RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
DUPLA CONFORME
PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
INADMISSIBILIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
MEDIDA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Sumário


I. Os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça respeitantes ao crime de profanação de cadáver não são admissíveis, incluindo no que se reporta a todas as questões, processuais e de substância, pelo facto de a pena ter sido confirmada pela Relação e não ser superior a 8 anos, tendo sido aplicada pena não superior a 5 anos de prisão [art. 400, n.º 1, e), in fine, e al. f), conjugado com o art. 432, n.º 1, al. b), todos do CPP].
II. Somente quanto às penas parcelares aplicadas aos arguidos pela prática do crime de homicídio qualificado e à pena única emergente do cúmulo jurídico pode haver reapreciação do acórdão do tribunal da Relação.
III. O STJ apenas tem competência para sindicar a decisão da 1.ª Instância no caso de recurso per saltum. Em caso de recurso para a Relação, é este tribunal que tem competência para reapreciar a sentença/acórdão proferido pelo tribunal da 1.ª Instância.
IV. Interposto recurso para o STJ, a sua competência cinge-se à apreciação do acórdão proferido pela Relação. É o que resulta dos arts. 427 e 428, do CPP. O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões, apenas se pode reportar às questões (que admitam recurso) relacionadas com o acórdão da Relação. Em relação à sentença/acórdão da 1.ª Instância já tiveram os recorrentes a oportunidade de recorrer de vícios que entendiam padecer. E sobre as mesmas já foi proferido um acórdão da Relação.
V. Muitas das questões levantadas fundam-se na discordância quanto ao julgamento da matéria de facto, insurgindo-se contra o exame e apreciação da prova que foi feita. Aliás, tal é patente se atentarmos que as conclusões dos recursos constituem praticamente uma réplica do recurso (da matéria de facto) para o Tribunal da Relação. Assim, não é de admitir o recurso dos arguidos quando suscitam questões conexas com a matéria de facto, como seja a alegadamente errada apreciação da prova, a fundamentação relativa à prova e facticidade, e a alegada insuficiência da matéria de facto. Ou seja, o que nos recursos é alegado com fundamento em a) Vícios do art. 410, n.º 2, do CPP; b) Errada apreciação da prova; c) Violação do princípio in dubio pro reo – situa-se no domínio da competência do Tribunal da Relação. Não sendo passível de recurso as questões suscitadas a este propósito, bem como as alegadas “inconstitucionalidades”, pois extravasam a competência do STJ, que apenas conhece dos referidos vícios de forma oficiosa – art. 434 do CPP.
VI. O arguido Iúri vem interpor recurso do despacho que indeferiu a perícia psiquiátrica. Desde logo, conforme já notámos, compete ao STJ reapreciar acórdãos do Tribunal da Relação e não despachos do Tribunal da 1.ª Instância, pelo que, sob este prisma, falece a competência do STJ [art. 427 e 428 do CPP].
VII. As decisões interlocutórias caem sobre a alçada do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, e, como tal, não podem sustentar um recurso para o STJ (cfr. art. 432, n.º 1, al. b), do CPP). E sem qualquer situação em que possa considerar-se haver inconstitucionalidade, já que foi assegurada a reapreciação da questão pelo Tribunal da Relação (art. 32, n.º 1 CRP), não garantindo a CRP um duplo grau de recurso ou terceiro grau de jurisdição (conferindo um certo grau de discricionariedade ao legislador na determinação dessas matérias).
De decisão de índole interlocutória, não é admissível o recurso.
É, pois, irrecorrível o recurso das questões colocadas quanto à questão da nulidade da busca (e, consequentemente, quanto à nulidade da apreensão e da perícia informática que se “fundam” na precedente nulidade da busca), bem como as relativas à perícia informática e vicissitudes apontadas nos recursos, a este propósito.
VIII. Também, pelos mesmos fundamentos (decisão interlocutória prévia a decisão final, mas autónoma dela, que não decisão a final do objeto do processo), não é de admitir o recurso do segmento do acórdão da Relação que confirmou a admissibilidade da junção de relatório pericial após as alegações. Quanto a este, também já os arguidos tinham suscitado idêntica questão perante o Tribunal da Relação, exercendo o seu direito de recurso (art. 32, n.º 1 do CPP), que lhes permitiu uma reanálise da temática por um Tribunal Superior.
IX. Este Supremo Tribunal de Justiça possui competência para apreciar da existência/inexistência de proibições de prova (art. 410, n.º 3, do CPP). Mas tal não afasta as regras de admissibilidade de recurso. Uma coisa é a competência do STJ para decidir; já uma outra está na questão prévia, liminar, dos requisitos de admissibilidade de recurso. Pelo que é inadmissível o recurso na parte relativa à apreciação da alegada valoração de prova proibida, sendo de rejeitar, nos termos dos arts. 432, n.º 1, al. b), 400, n.º 1, als. e) e f) e 420, n.º 1, al. b), ex vi art. 414, n.ºs 2 e 3, todos do CPP.
X. A irrecorribilidade acarreta a impossibilidade do STJ conhecer de qualquer questão suscitada a propósito do segmento do recurso inadmissível, designadamente as inconstitucionalidades suscitadas, por afronta ao art. 32 CRP.
XI. Suscitadas nos recursos nulidades do acórdão recorrido com fundamentos no art. 379, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP, ocorre que o STJ só pode conhecer das nulidades verificando-se a recorribilidade da decisão a que se apontam tais vícios. No demais, não se evidenciam quaisquer nulidades, porque o Acórdão recorrido se encontra devidamente fundamentado (não havendo, nomeadamente, nem omissões de pronúncia nem de fundamentação).
XII. Quanto à falta de exame crítico da prova, ou omissão de pronúncia, nas conclusões apenas existem alegações que se afiguram evanescentes, não se enunciando, em concreto, quais as “omissões” do acórdão da Relação, quer em relação à fundamentação, quer no que concerne à não pronúncia.
XIII. Não existe uma quantificação da vantagem económica para efeito da circunstância agravante. A censurabilidade assenta no facto de se ceifar uma vida humana por motivos totalmente indesculpáveis relacionados com o sentimento de ganância, que torna ainda mais incompreensível (à luz dos valores) e censurável o ato de matar.
O Acórdão recorrido concordou integralmente com o entendimento expresso pelo tribunal da 1.ª Instância, que justificou o enquadramento jurídico no conceito de avidez. Ora, nenhuma censura, ou sequer reparo ou reticência, merece esta interpretação.
XIV. O arguido Iúri também se insurge contra a subsunção na al. j) do n.º 2 do art. 132, do CP. Também aqui o acórdão do Tribunal da Relação manifesta inteira concordância com o Tribunal de 1.ª Instância, que qualificou a condutas dos arguidos de frieza de ânimo, premeditada, cuja resolução criminosa de morte perdurou por mais de 24 horas. Também aqui não vislumbramos qualquer incorreção na subsunção da conduta dos arguidos na dita al. j). É correto o enquadramento nas als. e) e j) do n.º 2 do art. 132 do CP e a qualificação do crime por essas circunstâncias, devendo também improceder nessa parte o recurso do arguido Iúri. No entanto, só uma qualificará o tipo, relevando as demais, como agravantes gerais, na medida da pena.
XV. A jurisprudência do STJ tem salientado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido.
E, concretamente, quanto ao crime de homicídio, têm sido recorrentemente assinaladas as elevadas necessidades de prevenção geral, pelo facto de a vida ser o bem jurídico supremo, cujo ataque é gerador de grande alarme e intranquilidade sociais.
Mas chama a atenção a jurisprudência deste Supremo Tribunal que a sua intervenção no controle da proporcionalidade não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019).
XVI. Importa ter presente o geral “guião orientador” dado pelo legislador, constante do art. 71, do Código Penal, máx. o n.º 2: na “determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (...)”.
XVII. Quando estão em causa diversas circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, tem decidido o STJ que basta uma para qualificar o tipo da ilicitude, relevando as demais, como agravantes gerais, na medida da pena.
XVIII. Considerando as elevadíssimas necessidades de prevenção no caso em concreto, o intenso grau de culpa e de ilicitude, todo o comportamento revelado pelos arguidos após perpetrarem o crime (sem qualquer sinal de arrependimento, mas com intuito de camuflar o crime que cometeram, tentando enganar as autoridades e comunidade, revelando frieza de ânimo), entende-se que as penas não excedem um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e são adequadas e necessárias para se cumprirem as finalidades preventivas, revelando-se, pois, justas.
Pelo que se confirma integralmente o Acórdão recorrido.
                                                                                 
Paulo Ferreira da Cunha

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

Relatório


1. A arguida AA foi condenada pela prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131, n.º 1 e 132, nºs. 1 e 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal, na pena de 23 (vinte e três) anos de prisão; e pela prática de um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo art.º 254 n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.

2. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, a arguida foi condenada na pena única de 24 (vinte e quatro) anos de prisão.

3. Mais foi declarada a indignidade sucessória da arguida AA relativamente à Herança de BB nos termos do art.º 69 -A do Código Penal.

4. O arguido CC foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado p.p. pelos artigos 131, n.º 1 e 132, n.ºs. 1 e 2, alíneas e) e j), do Código Penal, na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão; e pela prática como coautor material de um crime de profanação de cadáver, p.p. pelo art.º 254 n.º 1 alínea b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.

5. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, o arguido foi condenado na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.

6. Não se conformando com o acórdão condenatório proferido, os arguidos vieram dele interpor recurso no Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedentes os recursos e manteve a decisão da 1.ª instância. Do mesmo modo, o arguido CC interpôs recurso do despacho interlocutório que indeferiu a perícia psiquiátrica, que também foi julgado improcedente pelo Tribunal da Relação.

7. Interpuseram recurso do acórdão da Relação de Lisboa suscitando múltiplas questões.

7.1. Alegou, em conclusões, a arguida AA:

“I) O douto Acórdão recorrido omitiu mais uma vez, na fundamentação, o exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, conforme a lei obriga nos termos do art.º 374 n.º 2 do Código do Processo Penal.

II) Para além disso, é manifesta a existência dos vícios do art.º 410 n.º 2 do C.P.P., nomeadamente insuficiência da matéria fática, contradição insanável na fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e a decisão e o erro notório na apreciação da mesma.

III) Certo é que o tribunal a quo ao omitir este facto da decisão, como impõe o n.º 2 do art.º 374 do Código de Processo Penal fez incorrer a Sentença recorrida na nulidade prevista na alínea a) e c) do n.º 1 do art.º 379 do Código de Processo Penal, cujo conhecimento é oficioso.

IV) Por seu turno, estamos claramente perante uma violação do princípio da judicialidade consagrado no n.º 1 do art.º 32 da C.R.P., sob a epígrafe de garantias de processo penal, o qual textua: “ o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, é a fundamentação ou motivação, e conforme estabelece o n.º 2 do art.º 374 do Código de Processo Penal, e em cumprimento do disposto no art.º 205 n.º 1 da C.R.P.

V) A decisão do tribunal ora recorrido violou o princípio da presunção da inocência (in dubio pro reu), porquanto através de uma análise pertinente e lógica, respeitando o disposto no art.º 127 do C.P.P. , do teor das reconstituições, da falta de corroboração, das presunções a considerar, mostra-se que este tribunal valorou contra a arguida (e o co-arguido CC) as reconstituições, sem qualquer corroboração de elementos de prova, antes pelo contrário, apesar da subsistência de uma dúvida razoável, desfavorecendo o tribunal, a arguida, nesta situação. O tribunal firmou a sua convicção dando como provado contra a arguida (e contra o co-arguido) factos altamente relevantes, o homicídio de uma pessoa e a profanação e um cadáver.

O princípio in dubio pro reu, além de constituir uma garantia subjectiva, é também uma imposição dirigida ao Juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa;

VI) O sentido da prova, extraído do material probatório em que se apoiou o tribunal, era de molde a gerar uma dúvida razoável que deveria ter sido valorada a favor da recorrente.

VII) O processo decisório evidenciado através da motivação da convicção indigita para uma conclusão que, em matéria de prova, deveria ter conduzido à não imputação à arguida da prática do homicídio e da profanação de cadáver.

Este percurso de raciocínio não suporta de forma suficiente e deixa dúvidas irremovíveis, quanto à prova em que assentou a sua convicção.

VIII) O tribunal recorrido, na sua douta convicção, aplica o instituto das presunções judiciais, uma vez que não há testemunhas presenciais dos factos.

IX) A reconstituição do facto está sistematicamente autonomizado como um dos meios de prova típicos no art.º 150 do C.P.P.

A única matéria a considerar, deverá ser a que é discutida em sede de Julgamento, e as provas só são as admissíveis, sendo nulas todas                as que contrariem as exigências do Código.

X) Contrariamente à generalidade dos demais meios de prova, a reconstituição não tem por finalidade imediata, a comprovação de um facto histórico, antes de verificar se um determinado facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe ter ocorrido e na forma em que terá sido executado.

XI) Trata-se de um modo de testar uma dada hipótese factual e se os seus resultados corroborarem o sentido da investigação de acordo com as provas e indícios até então obtidos tal não significa que o facto ocorreu efectivamente dessa forma, tão-somente que a hipótese em causa é plausível e verosímil.

XII) À semelhança ainda do que dispõe hoje o n.º 4 do art.º 345 do C.P.P., e sob pena de violação das garantias de defesa e do princípio do contraditório constitucionalmente consagrados (art.º 32 n.º 1 e n.º 5 da C.R.P.), a nossa ordem processual não permite que um qualquer arguido participe numa reconstituição e que outro ou outros arguidos sejam incriminados pela versão por ele reconstituída, caso venha a usar do direito ao silêncio em audiência de julgamento, e, assim, à partida impedir o exercício do direito ao contraditório, traduzindo-se esse meio numa autêntica proibição da valoração de prova.

XIII) Assim, impõe-se que o tribunal recorrido reaprecie os termos da causa sem valoração dos mencionados “autos de reconstituição” e dos depoimentos prestados sobre como tais diligências decorreram, dado não constituírem meio de prova válido para alicerçar a convicção.

XIV) O tribunal a quo violou o disposto nos art.º 127, art.º 150, art.º 410 n.º 2 c) do C.P.P. e art.º 32 da C.R.P.;

XV) Os arguidos remeteram-se ao silêncio em sede de audiência de Julgamento, sendo que é um direito que lhes assiste e não podem por isso ser prejudicados, nem desfavorecidos, como resulta do disposto nos art.º 343 n.º 1 e art.º 345 n.º 1 do C.P.P.

XVI) As referidas reconstituições não foram objecto de qualquer despacho por parte do Juiz competente, pelo que as mesmas não poderão ser consideradas válidas e consequentemente utilizadas como meio de prova (pois apenas existe nos autos uma promoção do Ministério Público nesse sentido e nada mais).

Declarações de co-arguido não valem como testemunho, nem como prova, nem relativamente a si, nem relativamente a co-arguido, pelo que as referências a qualquer reconstituição, em que a recorrente não participou, não poderão ser atendidas como prova, o que determinação a anulação do julgamento, para além de todo o mais.

Não constando da Acta respectiva que fosse permitida a inquirição dos Inspectores da P.J., não valem tais depoimentos, nos termos do disposto no n.º 7 art.º 356 do Código de Processo Penal, conf. brilhante Acórdão do STJ de 20-04-2006 (SJ200604200003635)

Logo, houve uma errada valoração dos autos de reconstituição como provas.

O Tribunal a quo interpretou o n.º 1 do art.º 150 do C.P.P. que refere:

1 - Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.

no sentido de comprovação de factos históricos (homicídio e profanação de cadáver), quando haveria de interpretar esta norma no sentido do auto de reconstituição determinar, tão somente, se os factos poderiam ter ocorrido de certa forma e reproduzir apenas as condições em que se afirma ou se supõe terem ocorrido os factos e na repetição do modo de realização dos mesmos.

O art.º 32 n.º 1 da C.R.P. dispõe que:

1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantas de defesa.

O tribunal recorrido ao interpretar como o fez, o art.º 150 do C.P.P., e aplicá-lo ao caso dos autos, não assegurou todos os direitos de defesa da recorrente.

XVII) A comunicada alteração da qualificação jurídica nos termos do art.º 358 n.º 3 ex vido n.º 1 do C.P.P., tratar-se-ía eventualmente de uma alteração que, embora representando uma modificação dos factos que constam da acusação ou da pronúncia, não teriam por efeito a imputação aos arguidos de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (art.º 1 alínea f) a contrario do C.P.P.);

XVIII) O que não se verificou, uma vez que a comunicada alteração da qualificação jurídica, agravou os limites máximos;

XIX) Para além disso, as figuras da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica, referidas no art.º 358 do C.P.P., têm de dimanar da prova produzida em audiência de julgamento e

não de qualquer reapreciação dos indícios recolhidos nas fases preliminares do processo e, neste sentido, Ac. da RL de 28.03.2007 in CJ, Ano XXXIII, tomo II, p.124;

XX) Logo, tratando-se de uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, a mesma não poderia ter sido tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação nos presentes autos, devendo ser consequentemente nula a sentença que condene, por fatos diversos dos descritos na acusação, se a houver fora dos casos e das condições previstos nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 359 do C.P.P. (art.º 379 n.º 1 b) do C.P.P.);

XXI) A acusação em processo penal circunscreve o “thema decidendum”, sendo a partir dela que se fixa e delimita o objeto do processo, devendo verificar-se uma “identidade entre o objeto da acusação e o objeto da cognição e decisão do tribunal”;

XXII) Por essa razão, num processo penal de estrutura acusatória, de que é exemplo o processo penal português, é exigida uma necessária correlação entre a acusação – que leva à definição do objeto – e a decisão, para que seja permitida a salvaguarda da plenitude das garantias de defesa do arguido;

XXIII) Para além disso, no nosso sistema processual penal, não pode o Juiz de Julgamento sindicar a actividade do Ministério Público e a posição que este tomou no final do Inquérito.

XXIV) O douto Acórdão recorrido não se pronunciou acerca da defesa apresentada pela arguida recorrente, pelo que, por esse motivo e por os supra expostos não poderá ser considerada a alegada alteração da qualificação jurídica e, consequentemente não poderia a arguida ser condenada por essa agravante “motivo fútil”.

XXV) Não foi produzida qualquer prova relativamente ao alegado motivo fútil, nem há qualquer referência nos autos relativamente a essa questão, nem podia haver.

XXVI) DAS ALEGADAS PERÍCIAS REALIZADAS AOS COMPUTADORES DOS ARGUIDOS- A junção do Relatório após a produção de prova não poderá ser tido em conta e valorado pelo tribunal como meio de prova, na medida em que a defesa dos Arguidos não voltou a ter a oportunidade de instar e contra-instar as testemunhas sobre a matéria probanda, violando assim o direito ao exercício do contraditório e nesse sentido, Ac. Relação de Évora 1084/14.0GDSTB.E1

A possibilidade dos sujeitos processuais se poderem pronunciar

sobre uma declaração documentada não satisfaz o contraditório, pois este exige, não apenas a possibilidade dos sujeitos processuais se pronunciarem sobre um documento junto ao processo, mas a possibilidade de poderem instar e contra-instar uma testemunha sobre a matéria probanda. Trata-se da salvaguarda da observância de “um contraditório pela prova” e não apenas de “um contraditório sobre a prova”.

Não valem em julgamento, designadamente para formação da convicção do Tribunal, quaisquer provas que não tenham sido, igualmente de forma válida, produzidas ou examinadas em audiência, cfr, art.º 355 n.º 1 e 2 do C.P.P.

XXVII) O INDEFERIMENTO DA PERÍCIA PSIQUIÁTRICA VIOLOU OS ART.º 32 N.º 1 E N.º 2 DA C.R.P. E ART. º 20 DO CP. E O DISPOSTO NOS ART.º 151, ART. º 154, ART. º 157, ART. º 159, ART.º 160, ART.º 319, ART. º 320, ART. º 340 N.º 1, ART.º 351 N.º 1 E N.º 2 DO C.P.P. E ART.º 6 DA C.E.D.H-POR OMISSÃO DE ACTO FUNDAMENTAL À DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL E À BOA DECISÃO DA CAUSA E SUBSEQUENTE ERRO DE JULGAMENTO.

XXVIII) Indeferidas que foram as referidas perícias psicológicas requeridas no âmbito dos presentes autos, (requerimentos apresentados pelas defesas dos dois arguidos, ainda em sede de julgamento e que objectivava apurar da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, conhecimento importante para a boa decisão sobre a culpa e a determinação da sanção a aplicar), podendo-se admitir que nesta fase não estamos perante a necessidade de prever a perigosidade de um indivíduo ou mesmo de prevenir a possibilidade de risco de agressão, homicídio ou suicídio, a perícia solicitada revestia-se, e ainda se reveste, de extrema importância para se confirmar ou infirmar uma possível patologia de carácter ou até de se apurar qual o peso patogénico relativo entre a hereditariedade cromossómica e a perturbação grave da interacção precoce Filho-Mãe-Pai. (cfr. J.C. Dias Cordeiro, in Psiquiatria Forense, 3ª Edição, 2011)

XXIX) O Tribunal indeferiu a pretensão das defesas invocando “que do expediente clinico apenas se diagnosticaram quadros depressivos, com a coexistência de hiperactividade e uma personalidade prévia, emocional”, referindo-se ao arguido CC.

XXX) Atendendo ao exposto, temos que referir que a ausência de uma evidência não é o mesmo que a evidência de uma ausência, logo, impõem-se a realização de uma perícia à personalidade do CC, não só para se conhecer e avaliar a natureza e as consequências do seu comportamento, o que permite decidir sobre a responsabilidade penal ou ausência dela, mas também para se aferir da capacidade deste tomar decisões referentes a si próprio, o que neste particular pode ter prejudicado decisivamente AA, quer aquando do ocorrido quer aquando do julgamento e da decisão do Colectivo de Juízes.

XXXI) “o arguido tinha baixa auto-estima, tristeza e tendência para o isolamento. Contudo teve apoio psicológico e psiquiátrico e veio a superar esse estado”, para justificar o indeferimento da realização da perícia psicológica/psiquiátrica, é ignorar que “as alterações das capacidades com carácter mais permanente dizem, essencialmente, respeito a perturbações psico-orgâncias do sistema nervoso central”

XXXII) Colocam-se as seguintes questões: o Relatório Social junto aos autos que corrobora a ausência de patologias ao nível do estado psíquico do arguido ou ao nível da sua personalidade, teve em a tenção este particular (perturbações psico-orgânicas)?

XXXIV) Que exames/perícias foram realizadas que permitiram concluir que inexistem perturbações psíquicas ou de personalidade?

XXXV) Quem realizou o Relatório Social, um Psicólogo, um Psiquiatra?

XXXVI) Alguém com um passado de depressão, grave ao ponto de interromper os estudos durante um ano, tem de ser sujeito a perícia psiquiátrica forense por forma a perceber-se se estamos perante um sujeito refém de uma psicose afectiva, monopolar ou bipolar, enfermidade que condicionaria decisivamente o seu comportamento e até a prestação de declarações em sede de inquérito e/ou de julgamento. É sabido e reconhecido que nas psicoses afectivas existem episódios delirantes que se conformam com o estado de humor no momento. Importava e importa saber se CC padece de algum quadro patológico psíquico, conhecimento que só se pode adquirir através de uma perícia forense psiquiátrica, perícia que auxilia decisivamente a aplicação do Direito. Impunha-se, para ambos os arguidos, uma rigorosa observação psicopatológica e a realização de exames complementares, nomeadamente avaliação psicológica e da personalidade, com a aplicação de psicometria validada para a população portuguesa (v.g. Matrizes Progressivas de Raven, prova de personalidade (Mini Multi), Teste de Rorschach, Escala de Memoria de Wechsler e Prova de Personalidade de Eysenck).

XXXVII) Não cremos que o Relatório Social tenha abarcado todas estas questões, pelo que se impõe a realização de perícia psiquiátrica/psicológica, única ferramenta capaz de diagnosticar, confirmar ou infirmar um quadro de transtorno psicopatológico.

XXXVIII) Afigura-se relevante e imprescindível para a decisão sobre a culpa da arguida e da sanção a aplicar, a realização de perícias médico-psiquiátricas forenses a ambos os arguidos, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.º 159, art.º 160, art.º 351 do Código do Processo Penal e art.º 20 do Código Penal, o que deverá suceder;

XXXIX) O tribunal a quo ao indeferir as perícias psiquiátricas, violou assim as referidas disposições legais, limitando os direitos de defesa da arguida recorrente, contrariando o princípio da igualdade de oportunidades e os direitos de defesa da arguida;

Sem prescindir e à cautela,

XL) Não foram asseguradas de todo, as finalidades das penas, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Há decerto uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias: medida, pois, que não pode ser excedida em nome de considerações de qualquer tipo. Mas, abaixo desse ponto óptimo, outros existem em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.

XLI) A falta de ponderação em conjunto, dos factos e personalidade do agente que serviram para a determinação da medida concreta da pena, nos termos do disposto no art.º 77 n.º 1 do Código Penal. A douta Sentença não procedeu, como lhe está imposto, à ponderação em conjunto, dos factos e à personalidade do agente que serviram para a determinação da medida concreta da pena.

XLII) Os critérios de escolha e determinação da medida da pena impostos pelas normas dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal também não foram devidamente ponderados pelo tribunal recorrido. O Tribunal a quo devia, nos termos da lei, ter ponderado todos os factos e analisado e examinado criticamente além destes, a personalidade do arguido e só depois desse exame podia, de forma coerente, lógica e sobretudo garantística dos direitos fundamentais da recorrente, formar a sua convicção, devidamente sustentada na determinação da medida concreta da pena, no seu todo, e não de forma selectiva e insuficiente, sem sequer considerar o percurso de vida da arguida, já para não falar que nem sequer se tomou em linha de conta o facto do Relatório social referir ser pertinente uma perícia psiquiátrica e a mesma ter sido requerida e não ter sido aceite a sua realização.

XLIII) Pelo que, e desde logo, ofendeu, de forma directa e intolerável os direitos e garantias da arguida, com consequente violação do princípio da judicialidade, consagrado no art. 32º, nº. 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda o princípio da proporcionalidade - e da consequente proibição de excesso- previsto no art.º 18 n.º 2 CRP.

XLIV) De acordo com o explanado infra, aspectos relevantes da matéria de direito foram incorrectamente apreciados, o que veio a redundar na manutenção da condenação ora posta em crise, com a apresentação do presente recurso;

XLV) Sem prescindir, o n.º 1 do art.º 32 da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe de garantias de processo penal, textua: “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, é a fundamentação ou motivação, e conforme estabelece o n.º 2 do art.º 374 do Código de Processo Penal, e em cumprimento do disposto no art.º 205 n.º 1 da C.R.P.

Face à matéria ora alegada deverá o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, salvo o devido respeito por opinião diversa, naufragar a decisão ora recorrida:

-   determinando a nulidade do Acórdão recorrido, com os fundamentos supra alegados, bem como proceder como alegado infra; e/ou caso assim não entenda,

-   determinando a anulação do Julgamento, por violação do disposto no n.º 7 art.º 356 do Código de Processo Penal;

e/ou caso assim não entenda, - devendo a mesma ser substituída por uma outra que determine a anulação do Julgamento e a repetição do mesmo, determinando o reenvio do processo para novo Julgamento;

e/ou caso assim não entenda, determinar sejam realizadas Perícias-Psiquiátricas forenses aos arguidos nos termos e com os fundamentos já requeridos;

e/ou caso assim não entenda, - revogar a mesma (decisão), a qual deverá ser substituída por outra onde o tribunal recorrido reaprecie a causa, sem valoração dos denominados autos de reconstituição (sendo inadmissível a sua validação) e dos depoimentos das testemunhas prestados sobre o modo como essas diligências decorreram e sem valoração do Relatório de Perícia Forense e sem atender à alteração da qualificação jurídica (motivo fútil), o que tem como consequência a absolvição da arguida recorrente, a restituir à liberdade no dia da leitura do douto Acórdão a proferir ;

-       e/ou caso assim não o entenda, à pedida reanálise da medida da pena.

PELO EXPOSTO, E PELO MAIS QUE FOR DOUTAMENTE SUPRIDO, DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, COM O QUE SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA!”

7.2. Por seu turno, foram as seguintes as conclusões do arguido Iúri:

A)     As normas jurídicas violadas são as vertidas nos artigos:

artigo 32 da CRP; artigo 6o CEDH; artigos 40°, 70°, 71°, n.° 1, 72°, n.° 2, 131°, 132°, 410°, do CP., e os artigos 125°, 151°, 159°, 160°, 351°, 355°, 356°, 357°, 358°, 361°, 370°, 371°, 379°, n.° 1 todos do CPP.

B)      O sentido em que, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada :

Interpretou e aplicou no sentido de que o arguido foi condenado e deveria ter interpretado e aplicado as normas no sentido de admitir a perícia medica ao Arguido, não deveria ter-se procedido à alteração não substancial da qualificação jurídica e da admissão da perícia informática, levando a que o Arguido não fosse condenado no homicídio qualificado agravado nos termos do artigo 132°, n° 1 e 2 alíneas e) e j) do CP.

C)     As normas jurídicas que devem ser aplicadas :

artigos 40°, 70°, 71°, n° 1, 72°, n° 2, 131°, 132°, 410°, do CP., e os artigos 125°, 151°, 159°, 160°, 351°, 355°, 356°, 357°, 358°, 361°, 370°, 371°, 379° todos do CPP.

1 - Aberto inquérito foram realizadas todas as diligências entendidas como necessárias. Após o Ministério Público deduziu acusação contra o aqui

Recorrente.

2 - Foi-lhe imputada a prática de:

A) - um crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos termos do disposto nos artigos 131º e 132º, n.ºs. 1 e 2, alínea a), i), e j), do Código Penal;

B) - um crime de profanação de cadáver, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 254º, alíneas b), do Código Penal;

3 - O Demandante – DD- deduziu pedido de indemnização cível.

4 - Foi recebida a acusação e o pedido de indemnização.

5 - O ora Recorrente apresentou contestação e arrolou testemunhas.

6 - Realizada audiência de discussão e julgamento foram analisadas as provas documentais e periciais juntas aos autos. Foram, ainda, ouvidas as testemunhas arroladas quer pela acusação, quer pela defesa.

7 - Foi proferido acórdão.

8 - Foi o arguido condenado por:

A) - um crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos termos do disposto nos artigos 131º e 132°, n.ºs. 1 e 2, alínea e) e j), do Código Penal;

B) - um crime de profanação de cadáver, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 254º, alíneas b), do Código Penal;

9 - Nas penas parcelares de:

A) - um crime de homicídio qualificado - 22 (vinte e dois) anos de prisão

B) - um crime de profanação de cadáver- 1 (um) ano e 8 (meses) de prisão

10 - Em cúmulo Jurídico na pena de 23 (vinte e três) anos de prisão.

11 - Inconformado o arguido, ora Recorrente interpôs recurso da decisão proferida em primeira instância.

12 - Foi chamado a intervir o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

13 - Analisado o Recurso os Exmos. Senhores Juízes Desembargadores junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa decidiram o não provimento dos Recursos apresentados, mantendo-se na íntegra as decisões proferidas.

14 - Ora, notificado, o aqui Recorrente mantém a discordância. Atenta a discordância interpõe o presente recurso.

15 - Entende o Recorrente que a decisão proferida não alcança o Direito e não permite a realização de justiça.

16 - A não conformação resulta essencialmente de estarmos perante uma decisão que não aprecia na globalidade os factos, não conhece do arguido, nem integra a verdade apurada.

17 - A não conformação consubstancia-se nos elementos constantes da factualidade apurada que, afinal, apesar de relevantes não constam nem da factualidade dada como provada nem da factualidade dada como não provada.

18 - O “auto de diligência” de fls. 90 a 92 datado do dia 06/09/2018, teve a “participação” do Arguido e tal diligência foi realizada pelo agente da Policia Judiciária nomeadamente EE, Inspector chefe, FF e GG, Inspectores, o Arguido não assinou tal auto.

19 - O Arguido CC não consentiu na busca realizada a 6/09/2018, na casa de morada de família, sendo que o mesmo estava presente, e onde foi apreendido material informático, pelo que a busca, a apreensão e a perícia informática sobre o material informático da pertença do Arguido CC são nulas;

20 - A alteração da qualificação jurídica operada após a conclusão das alegações orais, constitui surpresa e irracionalidade processuais, violadoras da plenitude das garantias de defesa (que tem ínsita a estrutura acusatória do processo penal e o princípio do contraditório), pelo que forçoso será concluir que a (injustificada) extemporaneidade da comunicação das alterações dos factos viola, objetivamente, a plenitude das garantias de defesa do arguido e o princípio do processo equitativo;

21 - O Tribunal ao considerar uma maior amplitude acusatória, agravando previsivelmente a pena, o que efectivamente veio a verificar-se, ultrapassa os limites da própria alteração substancial dos factos e menos se pode considerar uma alteração não substancial ou uma mera alteração da qualificação jurídica, conforme faz crer o Tribunal recorrido;

22 - O relatório pericial informático junto aos autos no dia 19/07/2019, após a produção de prova não deve ser admitido;

23 - Na audiência realizada no dia 09 de Julho procedeu-se às alegações finais e foram ainda questionados os arguidos se no final tinham algo mais a alegar em sua defesa nos termos do artigo 361º n.º 1 CPP, tendo em seguida sido declarada encerrada a discussão nos termos do artigo 361º n.º 2 CPP, tendo sido designado o dia 19 de Julho para a leitura da decisão e, portanto, encerrada que foi por completo a audiência no indicado dia 09 nos termos do artigo 361º CPP, a mesma só pode ser reaberta nos termos do artigo 371º CPP.

24 - O relatório pericial não foi oportuna ou tempestivamente apresentado e assim tal documento apresentado deveria ter sido logo rejeitado liminarmente e nem sequer ter sido admitido;

25 - No relatório de antropologia forense encontra-se aposta a data de 22/08/2018, data essa em que BB ainda se encontrava viva, pelo que assim existe uma dúvida inultrapassável no sentido de saber se essa data pode ou não colocar em risco a conclusão encontrada nesse relatório, bem como no Relatório da Autópsia;

26 - Então, pacífico será defender que da factualidade considerada provada não decorre o como e o porquê.

27 - Desconhecendo-se a causa / razão / motivo / impulso que determinou o acto, impossível é concluir pela vontade do Arguido CC.

28 - Estes elementos são essenciais, entre o mais, na avaliação da culpa do agente.

29 - Sabendo-se que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa são esses elementos essenciais para aferir da medida da pena a aplicar.

30 - Conforme já se salientou em sede de recurso interposto, faltam elementos relevantes para conseguirmos determinar com a certeza e a segurança que a Lei impõe e o Direito exige a qualificação jurídica e, consequentemente a moldura penal aplicável.

31 - Mais, o aqui Recorrente foi condenado nos termos da alínea e) do artigo 132° do Código Penal.

32 - Ora, do processo e dos factos considerados como provados não resulta:

A) - ser determinado por avidez,

B) - ser determinado pelo prazer de matar,

C) - ou pelo prazer de causar sofrimento,

D) - para excitação,

E) - para satisfação do instinto sexual, ou

F) - por qualquer motivo torpe ou fútil.

33 - Assim, necessário será concluir que não se mostra preenchida a alínea e), do nº 2, do artigo 132º do Código Penal.

34 - O aqui Recorrente foi condenado nos termos da alínea j) do nº 2, do artigo 132° do Código Penal.

35 - Ora, do processo e dos factos considerados como provados não resulta que:

A) - Agir com frieza de ânimo, ou

B) - com reflexão sobre os meios empregados,

C) - ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas,

36 - Assim, necessário será concluir que não se mostra preenchida a alínea j), do nº 2, do artigo 132º do Código Penal.

37 - Ora, ao cair a alínea e) e j), estaríamos, na linha do Acórdão proferido, perante o disposto no artigo 131° do Código.

38 - Atendendo-se à integração social, pessoal, familiar e profissional do arguido, necessário seria configurar como adequada e suficiente uma pena muito próxima dos limites mínimos.

39 - Note-se que o homicídio é horrendo e violador do mais elementar direito cuja dignidade lhe reserva um lugar na Constituição da República, porém, não é todo o homicídio que preenche os conceitos constantes do n.º 2, do artigo 132.º do Código Penal. Falamos de "especial censurabilidade ou perversidade".

40 - Note-se que o aqui Recorrente tem residência fixa, sempre trabalhou e mantém possibilidade de ser reintegrado, tem família que o aguarda, é estimado e querido entre vizinhos, amigos e, bem assim, por todos quantos com ele privam.

41 - Mais, a perícia psiquiátrica requerida era absolutamente indispensável.

42 - Falamos da dúvida quanto às faculdades do arguido, aqui Recorrente.

43 - Entende o aqui Recorrente que o artigo 40º do Código Penal estabelece que "a aplicação das penas e das medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade"

44 - O artigo 70º do mesmo diploma estabelece que "se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."

45 - O nº 1, do artigo 71º do Código Penal define qual o modo de determinar a medida da pena, sendo que esta tem como limite a culpa do agente e as exigências de prevenção.

46 – As exigências de prevenção são, em primeira linha, de ordem geral, tendo em conta o objectivo de reafirmar a obrigatoriedade das normas violadas e, em segundo plano, de ordem especial, tendo em conta a necessidade de permitir a mudança no agente do crime, de modo a que este não volte a violar a lei penal.

47 - A culpa é o limite e a base da pena aplicada.

48 - De notar que o agora Recorrente:

-      colaborou activamente na descoberta da verdade material;

-       descreveu actos praticados;

-       descreveu situação anterior e posterior aos factos;

-       demonstrou não ser essa a sua atitude perante a vida;

-        salientou que respeita a vida como valor inviolável.

49 - O arguido nos autos tem um passado que nada tem a ver com os factos descritos nos autos.

50 - É um homem integrado na sociedade. À data dos factos procurava activamente trabalho na sua área . À data dos factos vivia com os pais que o apoiam. É estimado por vizinhos, colegas e amigos. Não é conflituoso. Sabe manter comportamento integrado e respeitador.

51 - A inadequação da pena resulta, ainda, da incorrecta aplicação da Lei:

52 - O aqui Recorrente discorda da Lei aplicada.

53 - Senão vejamos: o aqui Recorrente foi condenado nos termos da alínea e) e j) do artigo 132º do Código Penal.

54 - Do processo não resulta ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil, ou de agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

Estaríamos agora a falar de uma fundamentação relativa a determinação por "avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil."

56 - Faltam-nos factos.

57 - Assim, necessário será concluir que não se mostra preenchida a alínea e) e j) do nº 2, do artigo 132º do artigo.

58 - Ora, ao cair a alínea e) e j) estaríamos, na linha do acórdão proferido, perante o disposto no artigo 131º do Código.

59 - Não havendo factualidade dada como provada que preencha a alínea e) e j) do artigo 132º do Código Penal, necessariamente caí a condenação por homicídio qualificado.

60 - Não havendo factos que nos levem a concluir pelo preenchimento da alínea e) e j) do supra citado artigo e diploma legai, na ausência de circunstâncias, necessariamente caí a especial perversidade ou censurabilidade - artigo 132.º, nº 1 do Código Penal. O que nos leva necessariamente ao disposto no artigo 131.º do Código Penal.

65 - Tendo em atenção a factualidade dada como provada, quanto ao crime em apreço estaríamos sempre numa moldura penal que varia entre os oito e os dezasseis anos.

66 - O aqui Recorrente também discorda da medida da pena:

67 - A determinação da medida da pena não poderá resultar da ideia de que se pune porque se pecou (punitur quia peccatum est), mas antes deverá atender-se à culpa do agente e às exigências de prevenção.

68 - Deverá, ainda, atender-se ao facto de que a pena concreta visa a tutela de bens jurídicos (não apenas mas também), a reinserção do agente na comunidade (não só mas também) e a medida da culpa (sempre).

69 - Ora, se assim é, mais uma vez o Acórdão proferido merece censura, não tendo sido observado e correctamente aplicado o disposto no nº 1, do artigo 71º do Código Penal, sendo de revogar o acórdão proferido, por incorrecta interpretação da Lei.

Em sede de Acórdão é evidente a falta de atenção aos aspectos referidos e, bem assim, são "esquecidos" aspectos relativos à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime.

71 - Relativamente ao crime contra a vida humana

A) - Não se mostram preenchidas as circunstâncias que revelam especial perversidade ou censurabilidade;

B) - Não resulta factualidade passível de preencher a alínea e) do nº 2, do artigo 132.º do Código Penal.

C) - Não resulta factualidade passível de preencher a alínea j) do artigo 132º, do Código Penal;

D) - Sem o preenchimento de qualquer das alíneas do artigo 132º, caímos necessariamente no disposto no artigo 131º do Código Penal.

E) - Atentas as circunstâncias passível de ser punido com pena muito próxima dos limites mínimos.

78 - A pena aplicada excede em muito a culpa.

79 - Nenhum dos exemplos-padrão constantes das als. e), e j) do nº 2 do artigo 132º se mostra aplicável no caso concreto;

80 - Por mais hediondo que seja o crime, por mais dramáticas que sejam os seus efeitos, por maiores que sejam as necessidades de prevenção, nunca pode ser infligida ao arguido uma pena que vá além dos limites impostos pela medida da culpa;

81 - Por seu turno, o artigo 71º., n°. 1 do Código de Processo Penal determina que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção devendo, conforme previsto no nº. 2, atender-se-á às circunstâncias que deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as aí enunciadas;

82 - A determinação da medida da pena, foi fixada fora dos limites definidos na lei;

83 - Assim, o limite máximo da pena fixar-se-á, em função da dignidade humana do condenado, pela medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham, enquanto o seu limite mínimo é delimitado pelo “quantum” da pena que em concreto ainda realize eficazmente aquela proteção dos bens jurídicos;

84 - O douto Acórdão deverá atender na atribuição da pena concreta pela prática do crime de homicídio qualificado aos artigos 370º e 344º do C.P.P.;

85 - A pena parcelar imposta ao ora recorrente – no crime de homicídio qualificado - é excessiva e deve ser reduzida para medida que se aproxime dos respectivos limites mínimos;

86 - A pena única resultante do cúmulo jurídico é excessiva e deverá, consequentemente, ser reformada e substancialmente reduzida;

87 - O Tribunal "a quo" ao aplicar 23 anos de prisão efectiva ao arguido violou o princípio da necessidade, adequação e proporcionalidade, descurando o fim das penas;

88 - A determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral positiva (protecção dos bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade);

89 - A pena mostra-se desadequada por não espelhar a culpa do arguido e não ter em conta as necessidades e exigências de prevenção;

90 - As condições pessoais do arguido referidas no relatório social e o seu meio familiar não foram devidamente ponderadas na decisão recorrida daí que se entenda que a pena deva ser atenuada.

91 - Tendo em atenção o direito aplicado, nos termos do já referido, mostram violados ou incorrectamente interpretados os artigos: artigos 32 da CRP; artigo 6º CEDH; artigos 40º, 70º, 71º, nº 1, 72º, nº 2, 131º, 132º, 410º, do C.P., e os artigos 125º, 151º, 159º, 160º, 351º, 355º, 356º, 357º, 358º, 361º, 370º, 371º, 379º, n.º 1 todos do CPP.

92 - Assim, e pelo exposto deve ser determinada a diminuição da pena de prisão aplicada ao crime de homicídio qualificado e ainda a diminuição da pena aplicada em cúmulo jurídico, por se entenderem violados os artigos 40.º, 71.º e 72.º do Código Penal, de acordo com a mais adequada subsunção dos factos ao direito no presente caso, diminuindo as penas parcelares de prisão que foram aplicadas, sendo fixada a pena pelo homicídio qualificado (artigo 132 nº 2 alínea e) e j) do C.P. ), abaixo dos 18 anos, com a consequente diminuição da pena aplicada em cúmulo jurídico, tendo em atenção que a aplicação de uma pena de prisão excessivamente longa pode comprometer definitivamente a ressocialização e vida futura do arguido CC.

93 - Assim, deverá o acórdão proferido ser revogado, com todas as consequências legais.

94 - Ou seja, deverá o recurso interposto ser considerado procedente, por provado, alcançando-se o que se pretende, ou seja, a acostumada Justiça!

Nestes termos e nos melhores de direito, se roga aos Exs. Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, conforme fundamentado e alegado de direito, considerando a insuficiência de prova e a contradição insanável da fundamentação, considerando os concretos pontos de facto que entendeu incorrectamente julgados, e o erro quanto à valoração da prova bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, atentando às conclusões apresentadas, dando-se provimento às invocadas nulidades com as respectivas cominações legais, e assim se entendendo deve o arguido CC a ser condenado, pela prática de um crime de homicídio simples.

Caso assim não se entenda deve a pena parcelar aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado, ser substancialmente reduzida e não ser superior a 18 anos; mais e em consequência deve a pena única resultante do cúmulo jurídico, ser reformada e substancialmente reduzida para o máximo de 18 anos e seis meses, com aplicação do artigo 40º, 42º, 70º, 71º e 77º todos do CP, proporcionalmente à sua concreta conduta nos factos, ponderada a sua real intervenção nos factos em apreço, dando-se provimento ao presente Recurso.”

8. O Ministério Público, na sua resposta, pronunciou-se no sentido da improcedência dos recursos.

9. No seu douto parecer, a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se fundamentadamente pela rejeição de cada um dos recursos no segmento em que pretendem impugnar a matéria de facto fixada pelas instâncias, e pela improcedência dos recursos relativamente às demais questões suscitadas.

De realçar, do final da referida peça processual, a seguinte passagem:

“Cumpre realçar que se acompanham na íntegra os fundamentos aduzidos no acórdão do TRL no que concerne à aplicação da medida da pena parcelar, a cada um dos arguidos, pela prática do crime de homicídio qualificado, e bem assim quanto à medida da pena única fixada, transcrevendo-se segmento de tal fundamentação:

“ importa considerar, tal como ponderado pelo tribunal a quo, as circunstâncias que rodearam o crime, atentando ao grau de ilicitude e da culpa, destacando-se a gravidade típica de cada qualificativa do art.º 132º, nº 2, als a), e) e j), do CP, e evidenciando-se a intensa violência, a forte energia criminosa empregues, o profundo desprezo pela vítima que os acarinhou e ajudou economicamente e de quem dependiam materialmente, e que apesar disso, em vez de gratidão, não se coibiram de engendrar um monstruoso móbil egoísta para lhe tirarem a vida (…)

Releva de sobremaneira o enorme desvalor da conduta dos arguidos e a sua atitude de calculismo e com total ausência de arrependimento e de auto-crítica.

O crime pelas referidas circunstâncias gerou grande alarme social e consternação no meio onde BB era … e pessoa muito estimada, pelo que, apesar da primariedade dos arguidos e alguma inserção social pouco mitiga as prementes exigências de prevenção geral de modo a proteger as expectativas da comunidade na manutenção ou reforço da validade da norma infringida, assim como são elevadas as exigências de prevenção especial.

A ponderação feita pela decisão recorrida nenhuma censura nos merece, tendo levado em conta devidamente o que são neste caso as prementes exigências de prevenção geral, e as exigências de prevenção especial que ficaram demonstradas, no que foi ponderada, a situação pessoal do(s) arguido(s), a ausência de antecedentes criminais, havendo ainda que ponderar a ausência de interiorização do desvalor da sua conduta, não revelando qualquer arrependimento.

Assim, sopesando as referidas circunstâncias, no quadro da moldura abstracta da pena, o tribunal a quo, com vista a adequar a pena à culpa, dentro da medida da necessidade de tutela do bem jurídico em causa e exigências de prevenção especial, entendeu fixar a pena, no caso do crime de homicídio qualificado, no caso da arguida AA a pena de 23 anos de prisão (onde pesou a qualificativa prevista na al. a)) e o seu percurso de maior conflitualidade, e no caso do arguido CC a pena de 22 anos de prisão.

Nos termos do art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal, o cúmulo a seguir é o da “fixação de uma imagem global do facto” como reiteradamente tem vincado a jurisprudência, pelo que ponderados os limites abstractos do cúmulo, tem-se por justa e adequada a pena única fixada pelo tribunal recorrido, de 24 anos de prisão à arguida AA e ao arguido CC, a pena de 23 anos de prisão.”

8. Pelo exposto, pronunciamo-nos pela rejeição de cada um dos recursos no segmento em que pretendem impugnar a matéria de facto fixada pelas instâncias, pelos fundamentos aduzidos em 5.1. do presente parecer; e pela improcedência dos recursos relativamente às demais questões suscitadas.”

10. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP, o que, todavia, não deu motivo a qualquer reação.


II

Do Acórdão Recorrido


“(...)


B. Do recurso do acórdão condenatório.

1. Da decisão.

1.1. Para bem decidir importa atentar na factualidade apurada, tendo resultado provados os seguintes factos:
“1 - Os arguidos AA e CC, filha e genro da vítima BB, em data não concretamente apurada, mas anterior a 1 de Setembro de 2018, num plano gizado entre ambos e em comunhão de esforços e de intentos, acordaram em tirar a vida a BB, uma vez que a relação entre mãe e filha era pautada por discussões e por vezes com desacatos, sendo que ambos os arguidos moravam na casa da vítima, sita na Rua …, 15, Bloco 5, 50 Esq., …, que os sustentava, pois ambos os arguidos nada faziam para se sustentarem.
2 - Para a concretização do plano de tirar a vida da vítima, os arguidos em dias anteriores aos factos, efectuaram pesquisa na internet para prosseguir esse intento, procurando lugares ermos na zona de C…, sinalizando o trajecto entre o M… e C… .
3 - No dia 1 de Setembro de 2018, a vítima por forma não apurada tomou fármacos, de características desconhecidas, mas indutores de sono.
4 - No âmbito do referido plano e de divisão de tarefas, na noite desse dia 1 para a madrugada do dia 2 de Setembro, no interior da habitação, mais concretamente no hall do 2º piso, os arguidos, em circunstâncias não concretamente apuradas, munindo-se de um objecto contundente de características não apuradas, desferiram ambos vários golpes na cabeça da vítima BB provocando-lhe fractura de ambos os ossos próprios do nariz, assim como várias lesões traumáticas cranioencefálicas com destruição da zona parietal temporal direita com afectação do occipital do mesmo lado, com solução de continuidade cujos rebordos, com linhas de fractura por irradiação que partem desta zona com correspondência ao nível do endocrânio; e ao nível do endocrânio com linha de fratura que parou numa outra já preexistente, golpes que lhe determinaram directa e necessariamente a sua morte, o que ambos queriam.
5 - Após, embrulharam o corpo de BB numa manta e transportaram o mesmo desde a habitação, pelo elevador até à garagem onde colocaram o corpo na bagageira da viatura Opel Astra, de matrícula ...-JE-..., habitualmente utilizado pelos arguidos.
6 - Em seguida deslocaram-se ao posto da BP sita na entrada da cidade do … onde adquiriram gasolina e um isqueiro.
7 - Deslocaram-se até …, a um terreno agrícola junto ao Km 38.5 da EN…., onde colocaram o corpo da vítima e, com recurso à gasolina recém adquirida, atearam fogo ao cadáver da vítima, sem mostrar qualquer respeito pelo cadáver da mãe e sogra dos arguidos.
8 - Os arguidos agiram sob a égide de um plano comum, previamente elaborado entre ambos, com uma frieza de ânimo, pois tratava-se da mãe adoptiva da arguida AA e sogra do arguido CC, querendo ambos passar já a dispor do património da herança da vítima, pois ambos os arguidos eram sustentados pela vítima, actuaram sem qualquer respeito pela vida da vítima e consideração pelos seus restos mortais.
9 - Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente de ser as suas condutas proibidas e puníveis por lei.
10 - Os arguidos no dia 3 de Setembro de 2018 vêm a efectuar participação fraudulenta na esquadra da PSP do … sobre o desaparecimento de BB, bem sabendo que os factos que transmitiam às autoridades não correspondiam à verdade.
11 - A arguida AA nos dias seguintes ao homicídio difundiu nos meios de comunicação social, nas redes sociais e junto dos amigos e colegas da mãe apelos sobre o desaparecimento que fraudulentamente arquitectou.
12 - Os arguidos são primários.
13 - O arguido CC na sua infância viveu com a mãe, sendo o pai ausente, tendo outros dois irmãos consanguíneos com os quais não tem relacionamento e outros dois irmãos uterinos de dois relacionamentos distintos da mãe.
14- Foi uma criança reservada e ressentiu-se de não viver com o pai.
15 - O arguido a partir dos 12 anos de idade, a sua mãe do arguido passou a viver com um companheiro padrasto, pai da sua irmã mais nova, com quem o arguido manteve relações de cordialidade.
16 - O arguido no seu percurso escolar sempre teve facilidade ao nível da aprendizagem, embora aos 14 anos de idade, na sequência de um episódio de depressão interrompeu os estudos durante um ano lectivo.
17- O arguido tinha baixa-auto estima, tristeza e tendência para o isolamento. Contudo, teve apoio psicológico e psiquiátrico e veio a superar esse estado. Retomou os estudos e veio a ingressar na faculdade vindo a concluir em Julho de 2017 com a classificação final de 16 valores a licenciatura do curso de formação superior que tirou na área da … na Escola Superior de Ciências Empresariais.
18 - Na escola o arguido terá mantido um grupo alargado de amizades, sendo estimado por ser prestável meio e apaziguador de conflitos.
19 - Fora da escola o arguido tinha uma vida social reduzida, preferindo ficar em casa.
20 - Em 2013 0 arguido inicia um namoro com a arguida AA, passando, em meados de 2014, a residir no agregado familiar de CC, o que muito entristeceu a BB.
21 - Contudo, surgindo conflitos entre a AA e a mãe do arguido CC, a partir de meados de 2015, os arguidos mudaram-se para o agregado familiar a BB, circunstância que alegrou esta vítima, pelo regresso de sua filha.
22 - O arguido CC a partir daí distanciou-se da sua família materna, por forma a evitar conflitos com a companheira AA.
23 - O arguido CC observado em Fevereiro e Julho de 2016 em psiquiatria, foi-lhe diagnosticada baixa auto-estima, estar deprimido, coexistindo uma hiperactividade com défice de atenção e com uma personalidade prévia emocional, dependente e que desanima facilmente.
24 - O arguido teve terapêutica medicamentosa e que deixou de cumprir.
25 - O arguido após a licenciatura efectuou trabalhos pontuais como operário fabril (na fábrica …) pelo período de 3 meses auferindo 350€ mensais; e durante dois meses como estagiário num gabinete de contabilidade auferindo 100€ mensais.
26 - Em Julho de 2018 os arguidos casaram entre si, mantendo-se a viver em casa de BB, sem qualquer ocupação profissional.
27 - O arguido no estabelecimento prisional tem sido acompanhado pelos serviços clínicos desse estabelecimento, fazendo medicação psicotrópica.
28 - A arguida AA aos 4, 5 anos foi entregue aos cuidados das irmãs biológicas, vindo depois a ser confiada à instituição "HH" no …, vindo a ser adoptada na véspera de fazer 10 anos de idade
29 - O percurso escolar da arguida foi regular até ao ensino superior, altura em que mostrou dificuldade de progressão. Iniciou assim a licenciatura de matemática aplicada na faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, mas após quatro matrículas, a última das quais como aluna externa, a arguida viria a concluir apenas 6 das 12 cadeiras do 1 0 e 20 anos de licenciatura.
30 - A arguida teve acompanhamento psiquiátrico quando tinha 14 anos pois teve uma depressão com o falecimento da avó foi acompanhada por psicóloga.
31 - Voltou a ter acompanhamento psiquiátrico e psicológico aos 18 anos, pois tinha a autoestima em baixo não estava a conseguir terminar o curso, e depois melhorou mas só tomou a medicação aos 20 anos, mas continuou a ter acompanhamento psicológico em 2017 e 1028.
32 - O insucesso da arguida no ensino superior agravou as relações entre mãe e filha, onde aquela sempre insistiu pela continuidade dos estudos, revoltando-se contra a ociosidade dos arguidos.
33 - O relacionamento afectivo com o marido luri, foi o único que a arguida teve, tendo-o conhecido em finais de 2013.
34 - A arguida embora não se encontrasse a trabalhar por conta de outrem dava explicações de matemática auferindo 100€ mensais.
35 - A arguida tem sido reivindicativa com as regras institucionais do estabelecimento prisional. Tem beneficiando de acompanhamento psicológico e psiquiátrico nos serviços médicos do estabelecimento prisional., estando clinicamente estável.
36 - Os assistentes demandantes, não obstante serem familiares sentiram a consternação que foi comum à comunidade.
37 - A vítima … BB era pessoa considerada na comunidade, em particular no meio escolar onde trabalhava.
Não está provado que:
-mãe e filha discutiam por causa da relação amorosa entre AA e CC.
- os arguidos em dias anteriores aos factos, efectuaram pesquisa na internet indagando por medicamentos que provocassem na vítima um sono profundo.
- o arguido CC à data dos factos encontrava-se sob forte pressão psicológica e muito alterado, interferindo essa alteração psíquica na sua capacidade para avaliar a ilicitude dos seus actos, apresentando uma capacidade de compreensão muito diminuída.
- Os demandantes relacionavam-se com a vítima Maria Amélia, e que por isso sofreram angústia e desgosto.

1.2. Na fundamentação sobre a decisão de facto, o Tribunal consignou o seguinte:
 “Para a formação da sua convicção (atendendo aos critérios enunciados no art.127º do Cód.Proc.Penal), embora os arguidos não houvessem prestado declarações, o Tribunal valorou o comportamento do arguido CC que em fase de inquérito, em auto de diligência a fls.90 e seguintes (datado de 6 de Setembro de 2018) acompanhou e indicou aos inspectores da PJ o local onde adquiriram os aceleradores na estação de abastecimento da BP no …, concretamente gasolina num vasilhame, a par do isqueiro adquirido pela AA (o que motivou depois a aquisição das imagens nessa estação de serviço, conforme fotogramas do auto de visionamento das imagens fls.351 a 367 aí se observando dessas imagens a presença inequívoca dos arguidos que se deslocam, adquirindo respectivamente a gasolina (com abastecimento nas bombas pelo arguido CC em vasilhas] e o isqueiro pela arguida AA), tendo o arguido igualmente indicado o local onde deixaram o veículo automóvel estacionado na Rua …, longe da estação de serviço e fora do alcance das câmaras de vigilância da mesma; mais indicou o local onde incineraram o cadáver de BB, em …, seguindo sua indicação a Estrada Nacional no sentido A…-P…, vindo a indicar e identificar o local (fls.91 a 150 metros da Avª … em …) exactamente coincidente com o lugar onde foram encontrados os restos mortais da vítima, na sequência de um pequeno incêndio que ocorreu na madrugada do dia 2 de Setembro (cfr. fls. 139 e que teve a intervenção dos bombeiros Voluntários de …, conforme cópia de auto de notícia de fls. 287 e 288 que relata pelas 5.40 horas da madrugada do dia 2 de Setembro um fogo no local) e que veio a incinerar a vítima que ficou carbonizada junto a uma manilha de escoamento de água e a uma estrada de terra batida, conforme auto de inspecção de fls. 134 a 137, e cópia de vista aérea do local a fls. 138 e 139 onde é sinalizado o local próximo da Estrada Nacional … ao Km 38,5 na zona de … . No local do incêndio foi detectada a presença de substâncias acelerantes de combustão (fls. 139); ver ainda o relatório de inspecção de fls. 277 a 283, mas sobretudo as conclusões do relatório de exame pericial de fls.430º o qual encontrou gasolina no vestígio nº3 respeitantes aos restos carbonizados recolhidos no local e que estavam submersos junto ao cadáver (foto 12 a fls. 144 e último parágrafo de fls. 139 do relatório de inspecção onde foi recolhido o vestígio), assim se provando que foi usada gasolina para incinerar o corpo da vítima, dado que este vestígio onde foi detectada a gasolina foi recolhido submerso junto ao cadáver.
A testemunha II (inspectora da PJ) referiu que o arguido CC por sua vontade acompanhou os inspectores até ao posto de abastecimento da BP (e indicou o local onde estava o veículo estacionado), nas imagens recolhidas vê-se os arguidos a deslocaram-se à Bomba da BP. Nessas imagens o CC desloca-se com um garrafão de água vazio e enche de gasolina e paga com um cartão multibando em nome da AA ou da mãe. Depois é a AA que compra o isqueiro, após experimenta o isqueiro. Nos vídeos da BP as roupas que os arguidos envergavam foram encontrados com sangue na 2ª busca (entende o Tribunal que a requisição da PJ das imagens por referência ao tempo do homicídio, associado às roupas depois apreendidas que haviam sido usadas na ida à estação da BP, permite desmistificar a interpretação da data do aparelho das gravações vídeo, o qual mostrando os números 9/02, deverá ser interpretada como sendo o mês 9 (Setembro) e o dia 2 de 2018, com alteração da convenção existente na ordenação sequencial da data dd.mm.aa.m sendo no caso mm.dd.aa). Esclareceu ter sido o arguido que levou os inspectores ao local do incêndio, onde o corpo veio a ser encontrado (foi por indicação dele), e o trajecto foi sempre indicado pelo arguido, assim como para a Ponte … no local onde foram deitados para o rio vários objectos, inclusive o instrumento do crime. Esta testemunha também referiu que encontraram os 6 documentos pessoais da vítima (cujo auto de apreensão de 7/09/2018 que consta de fls. 274 documentos que se encontravam enrolados em papel higiénico atrás do autoclismo [entre a sanita e a parede da casa de banho]), circunstância que agrava o juízo probatório que recai sobre os arguidos que mantinham-se a residir na habitação.
O procedimento do arguido e a sua atitude vertida no referido auto realizado pela Polícia judiciária, é probatoriamente valorável, pois, o Ministério Público a fls.2 proferiu um despacho de delegação genérica na PJ da investigação do inquérito, podendo o OPC proceder à referida diligência.
Esta atitude do arguido na diligência realizada pela Polícia Judiciária o Tribunal valora-a inequivocamente como meio de prova, pois, nesse acto processual não sendo obrigatória a presença de defensor, tendo o arguido inclusive prescindido de advogado (cfr. art.º 64º nº1 alínea d) "a contrario sensu" do CPP) o arguido indicou os locais acima referenciados, e essa cognoscibilidade e indicação, ligam-no directamente aos acontecimentos directamente associados ao homicídio de BB.
O relatório de autópsia médico-legal constante de fls.983 a 985, assim como o relatório final de toxicologia forense de fls.977 e o relatório pericial de identificação genética individual de fls.978 a 980, e os relatórios de medicina dentária forense de fls.986 a 1004, vieram determinar por certeza que o cadáver em questão que fora encontrado carbonizado no identificado local de …, corresponde a BB, a vítima dos autos. No respectivo relatório constatou-se que o corpo autopsiado apresentava fractura de ambos os ossos próprios do nariz os quais exibem rebordos aguçados e regulares, com lesões traumáticas cranio-encefálicas com destruição da zona parietal temporal direita com afectação do occipital do mesmo lado, com solução de continuidade cujos rebordos se apresentam finos, afiados. Apresentava linha de fractura por irradiação que parte desta zona com correspondência ao nível do endocrânio. Ao nível do endocrânio existe uma linha de fratura que parou numa outra já preexistente com mais de um ponto de impacto com interrupção de uma das linhas fracturarias por outra), as quais foram produzidas por acção de natureza contundente cujos golpes se repetiram por várias vezes. Por outro lado, o exame de toxicologia detectou a presença das substâncias Zolpidem no fígado e Sertralina na medula vertebral e rim.
A 6 de Setembro foi realizada pela policia judiciária uma busca com autorização dos arguidos) e apreensão conforme auto de fls.68 e 69, realizando-se o exame à residência da vítima e dos arguidos conforme relatório de fls. 148 a 168, aí se recolhendo uma blusa do arguido luri colocado no quarto do casal dos arguidos foto 18 de fls. 158 e foto 19 de fls. 159, mas não se comprovou existirem vestígios hemáticos cfr. relatório de fls. 687 a 690); um par de sapatos pertencentes ao arguido luri com vestígios hemáticos recolhido na varanda do quarto de casal conforme foto 21 de fls. 159 e foto 25 de fls. 161, muito embora se houvesse confirmado ser material hemático não foi encontrado perfil genético cfr. relatório de fls. 687 a 690).
Também na sequência de buscas judicialmente ordenadas à residência dos arguidos, e realizadas a 27/09/2018 foram apreendidos várias roupas dos arguidos conforme auto de fls.391 uma sweatshirt da arguida AA na qual foi identificado material genético da vítima BB conforme relatório de fls.687 a 690; e um casaco cinzento com capuz do arguido luri no qual foi identificado material genético da vítima BB conforme relatório de fls.687 a 690. Mais foram nessa busca recolhidos os vestígios hemáticos no hall do patamar do 2 0 piso da residência conforme fls.398 a 412, como o vestígio nº1 A projecções hemáticas no tecto desse hall e no espelho da fita de estore desse hall (fls.402, 403); como vestígio nº 2A projecções hemáticas na face lateral do armário de máquina de costura sita no hall à entrada da sala de estar desse segundo piso que ficava ao lado do quarto da vítima (fls.404 e 405 ex vi fotos de fls. 149 a 152); como vestígios nº3A com diversas projecções hemáticas extensas em todo o quadro metálico do guarda-corpos do corrimão metálico que dá para o hall frente ao referido armário (fls.406 e 407, como se depreende da reacção da quimiluminescência de foto 19 de fls.411) e abundantes vestígios hemáticos no chão do hall à entrada dessa sala de estar desse 2º piso (conforme reacção da quimiluminescência de fls.409 e 410) e no chão do hall logo antes das escadas para o piso inferior (como se depreende da reacção da quimiluminescência de fls.408), todos estes três vestígios hemáticos encontrados no hall do 2º piso da residência dos arguidos revelaram ser coincidentes com o perfil genético da vítima, portanto, era sangue de BB, conforme relatório de fls.687 a 690, até pela forma como as projecções são abundantes e distanciadas entre si, que foi este o local onde a vida foi retirada à vítima.
Também procedeu-se ao exame do veículo Opel Astra matrícula ...-JE-... conforme relatório de fls. 169 a 178, aí se recolhendo vestígios hemáticos na chapeleira da mala do carro, vestígio 1 (foto 9 e 10 de fls. 174 e 175); assim como vestígios hemáticos 2 e 3 no interior da bagageira e numa mesa de campismo que se encontrava dentro da bagageira da viatura (fotos 9, 1 1 e 12 de fls. 174 a 176), todos estes três vestígios encontrados no veículo revelaram ser coincidente com o perfil genético da vítima, portanto, era sangue de BB conforme relatório de fls. 687 a 690, permitindo concluir deforma insofismável que o corpo da vítima fora transportado na mala desta viatura na disponibilidade dos arguidos.
A testemunha II veio confirmar ter intervindo na busca à residência, referindo que na varanda havia roupa e calçado com cheiro predominante a lixivia. E no interior de casa havia um intenso cheiro a incenso. Fizeram a busca nas viaturas em nome da falecida e encontraram sangue humano na bagageira de uma das viaturas. A segunda busca durou algum tempo a fazer. E depois fizeram a recolha de vestígios hemáticos e os cartões pessoais da vítima que se encontravam em papel higiénico atrás do autoclismo. E constataram muito sangue no hall do piso superior, várias projecções no tecto, no corrimão, na máquina de costura. Era no 1º andar (2º piso da habitação) que a vítima dormia.

Pela recolha dos vestígios hemáticos de BB na sua residência, pelas projecções hemáticas detectadas no hall do segundo piso da habitação, com vestígios no tecto desse compartimento, no espelho da fita do estore, com sangue abundante no chão do hall, projecções no quadro metálico do guarda-corpos do hall e na face lateral do armário ali existe, associado às conclusões do relatório de autópsia já mencionado, o qual revela que os ossos do crânio da vítima foram flagelados por vários impactos de um objecto contundente, o Tribunal convence-se, com esta abundância de prova, que a vida da vítima foi retirada de forma violenta no hall do 2º piso junto à sala de estar que fica ao lado do seu quarto, com diversos os golpes infligidos no seu crânio, aí se consumando o homicídio. Só assim se explicam as projecções de sangue num perímetro tão extenso de vários metros. De referir que os golpes infligidos com o objecto contundente foram de tal forma vibrados que desfiguraram a vítima com fatura dos ossos do nariz, afundamento dos ossos do crânio, portanto foi usada extrema violência no homicídio, com golpes que projectaram sangue da vítima no tecto e em vários pontos do hall.
Ora sendo a habitação partilhada pela … BB e pelos arguidos AA, e CC; ocorrendo a morte da vítima inequivocamente neste ponto central da habitação; o que somado à recolha de vestígios hemáticos na carrinha (na bagageira da mesma), veículo que se encontrava na directa disponibilidade dos arguidos, circunstâncias essas somadas à recolha de vestígios hemáticos na roupa de ambos os arguidos, todos estes factos evidenciam com prova directa que os arguidos estiveram directamente envolvidos no cenário do homicídio e no transporte da vítima já sem vida para … . E eles constituem prova igualmente inequívoca de que a vida da vítima foi violentamente retirada por acção dos arguidos, num espaço central do domínio destes, quer na habitação, quer no veículo automóvel. A soma de meios de prova é de tal modo exuberante que permite ao Tribunal a reconstituição do acontecer histórico que a pronúncia imputa aos arguidos em co-autoria. A prova desta forma de participação e execução do plano conjunto estende-se depois à acção ofensiva dos arguidos sobre o corpo da vítima, também conjunta, quando ambos se deslocam à estação de serviço da BP na madrugada do dia 2 de Setembro, adquirindo os aceleradores de incineração que vem a ser consumada em … (conforme conclusões do exame pericial), e finalmente quando, depois de consumados os delitos, tomam os procedimentos fraudulentos na comunicação do desaparecimento da vítima.
Acresce que o relatório de autópsia concluiu que no fígado da vítima encontrava-se a substância Zolpidem, a qual é um indutor do sono (segundo informação disponível pelo infarmed), faz concluir que a vítima estava sob o efeito desse fármaco, embora não se apure que tenha sido por acção dos arguidos.
A atitude dos arguidos após o cometimento dos factos é igualmente exuberante sobre o seu procedimento delitual, quando efectuaram vários apelos fraudulentos, sabendo de antemão que a vítima não tinha desparecido nas circunstâncias anunciadas; a que se soma a participação policial feita pelos arguidos a 3 de Setembro de 2018 igualmente fraudulenta sobre o desaparecimento da vítima conforme expediente de fls. 114 e 115 (onde a arguida na companhia do arguido luri referiu que desde dia I de Setembro que não vê a mãe e estranhou), difundindo nas redes sociais o aludido "apelo " fraudulento, conforme cópia de fls. 131, bem sabendo que o descrito desaparecimento não correspondia à verdade.
Acresce que do exame da unidade de informática da PJ o qual descreve o conteúdo informático (junto nos autos no passado dia 19 de Julho) destacam-se algumas pesquisas informáticas feitas pelos arguidos "como rastrear um telemóvel", "triangulação de antenas”,"triangulação de telemóvel só quando ligado?"; "Policia usa ferramentas de localização remota para recuperar celulares roubados"; "4 maneiras de rastrear um telemóvel"; "Localizar telemóvel desligado "; "E possível localizar o telemóvel mesmo desligado, quero respostas "; "Como rastrear um celular mesmo desligado", concretamente a fls.63 a 65 desse exame, sendo estas pesquisas feitas pouco mais de 24 horas sobre o homicídio, todas elas respectiva e sucessivamente entre as 22.41 horas e as 22.45 horas do dia 2 de Setembro; e uma outra pesquisa similar "Pesquisadores descobrem como rastrear smartphoe mesmo com o GPS desligado" feita no dia 4 de Setembro pelas 16.24 horas. Ora sem perder de vista que os arguidos desligaram os telemóveis no dia 1 de Setembro pelas 21.00 horas, logo antes do cometimento do homicídio e só os voltariam a ligar no dia 3 de Setembro (fls.65), é manifesta a preocupação dos arguidos nas insistentes pesquisas que fizeram sobre o modo de detecção por telemóvel, sobretudo quando desligado, evidenciando o receio dos seus movimentos serem localizados, mesmo com os telemóveis desligados. Depois, na lógica de quem procura alguém que desapareceu, porquê desligar o telemóvel, sobretudo numa altura crítica em que urgia o contacto com a desaparecida (entre o dia 1 e 3 de Setembro). Se não faz sentido, deste ponto de vista, já fará sentido na óptica do homicida.
De notar que o Tribunal perante a junção do relatório pericial directamente remetido pela unidade de telecomunicações da polícia judiciária por oficio que consta do histórico do Citius (a 19/07/2019), determinou a notificação do seu conteúdo às partes, pois estes autos correndo termos em fase do julgamento, uma vez concluído esse exame, a sua remessa deveria ter sido como foi para este Tribunal, cuja realização havia sido solicitada em fase de inquérito. A circunstância de anteriormente haver sido encerrada a discussão, mostrava-se modificada e ultrapassada pela anterior comunicação da alteração da qualificação jurídica, sendo que antes do dia 19 de Julho já a defesa havia requerido prazo para defesa, o que determinou o legal procedimento de cumprimento do contraditório com o retomar dos trabalhos da audiência, o que também se cumpriu quanto ao exame entretanto junto. De notar que no exercício do contraditório sobre o exame, a defesa poderia ter requerido a reinquirição de testemunhas para o confronto com algum aspecto do exame, ou a tomada de esclarecimento do perito que realizou o exame, mas nada foi requerido a este respeito.
Esse exame reportava-se a uma requisição oportunamente realizada em fase de inquérito na sequência da apreensão dos meios informáticos pela polícia judiciária, à semelhança do que sucedeu com o relatório de autópsia e subsequentes exames adicionais que vieram a ser junto nos autos assim que foram ultimados e após a decisão instrutória.
Mesmo que surgisse algum obstáculo de natureza formal, que não existe, o Tribunal tomando conhecimento do teor do referido exame, incumbia-lhe o dever de providenciar pela sua junção no processo, dada a pertinência do mesmo para a descoberta da verdade material.
A testemunha II, inspectora da PJ, referiu que quando foi encontrado o cadáver, compareceram no local verificando que a área tinha ardido por acção humana, com um acelerador (no local encontraram material acelerante). Também verificaram que o cadáver tinha as características de uma pessoa desaparecida. Na comunidade local disseram que a mãe não se dava bem com a filha. Havia uma queixa da mãe BB contra a filha. Os manuscritos apreendidos no processo foram encontrados em casa. Crê que os arguidos não eram fumadores, pois na habitação não havia cinzeiro, maços de cigarros, nem cheiro ou beatas. Nos carros apreendidos não viram quaisquer vestígios de fumadores. Não foram encontrados a mala, os óculos e objectos pessoais da vítima, que desapareceram. O escritório fica sito no primeiro piso, perto do quarto dos arguidos e tinha elementos de estudo dos mesmos. A casa era morada de família do CC, da AA e da vítima. A depoente presenciou a recolha dos vestígios hemáticos. Verificou no Facebook o modo de vida da vítima e da arguida. As datas e horas das gravações. Os arguidos deram todas as passwords dos computadores e telemóveis apreendidos.
A Testemunha JJ, …, era amiga da mãe, referiu ter sido … da arguida AA no 10º ou 11º ano, nesse ano lectivo a arguida era uma aluna razoável em termos de notas. Recorda-se que num dos testes a arguida foi classificada com 9 valores, mas a AA não ficou contente, tendo manipulado a mãe a ponto de a colocar contra a depoente. A BB depois corrigiu o teste com a depoente e deu razão a esta. Numa turma de 30 ela só se dava com 2 amigas. Na 2ª feira começou a aparecer um texto no Facebook a dizer que a mãe desapareceu. Sendo que a BB tinha rotinas, pois nunca sairia à noite e sem o carro. No corpo docente da escola secundária muitos duvidaram do que estava a acontecer. A depoente tinha muita proximidade com a vítima. Soube de conflitos existentes entre a BB e a AA. Depois das violências da filha, a vítima exibia à depoente nódoas negras dizendo que tinham sido causadas em conflitos com a filha, os quais foram ocorrendo entre os anos de 2015, 2016. Esclarece que nos últimos meses a CC estava muito triste e deixou de ser alegre, referiu-lhe que andava a tomar cortisona e muitas vezes, em jeito de desabafo, ela sentia medo, dizendo que se lhe acontecesse alguma coisa que seriam a filha e o marido os causadores. Certo dia chamou a depoente à noite para ir lá a casa por causa de violências, tinha havido uma grande discussão e houve uma briga física, mostrando-se com dores. Os documentos de fls. 71 a 73 não são letra da … (a … como não via bem desenhava grandes letras). A BB chegou a dizer à depoente, descontente com a filha e o genro, queria mudar o testamento a favor da casa do … . Os arguidos exigiam a dependência financeira, eles queriam dinheiro, a BB dava uma mesada e havia pago as propinas da faculdade. A BB dizia que há muito não tinha contactos com os familiares. Ela nunca falou nos primos, os quais não tinha relacionamento algum, há muitos anos.
Também a testemunha KK …, referiu ter sido colega da LL durante muitos anos, até 2017. Ia a casa da BB, mas não muito. Era amiga chegada da BB. A arguida foi adoptada com 12 anos. E não teve muito convívio com a AA. No início as coisas correram bem. Quando a AA começou a namorar com o arguido CC e depois quando faleceu a mãe da … começaram os problemas com a AA. Soube que esta saiu de casa da mãe durante um período e nessa altura a BB andava de cabeça perdida, mas procurou outras pessoas, amigas da mãe, para desabafar, que não a depoente. Depois a AA regressou a casa da mãe, esta ficou muito satisfeita e as coisas correram melhor. Contudo, ultimamente notava a colega muito triste. Teve conhecimento do desaparecimento da BB através da AA que a contactou pelo telefone (sendo que no dia 30 de Agosto a depoente tinha estado a passear com a BB na passadeira), perguntando se sabia da Mãe, dizendo que a mãe desapareceu, que saiu e que não avisou onde ia. O telefonema foi rápido 1 a 3 minutos. A depoente chegou a acompanhar a AA à PSP do …, e a AA é que fez a participação o CC estado presente não falou. A AA dizia que na véspera, a porta da rua tinha batido e não viu mais a mãe, mais referiu não se recordar o que levava vestido. Nunca viu a AA ou a mãe a fumar. A BB contou-lhe que pagava as despesas, o telemóvel, o passe, a alimentação e o curso, ao CC pagava-lhe a alimentação. Depois do carro, comprou uma carrinha para a AA, que era mais barata. A depoente ainda voltou a telefonar à AA a saber se havia novidades. E a AA telefonou à depoente a pedir-lhe que a acompanhasse a uma televisão. Não reconhece as letras dos documentos de fls.71 a 73, como sendo da vítima, ela tinha uma letra muito grande.
A participação do desaparecimento naquele dia não ficou formalizada. A BB não era pessoa para sair sozinha à noite para longe. E já fora do Posto da PSP, quando saíram, a depoente instou aos arguidos "vocês vejam lá se ela saiu por causa de uma mulher ou de um homem que a aliciou", porém, o CC disse-lhe, "mas se ela tiver desaparecido como é que nós chegamos às coisas dela", observação que a depoente muito estranhou. Havia queixas de parte a parte na PSP. A BB falava de familiares em … e na … .
Perante esta prova testemunhal, de amigas que privaram com a vítima, as mesmas aperceberam-se que o relacionamento entre a vítima e a arguida AA era repetidamente mau, com noticia de agressões físicas da arguida relatadas pela vítima, com foco em interesses patrimoniais por parte dos arguidos, o que se evidencia pelo que a vítima contou à testemunha JJ, a qual já falava em deserdar afilha a favor da "Casa do … também pela pergunta que o arguido CC fez à testemunha KK após terem feito a participação policial, já fora da esquadra, instando a mesma "mas se ela tiver desaparecido como é que nós chegamos às coisas dela? ". Em face deste contexto, o Tribunal convence-se que os arguidos retiraram a vida à vítima para assumir o património da mesma, assim evitando os obstáculos que a mesma ia criando para despender de quantias a favor dos arguidos.
Sobre a antecedência e planeamento do propósito criminoso dos arguidos consta do exame da unidade de informática da PJ (que descreve o conteúdo informático que constava os computadores dos arguidos) as insistentes buscas que estes fizeram na internet desde 18 de Junho de 2018, sobre percursos desde o M… até C…, percursos esses que sinalizaram e guardaram no computador. (fls.67, 68, 69, 70 a 77), e essas buscas em tese poderiam ter uma qualquer justificação, contudo, essas pesquisas mostram fotos de lugares ermos, a verdade é que o fundamento torna-se unívoco e inequívoco quando os arguidos vêm a escolher esse mesmo trajecto para levar o cadáver na mala do veículo, vindo a escolher um local próximo (a 150 metros) da sinalizada estrada Nacional 110…, antes de … (localidade a caminho de C…) como resulta de fls. 74, vindo a incinerar o cadáver num descampado. Estas pesquisas e coincidências não podem ser desconsideradas pelo Tribunal, que deverá interpretá-las como preparação do crime que viriam a cometer entre o dia 1 e 2 de Setembro, onde o projecto e a ideação homicida pelos arguidos existia com grande antecedência.
Testemunha MM, médica psiquiátrica, consultou por duas vezes, em 2016, o arguido CC. Fez o relatório de fls. 1070 verso confirmando o seu teor. O arguido foi medicado, tratado e depois o mesmo deixou o tratamento, descontinuou e a depoente depois deu outra medicação. Instada a esse propósito a testemunha esclareceu que a oportunidade das periciais psiquiátricas tem limitações e só quando ocorrem patologias psiquiátricas é que se justificam, o que não era o caso porque não lhe detectou quadros psicóticos. Em 2016 ele estava deprimido, e com dificuldades de concentração mas acabou o curso, não é pelo facto de estar deprimido que essa circunstância poderia justificar a realização de uma perícia psiquiátrica. Continuando a ser instada a esse propósito a testemunha referiu que o que pode justificar uma perícia é um contexto de patologias psicóticas. 25% das pessoas têm depressões, e isso não justifica a realização de perícia psiquiátrica. Todas as depressões passam. Havia mais risco de suicídio. As depressões podem ser mais intensas ou leves, neste caso era mais intensa, mas por definição é temporária. O pai do arguido tinha manifestações psicóticas, mas na altura o arguido não tinha nada de psicótico. A medicação terá produzido efeitos, porque tirou o curso com boa média.
Mais interessou o teor do diploma de fls. 1071 a 1073.
A testemunha NN referiu conhecer os arguidos, esclarecendo que a dona BB, arrendou uma casa a uma filha da depoente, conhecendo-a há cerca de 6 anos. E conhece a arguida e o CC há três anos. A dona BB ia ao local receber a renda sozinha e depois passou a fazer-se a acompanhar com os arguidos por volta de 2016 e 2017, referindo que o arguido chegou a ir. A AA chegou a ir cobrar a renda sozinha, trazendo o recibo. Os factos sendo de Setembro de 2018 a arguida AA e o CC foram lá entre os dias 2 ou 3 de Setembro comunicar o desaparecimento da mãe e deu a entender à depoente que queria cobrar a renda, mas a depoente disse-lhe que só a partir de 8 de Setembro, a renda era a partir de 8 de Setembro. Tiveram lá uns 10 minutos. A BB referia-se com carinho da filha.
Testemunhas do pedido cível.
O Assistente DD, era primo direito, referiu que a mãe é irmã do pai da BB e ter relacionamento com a prima. Sempre estiveram em contacto, partilharam os aniversários, o Natal, até à morte da tia. Todas as festas eram feitas em … . A prima vinha a casa da mãe do depoente (tia da vítima). Deixou de ser assim há 7 anos com o falecimento da tia. O relacionamento passou a ser á base de telefonemas. Ficou comovido e transtornado com a prima e depois acalmou-se. Mais referiu não ter sido foi convidado para o casamento da filha.
A testemunha OO referiu que a assistente PP é mãe do DD. Conheceu a BB porque visitava a Tia. A PP conviviam muito era quase mãe e filha. A BB falava com a Tia PP (prima da depoente). O DD eram primos chegados. A depoente não presenciou a forma como os assistentes reagiram, mas acha que se ressentiram.
A testemunha QQ, …, foi casada com o DD assistente e têm um filho em comum. O DD era primo da falecida e que se reuniam no Natal, na Páscoa. Era uma família unida. A D.PP era uma tia próxima. Há mais dois tios em … que já faleceram e não deixaram filhos. A D.PP ficou muito consternada e a forma de exposição na comunicação social, o ex-marido ficou abalado (separou-se há 19 anos). Há 19 anos que não estava com a dona BB. Dai para agora sabe pouco.
A testemunha RR, …, conhece os assistentes há mais de 20 anos, o DD trabalhou na empresa do DD. O DD ficou abalado com a situação, não é a mesma pessoa, esquece-se das reuniões. A dona PP sofreu muito com a situação.
      Não obstante o conteúdo destes depoimentos que dão notícia de relacionamento que persistiu entre a vítima e os assistentes, contudo, de relevante retira-se dos depoimentos das testemunhas próximas de BB, as … acima referidas, as quais esclareceram que a amiga não se dava com os familiares mais próximos, prova disso mesmo, é o testamento que a mesma outorgou em 1998 onde afasta da sua sucessão os herdeiros legítimos, apenas instituindo como herdeiro testamentário a "Casa do … " (conforme certidão de fls. 598 e 599 e 600), testamento que só vem a revogar em 2013 após a adopção da arguida AA (certidão de fls.601 e 602). Embora esta circunstância seja eloquente por si só, deve sublinhar-se que estas testemunhas colegas de profissão relataram a ausência de contactos com os familiares. Estas circunstâncias não permitem apurar nos assistentes mais do que a consternação sentida por qualquer cidadão da comunidade ao saber destes factos.
    A testemunha SS, …, amiga do arguido CC, referiu que o CC era o amigo com que podia desabafar. Mantiveram sempre um convívio diário.
      A testemunha TT, …, mãe do arguido CC, referiu que o filho é muito sociável e responsável, licenciou-se em … . Sempre foi bolseiro. Recebia 250€ mensais, dos quais 90 euros pagava as propinas, e o resto, depois de pago o passe e a alimentação, entregava à depoente. A depoente não esteve presente no casamento do filho. Refere que quando saíram de casa da dona BB foram viver com a depoente, e depois para o fim correu menos bem. Houve queixas de parte a parte. Na altura ambos os arguidos fumavam.
     A testemunha UU, …, privou com o CC na escola de condução de que é …, entre 2011 e 2012 e mais tarde o arguido visitou-os frequentemente. É um miúdo muito afável e meigo. O arguido pode continuar a contar com a amizade da depoente. A testemunha VV, doméstica, é tia do arguido CC. O CC tem o apoio da família. Era muito organizado.
     O arguido CC em declarações que prestou sobre a sua situação pessoal e social referiu que após o curso esteve dois meses em estágio auferindo 100€ mensais; depois trabalhou como operário … durante 3 meses na empresa …, auferindo 350€ mensais. Antes de iniciar o curso já tinha estado como assistente de loja durante 6 meses auferindo salário que não recorda. É visitado todas as semanas no EP pela mãe, irmã e tia. E algumas vezes por amigos.
    A arguida AA, em declarações que prestou sobre a sua situação pessoal e social teve acompanhamento psiquiátrico quando tinha 14 anos e aos 18 anos, pois teve uma depressão com o falecimento da avó foi acompanhada por psicóloga e aos 18 anos tinha a auto-estima em baixo não estava a conseguir terminar o curso, e depois melhorou mas só tomou a medicação aos 20 anos. Mas continuou a ter acompanhamento psicológico. Tem nomes que indicou para a visitarem, mas ainda não recebe visitas e desconhece a razão. A relação com a Avó era muito boa e depois passou muito mal, foi um grande choque quando a avó faleceu. Tinha 14 anos quando a avó faleceu. Trabalha no EP fazendo … .
    Mais interessou o teor da certidão de fls. 1048 e 1049; assim como o conteúdo dos relatórios sociais entretanto junto nos autos”.

2. Apreciando.

Vejamos então cada uma das questões suscitadas pelos arguidos, atendendo à regra da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais.

2.1. Da nulidade da gravação (recorrente AA).

A recorrente, alegando que a prova gravada é imperceptível, invoca a nulidade prevista no art.º 363º, do CPP, por deficiente gravação, visando que a mesma venha a ser sanada nos termos do art.º 122º do mesmo diploma, com a consequente repetição da prova que seja considerada imperceptível.

Nesta matéria da documentação da audiência dispõe o art.º 363º do CPP[1] “As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”.

Por sua vez o art.º 101º, nº 4, do mesmo diploma legal dispõe o seguinte: “Sempre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribuna superior”.

A arguida, ora recorrente, como vimos, vem invocar a existência de deficiente gravação da prova.

A jurisprudência no caso de deficiência da documentação veio a entender que no caso de a deficiência da documentação impedir a captação do sentido das declarações prestadas, deveria ser equiparada à nulidade por falta de documentação, visto se tratar, verdadeiramente, de uma documentação inexistente ou ineficaz.

Nesta matéria veio o Acórdão do STJ nº 13/2014, publicado no DR, I série, de 23.09.2014, a fixar jurisprudência segundo a qual; “A nulidade prevista no art.º 363º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do nº 3 do artigo 110º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada”.

Revertendo para o caso dos autos resulta desde logo que a arguição de nulidade por parte da arguida é manifestamente extemporânea.

Começa a arguida por não suscitar a arguição de nulidade perante a 1ª instância como devia, em requerimento autónomo, dentro do prazo de arguição da nulidade, relativamente à sessão em causa.

Ou seja, a recorrente veio arguir a nulidade em sede de recurso quando a arguição deveria ter sido efectuada perante a 1ª instância, em requerimento autónomo, no prazo de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que ocorreram as alegadas deficiências, nem tão pouco o fez nos 10 dias após o recebimento do CD com as gravações da audiência, pelo que se considera sanada a alegada nulidade.

Acresce dizer que da informação prestada a fls. 1444 dos autos se verifica a cabal audição dos depoimentos gravados.

Termos em que se indefere ao requerido, por ser extemporânea a arguição de nulidade.


*

2.2. Da nulidade do auto de “reconstituição do facto” (fls. 90 a 92) / da proibição de prova / da anulação do julgamento:

Os recorrentes vieram insurgir-se contra a valoração, para efeitos da formação da convicção, do “auto de reconstituição” de fls. 90 a 92, indicando como disposições violadas, designadamente os artigos 125º, 355º, 356º, nº 7, e 357º, nºs 2 e 3, todos do CPP.

Os recorrentes começam por alegar que o auto de reconstituição não foi examinado na audiência de julgamento, não foi ordenado por autoridade judiciária e não foi assinado pelo arguido, pelo que a diligência de reconstituição do facto não pode ser considerada válida.

Invocam os recorrentes que o Tribunal recorrido ao interpretar como o fez, o art.º 150º do CPP, e ao aplicá-lo ao caso dos autos, não assegurou os seus direitos de defesa.

Concretiza o arguido CC na sua motivação de recurso que no dia 06/09/2018 participou numa diligência de reconstituição que foi realizada pelos agentes da Polícia Judiciária e não assinou o respectivo auto (fls.90 a 92), que esta diligência não foi efectuada perante ou sob a direcção de autoridade judiciária, e tendo sido realizada durante a fase de inquérito, a sua leitura não é admissível em audiência, estando em causa prova proibida.

Alega, por fim, que na reconstituição dos factos, à semelhança do que o nº 4 do art.º 345º do CPP, sob pena de violação das garantias de defesa e do principio do contraditório, também se não permite que um co-arguido participe na reconstituição e que o outro co-arguido seja incriminado pela versão por aquele reconstituída, caso venha a usar do direito ao silêncio em audiência de julgamento.

No mesmo sentido alega a recorrente invocando que as declarações do co-arguido não valem como meio de prova, nem relativamente a si, nem relativamente ao co-arguido, pelo que a referência a qualquer auto de reconstituição em que a recorrente não participou, não pode ser atendido como prova, traduzindo-se esse meio de prova numa autêntica proibição da valoração de prova.

Em consequência, com o argumento de que a “reconstituição de facto” levada a efeito não constitui prova válida para alicerçar a convicção do tribunal, pugnam os recorrentes para que em sede de recurso o tribunal superior reaprecie os factos sem a valoração do mencionado “auto de reconhecimento”, nem “dos depoimentos que relataram em audiência como decorreram tais diligências”.

Conhecendo.

Com vista a dilucidar as questões colocadas importa analisar, ainda que de forma sucinta, o regime legal deste meio de prova de “reconstituição do facto”, previsto no art.º 150º do CPP.

Este preceito legal dispõe no seu nº 1 o seguinte:

“1. Quando houver necessidade de determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma, é admissível a sua reconstituição. Esta consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo”.

Trata-se de um meio de prova que consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo. Daí que a reconstituição do facto não tem por finalidade apurar a existência do facto em si, mas se os factos podiam ter ocorrido de determinada forma.

No fundo esta diligência traduz-se na representação de uma versão hipotética do facto para confirmar ou infirmar a sua veracidade, tendo precisamente como finalidade apurar se o facto poderia ter ocorrido de determinada forma.

E se é certo que a reconstituição do facto não depende da intervenção do arguido, o certo é que também não a exclui, e pela natureza da diligência faz todo o sentido a sua participação.

Mas havendo o contributo do arguido, a sua participação na diligência não se confunde com a prova por declarações.

Vejamos a razão desta afirmação.

A jurisprudência assim como a doutrina têm vindo a entender de forma unânime que a reconstituição dos factos constitui prova autónoma, que contém contributos do arguido, mas que não se confunde com a prova por declarações. “A verbalização que suporta o acto de reconstituição não se reconduz ao estrito conceito processual de “declaração”, pois o discurso ou “declaração” produzidos não têm valor autónomo, dado que são instrumentais em relação à recriação do facto” (cfr. acórdão do STJ de 20.04.2006; ST200604, in wwwdgsi.pt).

Entende-se, assim, que só poderão ser valorados os factos que resultem da reconstituição e as declarações do arguido indispensáveis à compreensão da reconstituição, sem outra feição que não a explicitação do ocorrido, assim se ficando a conhecer os termos em que decorreu a diligência e o seu resultado. Donde, tudo o que o arguido tenha admitido e que esteja para além do âmbito intrínseco da diligência, excede o âmbito probatório deste meio de prova, não podendo ser valorado.

E este meio de prova só não será admissível se não tiver sido validamente adquirido, sendo um dos pressupostos de validade assegurar que não foi utilizado qualquer método proibido de condicionamento da vontade do arguido ou de outro interveniente, “seja por meio de coacção física ou psicológica, que se possa enquadrar nas fórmulas referidas como métodos proibidos enunciados no art.º 126º do CPP” (cfr. acórdão do STJ de 5.01.2005, relator Cons. Henrique Gaspar, in www.gjsi.pt).

Este meio de prova autónomo fica documentado nos autos (art.º 99º, CPP), e por essa via processualmente adquirido, bastando-se a si próprio, a valorar segundo as regras de experiência e a livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do CPP.

Também os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre o modo e os termos em que decorreu a diligência.


*

Dito isto e olhando agora para o caso dos autos, a questão central que vem colocada pelos recorrentes é a de saber se este meio de prova -reconstituição do facto- diligência realizada na fase de inquérito, padece das alegadas nulidades, e se pela forma como foi realizado e apreciado constitui um meio de prova proibida?

O auto de diligência de reconstituição dos factos, constante de fls. 90 a 92 dos presentes autos, foi realizado pelos Inspectores da Polícia Judiciária, EE, FF e GG, no qual participou o arguido, mostrando-se assinado por um dos referidos Inspectores.

O Tribunal a quo considerou na formação da sua convicção este meio de prova de reconstituição dos factos, consignando o seguinte:

“(…) o arguido acompanhou e indicou aos inspectores da PJ o local onde adquiriram os aceleradores na estação de abastecimento da BP no …, concretamente gasolina num vasilhame, a par do isqueiro adquirido pela AA (tendo o arguido igualmente indicado o local onde deixaram o veículo automóvel estacionado na Rua …, longe da estação de serviço e fora do alcance das câmaras de vigilância da mesma; mais indicou o local onde incineraram o cadáver de BB, em …, seguindo a sua indicação a Estrada Nacional nº …, no sentido A…-P…, vindo a indicar e identificar o local (fls. 91, a 150 metros da Avª … em …) exactamente coincidente com o lugar onde foram encontrados os restos mortais da vítima, na sequência de um pequeno incêndio que ocorreu na madrugada do dia 2 de Setembro (cfr. fls. 139 e que teve a intervenção dos Bombeiros Voluntários de …, conforme cópia do auto de notícias de fls. 287 e 288 que relata pelas 5.40 horas da madrugada do dia 2 de Setembro um fogo no local) e que veio a incinerar a vítima que ficou carbonizada junto a uma manilha de escoamento de água e a uma estrada de terra batida, conforme auto de inspecção de fls. 134 a 137) e cópia de vista aérea do local a fls. 138 e 139 onde é sinalizado o local próximo da Estrada Nacional nº … ao Km 38,5 na zona de … (…)”.

Alegam os recorrentes que o auto de reconstituição do facto foi valorado mas não foi examinado na audiência de julgamento conforme previsto no art.º 355º do CPP; que tal diligência foi realizada pelos agentes da Polícia Judiciária e não efectuada perante ou sob a direcção da Autoridade Judiciária, e que o auto não se mostra assinado pelo arguido, e por fim, que tendo a diligência sido realizada durante a fase de inquérito, a sua leitura não é admissível em audiência, estando assim em causa prova proibida.

Analisando:

a. Da arguida nulidade do auto de reconstituição com o fundamento de que o mesmo não foi examinado na audiência de julgamento

Segundo os recorrentes o auto de reconstituição padece de nulidade visto que foi valorado, mas não foi examinado na audiência conforme dispõe o art.º 355º do CPP.

Este preceito, no nº 1 dispõe o seguinte:” Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”, para logo o nº 2 ressalvar “as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”.

As duas disposições seguintes reportam-se aos artigos 356º e 357º, e são excepcionais porque contrárias ao princípio da imediação, ressalvando de ser examinadas as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição são permitidas.

Resulta assim que o citado art.º 355º não abrange a prova documental e os meios de obtenção de prova (como os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas), sendo entendimento do legislador que tais meios de prova ao não serem examinados em audiência em nada se viola o princípio do contraditório (oralidade e imediação), pela razão simples de que a defesa conhece o inquérito, estando assim ao seu alcance a possibilidade de, querendo, contrariar a admissão e o valor probatório destes meios de prova.

Como acima deixamos exposto, a reconstituição do facto constitui prova documental autónoma, que mesmo contendo contributos do arguido não se confunde com a prova por declarações.

Tratando-se de prova documentada a mesma pode ser feita valer em audiência de julgamento, mesmo que o arguido opte pelo direito ao silêncio.

Esta tem sido a posição jurisprudencial dominante, de valoração da prova documental, ainda que não lida ou examinada em audiência, mostrando-se garantido plenamente o exercício do contraditório, pois os arguidos tiveram oportunidade de se pronunciarem ao longo do processo acerca de tais meios de prova. E a jurisprudência tem trilhado este caminho, mesmo ao nível da prova pessoal, vindo o STJ mais recentemente a fixar jurisprudência no sentido de que “as declarações para memória futura, prestadas nos termos do art.º 271º do CPP, não têm que ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º e 356º, nº 2, al. a) do mesmo Código” (Ved. acórdão nº 8/2017, in DR nº 224/2017 de 21/11/2017, Serie I).

E no mesmo sentido se podem considerar as declarações prestadas em 1º interrogatório judicial pelo arguido, após ter sido advertido do disposto no art.º 141º, nº 4, al. b) do CPP, porque integradas no processo, consideram-se examinadas em audiência e não têm de ser nelas lidas para serem valoradas pelo tribunal na decisão final.

Assim se conclui, por infundamentada, a alegada nulidade.

b. Os recorrentes vieram ainda arguir a nulidade do auto de reconstituição do facto invocando que o mesmo não foi ordenado por autoridade judiciária e o auto de reconstituição não foi assinado pelo arguido.

A competência para determinar na fase de inquérito a reconstituição do facto pertence ao Ministério Público.

O art.º 1º, al. b) do CPP define “Autoridade judiciária” o juiz, juiz de instrução e o Ministério Público, cada um relativamente aos autos processuais que cabem na sua competência”.

Por sua vez, a al. c) define “Órgãos de polícia criminal” todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código”.

Acontece que a diligência em causa não está sujeita à competência reservada da autoridade judiciária (nº 2 do art.º 270º, CPP), podendo o Ministério Público delegar competência para o efeito a órgãos de polícia criminal (OPC), dispondo precisamente o nº 1 do mesmo art.º 270º que “O Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito”.

E foi o que ocorreu no caso dos autos, conferindo o Ministério Público, em fase de inquérito, por delegação de competência ao OPC a realização investigatória, designadamente, da diligência de reconstituição do facto, por despacho manuscrito exarado a fls. 34.

Da omissão de assinatura do arguido no auto de reconhecimento.

Dos autos resulta que o arguido, ora recorrente, se disponibilizou para indicar o percurso percorrido dias antes, e tendo sido devidamente esclarecido dos seus direitos (fls.78 e 79), prescindiu de defensor em auto por si assinado (cfr. fls. 79 a 81), e acompanhou os Agentes da Polícia Judiciária, conduzindo-os por onde havia circulado dias antes, indicando a estação de abastecimento da BP onde foi adquirido o isqueiro e o combustível e vasilhame, assim como o local onde se encontrava o cadáver da vítima, conforme auto de diligência de reconstituição do facto de fls. 90 a 92, donde a alegada omissão de assinatura do arguido nos autos é manifestamente irrelevante.

Resulta assim que o CC, ora recorrente, participou na reconstituição, como o recorrente aliás não nega, e resulta da fotografia do mesmo no auto de reconstituição (fls. 91).

Donde se conclui que a falta de assinatura do arguido no auto é absolutamente inócua, e quando muito, a ser exigível, tratar-se-ia de mera irregularidade que tinha de ser arguida em 1ª instância no prazo referido no nº 1 do art.º 123º do CPP.

Em face do exposto, não procedem as alegadas nulidades.

c. Da proibição da valoração da prova por reconstituição.

Os recorrentes contestam o auto de reconstituição, argumentando que sob pena de violação das garantias de defesa e do principio do contraditório não pode um co-arguido participar na reconstituição dos factos e outro ou outros co-arguidos virem a ser incriminados pela versão reconstituída, tendo os mesmos exercido o direito de se remeterem ao silêncio na audiência de julgamento, considerando que neste caso o meio de prova constitui uma autêntica proibição de prova.

Em consequência, pugnam os recorrentes para que em sede de recurso o tribunal superior reaprecie os factos sem a valoração do mencionado “auto de reconhecimento”, nem dos depoimentos que relataram em audiência como decorreram tais diligências, com o fundamento de que a “reconstituição de facto” levada a efeito não constitui meio de prova válida para alicerçar a convicção do tribunal.

Analisando.

Os recorrentes vieram no essencial colocar a questão de saber se o co-arguido que não interveio na diligência de reconstituição do facto e ambos se remeteram ao silêncio na audiência de julgamento, pode tal meio de prova ser admitido como válido?

Entendem os recorrentes que neste caso a reconstituição do facto constitui uma autêntica proibição de prova.

A nossa discordância com esta fundamentação facilmente se advinha face ao que deixamos exposto supra, aqui reafirmando que a diligência de reconstituição do facto, realizada com a colaboração do arguido, constitui prova autónoma, pois as declarações produzidas pelo arguido têm um valor probatório próprio que não se confunde com a prova por declarações, pois as declarações prestadas pelo arguido são aqui meramente instrumentais em relação à recriação do facto, sendo as declarações do arguido meros contributos com vista à compreensão da reconstituição, e só essas declarações do arguido, indispensáveis à reconstituição do facto, podem ser valoradas.

Assim sendo, a este meio de prova não se aplicam as limitações impostas à prova por declarações. Trata-se de um meio de prova válido de demonstração da existência de certos factos a valorar, e o posterior direito ao silêncio do arguido que participou na reconstituição assim como da co-arguida que igualmente optou pelo silêncio, em nada invalida o efeito probatório da reconstituição.

Dito isto, não estando em causa prova por declarações, mas um meio de prova autónomo, cai como um baralho de cartas toda argumentação dos recorrentes, não se conseguindo perscrutar a hipótese de se ter violado o art.º 357º, nº 2, do CPP (que tem por epígrafe ”Reprodução ou leitura de declarações do arguido”), pelo que entendemos, com o devido respeito por opinião diversa, que esta norma é inaplicável ao auto de reconstituição.

Neste mesmo sentido de forma muito clara escreve-se no acórdão do TRC de 15.09.2015 o seguinte: “(…) entendemos inaplicável a regra do art.º 357º, nº 2 ao auto de reconstituição do facto por se tratar de um meio de prova autónomo, inserido no CPP, a par de outros meios de prova, como prova testemunhal, as declarações do arguido ou a prova documental.

As “declarações” do arguido, que mais não são que contribuições para a descoberta da verdade desde que livremente prestadas e enquanto indispensáveis à compreensão da reconstituição do facto, não podem deixar de ser valoradas, sob pena de este meio de prova se tornar frequentemente inútil, pois a reconstituição do facto não é um acto mudo, que possa realizar-se sem contribuições orais de sujeitos processuais” (relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt).

Neste mesmo sentido tem prosseguido a jurisprudência pois de igual modo veio a entender que as declarações do arguido obtidas através de escutas telefónicas podem ser valoradas em julgamento mesmo que o arguido opte pelo silêncio na audiência, pois se assim não fosse encontrado estava o meio para obliterar este meio de prova.

Assim se conclui que o meio de prova de reconstituição do facto constante dos autos não se mostra inquinado nos seus pressupostos, dando o arguido o seu consentimento para participar na reconstituição, sem que tenha sido usado qualquer método proibido de condicionamento da vontade do arguido, assim se indeferindo a alegada nulidade.

d. Relativamente à inquirição dos Agentes da Polícia Judiciária.

Por fim alegam os recorrentes que, não constando da acta respectiva que fosse permitida a inquirição dos Inspectores da Polícia Judiciária, não podem ser valoradas as suas declarações sobre o conteúdo da participação do arguido na reconstituição do facto, conforme art.º 356º, nº 7, CPP, conduzindo tal situação à nulidade do julgamento.

Também aqui falece razão aos recorrentes.

Defendendo nós que os esclarecimentos prestados pelo arguido na reconstituição do facto constituem meras contribuições que se integram no meio de prova autónomo a que alude o citado art.º 150º, nada obsta a que os órgãos de polícia criminal prestem depoimento na audiência sobre os termos e modo como decorreu a reconstituição.

Os agentes de polícia criminal que participaram na reconstituição relataram na audiência na qualidade de testemunhas os factos que directamente observaram, não tendo relatado quaisquer declarações dos arguidos, mostrando-se respeitado o art.º 356º, nº 7 do CPP.

Sobre esta matéria citamos aqui o acórdão do STJ de 27.06.2012 que de forma muito esclarecedora refere o seguinte:

“A proibição do art. 129.º do CPP visa os testemunhos que pretendam suprir o silêncio do arguido, mas não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, v.g. as providências cautelares a que alude o art. 249.º do CPP.

O relato de órgãos de polícia criminal sobre afirmações ou contribuições do arguido (v.g. factos, gestos, silêncios, reacções) de que tomaram conhecimento fora do âmbito de diligências de prova (…), bem como no âmbito de actos de investigação e meios de obtenção de prova (v.g. buscas, revistas, exames ao local do crime, reconstituição do crime (…) que tenham autonomia técnico-jurídica constituem depoimento válido e eficaz por se mostrarem alheias à tutela dos arts. 129.º e 357.º do CPP”. (in www.dgsi, relator Santos Cabral).

Podemos assim concluir, sem necessidade de mais alongadas considerações, que os depoimentos dos Inspectores da Polícia Judiciária prestados em audiência são válidos, contemplando o contraditório, pelo que nada impedia a sua valoração pelo tribunal, nem a reconstituição se mostra ferida de inconstitucionalidade, não merecendo por isso qualquer censura a decisão recorrida.

2.3. Da alegada nulidade da perícia informática;

 

A perícia informática nº 160/2019, junta aos autos em 18/07/2019 (fls. 1285 a 1365), foi notificado o seu teor aos arguidos bem como ao Ministério Público, aos quais foi concedido prazo até ao dia 26/07 para se pronunciarem sobre o seu conteúdo.

Os arguidos opuseram-se à junção aos autos da referida perícia forense alegando que a sua junção é extemporânea e a sua realização é ilegal quanto à competência de quem determinou a sua realização.

Os recorrentes justificam a alegada extemporaneidade, assente na ideia de que já se encerrara a audiência (art.º 361º, nº 2, em conjugação com o art.º 371º, ambos do CPP).

Mas também aqui sem razão, porquanto tal prova pericial foi validamente ordenada (competência funcional) e tempestivamente apresentada, uma vez reaberta a audiência.

Conforme resulta dos autos, logo em Setembro de 2018, os agentes da Polícia Judiciária que procediam à investigação, sob a direcção do Ministério Público, solicitaram à Direcção da Unidade de Telecomunicações e Informática, o exame ao material informático apreendido aos arguidos, e subsequente elaboração do relatório.

E se efectivamente houve morosidade na junção do relatório o certo é que os arguidos, ora recorrentes, em nada ficaram preteridos, pois logo lhes foi dado conhecimento da perícia e prazo para contraditar, querendo, podendo requerer diligências complementares, por despacho inserido na sessão de 19.07.2019 (ved. fls. 1284 e vº.). Puderam assim os arguidos aferir amplamente do teor da perícia e respectivo relatório, e exercer plenamente o contraditório, vindo os arguidos a deduzir oposição (cfr. fls. 1369 e segs. e 1380 e segs), prescindindo, contudo, da audição do relator da perícia, da reinquirição de testemunhas e mesmo da preterição de esclarecimentos, circunstância que o tribunal deixou bem explicitada na fundamentação de facto do acórdão proferido (cfr. fls. 12).

Assim sendo, não vemos de que modo e com que fundamento podem os recorrentes vir agora invocar a quebra do direito de defesa, com preterição do exercício do contraditório.

Tem, pois, razão o tribunal a quo na consideração da validade e tempestividade, desta diligência e contrariamente ao que também alegam os recorrentes, esta prova documental não tinha que ser reproduzida ou examinada na audiência (art.º 355º, CPP), cabendo aqui a fundamentação já acima explanada.

Improcede, assim, a pretensão dos recorrentes.

2.4. Da arguida nulidade da busca: não assinado o auto de busca pelo arguido.

Sobre esta questão apenas referir que uma das buscas foi consentida pelo recorrente, e na outra busca o arguido esteve presente, donde a eventual falta de assinatura é inócua, e sempre se trataria de uma mera irregularidade já sanada.

 

2.5. Da invocada nulidade da sentença nos termos dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1.al. a) do CPP.

A recorrente AA veio arguir a nulidade da sentença por falta de fundamentação, considerando que o Tribunal não procedeu ao exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, em violação do disposto no art.º 374º, nº 2 do CPP, alegando que “carece o tribunal de, não apenas indicar as provas que serviram para formular a sua convicção mas também de as analisar criticamente, pois só assim se garante a sentença se seguiu um processo lógico e racional….”

Vejamos então se a decisão recorrida padece da alegada falta de fundamentação na vertente do exame crítico da prova.

Resulta das disposições conjugadas dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), do CPP, que é nula a sentença que não contiver a enumeração dos factos provados e não provados, e que não contiver a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Este dever de fundamentação emerge directamente de um dever constitucional (cfr. art.º 28º, da CRP), exigindo mais que a simples enumeração dos meios de prova, um “exame crítico” desses meios de prova.

Esta exigência do exame crítico que foi aditada no nº 2 do art.º 374º pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto, visou, por um lado, o respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado constitucionalmente, permitindo intraprocessualmente aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico e racional que enformou a decisão sobre a matéria de facto, pela via do recurso, assim como o dever de fundamentação garante que o tribunal não procedeu a uma ponderação arbitrária das provas.

O exame crítico das provas conforme tem sido tratado pela doutrina e jurisprudência constitui uma noção de dimensão normativa, indicando-nos a lei que o julgador deve fazer uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, com a “indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. A integração desta noção normativa aponta para uma complexidade de elementos que se hão-de retirar sobretudo da realidade da vida e das regras de experiência comum, sendo essencial que o julgador esclareça os destinatários da sentença qual o “substrato racional” que conduziu a que a sua convicção se formasse em determinado sentido, ou porque valorou de determinada forma os diversos meios de prova, ou a razão porque uns mereceram credibilidade e outros não. Ou seja, o julgador terá de explicitar o porquê da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que serviu de suporte à formação da sua convicção.

Feitas estas considerações e olhando agora para o caso dos autos diremos que o tribunal recorrido, na respectiva fundamentação cumpre as exigências legais, elencando os factos provados e não provados, indicando os meios de prova e a razão por que tais meios de prova foram elucidativos.

Assim sendo, no caso dos autos e mesmo numa lógica de defesa temos dificuldade em aceitar que a recorrente venha dizer com tal singeleza, que “carece o tribunal de, não apenas indicar as provas que serviram para formular a sua convicção mas também de as analisar criticamente”, quando o tribunal a quo faz uma referência detalha aos meios de prova que indica (prova testemunhal, documental e pericial), apontando as razões por que conferiu credibilidade aos depoimentos prestados, numa exaustiva exposição e apreciação critica da prova, e de onde resultam suficientemente claras as razões que levaram o tribunal a quo a decidir da forma que deixou consignada.

Não pode assim a recorrente dizer, por total falta de razão, que o tribunal a quo não procedeu ao “exame crítico das provas, pois a sentença não padece da nulidade prevista nas disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a), ambos do C.P.P.

Termos em que improcede a alega nulidade da sentença por omissão de pronúncia.


*

2.6. Da nulidade da sentença nos termos da al. b) do art.º 379º do CPP, por ilegal alteração dos factos, face ao disposto no art.º 358º, nºs. 1 e 3 do CPP (ambos os recorrentes).

Os recorrentes vieram opor-se à operada alteração não substancial dos factos comunicada pelo Tribunal por despacho de fls. de 15.07.2019, constante de fls. 1252.

Alega o arguido CC que se encontrava acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º nº 1 e 2, alíneas a), i) e j), e viu-se condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 132º, nºs. 1 e 2 alíneas e) e j).

Entende o arguido que esta alteração por parte do tribunal é nula, não podendo ser condenado pelas alíneas e) e j), porquanto acarretam um agravamento da pena.

Argumenta que a questão se situa a montante do preceito 358º do CPP, prendendo-se sim com a estrutura acusatória do processo que, por imposição constitucional, domina o processo criminal, tendo o julgamento de se circunscrever dentro dos limites ditados pela acusação, sem que as falhas da acusação possam ser colmatadas ou corrigidas com recurso ao mecanismo do art.º 358º do CPP.

Diz ainda que o dominus do processo entendeu acusar pelos factos constantes da douta acusação com a qualificação jurídica que bem entendeu, e o Ministério Público ao longo de todo o julgamento nada requereu nesse sentido, e por isso o Tribunal encontra-se vinculado ao objecto inicial do processo, não podendo o juiz de julgamento sindicar a posição que o Ministério Público findo o inquérito.

E conclui o recorrente que a comunicação efectuada pelo tribunal agrava o crime pelo qual vinha acusado, ocorrendo assim neste caso uma alteração substancial dos factos nos termos do art.º 359º do CPP que se traduz numa alteração do objecto inicial do processo delimitado pelo teor da acusação.

E por fim invoca a inconstitucionalidade da interpretação feita pelo tribunal dos arts. 358º, 361º e 371º, do CPP.

No mesmo sentido se pronunciou a arguida AA considerando que a alteração da qualificação jurídica, agravando os limites máximos, constitui uma alteração substancial dos factos pelo que o tribunal não a podia ter tomado em conta para efeitos de condenação, não podendo a arguida ser condenada pela agravante “motivo fútil”.

Conhecendo

2.6.1. Das ocorrências processuais:

a. O tribunal designou o dia 19.07.2019 para a leitura da sentença, sendo que no dia 16.07.2019 foram os arguidos notificados do despacho datado do dia 15.07.2019 em que comunicava a alteração da qualificação jurídica, nos termos do art.º 358º, nº 3 ex vi do nº 1 do CPP.

b. Desse despacho de 15.07.2019, constante de fls. 1252, ficou a constar o seguinte:

“No curso da discussão em audiência de julgamento verifica-se do teor do artigo 8º da pronúncia, que os factos aí descritos são susceptíveis de integrar a qualificativa prevista na alínea e) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, respeitante à determinação por avidez e motivo torpe, a par das restantes qualificativas imputadas aos arguidos e que permanecem.

Pelo exposto, nos termos do art.º 358º nº 3 ex vi do nº1 do Cód. Processo Penal determina-se a alteração da qualificação jurídica nos termos supra expostos, passando a estar imputado a ambos os arguidos quanto ao crime de homicídio a par das qualificativas já elencadas, a qualificativa prevista na al. e) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, o que se lhes comunica.

Notifique”.

c. A defesa na sequência da notificação para este efeito requereu prazo para se pronunciar sobre esta questão, tendo o tribunal deferido o prazo de 3 dias, designando a leitura do acórdão para o dia 29 de Julho de 2019, às 14:00 (cfr. fls. 1284 e vº).

d. Os arguidos pronunciaram-se nos termos que constam dos requerimentos de fls.1369 a 1370 v. (AA) e fls1380 a 1384 (CC).

e. Os arguidos foram acusados pelos factos constantes da acusação de fls. 720 e ss, e pronunciados por remissão pelos mesmos factos (fls. 940 a 948) pelos quais lhes foi imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo artigo 131º, nº 1 e 132º, nº 1 e 2, alíneas a), i) e j), e de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo art.º 254º, nº 1 al. b), por referência aos artigos nº 14º, nº 1, 26º e 30º, nº 1, todos do Código Penal.

f.  O artigo 8º da pronúncia a que se reporta o despacho judicial considerando que os factos aí descritos são susceptíveis de integrar a qualificativa prevista na alínea e) do nº 2 do art.º 132º do CP, tem a seguinte redacção: “Os arguidos agiram sob a égide de um plano comum, previamente elaborado entre ambos, com frieza de ânimo, pois tratava-se da mãe adptotiva da arguida AA e sogra do arguido CC, por motivo fútil relacionado com a herança da vítima, pois ambos os arguidos eram sustentados pela vítima e, sem qualquer respeito pela vida da vítima e consideração pelos seus restos mortais”.

               

2.6.2. O Direito.

Importa então saber se a alteração a que procedeu o tribunal a quo constitui alteração “não substancial” ou, como defendem os recorrentes, constitui alteração “substancial”, conducente à nulidade da sentença por não ter sido observado o formalismo correspondente a esta alteração, previsto no art.º 359º, do CPP?

Para melhor compreensão importa tecer, ainda que de forma breve, algumas considerações acerca deste instituto.

Este instituto denominado de alteração dos factos tem subjacente um sistema processual penal cuja estrutura é basicamente acusatória, mas integrada por um princípio de investigação da verdade material, como é o nosso.

A estrutura acusatória é uma condição indispensável de garantia de defesa do arguido, que tem de saber com precisão e clareza aquilo de que é acusado e por que vai responder.

Pode bem acontecer, e com frequência acontece, que no decurso da audiência venham a ser descobertos novos factos ou a constatar-se que os factos constantes da acusação foram deficientemente ou insuficientemente descritos ou incorrectamente qualificados. Para o processo poder alcançar os seus fins, de descoberta da verdade e de realização da justiça, a lei teria necessariamente de dar uma resposta a esta situação, possibilitando a alteração dos factos ou a alteração da qualificação jurídica, desde que salvaguardadas as garantias de defesa do arguido.

Este instituto denominado de alteração dos factos tem a sua regulação nos arts. 1º, al. f), 358º e 359º, do CPP, estabelecendo a possibilidade de alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, bem como a alteração da qualificação jurídica dos factos.

Feito este curto introito, e regressando ao caso dos autos, o tribunal a quo, procedeu à seguinte comunicação: “…verifica-se do teor do artigo 8º da pronúncia que os factos aí descritos são susceptíveis de integrar a qualificativa prevista na alínea e) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal, respeitante à determinação por avidez e motivo torpe, a par das restantes qualificativas imputadas aos arguidos” .

Ou seja, os arguidos foram pronunciados, além do mais, em co-autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, nº 1 e 132º, nº 1 e 2, alíneas a), i) e j), do Cód. Penal, considerando o tribunal que a factualidade descrita é susceptível de ser subsumível na qualificativa prevista na al. e) do nº 2 do art.º 132º do Cód. Penal.

Os recorrentes alegam, contudo, que esta alteração da qualificação jurídica consubstancia uma alteração substancial porquanto agrava a pronúncia nos termos da alínea f) do art.º 1º do CPP.

Mas somos a entender que os recorrentes lavram manifestamente num equívoco.

A alínea f) do nº 1 do art.º 1º, do CPP define o que se entende por alteração substancial dos factos: “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.

Daqui resulta desde logo que para ocorrer uma alteração substancial de factos é necessário que primeiro ocorra uma alteração de factos, e segundo, que tal alteração tenha como efeito a imputação de um crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Assim, à contrario, a ocorrência de uma alteração da qualificação jurídica pode então ocorrer em duas situações: (i) no decurso de uma alteração dos factos (não substancial); e (ii) no caso em que, mesmo sendo os factos resultantes da prova produzida coincidentes com os da acusação, o tribunal discorda dessa qualificação jurídica, e procede à sua alteração (mera alteração da qualificação jurídica).

Importa referir com interesse neste caso que cedo foi colocada na doutrina e jurisprudência a questão de saber se uma diversa qualificação jurídica no caso em que a matéria de facto é a mesma podia significar uma alteração, substancial ou não substancial?

Hoje a solução está legislativamente consagrada com o aditamento do nº 3 ao art.º 358º, do CPP, introduzido pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, considerando tratar-se de uma alteração não substancial “quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, devendo ser comunicada a alteração ao arguido, consagrando assim, expressamente, a imposição de o arguido ser ouvido quando o tribunal altere a qualificação jurídica dos factos[2].

O legislador consagrou assim com este aditamento a solução da livre qualificação jurídica dos factos, e ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador assegurou também as garantias de defesa do arguido, de acordo com o art.º 32º, nº 1 da CRP, com a comunicação da alteração, pois como é sabido a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou pronúncia, sendo necessário o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado.

Assim, quando os factos se mantêm no essencial intocados  e se proceda a uma qualificação jurídica diversa da que consta da acusação, e mesmo que venha a resultar desta alteração da qualificação a aplicação de uma pena mais grave (o que não ocorre no caso dos autos), essa alteração é apenas equiparada à alteração não substancial. Não se trata, pois, de uma alteração de factos, mas de uma alteração equiparada a uma alteração não substancial de factos com as mesmas exigências de comunicação à defesa impressa no art.º 358º, nº 1 e 3 do CPP.

O tribunal a quo como vimos comunicou à defesa a alteração da qualificação jurídica em cumprimento do disposto nos nºs. 1 e 3 do citado art.º 358º.

Dito isto e regressando ao caso dos autos, temos que a alteração da qualificação jurídica não decorreu de qualquer alteração prévia factual decorrente da produção de prova, mas sim do mesmo quadro factual já constante da pronúncia. Assim, não está qui em causa uma alteração substancial, visto que os factos são os mesmos, apenas ocorrendo um diverso enquadramento jurídico dos mesmos factos (aditando-se uma agravante), sendo assim falso e insustentável a afirmação dos arguidos de que se alargou o “pedaço de vida” a julgar.

Por fim, os recorrentes consideram extemporâneo o momento da comunicação da alteração da qualificação jurídica, alegando que já se encerrara a audiência (arts. 361º, nº 2, em conjugação com o art.º 371º, ambos do CPP).

Mas também aqui somos a entender que não assiste razão aos recorrentes.

O citado art.º 358º, nº 3 foi previsto e tem aplicação já após a discussão da causa, após a produção de prova, admitindo-se proceder à alteração dos factos da acusação ou pronúncia “até ao encerramento da audiência de julgamento, mesmo após terem sido produzidas as alegações orais, e mesmo “sem a verificação de circunstâncias de excepcionalidade ou superveniência” (neste sentido se pronunciou o acórdão do T. Constitucional nº 90/3013 que não julgou inconstitucional as normas dos arts. 358º, 360º e 361º interpretadas neste sentido). A verdade é que, ao ser dado cumprimento ao contraditório (art.º 358º, nºs. 1 e 3, CPP), com a concessão de prazo, como solicitado pelos arguidos, necessariamente, se retroagiu à fase da discussão da causa, reabrindo-se o debate.

Em conclusão diremos que o tribunal a quo qualificou correctamente a alteração a que procedeu, como “não substancial”, e dela deu conhecimento ao arguido tempestivamente, nos termos e para os efeitos previstos no referido art.º 358º, pelo que afastada está a invocada nulidade da decisão recorrida nos termos do art.º 379º, nº1, al. b), do CPP.

Improcede, assim, nesta parte o recurso.

3. Da impugnação da matéria de facto.

As Relações conhecem de facto e de direito (artigo 428º, nº 1 do CPP), em concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

A matéria de facto, como é sabido, pode ser impugnada por duas vias: através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nº 3, 4 e 6, do CPP, ou no âmbito mais restrito pela invocação dos vícios elencados no artº 410º, nº 2, do mesmo diploma, a chamada “revista alargada”.

A impugnação neste âmbito mais restrito tem como pressuposto que o vício resulte do texto da decisão recorrida, apenas e só, e, se necessário, com recurso às regras da experiência comum. Trata-se de um vício cuja detecção implica uma tarefa apenas jurídica, de matéria de direito.

No caso de impugnabilidade alargada, o recorrente está sujeito ao estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos números 3 e 4 do artº 412º do CPP: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e das concretas provas que na sua perspectiva impõem decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, e a indicar, se for caso disso, as provas que devem ser renovadas.

Para tanto, o recorrente tem de indicar o conteúdo específico do meio de prova, individualizando quanto aos depoimentos as passagens da gravação em que baseia a impugnação, podendo o recorrente, na ausência de consignação na acta de início e termo da declaração, proceder à transcrição das passagens/excertos das declarações que, no seu entendimento imponham decisão diversa.[3]

A imposição destas especificações assenta no facto de a reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo, ou num outro integral, julgamento da matéria de facto, agora com base na audição da gravação da prova. Isto porque, na nossa lei, o recurso dirige-se apenas ao exame de erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido especificadamente apontados no recurso, com a indicação concreta das provas que demonstrem esses erros, reportados aos factos concretamente impugnados. Deste modo fica delimitado o objecto do recurso.

Neste caso, o recorrente tem pela frente a tarefa de tornar perceptível a razão da divergência quanto aos factos indicados, explicitando por que razão as provas que indica impõem decisão diversa da assumida pelo tribunal.

E o tribunal superior, assim delimitado o objecto do recurso pelo sentido e alcance da divergência, tem pela frente a tarefa de, á luz do princípio da livre apreciação da prova, saber se os factos impugnados têm efectivamente suporte razoável na prova documentada, avaliando especificadamente os meios indicados na decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que ele considera imporem decisão diversa (cfr. neste sentido, entre outros, o ac. do STJ de 20.01.2010, relator Cons. Henriques Gaspar, consultável em www. dgsi.pt).

Feita esta explicitação, atentemos na impugnação que vem feita pelo recorrente.

Os recorrentes vieram impugnar a matéria de facto invocam a existência dos vícios elencados no nº 2 do artº 410º, do CPP.

Contudo, a alegação feita pelos recorrentes não configura manifestamente a existência de qualquer um dos vícios elencados: não se verifica a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; nem contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação a a decisão, nem erro notório na apreciação da prova.

E claudica igualmente a impugnação nos termos previstos no art.º 412º, nº 3 e 4 do CPP.

Desde logo a matéria de facto provada não foi impugnada com os cuidados de forma a que aludem os nºs 3 e 4 do art.º 4312º do CPP, o que por si só inviabilizaria a modificação da decisão sobre a matéria de facto

Contudo, sempre se dirá que a decisão ora posta em crise se mostra acertada.

Com efeito dela flui uma análise ponderada da prova feita de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, permitindo compreender a razão pela qual os factos plasmados na decisão recorrida foram dados como provados.

Excluidas as nulidades processuais invocadas, o recorrente o que verdadeiramente faz é impugnar o processo de formação da convicção do tribunal, censurando essencialmente a credibilidade que o tribunal a quo conferiu àqueles depoimentos.

Mas a crítica à convicção formada pelo Tribunal a quo sustentada na livre apreciação das provas está votada ao insucesso se se alicerçar apenas, como é o caso, na diferente convicção sobre a prova produzida.

Em conclusão, a decisão recorrida não padece de qualquer erro de julgamento nem da alegada violação do principio in dubio pro reo, mostrando-se devidamente fundamentada, não merecendo qualquer censura, proferida em obediência ao princípio da livre apreciação da prova.

Termos em que se tem por manifesta a improcedência  da impugnação dirigida a decisão recorrida.

4. Do enquadramento jurídico.

Os recorrentes vieram colocar em causa o enquadramento jurídico operado pelo tribunal.

O acórdão recorrido, sobre esta matéria diz o seguinte:
“Da factualidade apurada, resultou que a vítima BB sendo a mãe adoptiva da arguida AA, vivia na mesma casa de morada de família desde a sua adopção e depois com o seu marido, o arguido CC. O relacionamento entre a arguida AA e a BB vinha sendo conflituoso, com agressões fisicas da arguida AA, provocando um estado de tristeza na vítima.
   Os arguidos tendo já o plano homicida firmado anteriormente, com a antecedência de muitos dias, relativamente ao período que mediou entre a noite de 1 e a madrugada do dia 2 de Setembro, nesta ocasião ambos os arguidos desferiram vários golpes no crânio e na face da vítima, provocando-lhe lesões gravíssimas com afundamento de partes do crânio, portanto em zona vital do corpo, cometendo com dolo directo o crime de homicídio evidenciando uma energia criminosa muito resoluta e determinada, subsumindo com exuberância todos os elementos típicos deste ilícito.
Se a ilicitude do crime de homicídio é manifesta, contudo, já carecerá de análise mais detalhada os contornos da culpa do mesmo com vista à ponderação do delito de que se encontra pronunciado.
Sobre a operacionalidade das qualificativas expressamente previstas no art.º 132º nº 2 do Cód.Penal, fundadas mais no desvalor da atitude (tipo de culpa), mais do que na conduta (tipo de ilícito), deverá asseverar-se que esta forma agravada de crime, sujeita que está ao princípio da legalidade, não impede que se classifique como um tipo de culpa e não um tipo de ilícito (cuja destrinça orbita em torno do carácter exemplificativo ou taxativo das circunstâncias agravantes), desde que, a punição por outras hipóteses de especial censurabilidade, ainda que não expressamente previstas, revistam afinidade teleológica com algum dos "exemplos padrão" expostos ao longo das alíneas do nº 2 do referido art.º 132º. Um tipo de culpa com estes limites e esta operacionalidade não atinge o princípio da legalidade, até porque, a culpa é o fundamento primeiro da punição em direito penal.
Da conduta apurada dos arguidos, primeiramente deve sublinhar-se a qualidade de ascendente da vítima perante a arguida AA, qualificativa que a arguida subsume com especial censurabilidade. Com efeito, depois da vítima BB haver adoptado a arguida, lhe ter assegurado um lar com afectos, apoio material e educativo, permitindo que a arguida ingressasse no ensino superior, sempre a apoiando, ficando inclusivamente triste quando a arguida sai de casa com o marido, depois ficando alegre quando esta regressou e ressentindo-se quando se inicia o ambiente conflituoso, a arguida em vez da gratidão devida, retira brutalmente a vida à mãe. Com a sua conduta a arguida atinge o limite extremo da censurabilidade, com violação grosseira de todos os deveres que decorrem da filiação, encontrando-se subsumida a alínea a) do nº 2 do art.º 132º do Cód.Penal
Quanto à motivação do crime por avidez, apura-se que essa motivação é partilhada entre os arguidos, ambos querendo lançar mão ao património da vítima. Se esse sentimento pertence à categoria dos motivos torpes, a sua autonomia na enunciação típica é quase tautológica, e sendo essa a motivação do arguidos, estes agem de forma especialmente censurável, transpondo-o com energia criminosa exuberante, retirando a vida da Maria Amélia com a maior violência, que era a pessoa que os apoiava em todos os aspectos inclusive materiais e de sustento, revelando uma especial censurabilidade na conduta nos termos do art. 132º nº 2 alínea e) do Cód.Penal.
Acresce que a atitude dos arguidos revelou ser premeditada, formulando a resolução criminosa de morte por um período superior a 24 horas, ao momento que antecedeu o homicídio. Sobre o fundamento desta forma especial de punição do homicídio o grande Penalista FRANCESCO CARRARA ensinava "O verdadeiro motivo político da agravante do homicídio cometido com premeditação, consiste na maior dificuldade que a vítima tem para defender-se contra o inimigo que friamente calculou a agressão", (in "Programma del Corso di Diritto Criminale", parágrafo 1122, T ed.). Circunstância que devendo ser qualificada de frieza de ânimo, torna a atitude especialmente censurável, (cfr.art.1320 1102 alínea j) do CP).
Essa circunstância denuncia a frieza de ânimo (como atitude especialmente censurável), actuando pela manutenção da intenção de matar por um período superior a 24 horas. Assim, demonstrando com essa actuação a sua interioridade que presidiu ao homicídio, o ânimo frio que o orientou na execução do delito. De referir que a frieza de ânimo não significa que os agressores estiveram imunes à emoção, ou não estiveram influenciados por qualquer carga emotiva, pois normalmente estarão e com intensidade. Ponto é que, age com frieza de ânimo quem, não obstante a perturbação que acompanha uma resolução homicida, não deixa de proceder com cálculo pertinente, mantendo a resolução homicida, e o perigo reside nesta circunstância. Daí que, como ensinava CARRARA a premeditação está associada e expressa a frieza de ânimo (in Op.Cit parágrafo 1124), entendimento sufragado pela nossa lei, quando elege a premeditação, como um dos índices de frieza de ânimo (neste sentido Paulo Albuquerque in "Comentário do Código Penal", 2ª edª. pág.405, Lisboa, 2010).
De referir que a utilização de meio insidioso por parte dos arguidos não se prova devendo por isso ser absolvidos dessa alínea i) do nº 2 do art.º 132º do CP.
Deverão assim ambos os arguidos ser punidos pela prática em co-autoria de um crime de homicídio qualificado previsto e punido pelos arts.131º nº1 e 132º nºs. 1 e 2 alíneas e) e j) do Cód.Penal, a que soma a alínea a) do nº 2 do art.º 132 quando à arguida AA.
O modo aviltante como os arguidos trataram o corpo, jogando-o numa vala e incinerando-o, ficando exposto aos elementos, são evidentes ofensas ao respeito devido pelos restos mortais. Dar esse tratamento desprezível a um ser vivo seria censurável, mas a uma mãe ou a uma sogra, respectivamente, que acolhia e cuidava dos arguidos, constitui uma ofensa muito grave, estão assim preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos do crime de profanação de cadáver previsto e punido pelo art. 254º nº 1 alínea b) do Cód.Penal”.
Apenas dizer que somos a entender que o tribunal a quo decidiu com toda a correcção, tendo este entendimento e apreciação a nossa concordância.

5. Da medida da pena.


Os recorrentes, para o caso de não alçarem a peticionada absolvição pugnam subsidiariamente pela redução da pena, considerando que a pena que lhes foi aplicada é excessiva, desajustadas da medida da culpa e comprometedoras dos fins ressocializadores que a punição deve visa, realçando ainda que não têm antecedentes criminais, são ainda jovens e mostram-se inseridos socialmente.

Vejamos:

A decisão recorrida, na tarefa de achar a pena adequada, ponderou de mais relevante o seguinte:

“(...).


“Cabe considerar que, no ambiente de conflitualidade doméstica cometido pela arguida AA que muito entristecia a vítima, os arguidos em conjugação de esforços, com a gravidade típica que resulta de cada uma das qualificativas da especial censurabilidade, cometem o homicídio com a maior violência e energia, co-autoria esta que incrementa a eficácia do delito e por isso a ilicitude. O modo como a vida foi retirada, vibrando-lhe vários golpes sobre a cabeça, evidencia uma carregada e funesta energia criminosa, circunstâncias que incrementam os limites da culpa. O facto dos arguidos aproveitarem a proximidade que tinham com a vítima e o lar onde todos residiam, vêm a retirar a vida desta sem que a mesma o pudesse prever, violando de forma ostensiva a relação de confiança que lhes permitia ter a chave da habitação aí viver e serem sustentados pela vítima. O modo como vieram a profanar e aviltar os restos mortais da vítima evidencia um profundo desprezo pela vítima e este conjunto de sentimentos baixos a que se soma um profundo e obsceno egoísmo dos arguidos que tudo fizeram para obter satisfações patrimoniais, representa um condicionalismo que em muito agravam a sua culpa.
A conduta posterior à prática do crime, mostra de modo claro a falta de arrependimento dos arguidos, continuando a prosseguir em conjunto um plano, já depois da profanação de cadáver, quando conferiram extrema visibilidade ao fraudulento desaparecimento de BB que encenaram perante várias pessoas, nas redes sociais e nos meios de comunicação social, o que veio a agravar a consternação sentida pela comunidade, em particular pela comunidade escolar, onde a vítima trabalhava.
A acumulação de circunstâncias qualificativas: a qualidade de ascendente (quanto à arguida AA); a premeditação e a sua frieza de ânimo agravam superlativamente a culpa (desvalor da atitude) o que agrava o limite máximo de ponderação concreta da pena, e os baixos sentimentos de avidez e egoísmo que evidenciam uma culpa especialmente censurável, muito elevada.
Ainda sobre as exigências de prevenção geral, no crime de homicídio qualificado de um ascende revelam-se acrescidas, competindo aos Tribunais reafirmar a importância e o valor da vida humana e o respeito que deve prevalecer entre os companheiros.
O dolo dos arguidos foi intenso, denunciado por uma forte e persistente energia criminosa.
Os arguidos são primários, e apesar de terem alguns parâmetros de inserção social (sendo que a familiar são os responsáveis por a terem desfeito), sendo o arguido CC com mais competências profissionais, são circunstâncias que embora tenha o sinal de benéfico sobre as exigências de prevenção especial, não conseguem, contudo, inverter, quer a perigosidade que demonstraram, quer o seu carácter violento e baixo, sendo por isso personalidades de risco.
Pesando a elevada culpa e a considerável ilicitude (associada às ponderosas exigências de prevenção geral) os considerandos respeitantes a cada um dos arguidos atenta a moldura da pena em questão, no cometimento do crime de homicídio qualificado, deverá a arguida AA ser sujeita à pena de 23 anos de prisão onde pesou a qualificativa prevista na alínea a) e o seu percurso de maior conflituosidade; devendo o arguido CC corresponder a pena de 22 anos de prisão.
Quanto ao crime de profanação de cadáver cometido sobre a vítima, igualmente pela sua extrema ofensa ao respeito pelos restos mortais é adequada a pena parcelar de 1 ano e 8 meses para cada arguido.
Nos termos do art.º 77º do Cód.Penal operando o cúmulo jurídico, ponderando os limites abstractos do cúmulo, assim como as circunstâncias valorativas da culpa, o conjunto dos factos, deverá a arguida AA ser sujeita à pena única de 24 anos de prisão; e o arguido CC ser sujeito à pena única de 23 anos de prisão.
Assim, a pena a aplicar aos arguidos deverá consciencializa-los da gravidade e censurabilidade da sua conduta, motivando-os ao futuro cumprimento das normas socialmente vigentes.
Quanto à pena acessória de indignidade sucessória, a conduta da arguida AA é extrema e violadora de forma exuberante do direito da família, nos deveres de respeito da filiação e de bem cuidar de uma mãe, devendo operar a pena acessória prevista no art.69º-A do Cód.Penal. Relativamente à alteração de apelido porque inexiste tutela oficiosa a este respeito, nada haverá a decidir”.

Como sabemos e resulta do disposto nos artigos 40º e 71º, nº 1, do Código Penal, a moldura da pena é sempre feita em função das categorias da prevenção e da culpa, sendo a culpa uma censura dirigida ao agente em virtude da atitude de desvalor relativamente a certo facto, indicando sempre o limite máximo da pena. Por sua vez, o limite mínimo decorrerá de considerações ligadas á necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Assim, e em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral (moldura de prevenção)- o “limiar mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar”[4] - e depois, no âmbito desta moldura, a medida exacta da pena, sem ultrapassar a medida da culpa, é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização e integração do agente ou das necessidades de intimidação e de segurança individuais.

Revertendo ao caso em apreço, importa considerar, tal como ponderado pelo tribunal a quo, as circunstâncias que rodearam o crime, atentando ao grau de ilicitude e da culpa, destacando-se a gravidade típica de cada qualificativa do art.º 132º, nº 2, als a), e) e j), do CP, e evidenciando-se a intensa violência, a forte energia criminosa empregues, o profundo desprezo pela vítima que os acarinhou e ajudou economicamente e de quem dependiam materialmente, e que apesar disso, em vez de gratidão, não se coibiram de engendrar um monstruoso móbil egoísta para lhe tirarem a vida, a que acresce a chocante crueldade, frieza e insensibilidade com que actuaram "pós-mortem", ao incinerarem o cadáver, que transportaram para um lugar distante (do M… até P…), e simularam um pretenso desaparecimento da vítima, durante dias, junto da comunicação social, redes sociais, autoridades policiais e comunidade local e escolar.

Releva de sobremaneira o enorme desvalor da conduta dos arguidos e a sua atitude de calculismo e com total ausência de arrependimento e de auto-crítica.

O crime pelas referidas circunstâncias gerou grande alarme social e consternação no meio onde BB era … e pessoa muito estimada, pelo que, apesar da primariedade dos arguidos e alguma inserção social pouco mitiga as prementes exigências de prevenção geral de modo a proteger as expectativas da comunidade na manutenção ou reforço da validade da norma infringida, assim como são elevadas as exigências de prevenção especial.

A ponderação feita pela decisão recorrida nenhuma censura nos merece, tendo levado em conta devidamente o que são neste caso as prementes exigências de prevenção geral, e as exigências de prevenção especial que ficaram demonstradas, no que foi ponderada, a situação pessoal do arguido, a ausência de antecedentes criminais, havendo ainda que ponderar a ausência de interiorização do desvalor da sua conduta, não revelando qualquer arrependimento.

Assim, sopesando as referidas circunstâncias, no quadro da moldura abstracta da pena, o tribunal a quo, com vista a adequar a pena à culpa, dentro da medida da necessidade de tutela do bem jurídico em causa e exigências de prevenção especial, entendeu fixar a pena, no caso do crime de homicídio qualificado, no caso da arguida AA a pena de 23 anos de prisão (onde pesou a qualificativa prevista na al. a) e o seu percurso de maior conflitualidade, e no caso do arguido CC a pena de 22 anos de prisão.

Dentro do mesmo quadro também nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, face a extrema ofensa e respeito pelos restos mortais da vítima, tendo-se por justa e adequada a pena de 1 ano e 8 meses de prisão aplicada a cada um dos arguidos.

Nos termos do art.º 77.º, n.º 2, do Código Penal, o cúmulo a seguir é o da “fixação de uma imagem global do facto” como reiteradamente tem vincado a jurisprudência, pelo que ponderados os limites abstractos do cúmulo, tem-se por justa e adequada a pena única fixada pelo tribunal recorrido, de 24 anos de prisão à arguida AA e ao arguido CC, a pena de 23 anos de prisão.

Improcedem, assim, na totalidade os recursos. (...)”.

Sem vistos, dados os constrangimentos decorrentes da situação pandémica em curso.

   Não tendo sido requerida audiência, cumpre, em conferência, apreciar e decidir.


III

Fundamentação


A. Síntese das questões suscitadas

Em síntese, as questões que foram suscitadas foram as seguintes:

a) Como questão de algum modo radicial, está aquela que põe em causa ambas as imputações criminais (encontrando-se mais claramente recortada nas alegações da arguida AA)[5]. b) Violação do direito de defesa face ao indeferimento da realização das perícias médico-legais (inobservância dos artigos 2.º do C.P., 151, 154, 157, 159, 160, 319, 320, 340 e 351, todos do CPP, e 6.º da CEDH), devendo o Tribunal de recurso determinar a realização das perícias requeridas. c) Nulidade da perícia informática (validade desta, tempestividade e admissibilidade de valoração do relatório pericial), nulidade da busca (e subsequente invalidade da apreensão e perícia informática sobre o material informático). d) Proibição de prova da reconstituição de facto atentos diversos vícios apontados: o auto não foi examinado em audiência de julgamento, nem ordenado por autoridade judiciária, não foram assinados pelo arguido, o arguido Iúri não podia participar na reconstituição dos factos, a arguida não pode ser incriminada pela versão reconstituída, uma vez usado o direito ao silêncio em audiência, sob pena de violação do contraditório, ao abrigo do disposto no n.º 7 do art.º 356 do CPP, os agentes da Polícia Judiciária não podiam ser inquiridos como testemunhas acerca do conteúdo das declarações recolhidas. E a este propósito foi suscitada a inconstitucionalidade na interpretação dada ao art.º 150 do CPP (reconstituição).e) Inadmissibilidade da alteração da qualificação jurídica. f) Vícios da sentença a que aludem as alíneas a), b) e c), do n.º 2 do art.º 410, do CPP, errada apreciação da prova, violação do princípio in dubio pro reo. g) Da nulidade do acórdão por omissão de exame crítico das provas e pronúncia, nos termos dos arts 374, n.º 2 e 379, n.º 1 al. a) e c) e por ilegal alteração (substancial) dos factos / qualificação jurídica, face ao disposto no art. 379, n.º 1, al. b), do CPP. h) Do (não) preenchimento da alínea e) e j) do n.º 2, do artigo 132 do CP. i) Da medida da pena parcelar do homicídio qualificado. j) Pena conjunta.

Desde logo, as questões que correspondem a matéria de facto e o crime de profanação de cadáver, como se verá, não são do conhecimento deste STJ e outras existem em que não é admissível recurso (como se explicitará). As demais questões, de direito, serão apreciadas na sequência que se entendeu mais condizente com a lógica da fundamentação.

B. Do Direito

I - Admissibilidade do recurso

a) Em Geral

1. É “pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior” (ac. STJ, Relator: Conselheiro Raúl Borges, 09-10-2019, Proc. n.º 3145/17.4JAPRT.S1 – 3.ª Secção). O “objeto do recurso e os limites cognitivos do STJ (sem prejuízo da pronúncia sobre questões de conhecimento oficioso) ficam delimitados pelo teor das conclusões que devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido, fazendo a súmula da motivação” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Raul Borges, 11-09-2019, Proc. n.º 96/18.9GELLE.E1.S1 - 3.ª Secção).

2. Serão, pois, as concretas questões enunciadas nas conclusões dos recorrentes CC e AA o objeto sobre que terá de pronunciar-se o acórdão do STJ, as matérias sobre as quais este se deve debruçar.

3. Acresce que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que admitiu o recurso não vincula o STJ conforme preceitua o art. 414, n.º 4 CPP pelo que, antes de mais, e previamente, importa aferir da admissibilidade dos recursos interpostos.

b) Das penas parcelares relativas ao crime de profanação de cadáver e questões conexas com esta pertinentes

4. Os recursos não são admissíveis no que se reporta a todas as questões, processuais e de substância, que digam respeito ao crime de profanação de cadáver (v.g. a referência no ponto VII das Conclusões da arguida AA) pelo facto da pena ter sido confirmada pela Relação e não ser superior a 8 anos, tendo sido aplicada pena não superior a 5 anos de prisão [art. 400, n.º 1, e), in fine, e al. f), conjugado com o art. 432, n.º 1, al. b), todos do CPP] [sobre a extensão da irrecorribilidade a jurisprudência do STJ tem ressaltado que impede a apreciação de todas as questões relacionadas com aquela pena parcelar e que a poderiam modificar, já que esta é inalterável; entre outros, mais recentemente, Ac STJ, Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves, 22.04.2020, Proc. n.º 63/17.0T9LRS.L1.S1 - 3.ª Secção, firmando que a irrecorribilidade “é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, sejam de constitucionalidade, substantivas ou processuais, confirmadas pelo acórdão da Relação”]. O conhecimento das questões concernentes às penas parcelares, numa situação de concurso de crimes, quando estas são iguais ou inferiores a 5 anos de prisão, apenas terão de ser conhecidas pelo STJ, quando a pena conjunta seja superior a 5 anos de prisão e tenha existido recurso direto para o STJ circunscrito à matéria de direito (cf. AFJ n.º 5/2017, Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).

5. Estamos perante um recurso de um acórdão do Tribunal da Relação que confirmou a condenação – dupla conforme – de penas parcelares (quanto ao crime de profanação de cadáver) que não ultrapassam os 5 anos de prisão, o que, à luz do supra exarado, extravasa o âmbito de cognição deste STJ. Aliás, por via da inadmissibilidade do recurso, o quantum das penas parcelares, e todas as questões subjacentes a essas condenações parcelares, estão sob o manto do trânsito em julgado, sendo, por isso, imodificáveis.

6. Em suma, somente quanto às penas parcelares aplicadas aos arguidos pela prática do crime de homicídio qualificado e a pena única (emergente do cúmulo jurídico com as penas parcelares do crime de profanação de cadáver), poderá haver reapreciação do acórdão do tribunal da Relação.

c) Da incompetência do STJ para reapreciar o acórdão proferido pela 1.ª Instância. Da questão relativa à alteração da qualificação jurídica. Também do caráter interlocutório da decisão.

7. O STJ apenas tem competência para sindicar a decisão da 1.ª instância no caso de recurso per saltum. No sistema de recursos delineado pelo ordenamento jurídico português em caso de recurso para a Relação é este tribunal que tem competência para reapreciar a sentença/acórdão proferido pelo tribunal da 1.ª instância. Interposto recurso para o STJ, a sua competência cinge-se à apreciação do acórdão proferido pelo Relação. É o que resulta dos arts. 427 e 428, do CPP.

8. Isto significa que o objeto do recurso, delimitado pelas conclusões, apenas se pode reportar às questões (que admitam recurso) relacionadas com o acórdão da Relação. É este o acórdão recorrido. Em relação à sentença/acórdão da 1.ª Instância já tiveram os recorrentes a oportunidade de recorrer de vícios que entendiam padecer. E sobre as mesmas já foi proferido um acórdão da Relação.

9. Ora, foi pedida a nulidade do acórdão por ilegal alteração substancial dos factos/qualificação jurídica, face ao disposto no art.º 358, nºs. 1 e 3, e 359, do CPP (ambos os recorrentes).

10. Sucede que está em causa a atuação do tribunal de 1.ª Instância. O Tribunal da Relação não procedeu à alteração da qualificação jurídica que os recorrentes referenciam nas conclusões. Não é o acórdão da Relação que se está a pretender sindicar, mas sim o da 1.ª instância, o que extravasa a competência do STJ.

11. Ademais, esta questão foi suscitada nos seus exatos termos perante o Tribunal da Relação, que decidiu sobre a mesma, indeferindo a nulidade, sustentando, em suma, que inexistiu qualquer alteração de factos, mas sim uma requalificação jurídica e, cumprido o contraditório, a mesma é admissível, mais afirmando a validade da comunicação da alteração após alegações orais. Esta questão não se reporta à decisão final do objeto do processo. É uma decisão interlocutória não passível de recurso (art. 400, n.º 1, al. c), do CPP). Conforme se ressalta no ac. STJ, Relator: Conselheiro Manuel Braz, 02.03.2017, Proc. n.º 126/15.6PBSTB.E1 - 5.ª Secção: “Nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, não é admissível recurso dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo. Uma vez que o recurso interposto do acórdão da relação para o STJ visa unicamente a parte desse acórdão que desatendeu à nulidade invocada pelo arguido, relativa a uma alegada alteração substancial de factos que teria ocorrido fora das condições previstas no art. 359.º, do CPP, o mesmo não é, nessa parte, admissível, nos termos da citada al. c). Tratando-se de questão interlocutória, a última palavra sobre ela cabe à Relação. E isso não muda pelo facto de a referida questão haver sido suscitada no âmbito de recurso que impugna também a decisão que conheceu, a final, do objecto do processo”. Adiante voltaremos a analisar esta causa de inadmissibilidade do recurso.

12. De todo modo, desde já se firma que não é admissível recurso sobre o acórdão da Relação de Lisboa que se pronunciou no sentido da validade da alteração da qualificação jurídica. Irrecorribilidade que afasta a possibilidade de conhecimento de todas as questões conexas que se suscitaram a propósito de tal temática, destarte a (des)conformidade com a CRP, ou CEDH.

d) Vícios do art. 410, n.º 2 do CPP. Da incompetência do STJ para o julgamento da matéria de facto. Livre apreciação da prova e in dubio pro reo.

13. Não é da competência do STJ conhecer dos vícios aludidos no art. 410, n.º 2, do CPP, como fundamento de recurso, quando invocados pelos arguidos, uma vez que o conhecimento de tais vícios sendo do âmbito da matéria de facto, é da competência do tribunal da Relação. (arts. 427 e 428, n.º 1, do CPP) [Ac. STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça, 19-02-2020, Proc. n.º 118/18.3JALRA.C1.S1 - 3.ª Secção]. O STJ apenas tem competência para o reexame da matéria de direito (art. 434 CPP). A alusão na primeira parte do art. 434 do CPP a “Sem prejuízo do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 410” não significa que o STJ possa analisar a matéria de facto. O que lhe é permitido é aferir, oficiosamente, se do texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras da experiência, se verificam os vícios elencados no art. 410, n.º 2, do CPP.

14. Note-se, contudo, que o prisma de análise e de intervenção é distinto do do Tribunal da Relação. Este último Tribunal pode conhecer dos factos, o que lhe permite curar de toda a dimensão da facticidade. Já o STJ, não obstante a remissão para o art. 410 do CPP, nunca perde a sua marca ou natureza de Tribunal de Revista. É o Direito que lhe cumpre analisar de acordo com o julgamento da matéria de facto plasmada no acórdão recorrido do Tribunal da Relação.

15. A possibilidade do STJ não decidir do Direito relativamente a vícios do art. 410, n.º 2 CPP funciona como válvula de segurança, com as limitações inerentes aos poderes de cognição do STJ. Este não sindica o julgamento da matéria de facto. Mas sim se do texto do acórdão recorrido - acórdão da Relação - se denotam vícios, de tal monta, que são impeditivos de o STJ realizar o reexame de Direito. Quais? Porque os factos sejam insuficientes para essa reapreciação, seja patente uma contradição entre a fundamentação, ou entre esta e a decisão, ou sejam ostensivos e clamorosos os erros na análise da prova (art. 410, n.º 1, do CPP).

Mas, volta-se a realçar. Todas estas questões conexas com o poder de cognição do STJ: o reexame da matéria de direito.

16. Ora, conforme resulta das conclusões dos arguidos, muitas das questões fundam-se na discordância quanto ao julgamento da matéria de facto, insurgindo-se contra o exame e apreciação da prova que foi feita [conclusões 16, 17, 26, 27, 54, 56, 80, 81, 82, 92 a 94, 140, do recurso do arguido CC, ou V a VII, XXV, do recurso da arguida AA]. Aliás, tal é patente se atentarmos que as conclusões dos recursos constituem praticamente uma réplica do recurso (da matéria de facto) para o Tribunal da Relação.

17. Se bem que não se chegue ao ponto de considerar que esta repetição integral consiste numa omissão de motivação (art. 414, n.º 2, do CPP), interpretando que esta repetição é uma crítica desta vez direcionada ao acórdão da Relação, com os mesmos fundamentos [pelo menos nas partes em que seja admissível este “aproveitamento”, excluindo, pois, aquelas situações em que é patente que o recurso apenas pode ter por incidência o acórdão da 1.ª instância; também assim tem entendido a mais recente jurisprudência do STJ, v.g., Ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, Proc. n.º 74/16.2JDLSB.L1.S1 - 3.ª Secção: “Repetindo o recorrente a argumentação que apresentou perante o tribunal da Relação, reproduzindo ipsis verbis o recurso da decisão de 1.ª instância, sem qualquer elemento novo, entende-se, todavia, não ser de rejeitar o recurso por falta de motivação, considerando-se a motivação apresentada como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação que confirmou a condenação no acórdão da 1.ª instância”], é insofismável que a repetição da argumentação aduzida perante a Relação, que julga do facto, demonstra que o fulcro da discordância dos recorrentes se prende com questões conexas com a matéria de facto, destarte o exame e análise da prova que foi realizado.

18. Em suma, o insurgimento situa-se no domínio da facticidade e questões relacionadas com a (in)correção do julgamento da matéria de facto. Em nenhum momento se questiona, por exemplo, que os factos dados como provados pela Relação não permitiram a condenação pelos crimes de homicídio [apenas se questiona se os mesmos permitem a qualificação] ou de profanação de cadáver, ou que é contraditória uma decisão condenatória tendo como premissa tal factualidade [e nessa medida não se vislumbra que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, quaisquer dos vícios elencados no art. 410, n.º 2, do CPP].

19. A discordância incide sobre a forma como foi apreciada a prova e julgada a matéria de facto. A alegada violação da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo é suscitada “no âmbito da matéria de facto”, pelo que “a sua sindicância não cabe ao STJ enquanto tribunal de revista (art. 434 do CPP)” (ac. STJ, Relator: Conselheiro Francisco Caetano, 12.09.2019, Proc. n.º 327/16.0T9VLG.P1.S1 - 5.ª Secção). A jurisprudência do STJ é constante na inadmissibilidade do recurso em casos similares. V., recentemente, Ac. STJ, Relator: Conselheiro Carlos Almeida, 19.09.2019, Proc. n.º 157/17.1JAPRT.G1.S1 - 5.ª Secção: “não é admissível o recurso interposto pela arguida na parte relativa à impugnação da decisão de facto em que se insurge contra o exame crítico da prova uma vez que, nos termos do art. 434.º do CPP, ao STJ apenas compete o reexame da matéria de direito.”. E relativamente ao princípio do in dubio pro reo o STJ só o pode sindicar “se, da decisão resultar que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, perante esse estado de dúvida, decidiu contra o arguido” (ac. do STJ, Rel. Cons. Isabel São Marcos, 03.05.2018, Proc. n.º 444/14.0JACBR.C1.S1 - 5.ª Secção), o que não sucede no caso concreto [nos recursos argumenta-se que a prova é suscetível de gerar dúvida; mas essa é a convicção dos recorrentes, não do acórdão recorrido da Relação, de onde emerge, ostensivamente, o entendimento de que a prova produzida demonstra cabalmente a culpabilidade dos arguidos].

20. Assim, não é de admitir o recurso dos arguidos quando suscitam questões conexas com a matéria de facto, como seja a errada apreciação da prova, a fundamentação relativa à prova e facticidade, insuficiência da matéria de facto. Ou seja, tudo que nos recursos se relaciona com a) Vícios do art. 410, n.º 2, do CPP; b) Errada apreciação da prova; c) Violação do princípio in dubio pro reo – situa-se no domínio da competência do Tribunal da Relação.

21. Não sendo passível de recurso, todas as questões suscitadas a este propósito, como as alegadas “inconstitucionalidades”, extravasam a competência do STJ.

e) Questões e decisões interlocutórias. Indeferimento da perícia psiquiátrica, invalidades de prova e proibições de prova

22. O arguido CC vem interpor recurso do despacho que indeferiu a perícia psiquiátrica. Desde logo, conforme já notámos, compete ao STJ reapreciar acórdãos do Tribunal da Relação e não despachos do Tribunal da 1.ª Instância, pelo que, sob este prisma, falece a competência do STJ [art. 427 e 428 do CPP].

23. Mesmo a entender-se que o recurso é do acórdão da Relação que confirmou o despacho que indeferiu a perícia psiquiátrica, estamos perante uma decisão interlocutória relativamente à qual não é admissível recurso, cf. art. 400, n.º 1, c) CPP, que reserva a competência do STJ na sindicância do acórdão da Relação em relação aos segmentos decisórios que conheçam, “a final, do objeto do processo”.

Decisão “que põe termo à causa é aquela que tem como consequência o arquivamento, ou o encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Em última análise, trata-se da decisão que põe termo àquela relação jurídica processual, ou seja, que determina o terminus da relação entre o Estado e o cidadão imputado, configurando os precisos termos da sua situação jurídico-criminal” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça,19.10.2016, Proc. n.º 108/13.2P6PRT.G1.S1 - 3.ª secção).

24. Ora, a decisão em relação ao indeferimento da perícia psiquiátrica incidiu sobre uma questão intercalar relativa à (des) necessidade de produção de uma prova. É certo que o art. 432, n.º 1, al. d), do CPP preceitua que se recorre para o STJ de “decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores”. Mas, conforme se esclarece no ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, 14.03.2018, Proc. n.º 22/08.3JALRA.E1.S - 3.ª Secção, “Este preceito carece, porém, de interpretação em conjugação com o art. 400.º, n.º 1, al. c), que estabelece que “não é admissível recurso” “de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo”; “Em consideração do elemento sistemático de interpretação, deve concluir-se que a remissão da al. d) n.º 1 do art. 432.º do CPP apenas abrange os casos previstos nas alíneas a) e c) do mesmo preceito, não sendo admissível recurso para o STJ de decisões proferidas pela Relação em recurso de decisões interlocutórias, por tais decisões não conhecerem, a final, do objecto do processo (al. b) e art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP).”

25. O STJ só “conhece dos recursos das decisões interlocutórias do tribunal de 1.ª Instância que devam subir com o da decisão final, quando esses recursos (dos tribunais de júri ou coletivo) sejam diretos para o STJ e não quando tenham sido objeto de recurso decidido pelas Relações”, e a “circunstância do recurso interlocutório ter subido com o interposto da decisão final não altera em nada a previsão legal, como não a altera a circunstância de ter sido apreciado e julgado na mesma peça processual em que o foi o principal” e por isso, “é irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400, por referência à al. b) do art. 432, ambos do CPP, a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça, 12.03.2015, Proc. n.º 724/01.5SWLSB.L1.S1 - 3.ª Secção).

No sentido de ser irrecorrível, por ser interlocutória, a decisão do Tribunal da Relação que confirmou o indeferimento de diligência de prova, v. Ac. STJ, Rel. Isabel Pais Martins, 29.10.2015, Proc. n.º 1584/13.9JAPRT.C1.S1 - 5.ª Secção.

Concretamente, quanto a uma decisão de indeferimento de perícia, Ac. STJ, Relatora: Conselheira Helena Moniz, 04.04.2019, Proc. n.º 161/14.1PTOER.L1.S1 - 5.ª Secção: “Verifica-se, assim, sem margem para dúvidas, que a decisão recorrida versa sobre questão interlocutória - na medida em que se trata da (não) admissão de realização de uma segunda perícia - e integra um acórdão proferido em recurso pela Relação que, nessa parte, não se pronunciou sobre o objeto do processo, pelo que não é assim admissível recurso nos termos do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c) do CPP.“ E numa situação equiparável à dos autos decidiu-se no Ac. STJ, Relatora: Conselheira Isabel Pais Martins, 24.11.2016, Proc. n.º 569/13.0GDALM.L1.S1 - 5.ª Secção: “Com o recurso da decisão final subiu um recurso interposto pelo recorrente do despacho proferido na audiência de julgamento pelo qual foi indeferida a realização da perícia psiquiátrica, por ele, requerida. A relação conheceu desse recurso conjuntamente com os recursos interpostos da decisão final. O facto de na mesma peça processual ter sido julgado esse recurso interlocutório e os recursos interpostos da decisão final, não altera a sua natureza (de recurso interposto de decisão interlocutória) nem a do acórdão na parte em que dele conhece: nessa parte, o acórdão da relação não conhece, a final, do objecto do processo. Motivo pelo qual, o acórdão da relação, na parte em que conheceu do recurso interposto do despacho de indeferimento da perícia psiquiátrica, não admite recurso (arts. 400.º, n.º 1, al. c) e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP)”.

Pelo que, tratando-se de recurso de decisão interlocutória, que o Tribunal da Relação conheceu no acórdão recorrido, à luz do que se explicitou já, não é admissível recurso do indeferimento da perícia psiquiátrica.

26. Já em relação à arguida AA, a mesma não interpôs qualquer recurso do despacho de indeferimento da perícia psiquiátrica, que ficou sob o manto do trânsito em julgado, formando caso julgado formal. Aliás, se o tivesse feito, a decisão (de indeferimento) da Relação (mesmo que inserta no acórdão recorrido que conheceu do objeto do processo) não seria recorrível pelos motivos já expostos. Por fim, note-se, a arguida também recorre do indeferimento da perícia em relação ao coarguido CC. Ora, para além da decisão ser irrecorrível, como notámos, por força do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP (decisão interlocutória), falece à recorrente o interesse em agir (art. 400, n.º 1, al. b), do CPP), já que seria ao arguido CC que competiria reagir ao despacho (como aliás o fez), não tendo, de resto, concretizado a arguida, nas suas conclusões, qualquer facto demonstrativo que a não realização de perícia pelo coarguido a prejudicaria.

27. Contudo, não se trata da única decisão interlocutória que emanou do Tribunal da Relação e que consta do acórdão recorrido. Os arguidos suscitaram diversas questões relacionados com alegadas invalidades no domínio da prova.

Concretamente, relativamente às suscitadas nulidades da perícia informática, da busca (na qual o arguido Iúri assenta a subsequente nulidade da apreensão e perícia informática), já notámos que a génese deste insurgimento se relaciona com a discordância quanto ao julgamento da matéria de facto. E não um reexame exclusivo da matéria de Direito, premissa de operatividade do art. 434 do CPP e, como tal, para além das fronteiras de cognição do STJ. Mas, também, todas elas se relacionam com temáticas relativas ao rito processual da produção de prova, conexas com a matéria de facto. E, sobre todas elas, foi suscitada a apreciação do Tribunal da Relação, que decidiu. Decisão esta em relação ao encadeamento processual, a vicissitudes processuais, que não o conhecimento “final” do objeto do processo.

Ou seja, a Relação, no seu acórdão recorrido, pronunciou-se sobre essas invalidades (já que tinham sido arguidas nos seus precisos termos perante si pelos recorrentes CC e AA).

28. Contudo, o arguido CC sustenta a invalidade da busca no facto de não ter consentido a realização no dia 06.09.2019. O Tribunal da Relação coloca como tópico, quanto à nulidade da busca, a sua não assinatura. Mas o Tribunal da Relação decidiu que existiu um consentimento (seguindo a mesma posição do Tribunal de 1.ª Instância que alude na motivação: a “6 de Setembro foi realizada pela polícia judiciária uma busca com autorização dos arguidos”). Pelo que, deverá considerar-se ter existido pronúncia, envolvendo o exame crítico da prova. Note-se que o arguido CC, a este propósito, não suscita qualquer omissão de pronúncia da Relação, arguindo a nulidade ao abrigo do art. 379, n.º 1, al. c), do CPP. Diverge, sim, do acórdão da Relação, quando considera a busca válida. A interpretação a retirar do acórdão recorrido vai no sentido da prolação de uma decisão recognitiva da validade da busca, embora aluda, também, a não assinatura. Aliás, o próprio arguido no art. 49 da motivação do recurso faz a “ponte” entre a não assinatura e o “não consentimento”: “No dia 06/09/2018, pelas 15h45m, tendo por fundamento o consentimento da arguida nos termos do artigo 174º, nº 5 do CPP e 177º, nº 3, alínea a) do CPP, contudo tal consentimento só se encontra assinado pela Arguida e esposa do Arguido, sendo que o Arguido CC não consentiu em tal busca domiciliária, nem assinou o documento, sendo pois a mesma nula (artigo 177º do CPP), sendo também nula a apreensão de todos os objectos apreendidos e que são propriedade do Arguido)” e daí ser compreensível o prisma de abordagem do Tribunal da Relação.

29. Esses segmentos decisórios são, porém, totalmente autónomos da decisão que colocou termo ao processo. Decidir da procedência, ou improcedência, de tais nulidades, por si, não coloca termo ao processo. Não é este um juízo final sobre o objeto do processo. Mas sim uma pronúncia sobre um ato processual prévio.

Estamos perante decisões interlocutórias que caem sobre a alçada do art. 400, n.º 1, al.c), do CPP, e, como tal, não podem sustentar um recurso para o STJ (cfr. art. 432, n.º 1, al. b), do CPP). E sem qualquer situação em que possa considerar-se haver inconstitucionalidade, já que foi assegurada a reapreciação da questão pelo Tribunal da Relação (art. 32, n.º 1 CRP), não garantindo a CRP um duplo grau de recurso ou terceiro grau de jurisdição, conferindo um certo grau de discricionariedade ao legislador. Sendo certo que este, reservando ao STJ a reapreciação da matéria de Direito, exclui do seu poder de cognição decisões interlocutórias objeto de recurso prévio para o Tribunal da Relação, e sobre o qual este se pronunciou.

Pelo que, enquanto decisão de índole interlocutória, não é admissível o recurso. Assim tem decidido o STJ em relação a algumas nulidades de prova. Por exemplo, no Ac. STJ, Relator: Conselheiro Santos Cabral, 12.03.2009, Proc. n.º 395/09 - 3.ª Secção, decidiu que o acórdão da Relação na parte em que recaiu sobre a matéria da nulidade da busca domiciliária, “é insusceptível de recurso, pois que se trata de decisão que não pôs termo à causa e, como tal, abrangida pela regra da irrecorribilidade imposta pela al. c) do n.º 1 do art. 400.°, por referência da al. b) do art. 432.º, ambos do CPP.”. Como ali se fundamenta, tratando-se de “questões interlocutórias, e apesar de o acórdão recorrido conter outras decisões que puseram termo à causa e susceptíveis de recurso para o STJ, o facto de não terem sido objecto de recurso autónomo não lhes confere recorribilidade fundamentada na circunstância de as restantes admitirem recurso para este Tribunal”, sendo que este “entendimento, respeitando a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, está em perfeita consonância com o regime dos recursos traçados pela Reforma de 1998 para o STJ, que obstou, de forma clara, ao segundo grau de recurso, terceiro grau de jurisdição, relativo a questões processuais ou que não tenham posto termo à causa. A excepção é a prevista na al. c) do art. 432.º do CPP, à qual não é subsumível a hipótese em apreço.”. Pelos mesmos motivos se decidiu que a “nulidade das escutas telefónicas, enquanto questão interlocutória, que não pôs termo à causa e que já foi apreciada, em recurso, pela Relação, está abrangida pela regra da irrecorribilidade imposta pela al. c) do n.º 1 do art. 400.°, por referência da al. b) do art. 432.°, ambos do CPP “ (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Santos Cabral, 21.02.2007, Proc. n.º 4685/06 - 3.ª Secção). Igualmente, o Ac. STJ, Relatora: Conselheira Rosa Tching, 04.01.2017, Proc. n.º 655/10.8GBTMR.S1– 3.ª Secção, que decidiu, tendo “a Relação apreciado, por acórdão proferido nos presentes autos, já transitado, a questão da nulidade do auto de reconstituição do facto e da própria diligência de prova, decidindo, a final, pela inexistência de tal vício e determinando a sua valoração enquanto meio de prova legal, não restam dúvidas de que esta decisão definitiva constitui caso julgado formal, impedindo a sua reapreciação por este STJ.”

É, pois, irrecorrível o recurso das questões colocadas quanto à questão da nulidade da busca (e, consequentemente, quanto à nulidade da apreensão e da perícia informática que se “fundam” na precedente nulidade da busca), bem como as relativas à perícia informática e vicissitudes apontadas nos recursos, a este propósito.

30. Também, pelos mesmos fundamentos (decisão interlocutória prévia a decisão final, mas autónoma dela, que não decisão a final do objeto do processo), não é de admitir o recurso do segmento do acórdão da Relação que confirmou a admissibilidade da junção de relatório pericial após as alegações. Quanto a este, também já os arguidos tinham suscitado idêntica questão perante o Tribunal da Relação, exercendo o seu direito de recurso (art. 32.º/1 do CPP), que lhes permitiu uma reanálise da temática por um Tribunal Superior. Também decidindo da inadmissibilidade do recurso por via do art. 400.º/1/c, do CPP, ac. STJ, Rel. Pires da Graça, Proc. n.º 724/01.5SWLSB.L1.S1 - 3.ª Secção, numa situação de certa forma similar, em que o Tribunal da Relação julgou válido o despacho do Tribunal da 1.ª Instância que, após as alegações finais, e encerramento da audiência, decidiu reabrir para ouvir testemunhas.

31. Importa, neste momento, chamar à colação as proibições de prova suscitadas no recurso. Como já se enunciou, e é por demais sabido, são as conclusões que definem o âmbito do recurso. Ora, emerge das conclusões que os recorrentes apontam diversos vícios à produção e valoração da prova reconstituição de facto e que elevam ao “altar” das proibições de prova, mais arguindo a recorrente AA a inconstitucionalidade na interpretação que foi dada ao art. 150, do CPP.

32. Este Supremo Tribunal de Justiça tem considerado, e tem-lo dito, que possui competência (por se tratar de reexame de Direito) para apreciar da existência/inexistência de proibições de prova (entre outros ac. do STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça, 19-10-2016, Proc. n.º 108/13.2P6PRT.G1.S1 - 3.ª secção), conclusão essa, aliás, que nos afigura emergir do próprio art. 410, n.º 3, do CPP, mas que assim se reforça jurisprudencialmente.

Mas afirmar que o STJ tem competência para conhecer das proibições de prova não afasta as regras de admissibilidade de recurso. Ou seja, se o recurso que suscita a questão da proibição de prova for admissível para o STJ, este tem total competência para conhecer da mesma: é um reexame de direito (art. 434 do CPP), embora relativo à validade de prova, que está intrinsecamente relacionada com o julgamento do facto.

No entanto, como referimos, previamente será de sopesar da admissibilidade do recurso. Uma coisa é a competência do STJ para decidir; já uma outra, diversa, são os requisitos de admissibilidade de recurso. Como salienta o Ac. STJ, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro, 28.02.2007, Proc. n.º 32/07 - 3.ª Secção, ao “estabelecer-se que o recurso pode ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade, nos termos do art. 410.º, n.º 3, do CPP, não se confundindo fundamento com os requisitos processuais de admissibilidade, aquela não comporta virtualidade para deferir, automaticamente, o reexame da causa por um tribunal superior, havendo previamente que conformar a pretensão às condições gerais de recurso”. Também claro nesta matéria é o Ac. STJ, Relator: Conselheiro João Silva Miguel, 13.01.2016, Proc. n.º 174/11.5GDGDM.L1.S1 - 3.ª Secção, assinalando, no caso em que “são arguidas proibições de prova, decorrente de valoração de prova produzida em eventual violação do direito ao silêncio do recorrente” e, apesar do “STJ reiteradamente afirmar que o eventual uso de um método proibido de prova é uma questão de direito de que deve tomar conhecimento, ainda que em última análise se reporte à fixação da matéria de facto, já que podem estar em causa direitos, liberdades e garantias essenciais para o cidadão, logo condiciona essa apreciação à recorribilidade da decisão final do processo onde se verificou a situação: se a decisão final for irrecorrível, o respectivo trânsito em julgado só permite avaliar essa questão nos estritos pressupostos e limites do recurso extraordinário de revisão. Pelo que é inadmissível o recurso na parte relativa à apreciação da alegada valoração de prova proibida, sendo de rejeitar, nos termos dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), 400.º, n.º 1, als. e) e f) e 420.º, n.º 1, al. b), ex vi art. 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, ficando o recurso circunscrito à medida concreta da pena única aplicada aos arguidos, superior a 8 anos de prisão.”. No mesmo sentido, o Ac. STJ, Relator: Conselheiro Pereira Madeira, 05.07.2007, Proc. n.º 2054/07 - 5.ª Secção: “I - A decisão intercalar da Relação que apreciou, em recurso, a questão da legalidade das escutas telefónicas é irrecorrível para o STJ. II - Tal decisão não põe termo à causa – cf. art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP.”

33. Posto isto, e encarando o caso dos autos a esta luz, que ocorre? Os arguidos, direta, ou implicitamente, nas conclusões, aludem à proibição de prova da reconstituição de facto, elencando diversos vícios que gravitam em torno desta questão e que, em suma, são os seguintes: o auto não foi examinado em audiência de julgamento; nem ordenado por autoridade judiciária; o arguido não assinou; não podia participar na reconstituição dos factos e a arguida não pode ser incriminada pela versão reconstituída; não podia ser valorado, uma vez usado o direito ao silêncio em audiência; os agentes da Polícia Judiciária não podiam ser inquiridos como testemunhas acerca do conteúdo. E a este propósito foi suscitada a inconstitucionalidade na interpretação dada ao art. 150 do CPP (reconstituição).

34. Ora, todas essas questões foram decididas pelo Tribunal da Relação que, confirmando a posição do Tribunal da 1.ª Instância, entendeu que a produção, valoração e utilização da prova por reconstituição de facto, bem como testemunho dos agentes da PJ em audiência de julgamento é válido, não padecendo de nenhum vício que possa ser apelidado de proibição de prova (nem qualquer outra invalidade).

35. Atento o exposto, estamos perante uma decisão interlocutória, prévia à decisão final. Não decide a final do objeto do processo, sendo instrumental apenas. Ao abrigo do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, também não é admissível recurso nessa parte. Quanto a esta matéria, é relevante insistir que se formou caso julgado formal. E atente-se, aliás, que também não sustentaria um recurso de revisão, “porque não foi agora descoberta, tendo constituído um dos fundamentos do recurso ordinário interposto pelo então arguido para o Tribunal da Relação, tendo este tribunal rejeitado tal recurso” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Carlos Almeida, 06.02.2019, Proc. n.º 337/14.1TDEVR-A.S1 - 5.ª Secção).

Ou seja, o STJ deverá conhecer das proibições de prova suscitadas em recurso, quando tem competência para decidir da questão interlocutória (v.g. caso de recurso direto). Também não fica arredado o conhecimento pelo STJ das proibições de prova, oficiosamente, por via do art. 410, n.º 3 do CPP, quando, por exemplo, é suscitada como questão nova. Cremos ser este o sentido que se deverá extrair do Ac. STJ, Relator: Conselheiro Júlio Pereira, 10.10.2019, Proc. n.º 1739/15.1PAVNG.P1.S1- 5.ª Secção: “I - O STJ conhece de decisões finais embora escrutine também questões interlocutórias, mas apenas aquelas que devam subir com os recursos que ao STJ cumpre apreciar, em conformidade com o disposto no art. 432.º, do CPP. II - A validade de reconhecimento feito em inquérito não previamente suscitada pelo recorrente, constituindo verdadeiramente uma questão nova obstaria, só por si, ao seu conhecimento por parte deste tribunal, a não ser que se estivesse perante uma situação de nulidade da prova, enquadrável no disposto no art. 126.º do CPP, hipótese em que o vício seria de conhecimento oficioso”.

O que importa salientar, e voltar a frisar, é que a competência não se deve confundir com admissibilidade de recurso. É distinto reconhecer que o STJ tem poder de cognição no caso de provas proibidas da questão da admissibilidade de recorrer de decisões que apreciam proibições de prova. Sendo certo, como já firmamos, nos casos em que a questão foi suscitada junto do Tribunal da Relação, que decidiu pela validade das provas, não pode ser novamente reanalisada pelo STJ. É de uma questão interlocutória que se trata. E depois de dois Tribunais afirmarem a validade da prova, fica garantido o direito ao recurso e, nestes casos, não sentiu o legislador, por força do art. 400, n.º 1, al. c), do CPP, a necessidade de abrir a porta de uma terceira jurisdição. Entende-se que, quando duas Instâncias se pronunciam sobre a admissibilidade da prova, ficam salvaguardadas as garantias de defesa do arguido. E, se outro tivesse sido o entendimento do legislador, teria ressalvado esta situação (admitindo o recurso de decisões interlocutórias que analisaram proibições de prova). O que não fez.

36. A irrecorribilidade acarreta a impossibilidade do STJ conhecer de qualquer questão suscitada a propósito do segmento do recurso inadmissível, designadamente as inconstitucionalidades suscitadas, por afronta ao art. 32 CRP.

III - Das nulidades do acórdão recorrido

37. Também se suscitam nos recursos nulidades do acórdão recorrido com fundamentos no art. 379, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP.

     Como ponto prévio deverá relembrar-se que o STJ só pode conhecer das nulidades verificando-se uma premissa: a recorribilidade da decisão a que se apontam tais vícios. Conforme salienta o Ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, 14.03.2018, Proc. n.º 22/08.3JALRA.E1.S - 3.ª Secção, estando o STJ “por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no art. 410 do CPP, respetivas nulidades (art. 379 e 425, n.º 4)”. Pelo que não lhe compete analisar os vícios dos segmentos decisórios que supra se enunciaram como não sendo passíveis de recurso.

No demais, não se evidenciam quaisquer nulidades, porque o Acórdão recorrido se encontra devidamente fundamentado (não havendo, nomeadamente, nem omissões de pronúncia nem de fundamentação).

 38. Quanto à falta de exame crítico da prova, ou omissão de pronúncia, nas conclusões apenas existem alegações que se afiguram evanescentes, não se enunciando, em concreto, quais as “omissões” do acórdão da Relação, quer em relação à fundamentação, quer no que concerne à não pronúncia.

     No decurso das conclusões, o arguido CC alude no n.º 25: “No relatório de antropologia forense encontra-se aposta a data de 22/08/2018, data essa em que BB ainda se encontrava viva, pelo que assim existe uma dúvida inultrapassável no sentido de saber se essa data pode ou não colocar em risco a conclusão encontrada nesse relatório, bem como no Relatório da Autópsia”. Na motivação, o arguido CC “vislumbra” uma omissão de pronúncia. No entanto, para além de não ter sido arguida expressamente nas conclusões, deixando na dúvida se é essa a sua intenção, o certo é que estamos no domínio do exame crítico da prova. Apesar de não se conseguir lograr a consequência que o arguido retira da sua alegação, nem que concretos factos não deveriam ser dados provados, na sua ótica, estamos no domínio do julgamento do facto. O relatório foi analisado pelo Tribunal da 1.ª Instância. Exame da prova, relativamente à qual o Tribunal da Relação no acórdão recorrido se pronunciou.

 39. Em suma, da análise do acórdão recorrido emerge a enunciação das questões e exara-se a posição quanto às mesmas. Em relação à falta de exame crítico da prova (onde se inclui a análise do relatório de antropologia) cabe dizer que o Tribunal da Relação rejeitou a impugnação da matéria de facto, firmando não existirem os vícios do art. 410, n.º 2, do CPP, e refutou a impugnação nos termos previstos no art.º 412, nºs 3 e 4 do CPP. De todo modo, acabou por consignar que concordava com o exame da prova feita pelo Tribunal de 1.ª Instância.

    Por tudo o exposto, entende-se que o acórdão recorrido não padece de qualquer nulidade.

IV - Identificação e Densificação do thema decidendum

40. Feita a triagem dos segmentos dos recursos admissíveis, conclui-se que deverão apreciar-se as seguintes questões:

1 - Enquadramento jurídico nas als. e) e j) do n.º 2 do art. 132, do CP;

2 - Medida da pena parcelar do crime de homicídio qualificado;

3 - Medida da pena única;


a) Enquadramento jurídico

41. O arguido CC discorda da subsunção na al. e) e j) do n.º 2 do art. 132, do CP.

Interessa-nos, assim, na abordagem da bondade da argumentação, aferir a concreta circunstância qualificativa de que se “serviu” o acórdão recorrido.

Este, concordando com o tribunal da 1.ª Instância, assentou as circunstâncias qualificativas na existência de uma determinação por avidez [al e) do n.º 2 do art. 132.º, do CP], bem como frieza de ânimo, premeditação, persistência na intenção de matar por mais de 24 horas [al. j) do n.º 2 do art. 132, do CP)].

O art. 132 do CP corresponde ao tipo qualificado de homicídio simples previsto no art. 131 do CP, em virtude de um agravamento da culpa. É “nessa diferença de grau, nessa especial maior culpa, que encontra fundamento a qualificação do homicídio” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Manuel Braz, 02.03.2017, Proc. n.º 126/15.6PBSTB.E1 - 5.ª Secção). Contém o n.º 1 uma “cláusula geral fixando um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa, agravada por virtude da particular censurabilidade ou perversidade relativas ao agente e ao facto, reveladas pelas circunstâncias do caso” e o n.º 2 contém “um conjunto de exemplos-padrão, indiciadores de um grau especialmente elevado de culpa que, não sendo de funcionamento automático, determinarão a concretização, na avaliação e valoração do caso concreto, da especial censurabilidade ou perversidade dos factos praticados, por realização da previsão típica de alguma das circunstâncias que integram tais exemplos-padrão ou de outras de idêntico sentido e conteúdo normativo” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, 18.09.2018, Proc. n.º 359/16.8JAFAR.S1 - 3.ª secção). A especial censurabilidade “reporta-se às circunstâncias em que a morte foi causada” “quando reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com certos valores, visível na realização do facto” e “especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, atinente à personalidade do autor” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro, 17.02.2011, Proc. n.º 227/07.4JAPRT.P2.S1 - 3.ª Secção).

Chamando à colação jurisprudência mais recente do STJ, “avidez” identifica-se com a “ganância”, “o desejo intenso de obter ou manter uma vantagem económica em consequência do homicídio”; agravar-se-ão, “por “avidez”, os casos em que a morte da vítima de homicídio proporcione uma situação de vantagem (casos de morte provocada para benefício de um prémio de seguro, ou visando uma posição mais favorável na herança)” [Ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, 09.10.2019, Proc. n.º 24/17.9JAPTM-E1.S1- 3.ª Secção]; é o “desejo de lucro económico à custa da brutal desconsideração da vida da vítima” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Clemente Lima, 29.11.2018, Proc. n.º 1742/16.4JAPRT.P1.S1 - 5.ª Secção); a “ganância em obter um benefício patrimonial, o desejo desenfreado de um benefício patrimonial, susceptível de provocar, por princípio, uma desproporção entre o meio e o fim” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Armindo Monteiro, 17.02.2011, Proc. n.º 227/07.4JAPRT.P2.S1 - 3.ª Secção).

Não existe uma quantificação da vantagem económica para efeito da circunstância agravante. A censurabilidade assenta no facto de se ceifar uma vida humana por motivos totalmente indesculpáveis relacionados com o sentimento de ganância, que torna ainda mais incompreensível (à luz dos valores) e censurável o ato de matar. Pelo que age com avidez quando é “guiado pelo propósito firme de se apoderar dos parcos valores da vítima” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Maia Costa, 15.10.2014, Proc. n.º 107/13.4JACBR.C1.S1 - 3.ª Secção).

42. O Acórdão recorrido concordou integralmente com o entendimento expresso pelo tribunal da 1.ª Instância, que justificou o enquadramento jurídico no conceito de avidez, fazendo notar que a motivação dos arguidos se funda na vontade de “lançar mão ao património da vítima”, “que era a pessoa que os apoiava em todos os aspectos inclusive materiais e de sustento, revelando uma especial censurabilidade na conduta nos termos do art. 132º nº 2 alínea e) do Cód. Penal”.

Ora, nenhuma censura ou sequer reparo ou reticência merece esta interpretação. Já salientámos que nesta circunstância qualificativa se pretende abarcar aquelas situações em que o móbil se prende com a ganância, o desejo de obter vantagem económica, independentemente do montante desta, ou se, ulteriormente, essa vantagem se vem ou não a efetivar. O que justifica o indício de maior culpabilidade é essa “sede” de obter proveitos económicos matando uma pessoa, revelador de uma desconsideração pelo valor (e muito acentuada) do bem “vida humana”.

No caso dos autos, os arguidos viviam com a vítima, era esta que os sustentava, que os recebeu em sua casa e deu guarida ao casal após saírem de casa da mãe do arguido, recebendo-os com alegria, sendo que os arguidos não tinham qualquer ocupação profissional que permitisse o seu sustento. Não obstante, decidiram matá-la e fizeram-no. Com que motivo? Apossar-se do seu património. Não importa se era muito ou pouco. Nem releva o facto de Iúri não ser herdeiro, ou o regime de bens do casamento entre ambos. A qualificação assenta numa decisão de tirar a vida a uma pessoa pelo desejo de proveitos económicos. E provou-se que o plano dos arguidos foi justamente esse. E matar por ganância, para mais quem os sustentava, é especialmente censurável e perverso.

Evidentemente que se sabe que há um “álibi”, que pode ter algum eco em algumas personalidades (mas não na consciência axiológico-jurídica geral), segundo o qual haveria uma como que “justificação” ou “atenuante” da comissão destes crimes contra pessoas certas pessoas, cuja personalidade se desvaloriza, sendo o crime para obtenção de ganhos com a sua morte “branqueado”, ao nível de uma espécie de simples circulação de bens. É o caso da tentação do medíocre burocrata Teodoro, que mata com o soar de uma sineta o multimilionário distante Ti Chin-Fu, n’O Mandarim, de Eça de Queiroz, ou as cogitações do (ex-)estudante pobre Raskólnikov que precedem o assassinato de uma velha avarenta, mesquinha e agiota, Alena Ivanovna (e sua irmã), em Crime e Castigo de Dostoiévski. Neste último caso, há também a ideia, simétrica, de que a moral permitida a pessoas excecionais é diferente da das pessoas comuns. E que disso decorreria, naturalmente (ou nisso nem se pensa sequer), uma diferente imputabilidade jurídica e particularmente penal. Evidentemente que os autores, como é sabido, não parecem aderir a estas tergiversações, porquanto o destino de ambos os homicidas será perseguido (além do mais) por uma espécie de punição natural – desde logo pelo remorso, a consciência futura da culpa.

Obviamente que este tipo de perspetivas, dissolventes do padrão ético comum (espécie de mínimo ético e mínimo denominador comum social) em que se baseiam todos os sistemas penais democráticos (tradução atual de “civilizados”, como salientou, em geral, o antigo vice-presidente do Comité dos Direitos Humanos da ONU, o Decano Yadh Ben Achour), não pode ser acolhido nem pelo legislador, nem pelo julgador. A igualdade de todos perante a lei é um postulado inultrapassável num Estado de Direito, e o crime mesmo contra pessoas que os agentes consideram menos valiosas que a sua riqueza pessoal continua a ser crime. Sendo que o próprio juízo de fazer passar a sua cupidez, a sua ganância, acima do respeito pela vida de outrem, seja quem for, fosse quem fosse (e, no caso, era pessoa de bem, reputada, e para mais benfeitora dos agentes – stupete!), já denota uma sinuosidade condenável – que veio a concretizar-se na comissão dos crimes referidos. Não pode haver pessoas acima da Lei, nem “proximidade” (na linha sucessória) de riqueza que justifique ou sequer remotamente desculpe o desembaraçar-se (nomeadamente pelo crime) do que estiver entre alguns e esses bens ou honras (no limite, como em Kind Hearts and Coronets, de Robert Hamer).

 43. O arguido CC também se insurge contra a subsunção na al. j) do n.º 2 do art. 132, do CP.

Também aqui o acórdão do Tribunal da Relação manifesta inteira concordância com o Tribunal de 1.ª Instância, que qualificou a condutas dos arguidos de frieza de ânimo, premeditada, cuja resolução criminosa de morte perdurou por mais de 24 horas.

A jurisprudência do STJ tem assinalado que a al. j) prevê “situações tradicionalmente qualificadas como premeditação”, ou seja, “uma maturação do plano criminoso refletida e uma execução calculada e insensível do crime” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Maia Costa, 27.03.2019, Proc. n.º 316/17JAFUN.L1.S1 - 3.ª Secção), como seja um plano para matar delineado dias antes (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, 12.07.2018, Proc. n.º 74/16.2JDLSB.L1.S1 - 3.ª Secção). A frieza de ânimo é uma “actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto”, e “persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduz-se na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequência do ato” (ac. STJ, Relatora: Conselheira Rosa Tching, 05.07.2017,Proc. n.º 1074/16.8JAPRT.P1 – 3.ª Secção)

Também aqui não vislumbramos qualquer incorreção na subsunção da conduta dos arguidos na dita al. j). A decisão de matar já tinha sido tomada dias antes. Realizaram pesquisas para o efeito. Engendraram como e quando matar (o que perpetraram com grande violência), planearam como ocultar o cadáver (colocando-o num local ermo e queimando-o) e ainda dissimularam o seu comportamento perante a comunidade. A decisão perdurou por mais de 24 horas, tiveram mais do que tempo para recuar, reponderar o seu plano de matar, tanto mais que viviam com a vítima, esta acolheu-os e sustentava-os. Nem mesmo (ao menos) a habitualidade do convívio (assim como o parentesco) – que em certos casos amolece o ânimo e torna difícil as ações mais duras e extremas, como se sabe classicamente, desde o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo – afrouxou a determinação. Esta proximidade vivencial e a ajuda que recebiam da vítima, aliadas aos contornos bem definidos do plano, com consumação do homicídio, ocultação do corpo e “teatralização” (ou “encenação”) junto da comunidade, demonstra “sangue-frio” e “frieza de ânimo”. Tudo elementos sumamente conducentes a um juízo de censura pela verificação de um grau de perversidade bem mais elevado que o de um crime desprovido de todos estes elementos de insensibilidade e determinação nos intentos criminosos.

44. É correto o enquadramento nas als. e) e j) do n.º 2 do art. 132 do CP e a qualificação do crime por essas circunstâncias, devendo também improceder nessa parte o recurso do arguido CC.

No entanto, só uma qualificará o tipo, relevando as demais, como agravantes gerais, na medida da pena [Ac. STJ, Relator: Conselheiro Santos Cabral, 25.03.2015, proc. 1504/12.8PHLRS.L1.S1, 3.ª secção, Ac. STJ, Relator: Conselheiro Francisco Caetano, 07.05.2015, proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2, 5.ª secção, Ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, 09.20.2019, Proc. n.º 24/17.9JAPTM-E1.S1].


b) Medida da pena parcelar do crime de homicídio qualificado

45. Relativamente ao regime legal atinente à determinação da medida da pena, importa, desde logo, atender ao disposto nos arts. 40, 42 e 71, do Código Penal, que estabelecem as diretrizes e critérios de que o julgador se deve socorrer no momento da ponderação sobre o quantum da pena.

Preceitua o art. 40 do Código Penal, a propósito das finalidades das penas, que estas têm por fito «a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n.º 1), estabelecendo o n.º 2 um limite inultrapassável: «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Refira-se ainda a importância de orientar o fim da pena de prisão à “defesa da sociedade” e prevenção na “prática de crimes” de novos crimes. Nesta esteira, e em coerência, estabelece o n.º 1 do art. 71 do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, devendo o tribunal mencionar expressamente os fundamentos da medida da pena (n.º 3).

46. Para um total enquadramento do regime jurídico que disciplina a decisão judicial de determinação da medida da pena importa atender à CRP, CEDH e CDFUE.

A pena de prisão privativa da liberdade é admitida por via do art. 27, n.º 1 e 2, da CRP, em consequência de decisão judicial condenatória. Uma vez que se trata de uma restrição a um direito fundamental (ou, na verdade, a vários) fica obviamente sujeita ao preceituado no art. 18, n.ºs 2 e 3 CRP (J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 479).

Por seu turno, o art. 18, n.º 2, da CRP, consagra expressamente um princípio de necessidade das restrições aos direitos, liberdades e garantias, que se pode interpretar, lato sensu, como sendo ainda uma consagração (no caso, não explícita, não nominada) do princípio da proporcionalidade.

47. Importa, neste momento, algum distanciamento no manejo dos tópicos do nosso instrumentarium, que se baseiam em metódica não absolutamente consensual na doutrina, acabando, contudo, por resultar em consequências confluentes para o nosso objeto. Esclareçamos, pois, ainda que brevemente, os operadores ou paradigmas que manejamos neste momento.

A parte dos mega princípios da legalidade (prevalência da lei, reserva da lei, legalidade da Administração), da segurança jurídica (previsibilidade e determinabilidade das normas, sua irretroatividade e não antecipação), e da judiciaridade e garantia judiciária, o princípio da proporcionalidade (lato e stricto sensu, e nas suas conexões com o da razoabilidade e da proibição do excesso) é um dos princípios estruturantes do Estado de Direito (P. Ferreira da Cunha, Direitos Fundamentais, Lx., Quid Juris, 2014, p. 110 ss.).

Quer o princípio da proporcionalidade, quer o da razoabilidade (qua tale ou sub specie “racionalidade”, eventualmente a par da “necessidade” e da “adequação”) (José Sérgio da Silva Cristóvam, Colisões entre Princípios. Razoabilidade, Proporcionalidade e Argumentação Jurídica, Curitiba, Juruá, 2006) tanto podem ser considerados subprincípios de um princípio mais vasto de proibição do excesso, como um único princípio, o da proporcionalidade, embora com várias facetas (cf., em geral, Nicholas Emiliou, The Principle of Proportionality in European Law, Londres, Kluwer, 1996; Xavier Philippe, Le contrôle de la proportionnalité dans les jurisprudences constitutionnelle et administrative françaises, Marselha, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 1990; Raquel Denize Stumm, Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1995; Vitalino Canas, Princípio da Proporcionalidade, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, Separata do VI Volume, Lisboa, 1994; Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 162). E certamente é pela mesma ordem de ideias que também da necessidade expressa na CRP se remete para uma tácita proporcionalidade.

Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade parece terem a sua raiz num velho postulado britânico, e exprimem-se, não raro, sob forma inglesa, como due process ou due process of law. Mas não é apenas dessa legitimação pelo procedimento (Niklas Luhmann, Legitimation durch Verfahren, 2.ª ed., Neuwied, 1975) que se trata sempre: é muito mais que isso. Trata-se de uma consonância que não se esgota nos passos dados e certos de um ritual, cuja substância poderia ferir os limites intrínsecos (embora nem sempre consensuais) da própria intervenção do direito (Antony Allott, The limits of Law, Londres, Butterworths, 1980), ou do Estado (recordando, desde logo, Humboldt), ou mesmo ser injusta, porque o simples cumprir de um rito qualquer, por si só, não garante a bondade intrínseca das soluções (P. Ferreira da Cunha, Constituição, Direito e Utopia, Coimbra, U. Coimbra / Coimbra Editora, 1996, p. 433 ss.).  Há, portanto, uma irrecusável, inalienável dimensão substancial, intrínseca, nessa proporcionalidade e razoabilidade, que são já, aliás, indiciadas pelas próprias expressões, que remetem para uma dada alteridade, e alteridade em equilíbrio.

Sendo certo que os princípios da proporcionalidade e/ou da razoabilidade serão dos mais inefáveis de todos os princípios constitucionais, parece contudo incontroverso que remetem para referida ideia de equilíbrio, equidade, justiça concreta, e bom senso – não absolutos ou absolutizáveis (isso seria uma contradictio in terminis), mas em situação, em cada “circunstância”, próprios de cada tempo concreto em que a regra é aplicada. Essa plasticidade e evolução temporal é que precisamente muito contribuem para que tais princípios sejam dificilmente explanáveis em tópicos específicos. E, contudo, são parâmetros orientadores utilíssimos e irrecusáveis, além do mais como válvula de segurança, não subjetiva, mas balizada.

Na base de toda a questão terminológica e categorial está certamente uma diferença de classificação cultural. No mundo anglo-saxónico, fala-se frequentemente de critério da razoabilidade, enquanto no continente europeu, se prefere a ideia de proporcionalidade (e também não é exatamente a mesma coisa falar-se em princípio ou em critério de proporcionalidade). Esta dupla origem é, certamente, a razão da disjunção (v. Carolina Pereira Sáez, Una Contribución al estudio del empleo del Principio de Proporcionalidade en la jurisprudência reciente del Tribunal Constitucional Español, Separata do “Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña”, 8, p. 1044). Mas não podemos deixar de pensar no que une os conceitos que estão sob as diferentes expressões. E não falando o nosso preceito constitucional especificamente num nem noutro, compreende-se que é à doutrina e à jurisprudência que compete classificar – com a liberdade de enquadramento que lhe é própria. E essa inclusão do princípio na CRP é estudada e louvada até por académicos de além-mar (Willis Santiago Guerra Filho, Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 4.ª ed., revista e ampliada, São Paulo, RCS Editora, 2005, p. 83, e Idem, Notas em torno ao Princípio da Proporcionalidade, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976, ed. de Jorge Miranda, Coimbra, Coimbra Editora, 1996).

Uma síntese do Tribunal Constitucional Alemão deve ser ponderada, como contendo boas pistas para uma perspetiva mais rigorosa do princípio da proporcionalidade, aqui sub specie “critério”: “A aplicação do critério da proporcionalidade como limite dos limites não se confunde com uma ponderação de bens, interesses ou valores jurídicos, mas representa a busca ‘do’ meio necessário de intervenção, assim entendido ((como)) o meio adequado de intervenção (adequado ao propósito da intervenção) que seja, em face da liberdade atingida, o menos gravoso. Aplicar o critério da proporcionalidade significa, portanto, interpretar e analisar o propósito perseguido pelo Estado e o meio de intervenção em si, no que tange às suas admissibilidades e à relação entre os dois. Esta deve poder ser caracterizada como uma relação de adequação e necessidade, nos seus sentidos técnico-jurídicos.” (Jürgen Schwabe (coletânea original) / Leonardo Martins (organização e introdução da ed. em português) — 50 Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, Montevideo, Fundação Konrad Adenauer, 2005, p. 89).

Aliás, este princípio é classicamente o princípio dos princípios em matéria de intervenção policial, e não se vê como não o deva ser em toda a ação da administração pública.

Podemos sintetizar as várias facetas desta constelação de princípios (e nesse sentido é até mais aberta a posição da CRP não se limitando a nenhum deles especificamente no citado artigo – já não assim no art. 266, n.º 2 sobre os princípios a que estão subordinados os órgãos e agentes administrativos, onde o princípio da proporcionalidade, a par dos da igualdade, justiça, imparcialidade e boa-fé, é mencionado; ou no art. 19, n.º 4, sobre a “opção” pelo estado de sítio ou de emergência) a partir da sua face negativa (da proibição do excesso), que mais plasticamente que a positiva (proporcionalidade e razoabilidade) os recorta. Assim, é já corrente dizer-se que a proibição do excesso se analisa na adequação, na exigibilidade e na proporcionalidade stricto sensu (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2003, p. 266 ss.; José Sérgio da Silva Cristóvam, Op. cit., p. 214 ss.; já algo diferentemente, Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 178 ss.)

A adequação implica o não extravasar de um sentido, estilo, finalidade da intervenção. Traduz-se na conformidade do ato com o seu objetivo legal e pressupõe uma equivalência entre a medida tomada e o seu telos, ou finalidade. A submissão das penas a este critério é fundamental. Não se trata apenas de atividades do Estado, ou medidas de polícia.

A exigibilidade, por seu turno, pode ser material (economia de meios e minimamente restritivos de direitos), espacial (limitação geográfica ou espacial da intervenção ablativa ou compressora), temporal (restrição ao mínimo de tempo possível da medida excecional), pessoal (restrita a mínimo possível de agentes jurídicos pertinentes e só a esses).

A proporcionalidade stricto sensu é, na verdade, o equilíbrio geral, contenção, ponderação, e imbuída sempre da preocupação de pesar os commoda e os incommoda, os meios e os fins, o instrumental e o substancial. Evidentemente que as penas não deixam de ter de estar sob esta alçada.

48. As diversas formas, mais concretizadoras, de que se serve o legislador penal acabam por constituir momentos de atualização do princípio da proporcionalidade, propiciando-lhe uma maior densificação. Ou seja, do mesmo modo que Stephen Breyer, juiz do Supremo Tribunal dos EUA, reconheceu que, não se encontrando explicitamente a fraternidade no texto da magna carta norte-americana, ela, porém, se encontra como que difusa por todo o lado do universo constitucional respetivo, também se pode dizer que o princípio da proporcionalidade por vezes até mais claramente se consagra com tópicos que para ele apontam do que pela sua simples, abstrata e formal proclamação. Qualquer que seja, pois, a focalização doutrinal que se escolha, a panóplia de tópicos que vimos supra, no sentido de equilíbrio, razão, ponderação, leva sempre a que uma pena de prisão haja de ser sopesada, pensada com medida. Numa dialética onde, evidentemente, deporão os diferentes fins das penas legalmente admitidos (v. P. Ferreira da Cunha, Crimes & Penas, Coimbra, Almedina, 2020, p. 117 ss. et passim).

Tal implica que a medida da pena de prisão tem de ser a necessária para prosseguir as finalidades supra aludidas, adequada ao crime e seus contornos concretos e não excessiva, ou seja, uma decisão justa e razoável, sem ir para além dos limites da culpa do arguido. Limite da culpa intrinsecamente relacionado com a dignidade da pessoa humana e humanidade das penas, “porque punir para além da culpa significar punir sem culpa” (José Souto de Moura, A jurisprudência do STJ sobre fundamentação e critérios da escolha e medida da pena, p. 12, consultado em www.stj.pt).

Do mesmo modo, a CEDH proíbe no art. 3.º a submissão a penas desumanas ou degradantes. Princípio da humanidade conexo com a culpa que, em caso algum, pode ser excedida. E da leitura do art. 5.º, n.º 1, al. a) e 18.º, da CEDH, resulta a regra de que a limitação do direito à liberdade deverá ser estritamente na medida do necessário. O mesmo se retirando dos arts. 4.º, 6.º, 49 e 52, da CDFUE. Com especial relevo estes dois últimos normativos no que concerne à determinação da medida da pena, apontando a necessidade de respeitar o princípio da proporcionalidade. Conforme salienta o art. 49, n.º 3, da CDFUE, as penas “não devem ser desproporcionadas em relação à infração”. Proporcionalidade que deve atender a todos os contornos da infração, nomeadamente as circunstâncias concretas em que foi praticada.

49. Na interpretação das normais legais atinentes à determinação da medida da pena salienta significativa doutrina um conjunto de guidelines que importa ter presente. Assim, conforme se extrai do pensamento de Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 75 a 82), a pena, para prosseguir o seu papel de tutela de bens jurídico-penais no caso concreto, deverá ser a suficiente para o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”; a culpa não é fundamento da pena mas um “limite inultrapassável”; tendo em consideração esse limite deverá atender-se a uma “moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo “ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos” e cujo “limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico”, limiar mínimo “abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos”; nesta moldura de prevenção geral positiva a concreta medida da pena é encontrada em “função de exigências de prevenção especial”, em “regra positiva” e, “excepcionalmente negativa”.

Leitura coincidente tem Maria João Antunes (Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1.ª edição, 2013, p. 44). Também próximo destas posições é a interpretação de Américo Taipa de Carvalho (Direito Penal, Parte Geral, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pp. 61 a 69), com algumas nuances, mormente a equivalência, para efeitos de determinação da medida da pena, da vertente negativa da prevenção geral e especial. E, também, em relação “ao ponto de partida” revela o seu pensamento igualmente especificidades (muito embora o resultado “final” coincida com a posição de Figueiredo Dias e Maria João Antunes). Referencia a “prevenção especial, positiva e negativa (isto é, de recuperação social e/ou de dissuasão)”, como “critério orientador”, que tem como limite máximo a culpa e como limite mínimo a exigência “da prevenção geral (de interpelação-consciencialização da comunidade da importância dos bens violados, e/ou dissuasão dos membros da mesma comunidade)”, “limite mínimo, abaixo do qual não pode descer a pena, mesmo que não se verifique a necessidade preventivo especial”.

Dissuasão comunitária e especial que já estava presente no pensamento de Cesare Beccaria (Dos Delitos e das Penas, 4.ª edição, Lisboa, trad. de José de Faria e Costa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 85) – o fim “não é outro senão de impedir o réu de fazer novos danos aos seus concidadãos e de dissuadir os outros de fazer o mesmo” – mas já salientando uma condição: “observadas as devidas proporções”.

Princípio da proporcionalidade que, segundo Santiago Mir Puig, para além de uma adequação da pena ao delito praticado e sua gravidade, deve ser ajustado ao impacto na sociedade dos factos criminosos cometidos, segundo o grau de “nocividade social” “del ataque ao bien jurídico” (Derecho Penal, Parte General, 10.ª edição, Barcelona Reppertor, 2015, p. 139).

50. A jurisprudência do STJ tem salientando que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido [v.g., Ac. do STJ, Relator: Conselheiro Pires da Graça, Proc. n.º 612/16.0JAAVR.P1.S1 - 3.ª Secção, 11-09-2019 ou Ac. STJ, Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos, Proc. n.º 1810/15.0T9ALM.L1.S1 - 3.ª Secção, 09-10-2019].

Mas chama a atenção a jurisprudência deste Supremo Tribunal que a sua intervenção no controle da proporcionalidade não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando “o procedimento adoptado na determinação da medida das penas se mostre correctamente efectuado, se tenham registado os factores a ter em conta para a respectiva quantificação, se tenha feito a ponderação do grau de culpa que o arguido pode suportar e a apreciação das necessidades de prevenção reclamadas pelo caso não mereçam reparos” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). E, concretamente, quanto ao crime de homicídio, tem sido recorrentemente assinaladas as elevadas necessidades de prevenção geral, pelo facto da vida ser o bem jurídico supremo, cujo ataque é gerador de grande alarme e intranquilidade social (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Raul Borges, Proc. n.º 96/18.9GELLE.E1.S1 - 3.ª Secção, 11-09-2019).

51. Ainda em sede geral de considerações neste âmbito, importa ter presente o “guião orientador” dado pelo legislador, constante do art. 71, do Código Penal.

Preceitua o respetivo n.º 2 que na “determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Trata-se de uma cláusula geral que aglutina todos os fatores que relevam para o efeito de apurar as necessidades preventivas e a culpa do arguido. O único limite emana do princípio da proibição de dupla valoração, no sentido de que não se podem considerar, na determinação da medida da pena, circunstâncias que o legislador atendeu para definir a moldura abstrata. O que não impede, porém, que a “medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso” (Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 234 e 235).

E, quando estão em causa diversas circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, tem decidido o STJ que só uma qualificará o tipo, relevando as demais, como agravantes gerais, na medida da pena [Ac. STJ, Relator: Conselheiro Santos Cabral, 25.03.2015, proc. 1504/12.8PHLRS.L1.S1, 3.ª secção, Ac. STJ, Relator: Conselheiro Francisco Caetano, 07.05.2015, proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2, 5.ª secção, Ac. STJ, Relator: Conselheiro Lopes da Mota, 09.20.2019, Proc. n.º 24/17.9JAPTM-E1.S1].

Tal significa, no caso concreto, que em relação à arguida AA, se atenderá para qualificar o homicídio, à circunstância da al. a) do n.º 2 do art. 132, do CP, relevando as als. e) e j) do n.º 2 para a medida da pena. E quanto ao arguido Iúri se atenderá à al. e) para efeito de qualificativa, e a al. j) será refletida na medida da pena.

52. Depois da norma geral (art. 71, n.º 2, do CP), enuncia o legislador um conjunto de fatores que relevam, quer por via da culpa, da prevenção, ou ambas. São estes: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Figueiredo Dias (As Consequências Jurídicas do Crime, cit., pp. 245 a 255) aglutina as alíneas de acordo com fatores relativos à execução do facto [als. a), b) e c)], atinentes à personalidade do agente “manifestada no facto” [als. d) e f)] e fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, “na medida em que se encontrem conexionadas com o facto e possam, por esta via, ser consideradas indícios relevantes não só para a determinação da medida da culpa, como das exigências de prevenção, em particular, de prevenção especial”.

Trata-se de um catálogo indicativo/exemplificativo, mas um “auxiliar” precioso para o julgador aferir da justeza da pena. Os fatores entre si podem ter sentidos opostos ou concordantes (quer agravando as necessidades preventiva e/ou culpa, ou atenuando) e, será da análise do comportamento global, que se extrairá o juízo valorativo final que permitirá concretizar a medida da pena, sempre com os limites supra assinalados. Estamos, pois, perante um “paralelogramo de forças” (para usar uma metáfora da Física), em que vários vetores se conjugam, num ou noutro sentido, ou, por vezes, num sentido único, mais positivo ou menos positivo para a causa do agente.


Recapitulados alguns parâmetros, critérios, pressupostos, estamos em condições de partir para o casuísmo específico do presente processo e, à luz dos considerandos e instrumentos de análise convocados, aferir da justeza da medida da pena sufragada pelo Tribunal da 1.ª Instância e confirmada pelo Tribunal da Relação.

53. Como patamar inicial neste percurso de determinação da medida da pena importa reter que, para o crime de homicídio qualificado pelo qual os arguidos foram condenados, a lei prevê no art. 132, n.º 1 do Código Penal, uma pena de 12 a 25 anos de prisão. A pena de prisão aplicada aos arguidos pela prática do crime de homicídio qualificado (23 anos de prisão em relação à arguida AA e 22 anos de prisão no que se reporta ao arguido CC), aproxima-se do limite máximo (25 anos). Ver-se-á, adiante, se tal afronta a proporcionalidade, ou, pelo contrário, é razoável atento o circunstancialismo em concreto.

54. Prosseguindo, e sempre relembrando que o STJ tem a sua competência reservada à aplicabilidade de Direito, deverá atender-se aos factos dados como provados (e, portanto, adquiridos, processualmente). 

Como é salientado comummente nas decisões atinentes ao crime de homicídio, a vida é o bem jurídico supremo (o que é reconhecido pela nossa Ordem Jurídica), sendo que, naturalmente, o homicídio é causador de grande abalo, alarme e instabilidade na comunidade, cuja sensibilidade e consciência jurídica geral a Lei bem andou em espelhar. Não se equivalendo, como se retira do ensino de Castanheira Neves, consciência jurídica geral e consciência axiológico-jurídica tout court, assim como não se equivalendo, mutatis mutandis, sendo comum e bom senso, no caso vertente não haverá qualquer refração entre o valor sociologicamente atribuível à vida na nossa sociedade e aquele a que, na pureza dos valores ético-jurídicos, lhe seria tributável. Não se correndo, pois, o risco de qualquer sociologismo que sacrificasse os valores da Justiça nas aras de uma popularidade social punitivista (cf. Crimes & Penas, máx. p. 225 ss.). Do mesmo modo que o laxismo que determina as penas abaixo do seu efeito dissuasor e da gravidade da culpa, simetricamente o punitivismo tende para tudo balizar pelo máximo, como Montesquieu recorda ocorrer algures no extremo Oriente, onde, considerando-se qualquer crime de lesa-majestade (qualquer infração seria uma afronta ao Imperador), só a morte do agente o poderia expiar ou, na verdade como que “compensar”, como que num contexto de “reposição da ‘ordem’ do universo” (cf. Do Espírito das Leis, VI, 13).

A reação do sistema penal deverá ser a adequada para estabilizar o ânimo e a confiança a da comunidade e manter a sua crença na norma que tutela tal bem jurídico, e, em geral, a sua identificação com a Ordem Jurídica, atualizada e encarnada pelas suas instituições. Obviamente atentas as considerações anteriores.

 São assim elevadas as necessidades de prevenção geral em situações, como a presente, em que coincidem o desvalor intrínseco da ação e a atribuição de um pathos de negatividade, rejeição e até choque, por parte da comunidade. Necessidade acentuada de prevenção geral que é mais patente ainda nos contornos concretos da atuação dos arguidos no caso vertente.

55. Recordemos alguns pontos relevantes. A vítima foi morta na sua própria casa, era pessoa mais velha do que os arguidos, encontrava-se, obviamente, face aos agressores, em inferioridade numérica, fora apanhada totalmente desprevenida (e certamente, muito plausivelmente, chocada e atónita), já que não seria previsível ser morta por aqueles a quem deu guarida, sustentava, e com quem vivia.

O alarme social decorrente de um tal sucesso criminal é exponenciado pelas características da vítima, bem inserida comunitariamente, … e socialmente estimada.

O dolo é intenso. Os arguidos quiseram e tiraram a vida à vítima (agindo, pois, com dolo direto).

O grau de ilicitude é elevado, atento o modo como se consumou o homicídio, sendo que a violência, brutalidade, e força empreendida é bem patente nas lesões causadas.

Como circunstância agravante também se deve atender ao comportamento ulterior ao crime, queimando e escondendo o cadáver da vítima, simulando queixa na polícia, procurando enganar as autoridades e a comunidade através da comunicação social, e revelando falta de sentido crítico quanto aos atos que tinham praticado.

O juízo de censura também é muito elevado.

É sabido que há, por vezes, um paroxismo, um êxtase algo macabro, quando o homicida, num momento de não retorno face ao seu crime, reitera os golpes, repete os disparos, não para com as agressões, mesmo que visivelmente já não fosse necessário nada mais para garantir a morte da vítima. As razões podem ser várias para esta atitude (como, por exemplo, um ataque de medo, como em O Estrangeiro, de Camus), relevando em geral de algum desespero, que pode denotar aquilo a que se chamam em linguagem corrente, o “ter perdido a cabeça”. Nesse sentido, pelo contrário, uma perpetração criminosa calculada, fria, de que se podia ter recuado, etc., indica precisamente que os agentes estavam conscientes do que faziam, e não terão agido para além do que premeditaram.

56. Mas cabe notar que o facto da arguida AA ser filha não pode ser elemento atendido no âmbito do juízo de censurabilidade, já que operou como circunstância qualificativa [al. a) do n.º 2 do art. 132.º do CP]. Já releva como agravante da medida da pena a avidez que motivou a sua atuação, a frieza de ânimo e persistência em matar por 24 horas. Em relação ao arguido CC, apenas estas últimas se podem refletir como agravantes na medida da culpa, já que a avidez funcionou como qualificante.

57. Por seu turno, as circunstâncias de os arguidos não terem antecedentes criminais, estarem inseridos na comunidade, as suas habilitações e potencial capacidade profissional, o percurso de vida anterior, no caso em concreto, não tem o condão de afastar a forte necessidade preventiva especial que se sente. É que a conduta dos arguidos e os contornos do crime apontam para personalidades que se podem vir a revelar agressivas, em certos momentos. E todas aquelas circunstâncias referidas foram irrelevantes para evitar um crime de extrema violência e censura. Pelo que apenas uma “pesada pena de prisão”, permite esperar ainda que terão capacidade para interiorizar a gravidade da sua atuação (dando ensejo, assim, a uma prevenção especial positiva). Perante o exposto, qualquer maior brandura seria insuficiente para inverter o risco de recidiva.

58. Tudo sopesado, considerando as elevadíssimas necessidades de prevenção sentidas no caso em concreto, o intenso grau de culpa e de ilicitude, todo o comportamento revelado pelos arguidos após perpetrarem o crime (sem qualquer sinal de arrependimento, mas com intuito de camuflar o crime que cometeram, tentando enganar as autoridades e comunidade, revelando personalidades “frias e calculistas”), entende-se que as penas não excedem um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e são adequadas e necessárias para se cumprirem as finalidades preventivas.

59. Em suma, não se vislumbra qualquer erro que justifique uma intervenção corretiva do STJ. Pelo que é de manter as penas aplicadas aos arguidos, cuja diferenciação se justifica (para além do que adiante se mencionará a propósito da pena conjunta) pelo facto de em relação à arguida AA ter que ser atender às circunstâncias agravantes avidez e frieza de ânimo e persistência em matar por 24 horas e em relação ao arguido CC, apenas estas últimas se podem refletir como agravantes na medida da culpa, já que a avidez funcionou como qualificante (como já se tinha assinalado).


c) Medida da pena conjunta

60. Posto isto, importa decidir a questão da justeza, proporcionalidade e adequação da pena de prisão aplicada ao recorrente. A operação de determinação judicial da pena única “move-se” numa moldura abstrata indicada no art. 77, n.º 2, do CP: a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Consagrou o nosso legislador o sistema da pena conjunta que pressupõe a prévia determinação das penas relativas a cada um dos crimes em concurso, seguindo-se um cúmulo jurídico.

Para definir a medida da pena conjunta deverá atender-se, particularmente, aos critérios especiais vertidos no art. 77, n.º 1, do CP (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 291 e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 57).

Em relação aos critérios gerais podem ser “valoradas circunstâncias já consideradas na fixação das penas parcelares, desde que essas circunstâncias sejam reportadas ao conjunto dos factos e à apreciação geral da personalidade do agente. É essa avaliação global, que não se confunde com a ponderação das circunstâncias efetuada relativamente a cada crime, que é necessariamente parcelar, que releva para a determinação da medida da pena conjunta. São, pois, avaliações diferentes de factos diferentes (porque a parte não se confunde com o todo), não havendo por isso dupla valoração das mesmas circunstâncias” (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Maia Costa, 09.10.2019, Proc. n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1 - 3.ª Secção; na doutrina – Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, cit., p. 292).

Concentrando-nos nos critérios do art. 77, n.º 1, do CP - na “medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – tem sido unânime a doutrina e a jurisprudência deste Supremo Tribunal quanto à necessidade de atender à imagem global dos factos, extraindo todas as conexões que relevem para apurar, numa dimensão unitária ou holística, a gravidade do ilícito total e a personalidade que é possível extrair da interconexão dos factos criminosos [assim, por exemplo, entre outros, Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, cit., p. 291 ou Rodrigues da Costa, O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, “Julgar”, n.º 21, 2013, pp. 174 e 175, e na mais recente jurisprudência do STJ, Ac. do STJ, Relator: Conselheiro Nuno Gomes da Silva, 03.10.2019, Proc. n.º 2072/13.9JAPRT.1.S1- 5.ª Secção].

Geralmente, em relação à personalidade, afirma-se a necessidade de aferir se os factos demonstram que se tratou de um comportamento ocasional, episódico, pontual, ou, pelo contrário, se é possível extrair dos mesmos uma tendência ou carreira criminosa, sendo que, apenas nesta última situação será de atribuir um efeito agravante.

De todo modo, a avaliação da personalidade prende-se com todos os aspetos que podem emergir da globalidade dos factos e relevem para a determinação da pena unitária, em consonância com as finalidades preventivas que lhe estão subjacentes. Alguns fatores que habitualmente se atende, entre outros, são os seguintes: a amplitude temporal da atividade criminosa; a diversidade dos tipos legais praticados; a gravidade dos ilícitos cometidos; a intensidade da atuação criminosa; o número de vítimas; o grau de adesão ao crime como modo de vida; as motivações do agente; as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo (Ac. STJ, Relator: Conselheiro Maia Costa, 09.10.2019, Proc. n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1 - 3.ª Secção).

61. Antes de mais, deverá ressaltar-se que a pena parcelar do crime de profanação de cadáver foi de 1 ano e 8 meses de prisão (sendo que, em relação a este crime, por não ser admissível o recurso – como se viu anteriormente –, deverá manter-se imutável, não podendo ser sindicada pelo STJ). Às penas parcelares de homicídio qualificado o acórdão recorrido, confirmando a decisão da 1.ª instância, fez acrescer 1 ano.

62. O modo de execução do crime, o planeamento, o comportamento ulterior, as motivações que estiveram na sua génese, acentuam a gravidade da ilicitude, juízo de censura e necessidades de prevenção geral.

63. Ambos os arguidos, vivendo na mesma casa da vítima, numa relação de muita proximidade ou mesmo comunhão de vida, e a quem deviam (na normalidade da “lógica dos afetos”) sentimentos de gratidão, por aquela lhes dar um lar e os sustentar, acabaram por a matar, de uma forma violenta, muito agressiva, queimando-a à posteriori e servindo-se de embustes para que não recaíssem suspeitas sobre si.

A avidez, motivo do crime, acentua esse juízo global de censura e ilicitude.

Note-se também a ausência de arrependimento.

Como contraponto destes aspetos de grande censurabilidade, temos alguns dados: são os dois arguidos primários, que estavam inseridos na sociedade, com habilitações. Mas têm pouca capacidade para mitigar as necessidades de prevenção especial. A inserção social algo claudica, pela situação de dependência económica face à vítima, pela falta de autonomia de ambos, que, aliás, terá sido uma das determinantes do crime, como se disse com contornos de avidez ou ganância. Acresce que tais circunstâncias pré-existentes, não foram bastantes para evitar impulsos criminosos de extrema gravidade societária. E se não tiveram esse condão, existe o risco de recidiva. O que apenas pode ser prevenido com penas de prisão com suficiente impacto.

Toda esta factualidade tem de ser, neste momento, vista à luz do art. 77, n.º 1, in fine.

 

64. Dada a consternação comunitária e o alarme social que este tipo de crimes provoca (mas, obviamente, não se cedendo a uma lógica de medo e insegurança: porque as instituições funcionam e o Direito é aplicado – sabendo-se, desde as Antígonas de Sófocles e de Anouilh, que, por vezes, punições excessivas denotam falta de autoconfiança dos julgadores e desencadeiam anomia), a falta de arrependimento e o destino impiedoso que foi dado ao cadáver, entende-se não poderem proceder razões maiores para atenuar a repercussão da pena atribuída pela profanação na pena única. Com efeito, não se cogita facilmente muito pior forma de tratar um cadáver. Poderá haver formas igualmente horríveis e chocantes, de outro tipo, mas a presente afigura-se-nos já nos limites superiores da indiferença pela honra ou respeito que se devem aos mortos, que continuam a ter dignidade. A qual, evidentemente, cobre não só o seu nome (discutindo-o, com aspetos de grande atualidade, já Adolphe Franck, Philosophie du droit penal, nova ed., Miami, HardPress, 2019, p. 157 ss.), como o corpo sem vida.

65. Se o juízo de reprovação é muito forte por toda a factualidade exposta, e nos termos interpretativos já desenvolvidos, não pode deixar-se de refletir, a final, sobre os próprios limites da punição (Rob Canton, Why Punish?, Londres, Palgrave, 2017, máx. p. 177 ss.), a qual encerra, como é bem sabido, alguns perigos, nomeadamente no caso de delinquentes primários, e ainda jovens, relativamente aos quais se espera que a prisão encaminhe no bom sentido e não para a recidiva (v., v.g., de entre inumeráveis, Isabelle Rome, Vous êtes naive madame le juge, Paris, Enrick B., 2018, p. 27 ss..; Philippe Combessie, Sociologie de la prison, 3.ª ed., Paris, La Découverte, 2009, máx. p. 97 ss.). Por outro lado, deve ter-se em pano de fundo o conhecimento da evolução da doutrina do crime e do seu próprio tratamento em concreto nos tempos mais recentes (v., v.g., por todos, Jeremy Horder (ed.), Homicide Law em Comparative Perspective, Oxford e Portland, Oregon, Hart, 2007), assim como as teorizações mais atuais sobre agravamento e atenuação das penas (v., v.g., Julian V. Roberts, Mitigation and Aggravation at Sentencing, Cambridge et. al., Cambridge University Press, 2011).

Não se sendo insensível ao caráter primário dos agentes, à sua idade e à esperança ainda na ressocialização, à sua preparação académica e a indícios positivos, como os laços mantidos com família e amigos por Iúri (semanalmente visitado) e à ocupação com trabalho produtivo, na prisão, por AA (tecendo tapetes de arraiolos), o peso da gravidade dos seus atos e as necessidades de prevenção pesam muito negativamente. Já em 1864, o clássico Franck terminava a sua Filosofia Penal com uma consideração preventiva e não retributiva em alto grau, que obviamente se tem de ler com cuidado, cum grano salis e no seu contexto, mas não deixa de nos apontar alguns aspetos a ter em conta: “Que o sábio legislador deve menos procurar punir o crime que preveni-lo. Previne-se pela distribuição liberal da instrução e da educação, e por uma sábia dispensação dos trabalhos públicos, a fim de oferecer um alimento ao trabalho e de opor um freio à miséria. Todas as declamações contra a perversidade humana claudicam perante estes dois factos: são os miseráveis e são os ignorantes que cometem os maiores crimes, e que fornecem mais numerosos candidatos ao cadafalso. (...) Os professores tornarão inúteis os carrascos. (...) Multiplicando as escolas, deixar-se-á de ter esse pretenso milagre que faz nascer um carrasco em cada cidade em que se sedeia um tribunal criminal” (Op. cit, pp. 238-239). Educação escolar, essa, possuem ambos os arguidos; capacidade de, havendo trabalho, trabalharem, também. O que pode faltar é a sensibilidade ética, o sentido do respeito pelos outros – que se não pode mais que esperar venham a adquirir durante o tempo, bastante longo, de reclusão, a que são condenados.

Como escreveu Camilo Castelo Branco (em Vinte horas de liteira), do mesmo modo que não há virtude imaculada, também não há crime absolutamente imperdoável. Não se trata aqui de “compreender para perdoar” (recordando o moralista Guyau, que já teve muita voga), e, compreendendo, sempre perdoar. Do que se trata é de não usar da Justiça, simplesmente o aço frio da espada (como diria Pascoaes), antes conceber a pena com equilíbrio. É precisa a imparcialidade (para usar o símbolo corrente nos seus diferentes aspetos) da venda e a meticulosidade da balança. É certo que há uma tendência, que sopra sobretudo de países anglo-saxónicos, que acha a própria prisão “frouxa”, até advogando pena de morte e castigos corporais (o que tem eco até fora da área penalística, como em Lipovetski, The Empire of Fashion), tudo penas excluídas, de iure constituto, do nosso sistema jurídico-penal. Contudo, não será nunca por vagas de laxismo ou rigorismo que o julgador se terá de pautar. A jurisprudência haverá sempre que ser fiel ao seu projeto teleológico, que se inscreve na sua etimologia: juris-prudentia. Como fiel da balança, tem o julgador de promover o equilíbrio, dentro dos padrões do direito e da Justiça. Sem claudicar perante modas, ou navegar pelas velas dos tempos, enfunadas por perspetivas em grande medida ideológicas, sempre a filtrar pela racionalidade especifica e estritamente jurídica.

66. Por todo o exposto, e não colocando em questão a coautoria (sem especiosismos ou sequer dúvidas a tal propósito – dado haver, desde os Romanos, um conjunto muito alargado de possibilidades de “protagonismo numa infração coletiva” – como assinalam, v.g., Roger Merle e André Vitu, Traité de Droit criminel, I, 6.ª ed., Paris, Cujas, 1984, p. 649), afigura-se equilibrada decisão do Tribunal da Relação ao estabelecer uma diferença punitiva entre a pena da arguida AA e a do arguido Iúri, refletindo a menor necessidade de prevenção especial e de culpa deste.

Diferença essa que, tendo em consideração as condições da prática dos crimes, nomeadamente o contributo que neles se desenha haver sido o do arguido (vista também a sua personalidade), tem relevância. Pesa também a sua previsível maior facilidade socialização futura e o apesar de tudo, certamente, um pouco mais suave impacto social da conduta, aquilatável, v.g., pelas visitas de amigos na prisão.

Parece impô-lo a aplicação nomeadamente de um dos principais princípios da sanção, o princípio da igualdade, que implicitamente já contém em si (como designadamente A. Braz Teixeira já explicitara para a própria Justiça tout court em Reflexão sobre a Justiça, in “Nomos”, n.º 1, Janeiro-Junho, 1986, p. 55 ss.) elementos de equidade (aliás, “a verdadeira Justiça é sempre equidade”, afirma ibid., p. 59). Já no séc. XVIII Tomás António Gonzaga explicitava o sentido deste conceito como justificada exceção à normatividade geral, colocando o problema na sua consequência mais extrema: “A equidade é uma espécie de interpretação restritiva, de que temos necessidade de usar todas as vezes que, de executarmos o rigor da lei, se seguir alguma injustiça.”.

Nos nossos dias, citem-se as palavras dos Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques (Noções de Direito Penal, 7.ª ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2020, p. 278), aludindo ao princípio da igualdade nesta sede, “Neste domínio exige tal princípio que, quando sejam idênticos os pressupostos deve ser dado o mesmo tratamento punitivo todos os intervenientes (art. 402.º do CPP) e, do mesmo modo, deve ser dado tratamento sancionatório diferenciado quando as condutas forem diversas”. Cf. ainda o Ac. deste STJ de 16.02.2006, proc.º n.º 124 / 06- 5, remetendo para significativos princípios a ter em consideração, a par do da igualdade, como os da proporcionalidade, adequação, necessidade e justiça, assim como da legalidade e da culpa, limite inultrapassável. Todos estes princípios confluem, no caso, para a referida decisão.

Como explica, sucinta e claramente, Jorge de Figueiredo Dias, referindo-se ao art. 26 do CP e à questão da punição da autoria: “O art. 26.º é suficientemente explícito no sentido de que cada coautor é punido na moldura penal prevista para o facto decidido e executado conjuntamente, tal como se o houvesse cometido sozinho. O que não significa, no entanto, que na determinação da pena cabida ao singular coautor não possam intervir circunstâncias que individualizem a punição face à do(s) outro(s) coautor(es). (...)” (Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. Questões Gerais. A doutrina geral do crime, 3.ª ed., Coimbra, Gestlegal, 2019, pp. 929-930).

    Tudo sopesado, verifica-se, assim, não haver reparo a fazer à decisão ponderadora do Tribunal da Relação.


IV

Dispositivo


Termos em que, decidindo, acorda-se, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em:

1. Rejeitar, pelos motivos supra exarados, os recursos de ambos os recorrentes sobre questões em que existe dupla conforme, que tratam de matéria de facto, relativas a decisões interlocutórias, concernentes ao acórdão da 1.ª Instância e não ao acórdão do Tribunal da Relação.

2. Julgar improcedentes as nulidades apontadas ao acórdão recorrido.

3. Julgar improcedentes os recursos relativos ao enquadramento jurídico nas als. e) e j) do n.º 2 do art. 132, do CP e à medida da pena parcelar do crime de homicídio qualificado.

4. Julgar improcedentes os recursos quanto às penas únicas de ambos os arguidos, que se mantêm, respetivamente, em 24 (vinte e quatro) de prisão para a arguida AA e 23 (vinte e três) anos de prisão para o arguido CC.

4. Manter tudo o demais exarado no Acórdão recorrido, incluindo a decisão de indignidade sucessória da arguida AA relativamente à Herança de BB, nos termos do art. 69 -A do Código Penal.

Custas do art. 420, n.º 3 do CPP: 4 UC para cada um dos arguidos.

Taxa de justiça, para cada um, em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 30 de setembro de 2020.

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

__________


[1] Esta redacção foi introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29/08, que tornou obrigatória a documentação na acta de todas as declarações prestadas oralmente na audiência (não sendo anteriormente obrigatória, podendo os sujeitos processuais por declaração unanime prescindir da documentação).
[2] Resolvendo a controvérsia gerada na versão anterior deste preceito, quanto á necessidade de a nova qualificação ser comunicada ou não ao arguido, e que teve como antecedente a jurisprudência do TC fixada com força obrigatória geral, através do acórdão de 25 de Junho de 1997, publicado no DR, I-A, de 5 de Agosto que, em síntese, declarou inconstitucional com força obrigatória geral, a interpretação da norma ínsita na alínea f) do nº1 do art.º 1º do CPP, que não preveja que o arguido seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa. Orientação que veio a ser consagrada na lei (nº 3 do art.º 358º, do CPP).
[3] Cfr. fixação de jurisprudência do STJ (Ac.3/2012).
[4] “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Reimpressão, Coimbra Editora 2005, pág. 229.
[5] Nomeadamente nestes termos formulada a questão (ponto VII das Conclusões do Recurso para este STJ): “O processo decisório evidenciado através da motivação da convicção indigita para uma conclusão que, em matéria de prova, deveria ter conduzido à não imputação à arguida da prática do homicídio e da profanação de cadáver.” (grifo nosso).