HABEAS CORPUS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRISÃO PREVENTIVA
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
REJEIÇÃO
Sumário


Se o arguido foi preso preventivamente pela prática do crime de violência doméstica, durante uma saída precária, e essa medida de coacção apenas perdurou até ao término desta e regresso ao estabelecimento prisional e, entretanto, tal ocorreu, por força do princípio da actualidade, deve ser rejeitado o habeas corpus que tinha por escopo a libertação em virtude da aplicação da referida prisão preventiva.

Texto Integral

Acordam em Audiência na 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça,

I

AA, preso preventivamente na sequência de apresentação de primeiro interrogatório judicial, requer que lhe seja concedida a providência de Habeas Corpus, nos termos do artigo 220º nº 1 d) do C.P.P., por entender como ilegal a medida de coação aplicada.

II

Alegando na sua Petição que:

1. O requerente está a cumprir uma pena de prisão de 16 anos por homicídio no Estabelecimento Prisional … e na sexta feira foi libertado no âmbito de uma licença de saída jurisdicional de 4 dias.

2. No entanto, o requerente no dia 1 de Agosto de 2020, quando se encontrava a gozar a sua saída de licença jurisdicional de 4 dias, que começou no dia anterior 31 de Julho de 2020, pelas 11 horas é alvo de um mandado de busca e detenção, no qual nada é encontrado de ilícito é encontrado por suspeita de crime de roubo qualificado, no âmbito do processo n.s 770/19.2… .

3. Porém, não obstante nada ter sido encontrado de ilícito e de o mandado de busca e detenção referido no artigo anterior ser referente ao alegado crime de roubo qualificado, o arguido foi ilegalmente detido com fundamento em processo de violência doméstica, no qual não se justifica minimamente a sua detenção e que o requerente seja ouvido pelo juiz de instrução criminal para aplicação de medida de coação mais gravosa.

4. No entanto (perante a ilegalidade do mandado de detenção fora de flagrante delito efetuada pela PSP de …, relacionado com o processo de violência doméstica, o requerente, solicitou junto do Tribunal de Instrução Criminal de … o pedido de habeas corpus, nos termos do artigo 222.º alínea d) do CPP, conforme consta do doc. n.si

5. Ora, sucede que o pedido de habeas corpus junto ao processo no domingo, deveria ter sido apreciado com a máxima urgência mas tal não sucedeu.

6. Inclusivamente, apesar de já estar na segunda feira de manhã, decidiu ignorar o mesmo, não proferindo nenhuma decisão sobre o mesmo mas também decidiu ouvir o arguido por volta das 17 horas.

7. Ora, além do mandado de detenção refere que com fundamento no artigo 257 n.º 2 do CPP, alínea a) e c) do CPP, ou seja, quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria voluntariamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado; se tal se mostrar imprescindível para a proteção da vítima.

8. No entanto, em ambas as situações não está demonstrado tais factos, uma vez que o referente estando preso em cumprimento de pena e indo entregar-se no Estabelecimento Prisional não existe nenhum razão para se concluir que o requerente não se iria apresentar na autoridade judiciária, uma vez que o mesmo está preso e o requerente desconhece o paradeiro das alegadas vítimas, nem faz intenções de saber.

9. Consequentemente, não existiram razões para o mandado de detenção fora de flagrante delito, ilegal que não cumpriu nenhum requisito legal, pelo que a detenção foi motivada por um facto que a lei não permite de forma algum, estando o requerente com a licença de saída jurisdicional de 4 dias, prejudicada por causa de uma detenção ilegal, nos termos do artigo 220º  n.s 1 alínea d) do CPP.

10. Porém, em vez de o juiz " a quo" apreciar devidamente o pedido de habeas corpus, nos termos do artigo 220º n.ºs 1 alínea d) do CPP, pura e simplesmente ignorou, o que torna a decisão do "tribunal a quo", nula nos termos do artigo 120º n.9,p alínea c) do CPP.

11. Inclusivamente, o arguido foi detido pelas 14 horas do dia 1 de Agosto de 2020, e foi presente ao Juiz de Instrução por volta das 17 horas, quando a lei no seu artigo 141º nº1 do CPP, exige o prazo de 48 horas, que foi claramente desrespeitado o que torna nulo o despacho que aplicou a prisão preventiva ao arguido e outras medidas de coacção.

12. Ora, a licença de saída jurisdicional é uma licença de liberdade temporária, ainda inserida na execução da pena, que não a modifica nem extingue. Não há obrigatoriedade legal de concessão da licença de saída jurisdicional ou imposição obrigatória de concessão dessa licença que depende da decisão do tribunal de execução das penas na ponderação de determinados pressupostos.

13. Porém, no processo de liberdade de condicional, nada foi comunicado que o arguido caso estivesse em liberdade, iria praticar algum ilícito e a directora do estabelecimento prisional, não suspendeu a licença de saída jurisdicional nos termos do artigo 138 ° n° 4 do Código de Execução de Penas.

14. Inclusivamente, o arguido no âmbito da sua saída jurisdicional precária tem condições, que necessita obrigatoriamente de cumprir, e a licença de saída jurisdicional deve ser gozada sem nenhuma violação pelo seu direito à liberdade e caso houvesse algum incumprimento cabe ao Tribunal de Execução de Penas, o incidente de incumprimento e o regresso do recluso ao Estabelecimento Prisional e jamais ser aplicada medida de coacção de prisão preventiva, que é clara e manifestamente ilegal.

15. Pelo exposto, consideramos que a aplicação da pena de prisão preventiva por um dia, e a detenção do mesmo pelos opc que foi legitimada de forma ilegal pelo Juiz de instrução, foi totalmente ilegal já que não cometendo quaisquer crimes em liberdade de licença de saída jurisdicional, como foi o caso, jamais o arguido poderia ser detido, porque tal situação compete ao TEP avaliar o eventual incumprimento nos termos do artigo 194º do Código de Execução de Penas e não o Juiz de Instrução Criminal

Nestes termos e nos melhores, de direito deve ser declarada ilegal a detenção efectuada fora de flagrante delito e validada pelo juiz de instrução criminal, e consequentemente a aplicação da prisão preventiva, por ter sido efectuada e ordenada por entidade incompetente que é o Juiz de Instrução Criminal, e ser motivada por um motivo que a lei não permite ou seja não pode o JIC legitimar uma detenção e aplicar prisão preventiva quando o recluso está a cumprir pena.de prisão, apenas a Juíza do Tribunal de Execução de Penas é que poderá intervir, nos termos do artigo 222º nº 2 alínea. a) e c) do CPP( deverá o recluso ser restituído à liberdade, para gozar os 3 dias que foram interrompidos abruptamente e de forma ilegal.

III

O Despacho proferido nos termos do artigo 223º nº1 do CPP, a 04.08.2020, informa que:

Compulsados os autos de inquérito 770/19.2PVLSB, verifica-se que:

O arguido AA, foi detido em 1/8/2020, pelas 19.30 horas (v. fls. 1622 verso dos autos).

Foi sujeito a primeiro interrogatório judicial em 3/8/2020, o qual teve inicio pelas 16 h e 26 m (v. fls. 1673 e seguintes dos autos), na sequência do qual se considerou que existiam indícios fortes da prática pelo arguido do crime de violência doméstica p. e p. pelo art° 152° n°1 al. a) do Código Penal e de um crime de ameaça agravado p. e p. pelo art° 153° n°1 e 155° n°1 al. a) do Código Penal, pelo que foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva até finalizar a saída precária de que o arguido beneficiava à ordem do processo 680/11.1… após o que continuaria a cumprir a pena de prisão efetiva à ordem do referido processo, bem como ficou sujeito às demais medidas de coação referidas a fls. 1682.

Resulta do despacho proferido que existem fortes indícios do cometimento pelo arguido dos crimes suprarreferidos, dele resultando os factos indiciados, bem como a indicação dos elementos de prova donde os mesmos resultam os quais foram comunicados ao arguido, como resulta do auto de interrogatório e do mencionado despacho.

Considerou-se no despacho existir perigo de fuga e de continuação da atividade criminosa como se refere no despacho a que acima se aludiu, pelo que e com os demais fundamentos de facto e de direito referidos em tal despachos a medida de coação de prisão preventiva decretada é a única proporcional, ajustada e adequada às exigências cautelares que o caso requer, sendo qualquer outra inadequada e insuficiente, a acautelar tais perigos.

Consigna-se ainda que o arguido intentou providência de habeas Corpus ao abrigo do disposto no art° 220° al. d) do CPP, que foi objeto de indeferimento.

Extraia e junte a estes autos certidão de fls. 1448 a 1699 dos autos principais, bem como certidão integral dos autos de providência de habeas Corpus (770/19.2PVLSB-A) e entregue os presentes autos pela forma mais célere no STJ.


IV

Da consulta dos Autos constata-se que este se encontra instruído com certidão das seguintes peças, relevantes para a decisão da causa:

· Petição de Habeas Corpus de 04.08.2020

· Auto de Apreensão - telemóvel Samsung A 307FN com o IMEI 35…96 - com data de 01.08.20 – fls. 46

· Auto de Busca e Apreensão – cela EP … - com data de 01.08.20 – fls. 48

· Mandado de Busca e Apreensão – cela EP … - com data de 15.07.20 – fls. 50

· Auto de Busca e Apreensão – domicílio - com data de 01.08.20 – fls. 51

· Mandado de Busca e Apreensão – domicílio - com data de 15.07.20 – fls. 53

· Auto de inquirição de testemunha - BB - com data de 01.08.20 – fls. 54

· 16 Fotogramas de sms recebidos por BB, com data de 09.07.20 - fls. 60 a 64

· Auto de Denúncia de Violência Doméstica, com data de 25.07.20 – fls.65

· Auto de constituição de Arguido - com data de 01.08.20 – fls. 71

· TIR - - com data de 01.08.20 – fls. 73

· Mandado de Detenção fora de flagrante delito – artigo 257º nº2 als a) a c) do CPP – com data de 01.08.20, por indiciação de um crime de Violência Doméstica – fls. 86

· Certidão do cumprimento do Mandado de detenção – fls. 89v.

· Relatório Intercalar da Investigação – PSP -, com data de 01.08.20, – fls.92

· Auto de Noticia da detenção, com data de 01.08.20 – fls. 115

· CRC – fls. 118 a 120

· Promoção para a apresentação de Arguido detido a 1º interrogatório judicial, com data de 03.08.20 - fls. 127

· Auto de 1º interrogatório judicial de Arguido detido e Despacho de aplicação da medida de coação de prisão preventiva, com data de 03.08.20 – fls. 138

· Mandado de condução ao EP – fls. 150

V

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 223º nº1 a 3 do CPP.

Realizada a Audiência, cumpre apreciar e decidir:

Nestes Autos, o peticionante fundamenta o seu pedido de concessão da providência de Habeas Corpus na invocação da ilegalidade da aplicação de medida de coação de prisão preventiva por, em seu entender, esta carecer de fundamento legal, pois considera ter ocorrido uma detenção fora de flagrante delito sem a devida sustentação de Direito.

A consagração constitucional da providência de Habeas Corpus configura-se como um meio de garantia de defesa do direito individual à liberdade, reconhecido pela Lei Fundamental no seu artigo 27º, mormente em virtude de prisão ou detenção ilegal.

Nessa conformidade, a lei processual penal elenca os fundamentos e o procedimento de tal providência, dispondo-se no artigo 222ºnº2 do CPP, poder ser invocado como fundamento da ilegalidade da prisão contra a qual se pretende reagir:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Alega o peticionante que : “deve ser declarada ilegal a detenção efectuada fora de flagrante delito e validada pelo juiz de instrução criminal, e consequentemente a aplicação da prisão preventiva, por ter sido efectuada e ordenada por entidade incompetente que é o Juiz de Instrução Criminal, e ser motivada por um motivo que a lei não permite ou seja não pode o JIC legitimar uma detenção e aplicar prisão preventiva quando o recluso está a cumprir pena.de prisão, apenas a Juíza do Tribuna! de Execução de Penas é que poderá intervir, nos termos do artigo 222º nº 2 alínea. a) e c) do CPP, para concluir ser ilegal a medida de coação de prisão preventiva que lhe foi aplicada, e como tal suscetível de assim o ser declarada no âmbito da presente providência de Habeas Corpus.

Todavia, esta sua alegação carece do necessário suporte fáctico e legal.

Na verdade, em obediência aos comandos constitucionais de defesa e garantia dos direitos individuais, a lei ordinária desenhou a providência de Habeas Corpus como meio processual adequado a uma reação expedita contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, e não como um meio processual para reexame ou avaliação da verificação dos pressupostos de facto e de direito que em concreto determinaram a aplicação de uma medida de privação de liberdade. Tal desiderato é obtido através dos meios recursórios legalmente estabelecidos.

Como se alcança do exame dos Autos, constata-se que ao peticionante foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva apenas entre os dias 03.08.20 e 04.08.20, não sendo, pois, atual a sua manutenção.

Tal ocorreu em virtude de o peticionante ter sido detido fora de flagrante delito, nos termos do disposto no artigo 257º nº2 do CPP, em virtude de estar indiciado da prática de um crime de Violência Doméstica.

Detenção esta que ocorreu no dia 01.08.20, quando se encontrava no gozo de uma saída precária do EP, onde se encontra à ordem do processo nº680/11.1…-A, para cumprir a pena de 16 anos e 2 meses de prisão em que foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado e detenção de arma proibida.

Saída precária esta cujo termo ocorreu a 04.08.20.

O despacho de aplicação da medida de coação de prisão preventiva aplicada ao Arguido, proferido na sequência do seu 1º interrogatório judicial, indica estar suficiente indiciada a prática pelo peticionante de um crime de Violência Doméstica e de um crime de ameaças agravado e fundamenta-se nos perigo de fuga e de continuação da atividade criminosa, estipulando de forma clara que esta medida de coação “ tem o seu termo quando finalizar a saída precária de que o arguido beneficia à ordem do processo nº nº 680/11.1…-A, após deverá continuar a cumprir a pena de prisão efetiva a que o mesmo se encontra sujeito”.

Assim, a medida de prisão preventiva aplicada ao peticionante, ainda que tenha sido ordenada pela entidade competente, o Tribunal de Instrução Criminal, e motivada pela indiciação da prática de um crime de Violência Doméstica, não se mostra atual pois findou no passado dia 04.08.20.

Inexistem assim quaisquer factos que possam preencher algum dos pressupostos que a lei elenca no artigo 222º nº2 do CPP como sendo os adequados a aferir a ilegalidade de uma privação da liberdade.

Na verdade, e como é Jurisprudência constante deste Supremo Tribunal “no âmbito da providência de habeas corpus o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode e deve verificar se a prisão resultou de uma decisão judicial, se a privação da liberdade foi motivada pela prática de um facto que a admite e se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial. Isto sem prejuízo de, nos limites da decisão no âmbito da providência de habeas corpus, não condicionada pela via ordinária de recurso, se poder efectivar o controlo de situações graves ou grosseiras, imediatamente identificáveis e “clamorosamente ilegais” (na expressão do acórdão deste Tribunal de 3.7.2001, Colectânea, Acórdãos do STJ, II, p. 327), de violação do direito à liberdade.”([1])

Nesta conformidade outra conclusão se não impõe que não seja a de se concluir pela improcedência do peticionado por ausência de fundamento legal.

VI

Termos em que se acorda em indeferir a requerida concessão da providência de Habeas Corpus por falta de fundamento bastante, nos termos do disposto no artigo 223º nº4 al. a) do CPP.


Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 4UC, nos termos do artigo 8º nº9 da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Feito em Lisboa, aos 7 de agosto de 2020.

Maria Teresa Féria de Almeida (Relatora)

Gabriel Catarino (Adjunto)

Maria da Graça Trigo (Presidente)

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[1] Ac. de 10.04.2019, proc. nº 503/14.0PBVLG-I.S1, Relator Conselheiro Lopes da Mota