de Claus Roxin, “em que nela se plasma uma lesão de bens jurídicos socialmente nocivas e que não se pode combater suficientemente com meios extrapenais”[Não vem ao caso a definição de “antijuridicidade formal” – Veja-se para uma definição de antijuridicidade Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito, Civitas, 1997, § 14 (págs. 555 a 604)] (O autor distingue também entre injusto material e formal. “O conteúdo material do injusto tem importância tanto para o tipo (como tipo ou classe de injusto) como para a antijuridicidade (a concreta afirmação ou negação do injusto). No aspecto valorativo do tipo o injusto material representa uma lesão de bens jurídicos que regra geral é necessário combater com meios do Direito penal; e a esse respeito deve determinar-se o conceito de bem jurídico (…). E desde o ponto de vista da antijuridicidade, o injusto material da lesão de bens jurídicos pode excluir-se pelo facto de que em caso de colisão de dois bens jurídicos se prefere o interesse pelo bem jurídico mais valioso ao menos valioso, com o que o resultado é que pese ao sacrifício de um bem jurídico se produz algo socialmente proveitoso ou ao menos não se produz um dano penal jurídico-penalmente relevante.” [ Ibidem, pág. 558.] 

Na densificação jurídico-material de um tipo de ilícito intervêm factores de intencionalidade e acção realizadora que pela sua especificidade psico-racional e determinação objectiva de vontade se perfilam, na ordem de conformação de um quadro típico, como susceptíveis de, pela sua relevância e incidência na qualificação da acção típica, modificar, não a estrutura axial do ilícito fundamental, ou seja o concreto e radical bem jurídico que o legislador pretendeu tutelar e proteger, mas a dosimetria consignada na consequência penal inscrita na norma incriminante.

Assim, na previsão paradigmática do tipo contido no artigo 133º do Código Penal, a privação da vida de uma pessoa – bem jurídico inscrito no tipo base de homicídio (artigo 131º) – pode ser penada com uma sanção menor – pena de um a cinco anos – do que a que se encontra estabelecida no artigo matricial, desde que se comprove que a actuação ilícita e proibida pela norma incriminadora teve como fundamento actuante uma “compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a pena.” 

No tipo privilegiado recortado no artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/1993, de 22 de Janeiro, a diminuição da pena, relativamente ao tipo base (artigo 21º), consegue-se com a comprovação de que o sujeito inserido na previsão do artigo 21º - ter concorrido com a sua acção para a conjugação de um dos verbos (activos) assumidos como promotores e fautores da previsão ilícita e típica contida na norma – tenha agido (i) com uma ilicitude consideravelmente diminuída, decorrente (a) dos meios utilizados; (b) da modalidade ou circunstâncias da acção; (c) da qualidade ou da quantidade das plantas, das substâncias ou preparações.

A norma faz derivar o privilegiamento, ou esmorecimento da carga punitiva que a proibição normativa contém, de um esvaimento da densidade ilícita da acção conduzida pelo agente.

O grau de intensidade de ilicitude não pode deixar de se qualificar e quantificar como elevado, merecedor de uma censurabilidade e índice de reprovação ético-jurídica severa. Não se rasa ao plano de “consideravelmente diminuída” a ilicitude de alguém que, encontrando-se recluído num estabelecimento prisional, se dispõe transpor para o interior desse estabelecimento produto estupefaciente para, supostamente, o entregar a um outro recluído, não desconhecendo, com toda a segurança, as regras de proibição e sancionamento que regem para este tipo de situações, pelas características e natureza especifica que regulam as relações em instituições com o fim de uma prisão.

O esvaecimento ou lassidão da categoria exigida para consciência de proibição contida no crime de tráfico de estupefacientes, tal como a lei o recorta e conforma no diploma adrede, a saber a ilicitude, deve assumir, em face dos valores ético-jurídicos que se pretendem preservar e da danosidade social que se destina a acautelar, contornos muito estreitos e morigerados sob pena de se estar a aviltar um bem jurídico que, histórico-socialmente se reveste de crucial importância para a salvaguarda da sanidade físico-psíquica do tecido societário.              

Na doutrina do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Março de 2015, “O crime de tráfico de menor gravidade comporta previsão na generalidade dos sistemas jurídico-penais, justificado, por um lado, por uma razão de justiça material e de proporcionalidade, não sendo legítimo que a sua punição se assemelhe à do tráfico simples, de maior gravidade, além de que é instrumento de preferência dos grandes traficantes na difusão dos estupefacientes, cumprindo dissuadir dessa prática, que agrega elevado número de agentes, dotados de grande mobilidade, eficácia e à margem de elevado e incontornável grau risco.

De um ponto de vista empírico o tráfico de menor gravidade é, como o nome sugere, um tráfico de reduzida, pequena, diminuta danosidade social, com escassa ressonância ético-jurídica, produtor de uma impressão juridicamente abaladora, limitadamente apenas à fímbria da norma de estatuição e de punição. 

(…) A ilicitude, genericamente, é a relação de antagonismo a estabelecer entre uma conduta humana e voluntária e o ordenamento jurídico; no aspecto formal ela assume a forma de acto contrário a uma proibição estabelecida pela ordem jurídica; de um ponto de vista material representa o ataque a bens individualmente relevantes ou colectivamente significantes.   

A antijuridicidade é anterior à lesão ou perigo de lesão sociológica, no dizer de VON LIZT; diverge da culpa porque esta reveste a natureza de um juízo de reprovação individual, de desvalor subjectivo, sendo ambas passíveis de graduação, consoante a maior intensidade da lesão de bens jurídicos ou de perigo de ofensa.

A ilicitude exigida no tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade é, ou tem de ser, não apenas diminuta, mas mais do que isso, consideravelmente diminuta, pelo desvalor da acção e do resultado, funcionando, exemplificativamente, “os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a quantidade ou a qualidade das plantas, substâncias ou preparações“, como factos-índice a atender numa valoração global, não isolada, de que a configuração da acção típica não prescinde, em que a quantidade não é nem o único e nem, eventualmente, o mais relevante.” [Disponível em www.dgsi.pt.]

O tribunal recorrido justificou a incriminação operada, com a sequente argumentação (sic): “De harmonia com o artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (todas as referências a preceitos legais, sem especificação do respectivo diploma, deverão ser consideradas reportadas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos na tabela I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos de prisão”.

No entanto, dispõe o artigo 25.º, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22/01, epigrafado de “Tráfico de menor gravidade”, o seguinte:

“Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”.

A contemplação de uma hipótese atenuada de tráfico implica uma “valorização global do facto” ou do “episódio”, devendo o juiz valorar complexivamente todas as concretas circunstâncias do caso, com vista à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se, objectivamente, a ilicitude da acção é de relevo menor que a tipificada para os artigos anteriores (arts. 21. ° e 22.°).

A quantidade de estupefacientes, sendo importante para efeito de enquadramento no tráfico de menor gravidade, não é, em muitos casos, o aspecto decisivo da valoração.

À natureza da punição não é também indiferente a perigosidade da droga traficada, consoante decorre implicitamente da gradação constante das tabelas I a III ou da tabela IV anexas ao cit. Decreto-Lei n° 15/93, de 22-01, estando a heroína incluída na tabela I-A, a cocaína na Tabela I-B, pelo que, na eventualidade de não se provar a prática do crime de associação criminosa, e a provar-se a prática do crime de estupefaciente, cada um dos arguidos apenas poderá ser punido por referência à tabela a que corresponder o produto estupefaciente por si detido, cedido ou vendido (importando tal esclarecimento em face da qualificação jurídica feita pelo Ministério Público aquando da dedução da acusação, nos termos do qual o tráfico de todos os arguidos tinha por objecto produtos estupefacientes incluídos nas tabelas I-A e I-B).

A intenção lucrativa, a sua intensidade e desenvolvimentos, assumem também papel decisivo na definição do traficante, grande, médio, pequeno ou consumidor.

Relevante é ainda o conhecimento da personalidade do arguido, designadamente se não era consumidor de droga, se era consumidor ocasional ou mesmo um toxicodependente.

Em síntese, a diminuição considerável da ilicitude, que este tipo pressupõe, afere-se nomeadamente em função de diversos factores, alguns deles exemplificativamente indicados no cit. art.25º: o período de tempo da actividade, os meios humanos envolvidos e sua organização (número de pessoas envolvidas seja no fornecimento, seja na venda, seja ainda na protecção do negócio como a intervenção de pessoas destinadas a facilitar a fuga, a dificultar a actuação das autoridades, etc.), a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade/pureza e a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, o número de pessoas identificadas como adquirentes, a repetição e volume das vendas e/ou cedências, os montantes pecuniários envolvidos no negócio, etc.

Neste ponto ter-se-á também em consideração que na hipótese da alínea a) do artigo 25.º o mínimo da moldura penal abstracta é já de 1 ano e o máximo atinge 5 anos de prisão.

Dada a expressividade desta moldura, o tráfico aqui considerado não é só o de menor importância, mas aquele que sendo já significativo, fica aquém da gravidade do ilícito justificativa da tipificação do artigo 21.º e ainda encontra sancionamento adequado dentro das molduras penais previstas no artigo 25.º.

Ante a matéria provada, urge agora subsumi-la ao direito.

Aos arguidos vem imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas a) e h), ambos do Decreto-Lei 15/93, de 22.01, com referência às Tabelas 1-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal.

O tráfico de estupefacientes, independentemente da sua modalidade, é um crime de trato sucessivo, pelo que não interessa exclusivamente a quantidade de estupefaciente apreendida em certo momento, antes deve a ilicitude ser medida em função do total do que em determinado período de tempo que o arguido se relacionou com as situações descritas no art.21º.

Volvendo ao caso em concreto, dúvidas não temos que os arguidos AA, BB e CC incorreram efectivamente no tipo legal de crime que lhes é imputado.

Na realidade, a quantidade de estupefaciente transaccionado, a sua natureza – heroína e cocaína, a exclusiva intenção lucrativa (nem sequer se lhes conhece hábitos de consumo), a sua intensidade e desenvolvimentos, e o período de tempo em que levaram a cabo a actividade, apenas sendo interrompidos por força da intervenção da ordem jurídica, os meios humanos envolvidos – ainda que circunscritos à própria família, e sua organização, e os modos de entorpecimento da actuação das autoridades, e o número de pessoas identificadas como adquirentes, a repetição e volume das vendas e/ou cedências, os montantes pecuniários envolvidos no negócio, permitem-nos concluir que estes arguidos – AA, BB e CC, cometeram de facto o crime que lhes é imputado.”

Mais adiante – página 38 do acórdão recorrido –, no apartado em que intenta a escolha e determinação judicial da pena (concreta) que deveria ser imposta ao arguido, o tribunal arranca para a análise da situação dos arguidos, AA, BB e CC, da sequente determinação legal punitiva (sic): “a) O arguido AA, BB e CC incorrem na pena de 4 (quatro) a 12 (doze) anos pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência às Tabelas I-A e I-B anexas ao mesmo diploma legal. (…)”.

Diversamente do que é sugerido no acórdão – maxime quando se diz que (sic) “Aos arguidos vem imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas a) e h), ambos do Decreto-Lei 15/93, de 22.01, com referência às Tabelas 1-A e I-B, anexas ao mesmo diploma legal” – o arguido, bem como os demais imputados no processo, foram pronunciados. no tribunal de Instrução Criminal da Comarca de …, nos seguintes termos (sic) “Nos termos o art.308º/1, do Código de Processo Penal, decido pronunciar os arguidos, AA, BB, CC, TT e VV, pelo crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas I-A e I-B, anexas ao mesmo diploma, pelos factos constantes de fls. 908 a 922, para os quais se remete.” 

As transcrições (textuais) que ficam expostas evidenciam uma incorrecção descritiva da imputação jurídico-penal feita na fundamentação do acórdão, bem como no dispositivo (condenatório). A imputação ajustada a efectuar, e que deverá reborar/validar a condenação, deverá ser a de que o arguido, AA, foi pronunciado e deverá – porque não ocorreu qualquer alteração substancial dos factos que pudesse conduzir a uma modificação/alteração da qualificação jurídico-penal fixada na decisão instrutória – ser julgado e condenado é um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

Assente a qualificação jurídico-penal por que o arguido deverá ser julgado e condenado, adentremo-nos no primeiro enunciado proposto para apreciação, a qualificação jurídica e concreta operada pelo tribunal recorrido e que o recorrente estima dever ser transmutado do crime-base para o crime privilegiado descrito no artigo 25º do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro (crime de tráfico de estupefacientes de menores quantidades).

Para a conversão/transmutação da qualificação jurídico-penal, o recorrente alega que i) as quantidades vendidas pelo recorrente o foram durante cerca de um ano para obtenção de lucro; ii) que “tal atividade foi sempre desenvolvida numa zona geográfica específica, na vila de …”; iii) o “ modus operandi foi sempre o mesmo, altamente desorganizado e de rua”; iv) “as vendas e contatos, com os consumidores, foram sempre por contato direto do arguido e sem intermediários, de qualquer espécie”; que v) “numa primeira fase, junto aos cafés e na habitação onde o arguido reside”; e que vi) “as quantidades que o arguido transmitia, individualmente, a cada um dos consumidores, eram diminutas e os lucros ínfimos”; sendo que vi) “em nenhum caso, as quantidades transacionadas, chegaram, sequer, a ultrapassar o consumo individual de cada cliente”; pelo que vii) “as quantidades, apreendidas nos autos, são compatíveis com uma pequena venda, um negócio cujos proventos obtidos, eram praticamente nulos”; viii) tendo resultado “provado, que durante o período em causa nos autos, e definido na douta sentença, o arguido vendeu a meia dúzia de “clientes”, mas em transações sem grande significado e sobretudo em situações meramente ocasionais”; e ainda que “a droga transacionada era sobretudo haxixe”; e “os meios de transporte empregues pelo arguido, na dita atividade criminosa, foram os mesmos que o agente usa na vida diária, para fins lícitos”.

O quadro factual narrado na fundamentação de facto – cfr. enunciados 2 a 17 – evidencia que i) a actividade de venda de produtos estupefacientes se desenvolveu entre Outubro de 2013 e 29 de Junho de 2015, o que vale por dizer durante cerca de 1 (um) ano e 9 (nove) meses; ii) o tipo de produto vendido foi cocaína e heroína, e não haxixe, como o recorrente assevera, ao arrepio da matéria de facto provada; iii) que as vendas registadas e descritas na decisão de facto foram efectuadas de forma ininterrupta e reiterada – cfr. enunciados de facto constantes dos itens 6 a 15; iv) que o produto estupefaciente era vendido na residência do arguido e nas estradas circunvizinhas da localidade onde s encontravam sediados (…); v) que eram utilizados meios de transporte e telemóveis – foram encontrados dezassete (17) – para efectuar as vendas e, certamente, o contacto com os “clientes”.

A condensação factual performativa operada evidencia que o(s) arguido(s) – em graus e níveis de acção variados e diversificados – tinham organizado um “negócio de venda a retalho” de cocaína e heroína num concelho do interior e com ele “abasteceriam” os indivíduos que a eles recorriam para satisfação da adicção. A organização de que dispunha estava adequada e ajustada ao modo de “tráfico a retalho” – com meios de transporte e telemóveis (vários) – e destinada a satisfazer a “procura”. A actividade delitiva e ilícita constituía, se não o único, um dos meios de subsistência dos involucrados no “negócio” e teve um período de duração suficientemente alargado e constante para que a actividade não possa ser qualificada de tráfico de menores quantidades mas de tráfico reiterado e constante.

Como se disse supra a antijuridicidade (material) que a norma incriminadora do artigo 25º do Decreto-lei 15/93, inculca é de que o agente, tendo, embora, a consciência da proibição da acção ilícita e típica, age na convicção de que a diminuta quantidade do produto que transacciona não opera, por isso mesmo, uma disseminação de tal monta que inflija fortes danos sociais e pessoais. Dir-se-ia que o agente, actuante neste nível de tráfico, age num círculo e com um espectro de abrangência “colindado” pelo número de indivíduos a quem destina os estupefacientes e com um interesse limitado de angariação de proventos. A actividade qualificada de “menor quantidade” não pode ser aferida pelas pequenas quantidades vendidas de cada vez – como seria o caso dos arguidos – mas sim pelo reduzido e confinado círculo de pessoas a quem o tráfico é destinado e aos reduzidos proventos que dele advêm para o agente. O agente que se dedica ao pequeno ou diminuto tráfico de produtos estupefacientes não pretende a obtenção de lucros avultados, daí que a sua actividade deva ser interpolada (temporalmente) e subsidiária de outra actividade, não se assume como indiscriminada, porque, de ordinário, possui um círculo reduzido e constante de indivíduos a quem fornece as substâncias estupefacientes e não dispõe de meios sofisticados ou outros para a venda que realiza. 

No caso, o arguido – juntamente com os comparsas – procediam a uma venda indiscriminada, faziam-no em diversos locais – normalmente em estradas circundantes da localidade onde estavam sediados –, utilizavam mais do que um automóvel e, pela quantidade de telemóveis que lhe foram apreendidos procuravam iludir, as autoridades de polícia, da actividade a que de forma constante e impressiva se dedicavam.

A qualificação jurídico-penal operada e colimada ao artigo 21, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro – suprimindo a referência ao artigo 24º, alíneas a) e h) do mesmo diploma legal, que havia sido transposta de forma abusiva, porque exorbitante e extrapolativa da pronúncia, balizadora e vinculativa da acção judicativa a que o tribunal devia (deve) respeito – e transposta de modo impenitente para o dispositivo da decisão recorrida – mostra-se, face à descrição factual expressa na decisão de facto, absolutamente correcta e juridicamente ajustada.

Assim, e em resumidas contas, ao arguido deve ser tributado um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto-lei nº 15/93, de Janeiro, como resulta, indelevelmente, da factualidade provada.


§II.B.ii). – DETERMINAÇÃO JUDICIAL DA PENA.

 Ensaiando um bosquejo (sumário) do conceito e fins das penas, poder-se-ia dizer que com a pena, o Estado através do sistema penal instituído dispõe-se a rechaçar e reagir ao desrespeito que alguém assume perante um comando legal que contenha uma proibição de fazer, agir ou omitir pretendendo com essa reacção confirmar a inteireza da norma e a sua validade social. Dir-se-á que com a pena o sistema pretende negar a negação consumada pelo agente de um preceito social válido. (“A praxis de responsabilizar segundo a medida do merecido pode definir-se e legitimar-se num sistema de imputação ética e jurídica que opere debaixo da ideia de liberdade como expressão de respeito ante o autor que se haja servido da sua capacidade para configurar o mundo arbitrariamente de um modo concreto (isto é, de forna contrária ao dever) e não de outro (isto é, conforme ao dever.” – (Michael Pawlik, “Confirmación de la Norma y Equilibrio en la Identidad. Sobre la Legitimación de la Pena Estatal, Editorial Atelier, Barcelona, 2019, p. 57)

A pena, na asserção de Claus Roxin, “só resulta legítima quando é preventivamente necessária e, ao mesmo tempo, é justa no sentido de que evita ao autor qualquer carga que vá além da culpabilidade do facto”, (Claus Roxin, “La Teooria del Delito en la Discussión actual”, Editorial Grijley, 2007, p.71.) actuando a culpabilidade como pressuposto fundamentador da pena “posto que nunca pode impor-se uma pena se ela não estiver presente, assim como tão pouco a pena pode ir além da sua medida. No entanto a tarefa da pena é igualmente preventiva, pois ela não deve retribuir mas sim impedir a comissão de delitos (crimes). Em câmbio, a culpabilidade só tem a função de limitar, ema aras da liberdade dos indivíduos, magnitude dentro da qual devem perseguir-se objectivos preventivos. Disto resulta, por política criminal, aquele princípio da dupla limitação que caracteriza a minha sistematização da categoria da responsabilidade: a pena não deve ser imposta nunca sem uma legitimação preventiva, mas tão pouco pode haver pena sem culpabilidade ou mais além da medida desta. A pena de culpabilidade é limitada através do preventivamente indispensável; a prevenção é limitada através do princípio da culpabilidade.” (Claus Roxin, op. loc. cit. ps. 52-53. No mesmo eito pode colher-se lição em Enrique Bacigalupo, in “Justicia Penal y Derechos Fundamentales”, Marcial Pons, 2002, p. 117, quando assevera que “A gravidade da culpabilidade determina o limite máximo da pena, mas não obriga – como na concepção de Kant – à aplicação da pena adequada á culpabilidade. Por debaixo desse limite é possível observar exigências preventivas que, inclusive, podem determinar uma redução da pena adequada á culpabilidade. Dito de outra maneira: a retribuição da culpabilidade, que provém das teorias absolutas, só determina o limite máximo da pena aplicável ao autor, sem excluir a possibilidade de dar cabida às necessidades preventivas, proveniente das teorias relativas, até ao limite fixado pela culpabilidade.”)          

Na perspectiva funcionalista de Günther Jakobs, “a transgressão da norma constitui em maior ou menor medida uma perturbação da confiança da generalidade na validade da norma. Por isso a segurança existencial necessária no tráfico social deve restabelecer-se mediante a estabilização da norma à custa do autor. A culpabilidade esvazia-se aqui de conteúdo, o qual dependerá de factores externos”. (Eduardo Demétrio Crespo, “Prevención General e Individualización Judicial de la Pena”, Ediciones Universidad Salamanca, 1999, p. 121) “A um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido.” (Para uma abordagem mais aprofundada sobre a acepção «social de culpabilidade» veja-se Bernd Schünemann, págs. 98 a 114, “La Culpabilidad: Estado de la Questión”; in “Sobre el Estado de la Teoria del Delito” (Seminário en la Universitat Pompeu Fabra), Claus Roxin, Günther Jakobs, Bernd Schünemann; Wolfang Frish e Michael Köhler; Cuardernos Civitas, 2016.) 

A pena foi assumida no Estado liberal com uma dupla função, de prevenção de delitos e retribuição por um mal cometido. Num Estado com uma preocupação social e de raiz democrático, o direito penal “deve assegurar a protecção efectiva de todos os membros da sociedade, pelo que há-de tender para a prevenção de delitos (Estado social), entendidos como aqueles comportamentos que os cidadãos entendem danosos para os seus bens jurídicos – “bens” não num sentido naturalista nem ético-individual, mas sim como possibilidades de participação nos sistemas sociais fundamentais –, e na medida em que os mesmos cidadãos considerem graves tais factos (Estado Democrático). Um tal direito penal deve, pois, orientar a função preventiva da pena com arrimo (“arreglo”) aos princípios de exclusiva protecção de bens jurídicos, de proporcionalidade e de culpabilidade.” Para este autor “são dois, pois, os aspectos que deve adoptar a prevenção geral no Direito penal de um Estado social e democrático de Direito: junto ao aspecto intimidatório (também chamada a prevenção geral negativa), deve concorrer o aspecto de uma prevenção geral estabilizadora ou integradora (também denominada prevenção geral ou positiva).” (Santiago Mir Puig, “Estado, Pena e Delito. Função da Pena no Estado Social e Democrático de Direito”, Editorial Bdef, Montevideu e Buenos Aires, pág. 105.)    

Dessumido desta função preventiva faz o autor derivar uma concepção de pena em que “a pena há-de cumprir (e só está legitimada para cumprir) uma missão política de regulação activa da vida social que assegure o seu funcionamento satisfatório, mediante a protecção dos bens jurídicos dos cidadãos. Isso supõe a necessidade de conferir à pena a função de prevenção dos factos que atentem contra esses bens, e não basear o seu encargo, ou incumbência, numa hipotética necessidade ético-jurídica de não deixar sem resposta , sem retribuição, a infracção da ordem jurídica.” (Santiago Mir Puig, ibidem, pág. 114.)

Partindo da ideia de que a eficácia preventiva da pena pode estar referida aos potenciais delinquentes (prevenção geral) ou aqueles que já hajam delinquido (prevenção especial), e de que a pena pode produzir um efeito preventivo de formas diversas, consideramos que a legitimidade do recurso à mesma há-de vincular-se à sua eficácia preventiva e ao respeito do princípio de proporcionalidade, que (sem prejuízo da eficácia preventiva derivada da sua vigência e da sua importância para estabelecer as penas dos distintos delitos) teria uma função de limite garantístico: a pena é legítima quando, sem rebaixar os limites que derivam do princípio de proporcionalidade, resulta eficaz desde o ponto de vista preventivo; mais concretamente, quando proporciona a máxima eficácia preventiva, atendendo tanto à sua eficácia preventiva geral, como à sua eficácia preventiva especial, e aos distintos sentidos (“cauces”) através dos quais o recurso à pena pode produzir um efeito preventivo (função preventiva limitada pelo princípio da proporcionalidade).

Como o resto das teorias preventivas, a proposta pressupõe aa eficácia preventiva da pena. A sua singularidade radica em que faz depender todas as decisões relacionadas com ela (classe e duração da pena que se ameaça com impor, classe e duração da pena imposta e, no concreto caso, forma de execução da pena) do saldo preventivo global das distintas alternativas e do respeito pelo princípio da proporcionalidade. Para que primeiro o legislador, e a seguir o Juiz (e, no caso concreto, a administração penitenciária), adoptem aquelas decisões tendo em conta a sua eficácia preventiva, deverão conhecer a eficácia preventiva das distintas alternativas. A complexidade da conduta humana, e as limitações do próprio ser humano para conhecer os elementos que influem nela, dificultam a aplicação prática daquela proposta, como também dificultam a de qualquer teoria preventiva. No entanto, tais dificuldades não obrigam a abandoná-las. Obrigam a ser prudentes, tentar obter o máximo conhecimento possível sobre a eficácia preventiva da melhoria pena, reconhecer os limites do conhecimento disponível e promover a melhoria do mesmo. E, no caso concreto, também obrigam a reconhecer os limites da capacidade da pena para produzir um efeito preventivo, e a valorar as consequências de intentar incrementá-lo.” (Cfr. Sergi Cardenal Montraveta, “Eficacia Preventiva General Intimidatória de la Pena”, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia”, (RECPC 17-18 (2015), pág. 3.)

Hassemer afirma que «la función de la pena – afirma – es la prevención general positiva”, que “no opera mediante la intimidación sino que persigue la proteción efectiva de la fiscalización social de la norma. Ello supone dos cosas: por una parte, que la pena ha de estar limitada por la proporcionalidad, – por la retribuición por en hecho; por outra parte, que la misma ha de suponer un intento de resocialización del delincuente, entendida como ayuda que ha de prestársele en la medida de lo posible.”

O ordenamento jurídico-penal português, e com as alterações introduzidas pela revisão do Código Penal em 1995, consagrou uma concepção preventivo-ética da pena, quando se estatuí que “as finalidades da pena (e da medida de segurança) são exclusivamente preventivas, desempenhando a culpa somente o papel de pressuposto (“conditio sine qua non”) e de limite da pena”.  (Cfr. Américo Taipa de Carvalho, “Prevenção, Culpa e Pena – Um concepção preventivo-ética do direito penal”, in Liber Discipulorum, Coimbra Editora, pag.317 e segs.)

Para este Professor [Taipa de Carvalho], as penas devem visar, em primeira linha privilegiar a prevenção especial (positiva e negativa), devendo a prevenção geral constituir-se como limite mínimo da justificação e fundamento para a imposição de uma pena ou medida de segurança e a culpa como limite máximo atendendo ao critério da prevenção especial, “o objectivo da pena, enquanto meio de protecção dos bens jurídicos, é a prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou de dissuasão). Este é o critério orientador, quer do legislador quer do tribunal”. (Américo Taipa de Carvalho, op. loc. cit.,pag. 327)

A ordem jurídico-penal viger, estabelece no art. 71 nº 1 do C.P. que "a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Resulta de uma chã leitura deste preceito que a culpa (indiciador de um radical pessoal) e a prevenção (que insinua a vertente societária e comunitária para a reprovação do comportamento do agente e a correlata necessidade no asseguramento da confiança (da sociedade) na norma, traduzido na punibilidade de condutas contrárias ao sentido conformador-normativo) constituem os princípios regulativos em que o juiz se deve ancorar no momento em que se lhe exige que fixe um quantum concreto da pena. Mediante o estabelecimento e indicação de critérios, o legislador fornece ao juiz orientações para a formação cognitiva de juízos avaliativos e condensadores dos pressupostos e da fixação de premissas que possibilitam a conformação e determinação das escolhas a realizar perante um concreto responsável em face da realidade factual ressumada pela facticidade adquirida pelo julgamento. Assim na individualização da pena o juiz, assumindo as intencionalidades e as vinculações do sistema jurídico-penal, desempenha uma insubstituível tarefa mediadora, construtiva e constitutiva da reacções penais ajustadas ao caso e convincentes da sua justeza perante a sociedade que se destinam a influenciar.

Na determinação concreta da pena caberão todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente;

– A intensidade do dolo ou negligência;

– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

– As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

– A conduta anterior ao facto e posterior a este;

– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. (Paragonado com o estabelecido no artigo 71º do nosso ordenamento jurídico-penal, pontua-se no apartado II do § 46 do StGB, que o tribunal deverá na “medición” da pena ponderar as circunstâncias favoráveis e contrárias ao autor. “com este fim se contemplarão particularmente: - os fundamentos da motivação e os fins do autor; - a intencionalidade que se deduz do facto e a vontade com a qual se realizou o facto; - a medida do incumprimento do dever; - o modo de execução e os efeitos inculpatórios do facto; - os antecedentes do autor, a sua situação pessoal e económica, assim como a sua conduta depois do facto, especialmente os seus esforços para reparar os danos, e os seus esforços para acordar uma compensação com o prejudicado.”)

Ponderando nos critérios a observar na individualização judicial da pena refere a propósito (Winfried Hassemer (Winfried Hassemer, “Fundamentos del Derecho Penal”, Editorial Bosch, Barcelona, 1984, pág. 127) que “na decisão de determinar a pena são relevantes, entre outros, os seguintes elementos da realidade: a culpabilidade do sujeito; os efeitos da pena que são esperáveis que se produzam na sua vida futura em sociedade; seus motivos e fins, a consciência que o facto revela da vida anterior; as suas relações sociais e económicas e o seu comportamento posterior ao delito”.

Num seminário sobre os fins das penas, (Claus Roxin, “Fundamentos Politico-criminales del Derecho Penal” (“La determinación de la pena a la luz y de la teoria de los fines de la pena), Hammarabi, Buenos Aires, págs. 143 a 166) Claus Roxin advoga, acompanhando Hans Scultz, que na determinação da pena se trata de retribuir a culpabilidade devendo na operação de determinação aplicar a «teoria da margem de liberdade», que a jurisprudência alemã formulou da forma seguinte: “Não se pode determinar com precisão que pena corresponde à culpabilidade. Existe aqui uma margem de liberdade (Spielraum) limitada no seu grau máximo pela pena adequada (à culpabilidade). O juiz não pode ultrapassar o limite máximo. Não pode, portanto, impor uma pena que na sua magnitude ou natureza seja tão grave que já não se sinta por ela como adequada à culpabilidade, No entanto, o juiz…poderá decidir até donde pode chegar dentro dessa margem de liberdade.” [À teoria da margem da liberdade opõe-se a teoria da «pena exacta», segundo a qual «a la culpabilidad» só pode corresponder una pena exactamente determinada (punktuell).  – Clus Roxin, op. loc. cit. P. 146.]

[(“O princípio – fundamentado segundo opinião generalizada na Constituição – nulla poena sine culpa (princípio da culpabilidade) não significa nesta situação senão que «o suposto de facto e a consequência jurídica devem estar em proporção adequada», quer dizer, a imputação ao autor deve ser necessária, por estar descartada a possibilidade de resolver o conflito sem castigar o autor. Também a medida da culpabilidade se vê limitada pelo necessário. Sobretudo, o conteúdo da culpabilidade não é algo prévio ao Direito, sem consideração às situações sociais.” – Günther Jakobs, op. loc. cit. pág. 588-589.)]

Para Bacigalupo a culpabilidade só logra a sua função de parâmetro delimitador da pena, se for referido à «culpabilidade do facto». “Isto requer excluir das considerações referentes à culpabilidade as que se referem a uma ponderação geral de personalidade como objecto do juízo de reprovação (“juicio de reproche”). Concretamente o juízo de culpabilidade relevante para a individualização da pena, deve excluir como objecto do mesmo referências à conduta anterior ao facto (sobretudo a penas sofridas), a perigosidade, ao carácter do autor, assim como á conduta posterior ao facto (que só pode compensar a culpabilidade do momento da execução do delito.”    

Noutra perspectiva, o conteúdo de culpabilidade, impõe a “a um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido.” (Cfr. Gunther Jakobs, in loc.cit. supra, pag. 13.)

Na análise a que procede sobre o Estado, a Pena e o Delito, e escrutinando as distintas doutrinas que se têm vindo a impor no espectro da aplicação das penas Santiago Mir Puig opina que: «El princípio de culpabilidade en sentido amplio, aqui manejado, no debe confundirse com la exigência de cierta proporción entre la pena y la gravedad del delito.

Entendida como possibilidad de relacionar un hecho com un sujeto y no como posibilidad de convertir en demérito subjectivo el hecho realizado, la culpabilidad no indica la cuantía de la gravedad del mal que debe servir de base para la graduación de la pena. Dicha cuantia viene determinada por la gravedad del hecho antijurídico del cuaI se culpa al sujeto. La concepción contraria sólo puede ser admitida por quien acepte que la pena no se impone para prevenir hechos lesivos, sino como retribución de la actitud interna que el hecho refleja en el sujeto.- pág. 206.

Por una parte la prevención general puede manifestarse por la via de la intimidación de los posibles delincuentes, o también como prevalecimiento o afirmación del Derecho alos ojos de la colectividad.. En el primer sentido, la amenaza de la pena persigue Imbuir de un temor que sirva de freno a la posible tentación de delinquir. Se dirige solo a los eventuales delincuentes. En el segundo sentido, como afirmación del derecho, la prevención general persigue, más que la finalidad negativa de inhibición, la internalización positiva en la conciencia colectiva de la reprobación jurídica de los delitos y, por otro lado, la satisfacción del sentimiento jurídico de la comunidad. Se dirige a toda la sociedad, no solo a los eventuales delincuentes. – pág. 43

De ahí, pues, un primer limite que la prevención encuentra en si misma: la gravedad de las penas tendientes a evitar delitos no puede negar hasta el máximo de lo_que aconsejaría la pura intimidación de los eventuales delincuentes, sino que debe respetar el limite de tina cierta proporcionalidad com la gravedad social del hecho. Por outra parte la exigencia de proporcionalidad_se desprende también de la conveniência de resaltar lo más grave respcto de lo menos grave en orden a frenar en mayor grado lo más grave.- pág. 44

Frente al delincuente ocasional, la prevención especial exigiria solo la advertência que implica la imposición de la pena. Para el delincuente no ocasional corregible, seria precisa la resocialización mediante la aplicación de un tratamiento destinado aobtener su corrección. Por último, para el delincuente incorregible la única forma de alcanzar la prevención especial seria innoculizarlo, evitando así el perigro mediante su internamiento asegurativo. El efecto de advertência se designa a veces como “intimidación especial”, para expresar que se dirige solo ai delincuente y no a la colectividad, como a intimidación que persigue la prevención general. La resocialización adopta a veces modalidades especiales: así, como tratamiento educativo o como tratamiento terapêutico para sujetos com anomalias mentales. (Cfr. Santiago Mir Puig, in “Estado, Pena y Delito” Editorial B de f, Montevideu – Buenos Aires, 2006 Págs. 43, 44, e 206)

Na escolha e determinação da medida, ou para medição, da pena “reger-se-á pelo objectivo e critério da prevenção especial: recuperação social do infractor (prevenção especial positiva), desde que tal objectivo não seja incompatível com a necessidade mínima de dissuasão individual. Ou seja: o “fim” é a reintegração social do infractor, fim este que tem, como limite mínimo, a eventual necessidade de dissuasão do infractor da prática de futuros crimes”. (“A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade)” – (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.02.2007; proferido no processo nº 28/07)

Consignada a pena nos preditos moldes, e arredada, por não interessar ao caso em apreço, a figura da “determinação legal da pena, ainda que para a operação de individualização judicial da pena não nos possamos alhear deste conceito, por constituir o limite que o legislador consignou como sendo aquele que protege de forma prevalente e eficaz, e num dado momento histórico, um determinado bem jurídico”, procuraremos indagar quais os critérios e justificações que deverão guiar e lastrar a determinação da medida concreta de uma pena, o que vale por dizer quais serão ou deverão ser os princípios rectores em que poderá ancorar-se uma adequada valoração da conduta de um agente infractora norma protectora de bens jurídicos. (Na procura de directivas e vectores de orientação que ajudem na determinação concreta da pena seguem-se de perto os ensinamentos colhidos em Eduardo Demétrio Crespo, “Prevención General e Individualização judicial da Pena”, Ediciones Universidade Salamanca, bem como dos ensinamentos recolhidos na obra já citada supra de Gunther Jakobs, de Winfried Hassemer, in “Fundamentos del Derecho Penal”, de Claus Roxin, in “Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal” e Anabela Miranda Rodrigues, in “A Determinação da Pena Privativa de Liberdade” e Adriano Teixeira, “Teoria da Aplicação de uma Determinação Judicial da Pena Proporcional ao Fato”, Marcial Pons, 2015.)

A culpa serve, assim, na determinação concreta da escolha, um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial. Dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou segurança individuais. «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade da tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas». (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111 e ainda Anabela Rodrigues (- Problemas fundamentais de Direito Penal – Homenagem a Claus Roxin (2002), “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, 177/208, estudo também publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 12, n.º 2 Abril – Junho de 2002, 147/182.)

Anabela Rodrigues, bem como Taipa de Carvalho, ao defendem que o limite mínimo da pena nunca pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores jurídico-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima, limite este que coincide com o limite mínimo da moldura penal estabelecida pelo legislador para o respectivo crime em geral, devendo eleger, em cada caso, aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto. Tutela dos bens jurídicos não, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada. Neste sentido, constitui indicador razoável afirmar-se que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena a que o artigo 18º, n.º 2, da CRP, consagra. (“O princípio da proporcionalidade do art. 18.º da Constituição refere-se à fixação de penalidades e à sua duração em abstracto (moldura penal), prendendo-se a sua fixação em concreto com os princípios da igualdade e da justiça.

[Deve na determinação concreta da pena atender-se ao] “grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente); – A intensidade do dolo ou negligência; – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; – As condições pessoais do agente e a sua situação económica; – A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade) assim se desenhando uma sub-moldura.” – (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.02.2007).

Discorrendo sobre o princípio da proporcionalidade, refere Mata Barranco que, “no momento judicial o âmbito de projecção do princípio da proporcionalidade manifesta-se claramente tanto na fase judicial de concreção da pena legalmente prevista – se se prefere, de determinação judicial da pena – como na individualização em sentido específico. Diz-se inclusivamente que a denominada aritmética penal, que não é senão a completa técnica que o tribunal tem que levar a cabo para determinação da pena que corresponde ao autor, está inspirada no princípio da proporcionalidade.

Em primeiro lugar, o Código estabelece determinadas regras vinculadas à determinação judicial da pena em relação, por exemplo, ao grau de execução do delito, à participação, ao erro de proibição, à concorrência de eximentes incompletas, de atenuantes e agravantes ou aspectos concursais, modulando-se a resposta penal com base na diferente gravidade do facto e da culpabilidade do autor nos supostos concretos. (…)

Em segundo lugar, ao juiz fica-lhe sempre uma margem de arbítrio, mais ou menos amplo, na determinação quantitativa da pena, ou inclusivamente qualitativa quando o preceito penal contemple penas alternativas, penas de imposição potestativa ou a possibilidade de aplicar substitutos penais que permita um melhor ajuste entre a gravidade do facto – em toda a sua complexidade – e a gravidade da pena, que tem que aplicar – de todo o modo proporcional – atendendo ao conjunto de circunstâncias objectivas e subjectivas do delito cometido, tal e como costumava exigir, por outro lado a própria normativa penal.

Aquela primeira função judicial, ainda que próxima a esta de individualização judicial propriamente dita, se entende conceptualmente separável da verdadeira função autónoma individualizadora do juiz, que não procede a uma delegação do legislador, diz-se, mas sim que se apresenta como competência exclusiva da jurisdição enquanto se trata de determinar uma pena em função das peculiaridades de cada caso e de cada autor (…) por isso se qualifica este acto de individualização judicial como de discricionariedade juridicamente vinculada, pois o juiz pode mover-se livremente, em princípio, dentro do marco legal do delito – que quele concreta -, mas orientado por princípios que haverão de extrair-se desde logo das declarações expressas da lei, quando existam, assim como dos fins do Direito penal no seu conjunto, ou ainda dos fins da pena partindo da função e limites do Direito penal.”) (Norberto J. de la Mata Barranco, “El Princípio de Proporcionalidad Penal”, Tirant lo Blanch, “Colección Delitos”, Valência, 2007, 221-223.)      

Quanto à pena adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada – máximo inultrapassável –, certo é dever corresponder à sanção que o agente merece, ou seja, deve corresponder ao desvalor social do injusto cometido. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade. O “merecido”, porém, não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral. (Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.); Cfr. ainda por mais recentes os acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 20.02.2008 e 09.04.2008; proferidos, respectivamente, nos proc.s nºs 07P4724 e 08P1011; disponíveis em www.stj.pt.)

A imposição de uma pena depende do estabelecimento/consolidação de um juízo de culpabi-lidade que pressupõe exigências de verificação a) “de um princípio de responsabilidade pelo facto. “Exige um “direito penal do facto” e opõe-se a castigar o carácter ou o modo de ser – directa ou indirectamente. Ainda que o homem contribua para a formação da sua personalidade, esta escapa em boa parte ao seu controle. Deve rechaçar-se a teoria da “culpabilidade pela conduta de vida” ou a “culpabilidade do carácter”. Este princípio [da responsabilidade pelo facto] entronca com o da legalidade e a sua exigência de tipicidade dos delitos: o “mandato” e determinação da lei penal reclama uma descrição diferenciada da cada conduta delitiva”; b) a exigência de imputação objectiva do resultado lesivo a uma conduta do sujeito. Nos delitos de conduta positiva, isso requer a relação de causalidade entre o resultado e a acção do sujeito, mas para além disso são precisas outras condições que exige a moderna teoria de imputação objectiva e que giram em torno da necessidade de criação de um risco tipicamente relevante que se realize no resultado”; c) a exigência do dolo ou culpa (imputação subjectiva). Considerada tradicionalmente a expressão mais clara do princípio de culpabilidade, faz insuficiente a produção de um resultado lesivo ou a realização objectiva de uma conduta nociva para fundar a responsabilidade penal”; d) A necessidade de culpabilidade em sentido estrito, que exige a imputabilidade do sujeito e a ausência de causas de exculpação- também a possibilidade ed conhecimento da antijuridicidade, se esta não se inclui no dolo.” (Santiago Mir Puig, ibidem. “Sobre o Princípio de Culpabilidade como Limite da Pena”, pág. 203.)        

Ainda que concordemos que a função da pena deva assumir-se como um pendor marcadamente preventiva, não podemos deixar de na escolha e determinação concreta da pena de considerar o facto conduzido pela vontade de delinquir do agente – desvalor da acção – e o resultado em que a acção desvalorativa se concretizou. A imposição de uma pena que, partindo destes dois parâmetros definidores da conduta ilícita e típica do agente, seja colimada pela culpabilidade do agente impõe como paradigma da pena proporcional ao facto que deve encampar a actividade do julgador na hora de ponderar o quantum penológico a impor.    

Factor de ponderação inarredável na formação de uma pena justa e arrimada com os valores constitucionalmente consagrados é a proporcionalidade entre o desvalor da acção referido ao conteúdo do bem jurídico contido na norma violada, o desvalor do resultado enquanto atingimento e vulneração histórico-social e concreta de um sentimento socialmente relevante e o retraimento social que se pretende com a imposição da sanção da sanção penal.

No ensinamento de Silva Sanchez (Individualización judicial de la Pena”, p.139) “é difícil, na realidade, falar de discricionariedade no âmbito da individualização judicial da pena e que, seguindo a terminologia da doutrina alemã, afinal do que poderá falar-se é de uma “discricionariedade juridicamente vinculada. A maioria da doutrina entende sim possível continuar aludindo a uma certa discricionariedade no exercício da actividade judicial, limitada, submetida a uma conjunto de critérios valorativos, que não permita tomar decisões com base em considerações opostas a princípios cuja transgressão afasta o arbítrio das pautas de racionalidade, mesura e proporcionalidade que lhe devem presidir; sem embargo autor explica, em meu juízo com acerto, que isso já não é uma verdadeira discricionariedade, mas sim autêntica aplicação pura, regrada do Direito, pois não se trata de eleger entre várias possibilidades igualmente correctas, que é o que caracteriza a discricionariedade, mas sim concretar os juízos de valor da lei e conseguir os fins daquela em cada passo. Determinando a pena concreta. (…)

Por isso o Tribunal Supremo distinguiu o que a discricionariedade enquanto uso motivado das faculdades de arbítrio não susceptíveis de revisão em apelação, cassação ou amparo – quando se executa correctamente –, da arbitrariedade, definida pela ausência de motivação do uso de tais faculdades, vetada e revisível, diz-se numa diferenciação que não obstante reside somente no facto da motivação da individualização (…).” (Norberto J. de la Mata Barranco, ibidem, pág. 229-230.)       

Como se alcança do que a doutrina vem ensinando “o conceito de proporcionalidade, o juízo sobre a proporcionalidade de uma norma – não só de uma sanção, mas também de uma norma enquanto ao que prescreve ou proíbe e enquanto á consequência do seu incumprimento – afecta, e deve fazê-lo, tanto à delimitação da tutela que trata de conseguir como ao mecanismo sancionatório que prevê para o lograr e, por isso mesmo, ideia de proporção deve poder permitir restringir tanto a sanção desnecessária ou excessiva como limitar comportamentos susceptíveis dela. (…) O princípio de proporcionalidade penal rechaça, com se disse, o estabelecimento de cominações legais - proporcionalidade em abstracto – e a imposição de consequências jurídicas – proporcionalidade em concreto – que careçam de relação valorativa com o facto cometido, contemplado este no seu significado global. De uma forma mais sintética, exige que as consequências da infracção penal, previstas ou impostas, não sejam mais graves – se é que se pode equiparar a gravidade de umas e outras – à entidade da mesma. (…) mas também – ou justamente por isso – se há-de destacar a necessidade e vincular o conceito de proporção à relação entre a medida imposta e a finalidade pretendida pela norma a aplicar e com os fins, no nosso caso, da pena e do Direito penal; serão estes – tratando de garantir uma convivência na qual se maximize a liberdade de cada um sem detrimento superior da do resto – os que determinam a gravidade do facto a «enjuiciar».” [(Norberto J. de la Mata Barranco, ibidem, pág. 289-290. “A exigência de proporção tem umas implicações, em todo o caso, que talvez não captam os conceitos de razoabilidade, racionalidade ou ausência de arbitrariedade, por quanto permite incorporar um conteúdo limitador da actuação estatal que, em princípio, estes não têm que atender. Com ser difusa a ideia de proporção, porque não indica mais que uma correspondência ou correlação de magnitudes, sem dúvida oferece uma base de actuação mais concreta – no âmbito penal – que a estes conceitos e nesse sentido aporta um plus de segurança, relativa, na restrição de liberdades porque, ao menos, remete para determinadas magnitudes ou referências a partir das quais pode efectuar uma ponderação de qual deve ser o grau de intervenção.” – ibidem, p.291)]

Para a pena irrogada ao arguido o tribunal recorrido, ponderou (sic): “A finalidade das penas é não só a protecção dos bens jurídicos, como a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal), sendo assim delimitada por esta e vocacionada à satisfação das exigências de prevenção.

Saliente-se que, quanto à prevenção geral positiva, sempre que o tribunal aplica uma pena, tem por fim restaurar a confiança que a comunidade deve ter naquela determinada norma que foi violada.

Ponderados todos estes elementos, são elevadas as necessidades de prevenção geral positiva, pela frequência com que este tipo de crime é praticado.

É, assim, urgente desincentivar eficazmente este tipo de comportamento, que causa alarme e insegurança na comunidade, por colocarem frequentemente em perigo valores de particular relevo.

No plano da prevenção especial, isto é, no que à necessidade de reintegração dos arguidos diz respeito, estas existem em relação a todos eles, desde logo ante a gravidade dos factos em discussão nestes autos e o modo de actuação destes.

Mas manifestam-se de modo distinto.

Com efeito, em relação aos arguidos AA, BB e CC, temos tais necessidades medianas, desde logo perante os factos provados e os respectivos antecedentes criminais à sua data.

(…) Os arguidos AA e BB tinham antecedentes criminais registados, pela prática de crime de outra natureza (para além de terem sofrido ulteriormente outra condenação, mas pela prática de outro tipo de ilícito penal).

Assim tendo em conta as supracitadas disposições legais, afigura-se-nos justo e adequado:

a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência às Tabelas I-A e I-B na pena de 5 (cinco) anos de prisão e 3 (três) meses de prisão (…).”

A protecção do bem jurídico saúde e indemnidade, pessoal e pública, exige rigor e firmeza na hora de ponderar a escolha, e determinar a medida, de uma pena a impor a quem, sabendo que os produtos que vendia eram (e são) absolutamente proibidos e por isso com a consciência total do acto antijurídico que desenvolvia, permaneceu durante um largo período a lesar e vulnerar um bem que sabe deve ser preservado, pelo rango social e pessoal em que é colocado na sociedade actual.

À defesa do bem jurídico concreto e socialmente persistente, na determinação da medida judicial de uma pena, não podem deixar de intervir e valorar factores circunstanciais e envolventes sociológicas, e/ou de geografia, concernentes à execução do ilícito, aqui sobressaindo a peculiaridade do meio sócio-antrológico em que a actividade (ilícita) era levada a cabo, as pessoas concretas a quem os produtos estupefacientes eram vendidas, os efeitos/ consequências que no ambiente societário (concreto) repercute o consumo dessas substâncias e ainda as perspectivas e expectativas com que a pena, nestas situações, é encarada e interiorizada pelos membros da comunidade. Queremos com o que acaba de ser dito significar que a pena não pode deixar de, na sua dimensão pessoal-retributiva e na sua acepção social-regeneradora, endereçar um sentido de afirmação da positividade da norma violada e, ao passo, sinalizar, para a comunidade, um efeito reparador dos efeitos deletérios e malsãos que uma determinada conduta sarjou no tecido societário.

Na acepção enunciada não podemos deixar de sublinhar que a execução da actividade ilícita era levada a efeito numa comunidade de feição rural em que o paradigma de vivência societária se pauta por regras e atitudes muito estreitas e conservadores e onde a censura e o controle interpessoal é bastante forte. A tessitura societária onde o crime foi vessando, durante quase 2 anos, assenta em acepções pouco elásticas e indulgentes de práticas disruptivas e disfuncionais dos padrões de vida que acolhem e aceitam como sendo aqueles que melhor servem a sua forma de vida o que, pensamos, desaprovaria um sancionamento ligeiro de alguém que, de forma reiterada e continuada, contribuiu, na sua acepção, para criar hábitos disruptivos e disfuncionais de pessoas que lhe são próximas e com quem mantêm um relação de intimidade, familiar e/ou pessoal.

A este vector fundante e formador da pena – prevenção geral – não poderá deixar de se agregar a culpabilidade do agente, na justa medida em que sabia o meio onde agia, as pessoas a quem vendia o produto estupefaciente e o efeito que produzia no tecido social em que influía.           

A pena de prisão será, em nosso juízo, a escolha adequada não só à culpabilidade individual como a que se mostra mais ajustada a prevenir e a aquietar a sociedade em que o crime se perpetrou e, bem assim, a repor e a restaurar a validade da norma vulnerada.

Se assim quanto à escolha da pena, já a opção pela medida concreta – 5 (cinco) anos e 3 (três) meses – nos parece calibrada aos níveis de culpabilidade do agente, se atendermos ao mínimo com que a moldura penal abstracta pune a conduta infractora.

Na defluência do exposto, entende-se que a pena imposta ao arguido afina por padrões de plausibilidade e proporcionalidade isentas de censura e de reparo jurídico-pragmático.


§III. – DECISÃO.

Na desinência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, no Supremo Tribunal de Justiça, em:

a) – Proceder à rectificação da qualificação jurídica operada pelo tribunal recorrido, no dispositivo, e enquadrar a conduta do arguido na previsão do artigo 21º, nº 1 do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro;  

b) – Negar provimento ao recurso e, consequentemente, manter-se a condenação do arguido, AA, como autor material de um crime de tráfico de substâncias (produtos) estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de Janeiro, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

- Custas pelo recorrente.


Lisboa, 8 de Julho de 2020


Gabriel Martim Catarino (Relator)


Manuel Augusto de Matos


(Declaração nos termos do artigo 15º-A da Lei nº 2072020, de 1 de Maio: O acórdão tem a concordância do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro adjunto, Dr. Manuel Augusto de Matos, não assinando, por a conferência se haver realizado por meios de comunicação à distância.)