RECURSO PENAL
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
VENDEDOR
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
PENA DE MULTA
PENA DE PRISÃO
PREVENÇÃO GERAL
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
PENA SUSPENSA
Sumário


I - O sentido textual da 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, referenciando o universo das munições de armas de fogo, justifica a sua aplicação à situação de facto provada relativa à detenção das 9 munições de arma de calibre 6,35. O crime correspondente deverá, pois, ser punido nos termos da indicada disposição normativa.
II - O crime de tráfico de menor gravidade caracteriza-se, assim se tem considerado, por constituir um minus relativamente ao crime matricial, fundamental, ou seja, ao crime do art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, apresentando-se, como «um facto típico cujo elemento distintivo do crime-tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como factores aferidores de menorização da ilicitude, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações».
III - Por seu turno, estaremos perante um comportamento a integrar no tipo fundamental de crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, quando estamos perante um vendedor com uma actividade de média ou grande escala provocadora de uma danosidade social média ou elevada, sem que, no entanto, se atinja o grau de ilicitude agravada pressuposto no artigo 24.º do mesmo diploma.
IV - O arguido procedeu a concretos actos de tráfico de produtos estupefacientes – cocaína e haxixe –, numa actuação se prolongou, pelo menos, desde 20 de Setembro de 2018 a 11 de Março de 2019, em vários locais da cidade de ..., abastecendo-se de tais produtos na cidade ... . 
V - As quantidades de estupefacientes que detinha nas duas ocasiões em que foi abordado já assumem um valor significativo, devendo sublinhar-se o facto de o produto dominante se tratar de cocaína, droga dura, correspondente a 465 doses.
VI - O quadro global da sua actividade apresenta-se, não como um pequeno tráfico de rua, mas sim como um comércio retalhista de dimensão significativa, exercido de forma reiterada e consistente, em que se deverá salientar a circunstância de o arguido ter persistido na actividade de tráfico após lhe ter sido apreendidas várias saquetas de produto contendo cocaína em 20 de Setembro de 2018, sendo de sublinhar ainda que no período considerado nos autos, não tinha qualquer actividade profissional, sustentando-se através do dinheiro que recebia da actividade de venda dos produtos estupefacientes.
VII - Na valoração global do facto, as circunstâncias da acção não revelam que a ilicitude do facto seja consideravelmente diminuída. Os factos, conjugadamente interpretados, fornecem uma imagem global do facto que exclui  a considerável diminuição da ilicitude.
VIII - De acordo com o disposto no artigo 70.º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.                       
IX - O crime de detenção de arma proibida é punido com pena compósita alternativa. Segundo o critério de escolha da pena estabelecido nos artigos 40º e 70º, não pode ser dada preferência à pena de multa quando a mesma não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição nem assegura a protecção dos bens jurídicos em causa ou a reintegração do agente na sociedade.
X – O facto de o arguido AA deter aquelas munições num contexto de venda de droga não permite concluir que a pena de multa seja adequada nem suficiente para atingir tais finalidades. Objectivamente, está em causa, o problema da proximidade entre as armas e a droga e as necessidades de prevenção geral que tal impõe não se compadecem com pena de multa. A detenção das munições ocorre aqui num contexto de tráfico de estupefacientes, observando-se uma evidente conexão entre tais ilícitos
XI - Por outro lado, e como este Supremo Tribunal tem entendido, «Sempre que, na pena única conjunta tenha de ser incluída uma pena de prisão, impõe-se, na medida do possível, não aplicar pena de multa a um ou mais dos demais crimes em concurso, por também aí se verificarem os inconvenientes geralmente atribuídos às chamadas “penas mistas” de prisão e multa».
XII - No caso presente, o crime de detenção de arma proibida foi realizado mediante a «conduta mais benigna» – a detenção de munições, sem qualquer tipo de arma, o que diminui grandemente o perigo suposto no tipo legal em causa e, logo, o grau de ilicitude.
Assim, tem-se como adequada e suficiente para satisfazer as exigências de prevenção geral aqui presentes, a pena de 6 (seis) meses de prisão.
XIII – A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
XIV - Vem sendo salientado por este Supremo Tribunal que, «na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes, deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade. A pena a aplicar deverá corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, cumprindo referir que nos encontramos perante um crime de perigo abstracto e pluriofensivo.
 XV - Assim, considera-se que uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão está conforme com a necessidade de tutela do bem jurídico violado (finalidade de prevenção geral de integração), mostra-se ajustada à culpa do recorrente pelos factos praticados e responde às necessidades de prevenção especial de socialização.
XVI - A pena única do concurso, formada nesse sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser fixada dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente, considerados em conjunto.
XVII – O STJ tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente
XVIII – A personalidade do arguido plasmada nos factos praticados revela alheamento da normatividade, sendo de sublinhar a indiferença do mesmo relativamente ao «aviso» que lhe foi endereçado aquando da sua detenção em 20 de Setembro de 2018. A ilicitude global do comportamento do arguido, radicada essencialmente na actividade do tráfico de estupefacientes é elevada, revelando-se aqui intensas exigências de prevenção geral.
XIX - Tudo ponderado, valorando globalmente os factos e a personalidade do arguido, tendo presente que a pena conjunta há-de ser fixada nos limites da respectiva moldura abstracta, considera-se adequada e ajustada, por satisfazer os interesses da prevenção, a pena única de 4 anos e 8 meses.
XX- Nos termos do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, se for aplicável pena de prisão deve o Tribunal atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal quando tiver razões para crer que dessa atenuação resultem vantagens para a reinserção do jovem condenado.
XXI - A aplicação deste regime não é, assim, obrigatória nem automática, sendo necessário que se tenha estabelecido positivamente que há razões para crer que dessa atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do jovem sem ser afectada a exigência de prevenção geral, isto é, de protecção dos bens jurídicos e da validade das normas.
 XXII - Não será de aplicar o regime penal dos jovens quando do conjunto dos factos praticados e a sua gravidade o desaconselham em absoluto, por não se mostrar passível de prognose favorável à reinserção social do arguido.
XXIII - Um juízo de prognose pressupõe uma valoração do conjunto dos factos e da personalidade do arguido, quanto a saber se, em termos prospectivos, a imagem global indicia positivamente uma esperança fundada de que da atenuação especial da pena resultem vantagem para a reinserção do arguido.
XXIV - Embora resulte da factualidade provada que o arguido apresenta ter capacidade de reconhecimento da gravidade dos actos pelos quais foi condenado, emerge igualmente da factualidade provada que o mesmo apresenta uma personalidade algo imatura evidenciando uma fraca responsabilidade social.
XXV – A culpa do arguido, as circunstâncias concretas da prática dos factos, o facto, já assinalado, de uma primeira detenção por tráfico de estupefacientes, o que, no entanto, não obstou à continuação dessa actividade criminosa, uma reduzida, se não mesmo inexistente, motivação para se afastar da senda do crime, não permitem formular a seu favor aquele juízo de prognose favorável quanto à sua conduta posterior que permita concluir que a simples ameaça da pena realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
XXVI - No caso, não há lugar à suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que tal se não afigura adequado e suficiente para assegurar as finalidades da punição, nomeadamente as atinentes à prevenção do cometimento de futuros crimes, sendo que, por outro lado, há a considerar as exigências de prevenção geral de integração da norma e de protecção dos bens jurídicos que são particularmente intensas e prementes no crime de tráfico de estupefacientes, o que desaconselha a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I - RELATÓRIO


1. Para julgamento em processo comum perante tribunal colectivo, o Ministério Público acusou:

- AA, filho de BB e de CC, nascido em …/08/2000, natural da freguesia da …, concelho de …, solteiro, desempregado, residente na Rua …, nº …, …, … …, actualmente detido no Estabelecimento Prisional de …;

- DD, filho de EE e de FF, nascido em …/11/2001, natural da freguesia da …, concelho de …, titular do Cartão do Cidadão nº1…72, solteiro, …, residente na Avenida …, nº …, …, …;

imputando:

I) - ao arguido AA a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:

- um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-B e I-C anexas ao referido diploma;

- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c) da Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro;


II) - ao arguido DD a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-B e I-C anexas ao referido diploma.


2. Realizado o julgamento, proferido acórdão, em 21 de Novembro de 2019, foi deliberado, além do mais:


A) - condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:


A.1) - um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-B e I-C anexas ao referido diploma, na pena de cinco anos de prisão;

A.2) - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de um ano e três meses de prisão;


B) - condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de cinco anos e seis meses de prisão;


C) - condenar o arguido DD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-B e I-C anexas ao referido diploma, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, mediante regime de prova.


3. Inconformado, recorre o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça, rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem:


«CONCLUSÕES:

1ª) Em nossa opinião, no que se refere aos dois ilícitos pelos quais o arguido foi condenado, a subsunção dos factos ao direito está completamente errada.

2ª) Apesar de em sede alegações termos alertado para esse circunstancialismo, o tribunal a quo fez ouvidos moucos a esse alerta, e não procedeu à alteração das qualificações jurídicas como se impunha.

3ª) Com efeito, os actos de tráfico confessados integralmente e sem reservas pelo arguido são subsumíveis ao art. 25º alínea a) do DL 15/93 de 22 de Janeiro, porquanto o arguido actuou como um traficante de rua, difundiu pequenas quantidades de substâncias estupefacientes ilícitas, por um reduzido número de compradores, numa actividade em que não evidenciou qualquer organização e/ ou sofisticação e em que não dispunha de intermediários nem colaboradores.

4ª) Estando na base da pirâmide da actividade de tráfico de droga, sendo o elo mais frágil da cadeia de venda de estupefacientes.

5ª) No que tange às munições cuja posse foi confessada pelo arguido (9 munições de calibre 6.35), tal facto haveria de ter sido subsumido à alínea d) do art. 86º da chamada "Lei das Armas" e não ao disposto na alínea c) do mesmo normativo.

6ª) É estranho que haja para quem isto não seja evidente.

7ª) Ainda que as subsunções dos factos ao direito fossem as correctas – o que não se concede - o quantum penal em relação aos actos de tráfico, poderia e deveria ter sido igual ou ligeiramente superior ao mínimo legal previsto para a moldura penal do art. 21º do citado diploma.

8º) Do mesmo modo, que idêntica operação devia ter sido efectuada no que tange ao outro ilícito.

9ª) E em relação a este, sempre se dirá que o tribunal encontrou uma fundamentação atávica para não se socorrer do critério orientador do art. 70º do Cód. Penal e aplicar ao arguido uma pena não privativa da liberdade.

10ª) Salvo o devido respeito, parece-nos que o tribunal, que aparentemente louvou a postura do arguido, consagrando-lhe um parágrafo de elogios, por qualquer circunstância que ignoramos idealizou ab initio uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão efectiva.

11ª) Começando então uma sequência de operações ilógicas e irrazoáveis que permitissem alcançar em termos de decisão condenatória, o desiderato idealizado.

12ª) Exemplo dessas manipulações foi a não aplicação ao arguido do regime dos jovens adultos com as consequentes atenuações especiais.

13º) Neste tomo do acórdão, é flagrante a fraqueza dos argumentos do tribunal para não se socorrer da aplicação deste regime especial.

14ª) Decorre do exposto, que bastaria e basta que um destes erros crassos seja corrigido, para que a pena única a cominar ao arguido seja susceptivel de ser suspensa na sua execução.

15º) O juízo de prognose que está subjacente a essa suspensão, aqui, impõe-se com inusitada acuidade.

16ª) Existem condições subjectivas e objectivas para que possa ser efectuado tal juízo.

17ª) A suspensão que se impõe será obrigatoriamente acompanhada de regime de prova.

18º) O plano de reinserção, a vigilância e controlo que lhe é inerente em relação aos próximos anos da vida do recorrente, aliada à vontade do próprio e apoio da família, serão a caução idónea para o juízo a que nos vimos referindo.

19ª) Com a decisão foram violados os seguintes normativos:

art.º 21º e 25º do Dec. Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro;

art. 40º, 50º, 53º, 70º, 73º do Cód. Penal;

art. 86º alínea d) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro;

art. 4º do Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro


Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso em conformidade com o alegado em sede de motivação, assim sendo feita Justiça!»


4. Respondeu o Ministério Público na 1.ª instância, concluindo:


«CONCLUSÕES:

1. O recurso ora interposto pelo arguido AA versa tão só matéria de direito, visando apenas impugnar a subsunção jurídica dos factos efectuada pelo Tribunal recorrido, e, por via dela, as penas parcelares e a pena única encontradas, e, finalmente, a opção de não aplicação do regime jurídico do jovem delinquente.

2. O recurso de matéria de direito de decisão que aplique pena de prisão superior a 5 anos é apresentado ao STJ, conforme Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º5/2017 de 27/04/2017, publicado no DRE n.º 120/2017, Série I de 2017-06-23.

3. Competente para apreciar o presente recurso não é o Tribunal da Relação de Coimbra, para onde erroneamente o arguido o dirige, mas sim o Supremo Tribunal de Justiça.

4. Provou-se que das duas vezes em que foi detido, o arguido tinha em sua posse, da primeira vez, 19,175 gramas com um grau de pureza médio de 53%, e da segunda vez 33,770 gramas, correspondendo, respectivamente, a 337 e 101 doses individuais, e ainda a quantia de 1.020 euros em dinheiro proveniente da venda de tais produtos estupefacientes.

5. O arguido deslocava-se de comboio à cidade .. para adquirir tais substâncias que depois vendia em … a quem para tanto o abordasse.

6. O tipo base ou comum do tráfico de produtos estupefacientes é definido no art. 21.º do DL 15/93 que prevê todo e qualquer acto relativo a produtos estupefacientes identificados nas tabelas anexas, desde a produção, transporte ou venda, mera detenção ou aquisição não previstas no art. 40.º do mesmo diploma – aquisição para consumo.

7. O crime de tráfico privilegiado previsto no artigo 25º do Decreto-Lei n.º 15/93 exige que a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída, numa valoração global do facto, em razão de circunstâncias objectivas concretas, designadamente dos meios utilizados pelo agente, a modalidade e circunstâncias da acção e a quantidade e qualidade dos produtos transaccionados, tendo em conta, não só as circunstâncias que o preceito enumera de forma não taxativa, mas ainda outras que apontem para aquela considerável diminuição.

8. O art. 25º, ao estabelecer uma pena mais leve, impõe ao intérprete que equacione se a imagem global do facto se enquadra ou não dentro dos limites das molduras penais dos arts. 21º e 22º, sob pena de a reacção penal ser, à partida, desproporcionada.

9. A actividade levada a cabo pelo arguido prolongou-se durante pelo menos 6 meses, o produto em questão se trata de cocaína (de maior danosidade atentos os efeitos nefastos que lhe estão associados, o que desde logo se reflete nos limites cuja detenção é permitida para efeitos de consumo de acordo com a tabela anexa à Lei da Droga) e na totalidade, o produto apreendido das duas vezes ao arguido seria suficiente para 438 doses individuais.

10. O arguido não é consumidor de cocaína, pelo que tais vendas não se destinavam a custear o seu consumo daquela substância.

11. Só de uma vez tinha o arguido em sua posse a quantia de 1.020€, em notas de 20,00€ e 10,00€, ou seja tudo fruto da venda daquelas substâncias, não se estando pois perante um “vulgar vendedor de rua” cujo lucro consiste na aquisição do próprio estupefaciente de que necessita para satisfazer as suas necessidades adictivas.

12. Todas estas circunstâncias concretas afastam, pois, qualquer juízo que permita uma considerável diminuição da ilicitude do arguido e reconduz necessariamente a sua actividade à descrita e proibida pelo art. 21.º do DL 15/93.

13. A al. d) do n.º1 do art. 86.º Regime Jurídico das Armas e Munições (RJAM) na sua parte final inclui em tal punição “as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º”.

14. Por sua vez, as als. q) e r) do n.º 2 do art. 3.º do referido regime referem-se às “munições com bala perfurante, explosiva, incendiária ou tracejante, que não estejam integradas em coleções ou sejam destinadas a esse fim” e “munições expansivas, exceto se destinadas a práticas venatórias ou coleção quando autorizadas e as constantes da alínea d) do n.º 3”

15. O art. 2.º, n.º 3 da mesma Lei define o que entender por cada uma destas munições.

16. Do exame pericial de balística junto aos autos, resulta que as 9 munições apreendidas ao arguido são munições de arma de fogo com projéctil encamisado, de percursão central, definidas nas als. p), u) e ac) do n.º 3 do art. 2.º do RJAM, os quais se encontram descritos na al. u) do art. 3.º, n.º2 do mesmo diploma, munição esta que não está incluída nas als. q) e r) do n.º2 do art.º 3.º logo também não integra a punição da al. d) do n.º1 do art. 86.º do RJAM.

17. As munições apreendidas ao arguido são munições da classe B1, uma vez que se destinavam a ser usadas em arma de fogo dessa mesma classe, como decorre do disposto na al. a) do n.º 4 do art. 3.º, por força no n.º 1 desse mesmo artigo, do RJAM, pelo que, e concluímos a sua detenção sem a necessária licença de uso e porte da arma a que se destinavam se encontra punida na al. c) do n.º1 do art. 86.º do mesmo regime jurídico, não tendo por isso o Tribunal efectuado qualquer errónea subsunção jurídica dos factos.

18. O regime previsto no DL 401/82 de 23/09 não é de aplicação automática, não bastando estarmos perante um jovem com idades compreendidas entre os 16 e os 21 para que forçosamente ter de beneficiar de tal atenuação especial da pena.

19. Resulta da douta decisão ora posta em crise que o Tribunal não se esqueceu de ponderar a possibilidade de aplicar tal regime, antes, cumprindo o regime da 14 de 16

oficiosidade do mesmo ponderou e analisou em concreto todas as circunstâncias que poderiam em abstracto permitir que o arguido beneficiasse de tal atenuação especial, para todavia concluir que não se encontrava reunido nenhum outro requisito que não o da idade.

20. O arguido não tem emprego nem procurou qualquer integração laboral, bem pelo contrário, depois de lhe ter sido dada uma primeira oportunidade, continuando em liberdade após a primeira detenção e sua sujeição a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido não se coibiu de prosseguir normalmente a sua actividade de compra e venda de estupefacientes, até ser detido a segunda vez.

21. Não apresenta qualquer plano para um futuro válido e inserido em sociedade.

22. A sua confissão mais não foi que mera estratégia de defesa já que na verdade a prova contra si existente nos autos era de tal modo forte que tal confissão não foi mais que o aceitar a evidência dos mesmos, pelo que não se vê que relevo pretende agora que seja dada a essa mesma confissão.

23. Estamos perante um crime muito grave – tráfico de estupefacientes – sendo certo que o arguido nem sequer consumia as substâncias que vendia, demonstrando pois estar ciente da danosidade da sua conduta mas ser indiferente ao resultado da mesma para terceiros.

24. As penas, parcelares e única, em que o arguido foi condenado foram aplicadas com muito acerto, pelo que deverão ser integralmente confirmadas.

25. Ainda que assim se não entenda, o que só por mera hipótese de raciocínio aqui se equaciona, desde já acrescentamos que caso o arguido venha a ser condenado em pena de 5 ou menos anos de prisão, tal pena necessariamente terá de ser efectiva.

26. A suspensão da execução da pena apenas deverá ser aplicada nos casos em que seja possível fazer um juízo de prognose favorável, centrado no arguido e no seu comportamento futuro.

27. Como juízo de prognose que é, não encerra em si uma certeza, mas apenas a esperança fundada de que a socialização do arguido em liberdade se consiga realizar.

28. A decisão sobre a suspensão da execução da pena terá que apreciar os factos relativos à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste e apurar se é possível, no caso concreto, uma prognose favorável ao nível da prevenção especial de socialização e, sendo a mesma possível, terá também que se ponderar se as exigências de reprovação e prevenção geral ficarão satisfeitas com a aplicação de tal pena.

29. As exigências de prevenção especial são prementes relativamente ao arguido recorrente em do crime em causa – tráfico de estupefacientes – e concretamente do tipo e da quantidade de estupefacientes que foram apreendidas na posse do arguido (cocaína, logo muito mais nociva), sendo pacífico jurisprudencialmente que neste tipo de crimes só muito excepcionalmente se deverá admitir a aplicação de penas de substituição.

30. O facto de o arguido ter sido detido por duas vezes na prática de tais factos e a primeira detenção e sujeição a medidas de coacção não privativas da liberdade não terem surtido qualquer efeito, continuando aquele a traficar indiferente à possibilidade de que caso fosse de novo detido, como foi, lhe poderia ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.

31. A total ausência de inserção laboral por parte do arguido, que não tendo trabalho procurou na venda de estupefacientes uma forma fácil para se sustentar.

32. A prognose sobre o comportamento futuro do arguido AA à luz das considerações de prevenção especial de socialização é negativa, também as exigências de prevenção geral neste tipo de crime são elevadas.

33. A aplicação da pena substitutiva de suspensão da execução da prisão não iria satisfazer a finalidade primordial de restabelecer a confiança comunitária na validade da norma violada e na eficácia do sistema jurídico-penal.

34. A suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido recorrente se mostraria desajustada no caso dos autos por não ser possível efectuar qualquer juízo de prognose positiva a respeito da conduta futuro do arguido.»


5. Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu o proficiente parecer que se transcreve:


«Do recurso


1 - O arguido AA foi submetido a julgamento no Juízo Central Criminal de …, comarca de …, vindo a ser condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21, nº 1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-B e I-C, anexas àquele diploma, na pena de 5 anos de prisão e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão. Em cúmulo jurídico destas penas, foi condenado na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão.


2 - O arguido AA inconformado com aquela decisão, da mesma interpôs o presente recurso. Questiona o enquadramento jurídico dos factos dados como provados, considerando que os integradores do crime de tráfico de estupefaciente deviam ter sido subsumidos ao tipo previsto no art. 25, do Decreto Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, “porquanto o arguido actuou como um traficante de rua, difundiu pequenas quantidades de substâncias estupefacientes ilícitas, por um reduzido número de compradores, numa actividade em que não evidenciou qualquer organização e/ ou sofisticação e em que não dispunha de intermediários nem colaboradores.”

Discorda também da subsunção jurídica da factualidade relativa à posse das munições e considera que a mesma deveria ter sido enquadrada na al. d) e não na al. c), do nº 1, do art. 86º, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Questiona, depois, a decisão relativa à escolha e determinação da medida da pena que lhe foi aplicada, entendendo que, mesmo no enquadramento jurídico feito pela decisão recorrida, as penas parcelares e única são excessivas e pretende a sua redução.

Argumenta que a pena relativa ao crime de tráfico deveria ter sido fixada em medida próxima do limite mínimo e que o Tribunal recorrido deveria ter optado pela pena de multa no que respeita ao crime referente à detenção das munições. Alega também que, ao contrário do decidido pelo Tribunal recorrido, se impõe a aplicação do regime penal dos jovens delinquentes decorrente do DL 401/82, de 23 de Setembro. Pretende a redução das penas parcelares e única e a suspensão da respectiva execução.


3 - A Magistrada do Ministério Público no Tribunal recorrido respondeu à motivação do recurso, sustentando o acerto da decisão impugnada.


4 - Não se suscitam, a nosso ver, quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, devendo o mesmo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art. 419, n.º 3, do CPP.


Do mérito


5 - Acompanhamos o entendimento e a argumentação constante da resposta ao recurso apresentada pela Magistrada do Mº Pº no Tribunal recorrido, no sentido de que o mesmo não merece provimento.

Com efeito, afigura-se-nos que o Tribunal fez uma ponderação justa e adequada das circunstâncias que rodearam a prática dos factos e valorou correctamente o grau de culpa manifestado, a ilicitude dos factos e as exigências de prevenção especial e geral que no caso ocorrem, como resulta evidente das considerações vertidas na decisão recorrida.


6 - Desde logo no que respeita ao enquadramento jurídico dos factos.

Na verdade, o grau da ilicitude dos factos praticados pelo arguido e ora recorrente impede o enquadramento da actividdae de tráfico que desenvolveu no tipo privilegiado previsto no art. 25, que pressupõe que a ilicitude seja consideravelmente diminuída, o que não ocorre no caso, como bem o demonstra a decisão recorrida.

Efectivamente, a natureza e quantidade dos produtos estupefacientes apreendidos e respectivo grau de pureza e o correspondente número de doses, mas também o modo de actuação e o período de tempo em que desenvolveu a actividade de venda, de onde retirou lucro fácil e relevante, não permitem considerar o grau de ilicitude como diminuto.

Não merece também qualquer reparo, cremos, a subsunção jurídica efectuada pela decisão recorrida no que respeita à detenção das munições apreendidas ao recorrente. Acresce que o arguido não indica as razões em que alicerça a sua discordância, apenas a afirma como evidente.


7 - Igualmente se nos afigura não merecer qualquer reparo a decisão relativa à escolha e determinação das penas parcelares e única fixadas, mostrando -se essa decisão justa, adequada e respeitadora dos parâmetros decorrentes dos critérios legais fixados nos arts 40, 71 e 77, do Código Penal,

A decisão recorrida fez uma análise e valoração criteriosas das circunstâncias que rodearam a prática dos factos, do grau de culpa manifestado, da ilicitude e das exigências de prevenção especial e geral que no caso ocorrem, consignando as razões pelas quais entendeu ser adequada a medida das penas que fixou e também porque entendeu não se verificarem os pressupostos para a aplicação do regime decorrente do DL nº 401/82.

Apesar da idade do arguido e de o mesmo ter confessado os factos e ter tido uma postura na audiência de julgamento de alguma contricção, que levou até o Tribunal recorrido a considerar como manifestação de arrependimento, não podemos esquecer todas as circunstâncias atinentes aos factos e à vida do próprio arguido. Nomeadamente o facto de ter prosseguido a sua actividade de tráfico apesar de ter sido detido em 20 de Setembro de 2018, de ter sido submetido a interrogatório judicial e de lhe ter sido imposta medida de coacção, desrespeitando as obrigações da mesma decorrentes. Vindo a ser de novo detido escassos meses depois, a 11 de Março de 2019, no âmbito da mesma actividade, tendo na sua posse quantidades superiores de produto estupefaciente e uma quantia monetária considerável, proveniente da actividade de venda.

Assim, tal como se realça na decisão recorrida para aferir da aplicação do regime penal para jovens delinquentes “há que analisar se no caso existem razões sérias para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social dos arguidos.” E a “adequada reinserção social do arguido, ou seja, a sua correcta reintegração na sociedade, depende de considerações de natureza preventiva, particularmente especial, cuja avaliação deve ter presente, designadamente, a gravidade do facto ou factos perpetrados e as suas consequências, o tipo e a intensidade do dolo, os fins que subjazem ao ilícito, o comportamento anterior e posterior e a personalidade do arguido à luz dos factos, isto é, neles manifestada e reflectida.” Mas “razões atinentes às necessidades de reprovação e de prevenção do crime poderão levar à preclusão da aplicação daquele regime, designadamente quando a ele se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.”

Perante as circunstâncias e as condições pessoais do arguido recorrente, tendo em conta, nomeadamente, que “não apresenta inserção laboral ou perspectivas de esforço nesse sentido”, não podemos deixar de concordar com o Tribunal recorrido quando concluiu pela não aplicação daquele regime.


Desta forma e ao contrário do que alega o recorrente, a nosso ver, as penas, parcelar e única, aplicadas são adequadas e proporcionais à gravidade dos factos e à perigosidade do agente pelo que não vemos qualquer fundamento para que as mesmas sejam reduzidas.



*


Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido.»


6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, e nada tendo sido dito, com dispensa de vistos e realizada a conferência, uma vez que não foi requerido o julgamento em audiência [cfr. artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 2, alínea c), do CPP], há que decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Factos


O Tribunal Colectivo considerou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):


1 - Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Setembro de 2018, que o arguido AA se vem dedicando, à venda a outras pessoas de produtos contendo cocaína e canabis.

2 - Para tanto, o arguido AA desloca-se a locais, na cidade de …, conotados com o tráfico e consumo desse tipo de produtos, designadamente o Largo ... e o Jardim ... onde é contactado por consumidores, que lhe adquirem tais produtos, pelo preço de 10,00 euros cada dose.

3 - Entre outros, o arguido AA tem vendido cocaína a GG e HH.

4 - No dia 20 de Setembro de 2018, cerca das 12 horas, o arguido AA dirigiu-se ao Largo …, …, transportando, no interior dos calções que trajava, produto contendo cocaína.

5 - Aí chegado o arguido AA dirigiu-se a um individuo, cuja identidade não foi possível apurar, e vendeu-lhe uma dose de produto contendo cocaína, pelo preço de 10,00 euros, que recebeu do mesmo.

6 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar o arguido AA tinha consigo:

6.1 - no interior dos boxers que trazia vestidos, sete saquetas de plástico:

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met), com o peso líquido de 12,166 gramas e grau de pureza de 52,8%, correspondente a 214 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,488 gramas e grau de pureza de 53,7%, correspondente a 26 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,591 gramas e grau de pureza de 54%, correspondente a 28 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,590 gramas e grau de pureza de 52,5%, correspondente a 27 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,641 gramas e grau de pureza de 52,6%, correspondente a 28 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,504 gramas e grau de pureza de 53,5%, correspondente a 26 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 0,875 gramas e grau de pureza de 53%, correspondente a 15 doses.

6.2 - na capa de protecção de um telemóvel que guardava na bolsa que usava, o arguido tinha uma folha de x-acto que se destinava a cortar as doses individuais de cocaína para posterior venda;

6.3 - no interior de uma bolsa, que usava a tiracolo, e dentro de uma embalagem de plástico, o arguido tinha 9 munições de calibre 6,35.

7 - O arguido destinava aquele produto contendo cocaína à venda a consumidores do mesmo.

8 - O arguido AA não possuía licença para detenção das munições que consigo guardava.

9 - O arguido AA actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não possuía licença para detenção das munições que lhe foram apreendidas, bem sabendo que essa sua conduta era proibida e punida por lei.

10 - No dia 11 de Março de 2019, cerca das 10:40 horas, o arguido AA e o arguido DD, dirigiram-se ao Jardim …, em …, com o propósito de venderem produtos contendo cocaína e canabis resina aos consumidores desses produtos que ali se encontravam.

11 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar e quando procediam à venda desses produtos, os arguidos foram surpreendidos pelos agentes da PSP que por ali circulavam, em serviço de fiscalização.

12 - Acto continuo, os arguidos, pretendendo evadir-se à acção da policia, começaram a dispersar para a parte de cima do Jardim … .

13 - Aí chegados, próximo de um banco de jardim, o arguido AA, retirou do seu bolso um embrulho de plástico com produto contendo cocaína (cloridrato), com o peso liquido de 33,770 gramas correspondendo a 101 doses que escondeu num buraco junto de uma árvore, tapando-o, de imediato, com pedaços de arbusto.

14 - Em seguida, o arguido AA voltou para o banco de jardim, onde estava o arguido DD e consumidores daquele tipo de produtos.

15 - Então, os arguidos foram abordados pelos agentes da Polícia de Segurança Pública.

16 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA tinha consigo:

16.1 - no bolso traseiro das calças que trajava, a quantia de 1.020 euros, em 28 notas de 20 euros e 46 notas de 10 euros;

16.2 - uma navalha de marca “Albainox”, com o comprimento de lâmina de 8,5 cm e comprimento total de 19,5 cm;

16.3 - uma embalagem de produto vegetal prensado contendo canabis resina, com o peso líquido de 1,687gramas, com um grau de pureza de 16,7 % (THC), correspondente a 5 doses, bem como um cigarro contendo resíduos de substância idêntica.

17 - Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, o arguido DD tinha consigo:

17.1 - no interior das cuecas que trajava: 275 euros em seis notas de 20 euros, 13 notas de 10 euros e cinco notas de 5 euros;

17.2 - um envelope com produto vegetal prensado contendo canabis resina, com o peso líquido de 2,492 gramas, com um grau de pureza de 14,7 5 (THC), correspondente a 7 doses;

17.3 - dois telemóveis de marca Samsung e um I PHONE S; 17.4- uma navalha de pequenas dimensões, de marca Alpino.

18 - No período considerado nos autos, os arguidos não tinham qualquer actividade profissional, sustentando-se através do dinheiro que recebiam da actividade de venda daqueles produtos.

19 - Os referidos produtos apreendidos aos arguidos destinavam-se a ser vendidos aos consumidores que, para o efeito, os procurassem.

20 - As quantias em dinheiro apreendidas aos arguidos resultaram de vendas de produtos contendo cocaína ou canabis que os mesmos, anteriormente, efectuaram.

21 - As navalhas apreendidas eram utilizadas pelos arguidos no corte e divisão das substâncias que depois vendiam a consumidores dos referidos produtos.

22 - Os telemóveis apreendidos ao arguido DD eram utilizados nos contactos relacionados com o tráfico dos referidos produtos.

23- O arguido AA adquiria os referidos produtos contendo cocaína e canabis na cidade …, onde se deslocava de comboio.

24 - O arguido DD adquiria aqueles produtos a pessoa não identificadas e em local não concretamente apurados.

25 - Os arguidos conheciam bem as características e a natureza dos aludidos produtos que guardavam e que cediam, a troco de dinheiro, a quem os procurava para o efeito, tal como o fizeram em datas e em número de vezes não concretamente apuradas.

26 - Os arguidos haviam adquirido aqueles produtos a indivíduos cuja identidade não se logrou apurar, e destinavam-nos à cedência a outras pessoas, a troco de dinheiro.

27 - Os arguidos actuaram, em todas as circunstâncias descritas, sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de cederem, a troco de dinheiro, os referidos produtos contendo cocaína e cannabis, bem sabendo que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

28 - No registo criminal do arguido AA nada consta.

29 - O arguido AA confessou integralmente e sem reservas os factos imputados.

30 - O arguido AA mostra arrependimento.

31 - O arguido AA nasceu a … de Agosto de 2000, na …, …, onde viveu até aos 8 anos de idade, sendo o mais velho de dois irmãos germanos, tendo ainda duas irmãs uterinas mais novas.

32 - Quando o arguido tinha 8 anos de idade os pais separaram-se, ficando o mesmo e irmã aos cuidados do pai, que iniciou novo relacionamento amoroso e mudou residência para … .

33 - Após a separação, a mãe imigrou para … onde constituiu nova família, mantendo um relacionamento apenas através de contactos telefónicos.

34 - A relação do arguido AA com o pai e com a madrasta era de conflituosidade, verificando-se dificuldades de entendimento com ambos.

35 - Aos 14 anos de idade, o arguido desentendeu-se com o pai e foi viver para casa da mãe que, entretanto, havia voltado para Portugal, tendo fixado residência na … .

36 - A mãe vivia com o novo companheiro e as duas irmãs uterinas, e o arguido teve dificuldades de integração, pelo que, passados poucos meses, voltou a morar juntamente com o pai.

37 - O arguido AA iniciou a frequência escolar aos 6 anos de idade e abandonou aos 17 anos após concluir o 11º ano de escolaridade.

38 - O arguido AA iniciou consumo de haxixe, na adolescência o que manteve até ser preso; em contexto prisional, mantém-se abstinente, desvalorizando a necessidade de qualquer acompanhamento/tratamento para essa problemática.

39 - Aos 17 anos de idade, devido a dificuldades de entendimento com o pai e com a madrasta, o arguido AA saiu de casa e foi viver em casa de amigos e/ou em pensões na zona de … .

40 - O arguido AA foi jogador de futebol … entre os 6 e os 17 anos de idade, tendo desistido desta modalidade devido ao modo de vida que passou a desenvolver.

41 - A nível laboral apenas manteve uma curta experiência de aprendiz de mecânico, na oficina de automóveis de que o pai é proprietário.

42 - O arguido AA mantém uma relação de namoro há cerca de 3 anos com uma jovem (II) da sua idade; quando aquele saiu de casa do pai, a namorada passou a acompanha-lo e viviam maritalmente.

43 - O arguido AA, à data dos factos supra referidos, encontrava-se em situação de inactividade quer escolar/formativa, quer laboral; também não mantinha actividade lúdica, cultural ou desportiva, passando o seu tempo junto ao grupo de colegas (entre os quais o arguido DD), também sem qualquer tipo de ocupação.

44 - Em 20 de Setembro de 2018, o arguido AA foi detido e submetido a interrogatório judicial, ficando sujeito a proibição de se deslocar à cidade … e de frequentar em … locais conotados com o tráfico de estupefacientes bem como proibido de manter contactos com indivíduos referenciados como estando envolvidos nesse consumo e/ou tráfico.

45 - Em 11 de Março de 2019, o arguido AA foi detido e sujeito a interrogatório judicial sendo-lhe imposta a medida de coacção de prisão preventiva, no presente processo.

46 - Após a prisão do arguido AA, a companheira (II) passou a residir em casa da mãe deste; o padrasto do arguido trabalha numa empresa de família em ... onde permanece durante a semana e desloca-se a casa quinzenalmente, aos fins-de-semana.

47 - No registo criminal do arguido DD nada consta.

48 - O arguido DD não manifesta arrependimento.

49 - O arguido DD nasceu a … de Novembro de 2001, em …, fruto regista de uma relação de “curta duração” entre a mãe e o pai.

50 - O percurso escolar do arguido DD regista reprovações no 7º e 8º anos de escolaridade, por falta de empenho, fraca assiduidade e problemas disciplinares.

51 - Nesse contexto, a mãe pediu ajuda a CPCJ devido aos problemas de comportamento que o arguido apresentava em contexto familiar; foi desenvolvida terapia familiar pelo CEIFA… (Centro Integrado de Apoio Familiar), tendo a intervenção terminado dada a recusa de colaboração evidenciada pela mãe, vindo o processo a ser remetido ao EMAT-Tribunal de Família e Menores.

52 - O arguido DD vive com a mãe e dois irmãos uterinos – um de 20 anos, com patologia de paralisia cerebral e outra de 4 anos de idade; o padrasto incompatibilizou-se com a mãe e abandonou a casa em Agosto de 2019.

53 - A mãe do arguido DD Esta ocupa-se como cuidadora do pai, que se encontra acamado, assim como executa tarefas em empresa …; a família beneficia de RSI, habitando em casa da Câmara, pagando uma renda consoante o montante dos seus rendimentos.

54 - O arguido DD mantém “contactos ocasionais” com o pai, que constituiu outra família, residindo em … .

55- O arguido DD encontra-se inactivo, tendo abandonado o curso profissional de …, de 3º ciclo, no Instituto Técnico Artístico e Profissional (ITAP), devido a reprovação por faltas.

56 - O arguido DD mantém relacionamento de namoro com uma jovem, de 16 anos, inserida no CAT …, Casa da Mãe, possuindo o casal uma filha de 14 meses de idade que permanece com a mãe.

57 - O arguido DD desloca-se àquela instituição para visitar a filha e a namorada.

58 - O arguido DD reconhece os seus consumos de canabis, em contexto de convívio com o seu grupo de amigos; não está inserido em processo terapêutico nos serviços especializados, considerando-se um consumir ocasional.


***


Factos não provados

Nenhuns outros factos relevantes para a discussão da causa se provaram em audiência de julgamento, nomeadamente não se provou:

I - qual o motivo/finalidade das munições que o arguido AA tinha consigo;

II - que as sete doses de canabis resina que o arguido DD tinha consigo fossem para seu consumo.»


2. Âmbito do recurso


Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites de cognição do Tribunal Superior.

   

Das conclusões do recurso, extrai-se serem as seguintes as questões que o recorrente propõe à apreciação deste Supremo Tribunal:


- Enquadramento jurídico - erro na qualificação jurídico-penal dos crimes de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida;

- Escolha e determinação da medida das penas parcelares e da pena única aplicadas;

- Não aplicação do regime penal dos jovens adultos;

- Suspensão da execução da pena.


3. Apreciação


3.1. Qualificação jurídica dos factos


3.1.1. Quanto ao crime de detenção de arma proibida


De acordo com a matéria de facto provada, no dia 20 de Setembro de 2018, cerca das 12 horas, o arguido AA tinha consigo, no interior de uma bolsa, que usava a tiracolo, e dentro de uma embalagem de plástico, 9 munições de calibre 6,35 que foram apreendidas. Não possuía licença para detenção dessas munições. Actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não possuía licença para detenção das munições que lhe foram apreendidas, bem sabendo que essa sua conduta era proibida e punida por lei.


Alega o recorrente na 5.ª conclusão que, «No que tange às munições cuja posse foi confessada pelo arguido (9 munições de calibre 6.35), tal facto haveria de ter sido subsumido à alínea d) do art. 86º da chamada "Lei das Armas" e não ao disposto na alínea c) do mesmo normativo.»


Não questiona a ilicitude da detenção das armas.

O que discute é a concreta subsunção jurídica operada no acórdão recorrido nos seguintes termos:


«[…] - Crime de detenção de arma proibida

O artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23.02, prevê:

Nº 1- Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:

c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

Para o que agora interessa, o artigo 2º, nº 3 define:

- alínea p) «Munição de arma de fogo» o cartucho ou invólucro ou outro dispositivo contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do projéctil ou de múltiplos projécteis, quando introduzidos numa arma de fogo;

- alínea u) «Munição com projéctil encamisado» a munição com projéctil designado internacionalmente como full metal jacket (FMJ), com camisa metálica que cobre o núcleo em toda a sua extensão, com excepção, ou não, da base;

- alínea ac) «Percussão central» o sistema de ignição de uma munição em que o percutor actua sobre a escorva ou fulminante aplicado no centro da base do invólucro;

Por seu lado, o artigo 3º estabelece:

- nº 1 - As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.

- nº 4 - São armas da classe B1:

a) As pistolas semiautomáticas com os calibres denominados 6,35 mm Browning (.25 ACP ou .25 Auto).

Provou-se que:

No dia 20 de Setembro de 2018, o arguido AA tinha consigo, entre o mais, no interior de uma bolsa, que usava a tiracolo, e dentro de uma embalagem de plástico, 9 munições de calibre 6,35.

O arguido AA não possuía licença para detenção das munições que consigo guardava.

O arguido AA actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que não possuía licença para detenção das munições que lhe foram apreendidas, bem sabendo que essa sua conduta era proibida e punida por lei.

Estes factos integram o cometimento do imputado crime de detenção de arma proibida nos termos previstos nas citadas normas.»


No acórdão recorrido, para a subsunção jurídico-penal da detenção das munições pelo arguido, foi convocada a alínea c) do n.º 1 do artigo 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, disposição acima reproduzida. Porém, a correcta tipificação há-se fazer-se por via da alínea d) do mesmo preceito que prescreve:


«1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:

[…]

d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;

[…].»


O sentido textual da 2.ª parte da norma transcrita, referenciando o universo das munições de armas de fogo, justifica a sua aplicação à situação de facto provada relativa à detenção das 9 munições de arma de calibre 6,35, assistindo, portanto, razão ao recorrente nesta parte.

O crime correspondente deverá, pois, ser punido nos termos da indicada disposição normativa.


3.1.2. Quanto ao crime de tráfico de estupefacientes


Sustenta ainda o recorrente – conclusões 3.ª e 4.ª – que a sua conduta deve ser subsumida ao crime de tráfico de menor gravidade do artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93.


Revisitando as considerações tecidas no acórdão deste Supremo Tribunal de 20-12-2017, proferido no processo n.º 1366/14.0TABABF.S1 – 3.ª Secção[1], relatado pelo agora relator:

A descrição fundamental, a matriz típica do crime de tráfico de estupefacientes encontra-se acolhida no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, que dispõe:


«1. Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar fabricar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas ou substâncias, ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.»


Esta previsão legal contém a descrição do tipo base, matricial, contemplando «um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação».


Consagra-se no citado artigo 21.º, n.º 1, um tipo de crime que, tem sido sistematicamente caracterizado como um crime de perigo comum e abstracto.


Convocando-se o acórdão deste Supremo Tribunal, de 19-11-2008 (Proc. n.º 08P3454):


«A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.

Crime de perigo abstracto é o crime que não pressupõe nem o dano nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para casuar um perigo para um desses bens jurídicos. Os tipos de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência conduzem á lesão não dependendo a perigosidade do facto concreto mas si de um juízo de perigosidade geral

É, assim, de um crime de perigo que tratamos, e de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos designadamente de carácter pessoal- reconduzidos á saúde pública. Finamente é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo desses bens jurídicos.»


O artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93 prevê o crime de tráfico de menor gravidade, estabelecendo que:


«Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:


a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V a VI

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.»


Como justificação, em temos dogmáticos, da existência deste tipo legal, tecem-se importantes considerações no acórdão de 19-11-2008, há pouco citado, retomadas no acórdão de 18-02-2016, proferido no processo n.º 35/14.6GAAM – 3.ª Secção, do mesmo relator (Cons. Santos Cabral), que importa apreender:


«Trata-se, como é entendido na jurisprudência e na doutrina de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre “consideravelmente diminuída” em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.

A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devam ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de “considerável diminuição de ilicitude”.

As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios; na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas. Na sua essência o que pretende é estabelecer-se a destrinça entre realidades criminológicas distintas que, entre si, apenas têm de comum o facto de constituírem segmentos distintos de um mesmo processo envolvido no perigo de lesão. Na verdade, o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo leal de crime de condutas de matriz tão diverso como o tráfico internacional envolvendo estruturas organizativas integradas e produto de quantidades e qualidades muito significativas e negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização actuando isoladamente, sem estrutura, e como mero distribuidor. Num segmento intermédio, mas nem por isso despojado, em abstracto, de significativa ilicitude situa-se o tráfico interno, muitas vezes com uma organização rudimentar (e com tendência a uma compartimentação cada vez maior dificultando a investigação).

Função essencial na interpretação do tipo em questão assume a referência feita pelo legislador no proémio do D.L. 430/83 quando já aí demonstrava a sensibilidade á diversidade de perfis de actuação criminosa dizendo que “Daí a revisão em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer o papel essencial que os dealers de rua representam no grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que ao invés se force ou use indevidamente uma atenuante especial”.

A relevância de tal pressuposto também é adequada para a prossecução de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (artigos 21º, 22º e 24º) e os pequenos e médios (artigo 25º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26º)».


O crime de tráfico de menor gravidade caracteriza-se, assim se tem considerado, por constituir um minus relativamente ao crime matricial, fundamental, ou seja, ao crime do art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, apresentando-se, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 05-11-2014 (Proc. n.º 99/14.2YRFLS – 3.ª Secção), como «um facto típico cujo elemento distintivo do crime-tipo reside, apenas, na diminuição da ilicitude, redução que o legislador impõe seja considerável, indicando como factores aferidores de menorização da ilicitude, a título meramente exemplificativo, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção e a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações».


Como também já se dava nota no acórdão de 20-01-2010 (Proc. n.º 18/06.GAVCT.S1 – 3.ª Secção), constitui jurisprudência constante deste Supremo Tribunal o entendimento de que o privilegiamento do crime de tráfico dá-se exclusivamente, em função de uma considerável diminuição da ilicitude do facto.


A aferição de qualquer situação de tráfico no sentido de saber se se deve ou não qualificar como de menor gravidade não pode prescindir de uma análise de todas as circunstâncias objectivas que em concreto se revelem e sejam susceptíveis de aumentar ou diminuir a quantidade do ilícito (citado acórdão de 05-11-2014).

Assim, e para além das circunstâncias atinentes aos factores de aferição da ilicitude indicados no texto do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, já atrás citados, há que ter em conta todas as demais susceptíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzam uma menor perigosidade da acção e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado, sendo certo que para a subsunção de um comportamento delituoso (tráfico) àquele tipo privilegiado, como vem defendendo este Supremo Tribunal, torna-se necessária a valorização global do facto, tendo presente que o legislador quis aqui incluir os casos de menor gravidade, ou seja, aqueles casos que ficam aquém da gravidade do ilícito justificativa do crime-tipo, o que tanto pode decorrer da verificação de circunstâncias que, global e conjugadamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, como da não ocorrência (ausência) daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs se verificarem habitualmente nos comportamentos e actividades contemplados no crime-tipo, isto é, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para integração da norma que prevê e pune o crime-tipo (v. acórdãos do Supremo tribunal de Justiça de 20-12-2006, proferido no processo n.º 3059/06 – 3ª Secção, e de 20-01-2010, proferido no processo n.º 18/06.GAVCT.S1 – 3.ª Secção)).


Como este Supremo Tribunal tem entendido, o tipo legal de crime de tráfico de menor gravidade procura dar resposta, em nome da proibição de excesso, da equidade e da justiça, àquelas situações que, sem atingirem a gravidade pressuposta no tráfico simples, merecem reprovação

Os critérios de proporcionalidade que devem estar ínsitos na definição das penas constituem também, como justamente se salienta no acórdão deste Supremo Tribunal de 19-11-2008 (Proc. n.º 08P3454), um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».


Acresce, como se pondera no acórdão do Supremo Tribunal de 13-04-2005 (Proc. n.º 05P459), «a densificação da noção de “ilicitude considerável diminuída”, tendo, embora, como referências ainda a indicação dos critérios da lei, está fortemente tributária da intervenção de juízos essencialmente prudenciais, permitidos (e exigidos) pela sucessiva ponderação da praxis judicial perante a dimensão singular dos casos submetidos a julgamento».

A qualificação diferencial entre os tipos base (artigo 21º, nº 1) e de menor intensidade (artigo 25º) «há-de partir, lê-se no mesmo acórdão, da consideração e avaliação global da complexidade específica de cada caso em avaliação, não obstante, segundo modelos objectivos e com projecção de igualdade, e não exasperadamente casuística ou fragmentária.

A gravidade à escala assim delineada encontra tradução na conformação da acção típica, enquanto não prescinde de a ilicitude, ou seja o demérito da acção típica, na sua expressão de contrariedade à lei, ser consideravelmente reduzida, um acto de repercussão ética de menor gravidade, em função da consideração, além do mais, dos meios utilizados, da modalidade ou circunstância da acção, da qualidade ou quantidade das substâncias ou preparações – alínea a) do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93.


Essa ponderação, tal como este STJ tem repetidamente afirmado, não prescinde, antes exige, uma valoração global do evento, sem fazer avultar um seu elemento em detrimento do outro».


Perante as considerações expostas, dir-se-á, em síntese conclusiva, que o que distingue o crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, do crime previsto no artigo. 25.º do mesmo diploma, reside na menor ilicitude da conduta punida neste último dispositivo.

Segundo a lei constituem factores relevantes dessa menor ilicitude, os meios utilizados na venda do estupefaciente, a modalidade e circunstância em que a conduta é realizada, a qualidade e quantidade do produto vendido, entre outros factores que se revelem no caso concreto que possam diminuir a ilicitude da conduta realizada.


Refira-se também que, perante um tipo legal que apresenta o já referido espaço alargado de indeterminação quanto à caracterização da ilicitude como diminuta, se justifica o recurso à jurisprudência para que, com alguma constância e previsibilidade, se possa determinar o que integra a menor ilicitude num comportamento de tráfico de estupefacientes.

Neste domínio, tem-se considerado que será a partir de uma análise global dos factos que se procederá à atribuição de um significado unitário quanto à ilicitude do comportamento (neste sentido, o acórdão do STJ de 07-12-2011, proferido no processo n.º 111/10.4PESTB.E1.S1 – 5.ª Secção), avaliando não só a quantidade, como a qualidade do produto vendido, o lucro obtido, o facto de a actividade constituir ou não modo de vida, a utilização do produto da venda para a aquisição de produto para consumo próprio, a duração e intensidade da actividade desenvolvida, o número de consumidores/clientes contactados e o «posicionamento do agente na cadeia de distribuição clandestina» [acórdão do STJ de 15-04-2010 (proc. n.º 17/09.0PJAMD.L1.S1 – 3.ª Secção)], a inexistência de uma estrutura organizativa, a ausência de recurso a qualquer técnica ou meio especial, a actuação numa matriz de simplicidade (v. acórdão do STJ de 19-11-2008, já citado).


Por seu turno, estaremos perante um comportamento a integrar no tipo fundamental de crime de tráfico de estupefacientes, previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, quando estamos perante um vendedor com uma actividade de média ou grande escala provocadora de uma danosidade social média ou elevada, sem que, no entanto, se atinja o grau de ilicitude agravada pressuposto no artigo 24.º do mesmo diploma.


No acórdão recorrido, justificou-se a integração da conduta do recorrente no tipo-matriz previsto no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, nos seguintes termos:


«Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos (artigo 21º do DL nº 15/93, de 22.01).

Segundo o artigo 25º (tráfico de menor gravidade):

Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações da tabela IV.

A cocaína e a canabis estão incluídas, respectivamente, nas tabelas I-B e I-C anexas ao DL nº 15/93, de 22.01.

*

Ficou demonstrado que o arguido AA detinha, nos moldes referidos, diversas quantidades de produto, umas contendo cocaína outras canabis, que foram apreendidas.

O arguido AA destinava tal produto à venda a outras pessoas.

O arguido conhecia as características e a natureza estupefaciente desses produtos contendo cocaína ou canabis, que trazia consigo, bem sabendo que a sua detenção é proibida por lei.

Tal comportamento, mais detalhadamente desenvolvido nos factos provados, concretiza o cometimento do crime de tráfico de estupefacientes.

Tendo em conta as quantidades de produto contendo cocaína e canabis, o respectivo grau de pureza, o modo de actuação do arguido AA, o dinheiro que tinha consigo e o período durante o qual desenvolveu a actividade de venda, não restam dúvidas de que o comportamento deste arguido se enquadra na previsão do artigo 21º, do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro.»


De acordo com a factualidade provada, o arguido, ora recorrente:


«1 - Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Setembro de 2018, que o arguido AA se vem dedicando, à venda a outras pessoas de produtos contendo cocaína e canabis.

2 - Para tanto, o arguido AA desloca-se a locais, na cidade de …, conotados com o tráfico e consumo desse tipo de produtos, designadamente o Largo … e o Jardim … onde é contactado por consumidores, que lhe adquirem tais produtos, pelo preço de 10,00 euros cada dose.

3 - Entre outros, o arguido AA tem vendido cocaína a GG e HH.

4 - No dia 20 de Setembro de 2018, cerca das 12 horas, o arguido AA dirigiu-se ao Largo …, …, transportando, no interior dos calções que trajava, produto contendo cocaína.

5 - Aí chegado o arguido AA dirigiu-se a um individuo, cuja identidade não foi possível apurar, e vendeu-lhe uma dose de produto contendo cocaína, pelo preço de 10,00 euros, que recebeu do mesmo.

6 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar o arguido AA tinha consigo:

6.1 - no interior dos boxers que trazia vestidos, sete saquetas de plástico:

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met), com o peso líquido de 12,166 gramas e grau de pureza de 52,8%, correspondente a 214 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,488 gramas e grau de pureza de 53,7%, correspondente a 26 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,591 gramas e grau de pureza de 54%, correspondente a 28 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,590 gramas e grau de pureza de 52,5%, correspondente a 27 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,641 gramas e grau de pureza de 52,6%, correspondente a 28 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 1,504 gramas e grau de pureza de 53,5%, correspondente a 26 doses;

- uma saqueta com produto contendo cocaína (ester met.), com o peso líquido de 0,875 gramas e grau de pureza de 53%, correspondente a 15 doses.

6.2 - na capa de protecção de um telemóvel que guardava na bolsa que usava, o arguido tinha uma folha de x-acto que se destinava a cortar as doses individuais de cocaína para posterior venda;

6.3 - no interior de uma bolsa, que usava a tiracolo, e dentro de uma embalagem de plástico, o arguido tinha 9 munições de calibre 6,35.

7 - O arguido destinava aquele produto contendo cocaína à venda a consumidores do mesmo.

[…]

10 - No dia 11 de Março de 2019, cerca das 10:40 horas, o arguido AA e o arguido DD, dirigiram-se ao Jardim …, em …, com o propósito de venderem produtos contendo cocaína e canabis resina aos consumidores desses produtos que ali se encontravam.

11 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar e quando procediam à venda desses produtos, os arguidos foram surpreendidos pelos agentes da PSP que por ali circulavam, em serviço de fiscalização.

12 - Acto continuo, os arguidos, pretendendo evadir-se à acção da polícia, começaram a dispersar para a parte de cima do Jardim … .

13 - Aí chegados, próximo de um banco de jardim, o arguido AA, retirou do seu bolso um embrulho de plástico com produto contendo cocaína (cloridrato), com o peso liquido de 33,770 gramas correspondendo a 101 doses que escondeu num buraco junto de uma árvore, tapando-o, de imediato, com pedaços de arbusto.

14 - Em seguida, o arguido AA voltou para o banco de jardim, onde estava o arguido DD e consumidores daquele tipo de produtos.

15 - Então, os arguidos foram abordados pelos agentes da Polícia de Segurança Pública.

16 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA tinha consigo:

16.1 - no bolso traseiro das calças que trajava, a quantia de 1.020 euros, em 28 notas de 20 euros e 46 notas de 10 euros;

16.2 - uma navalha de marca “Albainox”, com o comprimento de lâmina de 8,5 cm e comprimento total de 19,5 cm;

16.3 - uma embalagem de produto vegetal prensado contendo canabis resina, com o peso líquido de 1,687gramas, com um grau de pureza de 16,7 % (THC), correspondente a 5 doses, bem como um cigarro contendo resíduos de substância idêntica.

[…]

18 - No período considerado nos autos, os arguidos não tinham qualquer actividade profissional, sustentando-se através do dinheiro que recebiam da actividade de venda daqueles produtos.

19 - Os referidos produtos apreendidos aos arguidos destinavam-se a ser vendidos aos consumidores que, para o efeito, os procurassem.

20 - As quantias em dinheiro apreendidas aos arguidos resultaram de vendas de produtos contendo cocaína ou canabis que os mesmos, anteriormente, efectuaram.

21 - As navalhas apreendidas eram utilizadas pelos arguidos no corte e divisão das substâncias que depois vendiam a consumidores dos referidos produtos.

[…]

23 - O arguido AA adquiria os referidos produtos contendo cocaína e canabis na cidade …, onde se deslocava de comboio.

[…]

25 - Os arguidos conheciam bem as características e a natureza dos aludidos produtos que guardavam e que cediam, a troco de dinheiro, a quem os procurava para o efeito, tal como o fizeram em datas e em número de vezes não concretamente apuradas.

26 - Os arguidos haviam adquirido aqueles produtos a indivíduos cuja identidade não se logrou apurar, e destinavam-nos à cedência a outras pessoas, a troco de dinheiro.

27 - Os arguidos actuaram, em todas as circunstâncias descritas, sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de cederem, a troco de dinheiro, os referidos produtos contendo cocaína e cannabis, bem sabendo que todas as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.»


Estes factos, conjugadamente interpretados, fornecem uma imagem global do facto que exclui, sem hesitações, a considerável diminuição da ilicitude.

Com efeito, ainda que não resulte do provado um modus operandi sofisticado, as circunstâncias da acção e a qualidade (drogas duras) das substâncias que o recorrente detinha não denuncia considerável diminuição da ilicitude.

O arguido AA procedeu a concretos actos de tráfico de produtos estupefacientes – cocaína e haxixe –, numa actuação se prolongou, pelo menos, desde 20 de Setembro de 2018 a 11 de Março de 2019, em vários locais da cidade de …, abastecendo-se de tais produtos na cidade … .

As quantidades de estupefacientes que detinha nas duas ocasiões em que foi abordado já assumem um valor significativo, devendo sublinhar-se o facto de o produto dominante se tratar de cocaína, droga dura, correspondente a 465 doses.

O quadro global da sua actividade apresenta-se, não como um pequeno tráfico de rua, mas sim como um comércio retalhista de dimensão significativa, exercido de forma reiterada e consistente, em que se deverá salientar a circunstância de o recorrente ter persistido na actividade de tráfico após lhe ter sido apreendidas várias saquetas de produto contendo cocaína em 20 de Setembro de 2018.

De sublinhar ainda que o arguido no período considerado nos autos, não tinha qualquer actividade profissional, sustentando-se através do dinheiro que recebia da actividade de venda dos produtos estupefacientes.


Na valoração global do facto, as circunstâncias da acção não revelam que a ilicitude do facto seja consideravelmente diminuída.


Concordando com a apreciação e com o enquadramento jurídico-penal efectuado no acórdão recorrido e à luz das demais considerações tecidas, também entendemos que, na valoração global do facto, as circunstâncias da acção não revelam que a ilicitude do facto seja consideravelmente diminuída.


Por isso improcede o recurso quanto à pretendida subsunção jurídico-penal.


3.2. Escolha e determinação da medida das penas parcelares

3.2.1. Quanto ao crime de detenção de arma proibida

Na procedência, nessa parte, do recurso do arguido, a detenção das 9 munições de arma de calibre 6,35 passa a estar enquadrada jurídico-penalmente no artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, crime que é aí punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.

De acordo com o disposto no artigo 70.º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Como referem M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, «[p]erante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa (…) o tribunal tem de escolher a espécie de pena, dando preferência à pena não privativa da liberdade sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades da punição».

Ainda segundo estes autores, «as finalidades da punição são exclusivamente preventivas (art. 40.º)», devendo o tribunal «ponderar unicamente as necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto reclame»[2].

Também JOSÉ SOUTO DE MOURA considera que, «[n]a medida em que o art.º 70º do C.P. elege como critério da escolha da pena a melhor prossecução das finalidades da punição, na aplicação deste preceito importa, naturalmente, ter em atenção o disposto no art.º 40º do mesmo C.P. O qual (…) atribui à pena, sempre, um fim utilitário, pelo menos de acordo com a leitura largamente maioritária que é feita do preceito.

Assim sendo, a culpa, ou o grau de culpa, não são realidades a ponderar especificamente na tarefa de escolher a espécie da pena, antes têm o seu campo de incidência, privilegiado, na escolha da medida da pena. Daí que importe ver, se a opção pela pena de prisão se mostra necessária, adequada e proporcionada, ao serviço dos objectivos da prevenção geral e especial.

E, se em regra são razões de prevenção especial que respondem pela não aplicação da prisão, em nome de uma melhor reinserção social do arguido, também geralmente são motivos de prevenção geral, que afastam a aplicação de uma pena de substituição, não detentiva»[3].

No mesmo sentido, o entendimento de MARIA JOÃO ANTUNES quando salienta que são «finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção espacial (artigos 70.º e 40.º, n.º 1, do CP), que justificam e impõem a preferência por uma pena não privativa da liberdade (pena alternativa ou pena de substituição), sem perder de vista que a finalidade primordial é a de protecção de bens jurídicos. Não, por conseguinte, uma qualquer finalidade de compensação da culpa. Se a culpa é limite da pena (artigo 40.º, n.º 2, do CP), desempenha esta função estritamente ao nível da determinação da medida concreta da pena principal ou da pena de substituição (artigo 71.º, n.º 1, do CP)»[4].

No acórdão recorrido, no enquadramento jurídico-penal aí efectuado, pela alínea c) daquele preceito legal, correspondendo-lhe pena de prisão de 1 a 5 anos ou pena de multa até 600 dias, justificou-se assim a opção pela pena de prisão:

«Pena compósita alternativa

O crime de detenção de arma proibida é punido com pena compósita alternativa. Segundo o critério de escolha da pena estabelecido nos artigos 40º e 70º, não pode ser dada preferência à pena de multa quando a mesma não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição nem assegura a protecção dos bens jurídicos em causa ou a reintegração do agente na sociedade.

Com efeito, o facto de o arguido AA deter aquelas munições num contexto de venda de droga não permite concluir que a pena de multa seja adequada nem suficiente para atingir tais finalidades.

Objectivamente, está em causa, o problema da proximidade entre as armas e a droga e as necessidades de prevenção geral que tal impõe não se compadecem com pena de multa.»

Acompanhamos esta fundamentação.

Concordamos com a opção pela pena de prisão em detrimento da pena de multa pois entendemos que as circunstâncias apontadas referentes às exigências de prevenção desaconselham a opção pela pena não privativa da liberdade relativamente ao crime de detenção de arma proibida.

Entende-se, na verdade, que tal espécie de pena não se afigura adequada e suficiente perante as exigências de prevenção geral e especial aqui presentes.

Importa realçar que a detenção das munições ocorre aqui num contexto de tráfico de estupefacientes, observando-se uma evidente conexão entre tais ilícitos.

Por outro lado, e como este Supremo Tribunal tem entendido, e conforme acórdão de 12-02-2009, proferido no processo n.º 110/09, da 5.ª Secção, convocado nos acórdãos de 07-07-2016, proferido no processo n.º 444/14.0PBEVR.S1 – 3.ª Secção, de 18-01-2018, proferido no processo n.º476/13.6GTABF.S1 – 3.ª Secção, e de 21-11-2018, proferido no processo n.º 574/16.4PBAGH.S1 -3.ª Secção, «Sempre que, na pena única conjunta tenha de ser incluída uma pena de prisão, impõe-se, na medida do possível, não aplicar pena de multa a um ou mais dos demais crimes em concurso, por também aí se verificarem os inconvenientes geralmente atribuídos às chamadas “penas mistas” de prisão e multa».

No caso presente deparamo-nos com uma relação de concurso entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de tráfico de estupefacientes, este punido com pena privativa da liberdade.

Ora, como justamente é salientado no citado acórdão de 07-07-2016, «o juízo a fazer sobre a preferência pela aplicação de uma pena de multa, em detrimento da pena privativa da liberdade, é completamente diferente quando, face à prática de outro ou outros crimes, seja certo o cumprimento de uma pena de prisão por outro(s) crime(s)».

Mostra-se, pois, correcta, a opção assumida no acórdão recorrido de aplicação da pena de prisão em detrimento da pena de multa pela prática do crime de detenção de arma proibida.

Perante o enquadramento jurídico-penal da detenção das munições operado no acórdão recorrido, numa moldura penal de 1 a 5 anos de prisão, foi aplicada ao arguido-recorrente a pena de um ano e três meses de prisão, «considerando o número e calibre das munições bem como o contexto da sua detenção».

Em face do novo enquadramento que se efectuou, perante uma moldura penal de prisão de um mês (mínimo legal) até 4 anos, a pena terá de ser objecto de redução.

No crime de detenção de arma proibida, e como se lembra no acórdão deste Supremo Tribunal, de 07-11-2018, proferido no processo n.º 161/15.4T9RMZ.E1.S1 – 3.ª Secção, «os bens jurídicos protegidos pela norma são primacialmente a ordem, a segurança e a tranquilidade pública, mas também a vida, a integridade física e bens patrimoniais dos membros da comunidade, face aos sérios riscos que derivam da livre (ou seja, sem controlo) circulação e detenção, porte e uso de armas, munições, engenhos, objectivamente perigosos e por isso, proibidos».

No caso presente, tal como se entendeu no acórdão deste Supremo Tribunal de 12-01-2017, proferido no processo n.º 389/14.4PEAMD.L1.S1 – 5.ª Secção, o crime de detenção de arma proibida foi realizado mediante a «conduta mais benigna» – a detenção de munições, sem qualquer tipo de arma, o que diminui grandemente o perigo suposto no tipo legal em causa e, logo, o grau de ilicitude.

Assim, tem-se como adequada e suficiente para satisfazer as exigências de prevenção geral aqui presentes, a pena de 6 (seis) meses de prisão.


3.2.2. Quanto ao crime de tráfico de estupefacientes


De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, a medida da pena é determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme prescreve o artigo 40.º, n.º 2, do mesmo Código.

Resulta deste preceito que a culpa e a prevenção constituem os princípios em que o juiz se deve basear no momento em que se lhe exige que fixe um quantum concreto da pena.

Conforme disposto no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, na determinação concreta da pena caberão todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente;

– A intensidade do dolo ou negligência;

– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

– As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

– A conduta anterior ao facto e posterior a este;

– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Sobre a determinação da pena, em razão da culpa do agente e das exigências de prevenção, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de acórdão de 15-12-2011, proferido no processo n.º 706/10.6PHLSB.S1 – 5.ª Secção, convocado no acórdão de 27-05-2015 (proc. n.º 445/12.3PBEVR.E1.S1- 3.ª Secção):

«Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP). Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências. Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.). Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231). Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.»

Acompanhando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-07-2014 (proc. n.º 1081/11.7PAMGR.C1.S1 – 3.ª Secção), «a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização».

Vem sendo salientado por este Supremo Tribunal, como justamente se dá conta no acórdão que se vem citando, que «na concretização da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade».

Sublinhando-se sempre este tipo de crime – tráfico de estupefacientes – postula elevadas necessidades de prevenção geral. A pena a aplicar deverá corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, cumprindo referir que nos encontramos perante um crime de perigo abstracto e pluriofensivo.

Neste conspecto, destaca o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 426/91, de 8 de Novembro de 1991[5], a pluralidade de bens jurídicos postos em causa por este tipo de ilícitos: «a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes», afectando, «a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos», protegendo, enfim, «uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal – embora todos eles possam ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública».

Como se frisa no acórdão deste Supremo Tribunal de 08-07-2020, proferido no processo n.º 26/13.4GAMDL.S1 – 3.ª Secção (inédito), que o agora relator subscreveu como adjunto:

«A protecção do bem jurídico saúde e indemnidade, pessoal e pública, exige rigor e firmeza na hora de ponderar a escolha, e determinar a medida, de uma pena a impor a quem, sabendo que os produtos [estupefacientes] que vendia eram (e são) absolutamente proibidos e por isso com a consciência total do acto antijurídico que desenvolvia, permaneceu durante um largo período a lesar e vulnerar um bem que sabe deve ser preservado, pelo rango social e pessoal em que é colocado na sociedade actual.

À defesa do bem jurídico concreto e socialmente persistente, na determinação da medida judicial de uma pena, não podem deixar de intervir e valorar factores circunstanciais e envolventes sociológicas, e/ou de geografia, concernentes à execução do ilícito, aqui sobressaindo a peculiaridade do meio sócio-antrológico em que a actividade (ilícita) era levada a cabo, as pessoas concretas a quem os produtos estupefacientes eram vendidas, os efeitos/consequências que no ambiente societário (concreto) repercute o consumo dessas substâncias e ainda as perspectivas e expectativas com que a pena, nestas situações, é encarada e interiorizada pelos membros da comunidade. Queremos com o que acaba de ser dito significar que a pena não pode deixar de, na sua dimensão pessoal-retributiva e na sua acepção social-regeneradora, endereçar um sentido de afirmação da positividade da norma violada e, ao passo, sinalizar, para a comunidade, um efeito reparador dos efeitos deletérios e malsãos que uma determinada conduta sarjou no tecido societário.»

A este vector fundante e formador da pena – prevenção geral – não poderá deixar de se agregar a culpabilidade do agente, na justa medida em que sabia as pessoas a quem vendia o produto estupefaciente e o efeito que produzia no tecido social em que influía. Devendo igualmente sublinhar-se a reiteração na actividade de tráfico empreendida pelo arguido recorrente e o facto, assinalado no acórdão recorrido, «de ter sido surpreendido por duas vezes, sendo que da primeira lhe tinha sido imposta uma forte restrição em sede de medidas de coacção, o que o deveria ter levado a abster-se de continuar com a mesma actividade de venda». Efectivamente, como igualmente consta do acórdão sob recurso, «em 20 de Setembro de 2019, foi detido e submetido a interrogatório judicial, ficando sujeito a proibição de se deslocar à cidade … e de frequentar em … locais conotados com o tráfico de estupefacientes bem como proibido de manter contactos com indivíduos referenciados como estando envolvidos nesse consumo e/ou tráfico».

A pena de prisão será, em nosso juízo, a escolha adequada não só à culpabilidade individual como a que se mostra mais ajustada a prevenir e a aquietar a sociedade em que o crime se perpetrou e, bem assim, a repor e a restaurar a validade da norma vulnerada.

Na fundamentação quanto à determinação da medida da pena, lê-se no acórdão recorrido:

«A determinação concreta da pena deve valorizar as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, militem a favor do arguido ou contra ele; assim, impõe-se ponderar:

- grau de ilicitude dos factos: tendo em conta o contexto em que os arguidos actuaram e as quantidades que detinham bem como o dinheiro que já haviam obtido com vendas; no que respeita às nove munições que o arguido AA tinha consigo há que atender ao respectivo calibre e ao estado de funcionamento das mesmas;

- modo de execução do crime: detenção daquelas quantidades de produto e venda num jardim público;

- gravidade das consequências: todo o drama que envolve o problema da toxicodependência para a saúde pública e promoção da criminalidade conexa;

- grau de violação dos deveres impostos ao agente: o que se exige a qualquer cidadão vivendo em sociedade;

- intensidade do dolo: elevado – directo;

- sentimentos manifestados no cometimento dos crimes: desprezo da saúde alheia e dos problemas decorrentes da toxicodependência;

- fins ou motivos que o determinaram: obtenção de dinheiro;

- condições pessoais dos arguidos e situação económica: sem trabalho, vivendo do dinheiro obtido com a venda dos referidos produtos estupefacientes, sem rumo de vida nem projecto sério de inserção;

- conduta anterior aos factos:

» o arguido AA, à data dos factos, encontrava-se em situação de inactividade quer escolar/formativa, quer laboral; também não mantinha actividade lúdica, cultural ou desportiva; em 20 de Setembro de 2019, foi detido e submetido a interrogatório judicial, ficando sujeito a proibição de se deslocar à cidade … e de frequentar em … locais conotados com o tráfico de estupefacientes bem como proibido de manter contactos com indivíduos referenciados como estando envolvidos nesse consumo e/ou tráfico;

[…]

- conduta posterior aos factos:

» em 11 de Março de 2019, o arguido AA foi detido e sujeito a interrogatório judicial sendo-lhe imposta a medida de coacção de prisão preventiva, no presente processo;

[…]

A partir daqui, impõe-se fixar a pena, definindo a importância da justa retribuição do ilícito e da culpa, bem como as necessidades da prevenção especial e, depois, da prevenção geral (confirmação da ordem jurídica), chamando a ponderação entre a gravidade da culpa, expressa no facto e a gravidade da pena com a graduação da importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa).

O tribunal colectivo não considera relevante a ausência de antecedentes criminais tendo em conta a idade dos arguidos; por um lado, porque o que se espera de um cidadão normal é que leve uma vida sem condenações e por outro lado, aos 17/18 anos de idade tal situação tem que ser absolutamente irrelevante.

O arguido AA - valorando em seu favor a confissão, o arrependimento e a idade - deve ser condenado nas seguintes penas:

-» pela prática do crime de tráfico de estupefacientes (moldura penal de 4 a 12 anos de prisão): cinco anos de prisão, ponderando as quantidades e qualidade do produto, o período em causa e o facto de ter sido surpreendido por duas vezes, sendo que da primeira lhe tinha sido imposta uma forte restrição em sede de medidas de coacção, o que o deveria ter levado a abster de continuar com a mesma actividade de venda».

As considerações expostas merecem, no essencial a nossa concordância. Isto, sem prejuízo de considerarmos justificada uma intervenção correctiva quanto à medida concreta da pena, atribuindo acrescido relevo à idade do arguido, à confissão e ao arrependimento manifestado.

Efectivamente, perante uma moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão - artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e os factos apurados, consideramos que se justifica uma intervenção correctiva da medida da pena aplicada no acórdão sob recurso no sentido da sua redução.

Desde logo, importa sublinhar que a conduta do arguido-recorrente não atingiu o grau de ilicitude que se observa nas situações em que são transaccionadas mais elevadas quantidades de produtos estupefacientes. A quantidade de tais produtos, quer efectivamente transaccionados, quer apreendidos não atinge a dimensão que se observa noutros contextos.

No plano da prevenção especial, isto é, no que à necessidade de reintegração do arguido diz respeito, estas existem em termos medianos, atenta a ausência de antecedentes criminais.

Assim, considera-se que uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão está conforme com a necessidade de tutela do bem jurídico violado (finalidade de prevenção geral de integração), mostra-se ajustada à culpa do recorrente pelos factos praticados e responde às necessidades de prevenção especial de socialização.


3.3. Medida da pena única


O recorrente vai condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 4 anos e 6 meses de prisão e pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 6 meses de prisão.



O artigo 77.º do Código Penal estabelece as regras da punição do concurso de crimes, dispondo no n.º 1 que «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena», em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

O n.º 2 do mesmo preceito estabelece «[a] pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão (…), e como limite mínimo, a mais elevada daquelas penas concretamente aplicadas aos vários crimes».


Sobre a pena única e para os casos em que aos crimes correspondem penas parcelares da mesma espécie, considera MARIA JOÃO ANTUNES que «o direito português adopta um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico»[6].

A pena única do concurso, formada nesse sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes, deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo, tendo em conta os factos e a personalidade do agente, considerados em conjunto, o que garante, segundo MARIA JOÃO ANTUNES, «a observância do princípio da proibição da dupla valoração»[7].


Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-12-2006 (Proc. n.º 06P3379), «na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita a avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso».

Por seu lado, lê-se no mesmo acórdão, «na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente».


Neste domínio, dá-se nota no acórdão deste Supremo Tribunal, de 27-05-2015, proferido no processo n.º 220/13.8TAMGR.C1.S1-3ª Secção, «o Supremo Tribunal tem entendido, em abundante jurisprudência, que, com “a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, e, assim, [i]mportante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (-), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele (-)»[8].


Na determinação da pena conjunta, impõe-se atender aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso”[9], imbuídos da sua dimensão constitucional, pois que “[a] decisão que efectua o cúmulo jurídico de penas, tem de demonstrar a relação de proporcionalidade que existe entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação – conjunta - dos factos e da personalidade, importando, para tanto, saber – como já se aludiu - se os crimes praticados são resultado de uma tendência criminosa ou têm qualquer outro motivo na sua génese, por exemplo se foram fruto de impulso momentâneo ou actuação irreflectida, ou se de um plano previamente elaborado pelo arguido”, sem esquecer, que “[a] medida da pena única, respondendo num segundo momento também a exigências de prevenção geral, não pode deixar de ser perspectivada nos efeitos que possa ter no comportamento futuro do agente: a razão de proporcionalidade entre finalidades deve estar presente para não eliminar, pela duração, as possibilidades de ressocialização (embora de difícil prognóstico pelos antecedentes)”»[[10]].


A decisão que determine a medida concreta da pena do cúmulo deverá correlacionar conjuntamente os factos e a personalidade do condenado no domínio do ilícito cometido por forma a caracterizar a dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, na valoração do ilícito global perpetrado.


A decisão que fixe a medida concreta da pena do cúmulo não pode, designadamente, deixar de se pronunciar sobre se a natureza e a gravidade dos factos reflecte a personalidade do respectivo autor ou a influenciou, «para que se possa obter, como se considera no acórdão que vem de se citar, uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, ou revela pluriocasionalidade (…), bem como ainda a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).


Tendo em conta o preceituado no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, a moldura penal do concurso está compreendida entre o limite mínimo de 6 meses de prisão (pena parcelar mais baixa) e 5 anos de prisão (soma material das penas parcelares).


Será nesta moldura que se deverá ter em conta os factos e a personalidade do agente, ou, como refere FIGUEIREDO DIAS, «a gravidade do ilícito global perpetrado», apontando este autor como critério avaliativo a seguir o da «conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique», para além de uma «avaliação da personalidade unitária» reconduzível ou não a uma tendência criminosa [[11]].


Como se afirma no já citado acórdão de 28-11-2018, «[n]a expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-02-2008, proferido no processo n.º 4733/07 e de 8-10-2008, no processo n.º 2858/08, desta 3.ª Secção, na formulação do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude; já a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade».


A actividade delituosa do recorrente desenvolveu-se durante um período compreendido entre Setembro de 2018 e 11 de Março de 2019. Neste lapso de tempo dedicou-se à venda a outras pessoas de produtos estupefacientes contendo cocaína e canábis.


Muito embora nesse período temporal não tivesse qualquer actividade profissional, sustentando-se através do dinheiro que recebia da actividade de venda daqueles produtos, não consideramos o ilícito global revelador de uma tendência criminosa.


Porém, há que reconhecer que a personalidade do arguido plasmada nos factos praticados revela alheamento da normatividade, sendo de sublinhar a indiferença do esmo relativamente ao «aviso» que lhe foi endereçado aquando da sua detenção em 20 de Setembro de 2018.

A ilicitude global do comportamento do arguido, radicada essencialmente na  actividade do tráfico de estupefacientes é elevada, revelando-se aqui intensas exigências de prevenção geral.

A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem, como no caso do tráfico de estupefacientes, a saúde e a tranquilidade públicas.


Tudo ponderado, valorando globalmente os factos e a personalidade do arguido-recorrente, tendo presente que a pena conjunta há-de ser fixada nos limites da moldura abstracta apontada, consideramos adequada e ajustada, por satisfazerem os interesses da prevenção, fixar ao recorrente a pena única de 4 anos e 8 meses.


            3.4. Não aplicação do regime penal especial para jovens

Pugna o recorrente pela aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.

O Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, «correspondendo ao imperativo decorrente do artigo 9.º do Código Penal» (Preâmbulo), aplica-se, dispõe o seu artigo 1.º, n.º 1, a jovens que tenham cometido um facto qualificado como crime.

De acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, «É considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos».

Na data dos factos, o recorrente tinha 18 anos de idade, verificando-se pois o pressuposto formal para a aplicação do regime instituído por aquele diploma legal.

Retomando considerações que tecemos nos acórdãos de 09-03-2017 (Proc. n.º 14392/15.3T8LRS.L1.S1 – 3.ª Secção) e de 22-03-2017 (Proc. n.º 243/15.2JAFAR.S1 – 3.ª Secção), nos termos do disposto no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, se for aplicável pena de prisão deve o Tribunal atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal quando tiver razões para crer que dessa atenuação resultem vantagens para a reinserção do jovem condenado.

A aplicação deste regime não é, assim, obrigatória nem automática, sendo necessário que se tenha estabelecido positivamente que há razões para crer que dessa atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do jovem sem ser afectada a exigência de prevenção geral, isto é, de protecção dos bens jurídicos e da validade das normas (cfr. Ac. do S.T.J. de 08/04/1987, in BMJ 366º-450, e Ac. do S.T.J. de 15/01/1997, in Col. Jur.-STJ, ano V, tomo I, p.182).

           

Como justamente se sublinha no acórdão deste Supremo Tribunal de 18-06-2014 (Proc. n.º 578/12.6JABRG.G1 – 3.ª Secção), «o Dec.º-Lei n.º 401/82, de 23/9, imbuído de atenuação de rigor punitivo, mais ressocializador e reeducador do que sancionatório, não vai ao ponto de firmar essa visão maximalista, como que passando ao limbo do esquecimento os comportamentos desviantes dos jovens, deixando à margem de protecção importantes interesses jurídicos e, sobremodo, se persistentemente afectados».


O núcleo fundamental do direito de menores será, assim, lê-se no mesmo acórdão:

«a avaliação da vantagem da atenuação especial da pena para a reinserção social do arguido jovem. Mas a avaliação de tal possibilidade de reinserção social tem de ser equacionada perante as circunstâncias concretas do caso e do percurso de vida do arguido e não perante considerações vagas e abstractas desligadas da realidade.

Tal juízo arranca de um pressuposto incontornável, do qual também arranca o legislador do Decreto-Lei n.º 401/82, ou seja, o de que a possibilidade de reinserção do delinquente é um elemento incontornável da sua personalidade, sobretudo quando este se encontra ainda no limiar da sua maturidade. Subjacente o entendimento de que o percurso de ressocialização do menor agente criminal poderá ser impulsionado por uma atenuação especial da pena que constitui, também, uma afirmação de confiança na sua capacidade para escolher uma opção correcta de vida.

O diploma legal em causa, mais do que conferir uma benesse ao jovem delinquente por se entender ser merecedor de um tratamento penal especializado, procura promover a sua ressocialização – razão por que instituiu um direito mais reeducador do que sancionador, a revelar que a reinserção social surge aqui, no direito penal dos jovens delinquentes, como primordial finalidade da pena.

Se é certo que a mesma Lei institui a pena de prisão, fá-lo apenas em última instância, como ultima ratio, quando e apenas isso for exigido pela firme defesa dos interesses fundamentais da sociedade e pela prevenção da criminalidade, o que sucederá no caso de a pena aplicável ser a de prisão superior a 2 anos. Porém, nesse caso, a pena deverá ser especialmente atenuada se concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção. Tais directivas, diz o preâmbulo, «...entroncam num pensamento vasto e profundo, no qual a capacidade de ressocialização do homem é pressuposto necessário, sobretudo quando este se encontra no limiar da sua maturidade.

Deste modo, teremos de concluir que a aplicação da atenuação especial, só deverá ser afastada quando os factos demonstrarem estarmos perante aquela especial exigência de defesa da sociedade e seja certo que o jovem delinquente não possui aquela natural capacidade de regeneração».


Não se vislumbrando a existência das mencionadas razões sérias, não há que convocar a atenuação especial decorrente do regime em causa.

Tal acontece, designadamente, quando as situações analisadas são daquelas em que se impõe a aplicação de uma pena de prisão necessária «para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade» como expressamente se refere no preâmbulo do citado Decreto-Lei n.º 401/82.

As aludidas situações são aquelas que se prendem com a frequência e gratuitidade de certo tipo de condutas, pelo grau de violência que comportam, pela instabilidade e insegurança que geram, onde são particularmente actuantes as necessidades de reprovação e de prevenção da criminalidade sendo, por isso, de ponderar cuidadosamente, consoante cada caso, se realmente as ditas razões sérias existem e têm o peso suficiente para justificar a atenuação especial.


Como se lê no supracitado acórdão deste Supremo Tribunal 18-06-2014, que temos como paradigmático na análise ao regime penal especial para jovens:

«(…) a equação proposta legalmente pela situação do jovem delinquente não pode deixar de ter em atenção que as razões inerentes à prevenção especial, ou seja, das razões que resultam da prevenção geral do crime. Quando a culpa e a ilicitude são densas e graves, trazendo à colação a inevitável necessidade dum efeito intimidatório, dificilmente se pode compaginar tal circunstância com uma crença na natural vantagem para a ressocialização.

Como vem sendo, também, repetidamente, decidido por este Supremo Tribunal, a aplicação do regime legal não pode manter-se à margem da consideração das exigências de prevenção geral, assentando em preocupações exclusivas ou sequer predominantes, de ressocialização do agente jovem, de prevenção especial, sobrepondo-se-lhe, já que não se pode abdicar de considerações de prevenção geral, sob a forma de “exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico “ (nas palavras do Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Ed. Notícias, § 519, embora a propósito de temática diferente) e de garantia mínima de protecção dos bens jurídicos de mínima observância comunitária – Cfr . Acs de 8. 4. 87, 13.7.94, 12.4.97, 26.5.94, 19.10.94, 30.1.96, 15.10.97 e 17.9.97, in BMJ 366, 450, P.ºs n.ºs 46.169, 46.245, 46. 601, 47.027, 48. 274, 48.661 e CJ, STJ, Ano V, TIII, 175, respectivamente, e, da doutrina, Leal Henriques e Simas Santos, CP, anotado, 151].

Existe aqui uma dupla perspectiva balanceando entre o sopesar das necessidades de prevenção geral, que conjugam a gravidade do ilícito e a densidade da culpa na perspectiva de satisfação das expectativas da comunidade no cumprimento da lei e tutela dos bens jurídicos e, por outro, o próprio percurso de vida do jovem e a crença de que o mesmo pode inflectir no seu rumo de vida pois que é ajustado um juízo positivo na sua regeneração. Neste juízo de prognose conta essencialmente a personalidade do jovem, e a sua circunstância, pois que o mesmo é produto de um determinado contexto social».


O juízo a formular sobre as vantagens da atenuação especial para a reinserção social tem de assentar em condicionalismo que, não se reduzindo à idade do agente, atenda a todo o condicionalismo do cometimento do crime.


Assim, não será de aplicar o regime dos jovens delinquentes quando do conjunto dos factos praticados e a sua gravidade o desaconselham em absoluto, por não se mostrar passível de prognose favorável à reinserção social do arguido (v. acórdão do STJ de 24-10-2012, Proc. n.º 298/11.9JELSB.L1.S1 – 3.ª Secção).


O arguido, agora recorrente, encontra-se exactamente nesta situação, merecendo a nossa concordância as razões expressas, a tal propósito, no acórdão recorrido:


«Regime penal para jovens delinquentes

Os arguidos AA e DD, nascidos a ….08.2000 e ….11.2001, respectivamente, tinham menos de 21 anos de idade à data da prática dos factos pelo que

se deve ponderar a aplicação do regime penal para jovens delinquentes previsto no DL n.º 401/82, de 23 de Setembro [[12]].

Assim, há que analisar se no caso existem razões sérias para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social dos arguidos.

A adequada reinserção social do arguido, ou seja, a sua correcta reintegração na sociedade, depende de considerações de natureza preventiva, particularmente especial, cuja avaliação deve ter presente, designadamente, a gravidade do facto ou factos perpetrados e as suas consequências, o tipo e a intensidade do dolo, os fins que subjazem ao ilícito, o comportamento anterior e posterior e a personalidade do arguido à luz dos factos, isto é, neles manifestada e reflectida [[13]].

Se a partir da avaliação feita for de formular um prognóstico favorável à ressocialização do arguido será, em princípio, de considerar positiva a aplicação do regime previsto no art.º 4º do DL n.º 401/82, sendo, pois, de atenuar especialmente a pena; caso contrário, isto é, caso o juízo de prognose for desfavorável, então será de excluir a aplicação daquele regime.

No entanto, as medidas propostas neste regime, como resulta do expresso no próprio preâmbulo do DL 401/82 (ponto 7), não deverão ser aplicadas quando, em concreto, se mostre necessário defender a comunidade e prevenir a criminalidade, que será à partida, embora carecendo de apreciação, o caso de a pena aplicável ser de prisão superior a dois anos.

Assim, razões atinentes às necessidades de reprovação e de prevenção do crime poderão levar à preclusão da aplicação daquele regime, designadamente quando a ele se opuserem considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico.

Nenhum dos dois arguidos apresenta inserção laboral ou perspectivas de esforço nesse sentido.

Além disso, neste caso, estamos perante crimes de tráfico de estupefacientes, praticados num jardim público, com as referidas molduras penais (sendo o de menor gravidade até cinco anos de prisão), cujas necessidades de prevenção são prementes dada a frequência e consequências nefastas destes crimes.

Assim sendo, perante as necessidades de prevenção geral sob a forma de exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico, atenta a forma da prática dos factos, não se pode conjugar a atenuação especial com a gravidade dos factos, que em geral geram grande revolta e insegurança nas pessoas.

Por isso, não podem os arguidos beneficiar do regime penal para jovens delinquentes previsto no DL nº 401/82, de 23 de Setembro.»


Como se vê, as razões pelas quais não foi aplicado o regime penal especial para jovens, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, foram especialmente ponderadas na decisão recorrida, nenhum reparo nos merecendo o decidido pelo tribunal a quo quanto à inexistência de razões para a atenuação da pena, uma vez que não se verificam os pressupostos do regime penal especial dos jovens.

Um juízo de prognose pressupõe uma valoração do conjunto dos factos e da personalidade do arguido, quanto a saber se, em termos prospectivos, a imagem global indicia positivamente uma esperança fundada de que da atenuação especial da pena resultem vantagem para a reinserção do arguido.

Todavia, in casu, embora resulte da factualidade provada que o arguido apresenta ter capacidade de reconhecimento da gravidade dos actos pelos quais foi condenado, emerge igualmente da factualidade provada que o mesmo apresenta uma personalidade algo imatura evidenciando uma fraca responsabilidade social.

Improcede, assim, o recurso nesta parte.


3.5. Da suspensão da execução da pena


A pena aplicada ao arguido, porque não superior a 5 anos, poderia ser suspensa na sua execução desde que verificado o pressuposto material enunciado no artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal.

De acordo com esta disposição, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Pressuposto material de aplicação da suspensão da execução da pena é, segundo M. MIGUEZ GARCIA e J.M. CASTELA RIO, «que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida. À sua conduta anterior ou posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua na sentença por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente no domínio das normas penais. Não bastam considerações ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto. O prognóstico favorável vai exclusivamente ao encontro da ideia de socialização em liberdade (prevenção especial de socialização), de afastar o delinquente, no futuro, da prática de novos crimes. A suspensão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as finalidades da punição, portanto, de defesa do ordenamento jurídico»[14].

Ora, no caso sub judice, a culpa do arguido, as circunstâncias concretas da prática dos factos, o facto, já assinalado, de uma primeira detenção por tráfico de estupefacientes, o que, no entanto, não obstou à continuação dessa actividade criminosa, o que uma reduzida, se não mesmo inexistente, motivação para se afastar da senda do crime, não permitem formular a seu favor aquele juízo de prognose favorável quanto à sua conduta posterior que permita concluir que a simples ameaça da pena realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Importa lembrar que o arguido no período em que praticou os factos não exercia qualquer actividade profissional, consumindo haxixe desde a adolescência, tendo mantido, a nível laboral, uma «curta experiência de aprendiz de mecânico na oficina de automóveis de que o pai é proprietário». Como ainda se lê da factualidade provada, este arguido, à data dos factos, «encontrava-se em situação de inactividade quer escolar/formativa, quer laboral; também não mantinha qualquer actividade lúdica, cultural ou desportiva, passando o seu tempo junto ao grupo de colegas (entre os quais o arguido DD), também sem qualquer tipo de ocupação».

No caso, consideramos, pois, não haver lugar à suspensão da execução da pena de prisão, uma vez que tal se não afigura adequado e suficiente para assegurar as finalidades da punição, nomeadamente as atinentes à prevenção do cometimento de futuros crimes.

Por outro lado, há a considerar as exigências de prevenção geral de integração da norma e de protecção dos bens jurídicos que são particularmente intensas e prementes no crime de tráfico de estupefacientes, o que desaconselha a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão.

Termos em que não se determina a suspensão da execução da pena aplicada.


III – DECISÃO


Em face do exposto, acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, condenando-o:


a) Pela prática de um crime de detenção de arma (munições) proibida p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 6 (seis) meses de prisão;

b) Pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às Tabelas I-B e I-C anexas ao mesmo diploma, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) Em cúmulo jurídico condenam o recorrente na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.

d) Julgando-se improcedentes os pedidos de aplicação do regime penal especial para jovens, e de suspensão da execução da pena.


Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, do CPP)

 (Texto processado, revisto pelo relator)

Tem voto de conformidade da Ex.ma Juíza Adjunta, Conselheira Conceição Gomes


SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 9 de Setembro de 2020


Manuel Augusto de Matos (Relator)

________

[1]  Disponível nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt, como os demais que se citarem sem outra indicação quanto à respectiva fonte.
[2]  Código Penal – Parte geral e especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 386.
[3]  “A Jurisprudência do S.T.J. sobre fundamentação e critérios da escolha e medida da pena”, 26-04-2010, em http://www.stj.pt/ficheiros/estudos/soutomoura_escolhamedidapena.pdf.
[4]  Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 71.
[5]  Doutrina reafirmada nos acórdãos n.os 10/99, de 10 de Fevereiro de 1999, e 319/2012, de 20 de Junho de 2012, todos acessíveis no sítio Internet em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
[6]  Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 56.
[7]  Penas e Medidas de Segurança, Almedina,2017, p. 59.
[8]  Acórdão de 12-09-2012 (Proc. n.º 605/09.4PBMTA.L1.S1 – 3.ª Secção).
[9]  Acórdão de 10-12-2014 (Proc. n.º 659/12.6JDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção).
[10]  Acórdão de 27-06-2012 (Proc. n.º 70/07.0JBLSB-D.S1 – 3.ª Secção).
[11]  Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pag.421.
[12] Nos termos do nº 2, do artigo 1º daquele DL, “é considerado jovem para efeitos deste diploma o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos”.

[13] Tribunal da Relação do Porto, 08.05.2019, 181/02.9GBOBR.P1.
[14]  Código Penal – Parte geral e especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 334.