AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
REPÚDIO DA HERANÇA
ACEITAÇÃO DA HERANÇA
ACEITAÇÃO TÁCITA
IRREVOGABILIDADE
DOCUMENTO AUTÊNTICO
ESCRITURA PÚBLICA
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
ATO DE REGISTO
NULIDADE
DEFESA POR EXCEÇÃO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE REVISTA
Sumário

I. O perfil da acção de reivindicação afere-se pela causa petendi que, em acções desta natureza, decorre do facto jurídico de que deriva o direito real, facto que, em concreto, deve ter a força suficiente para criar a favor do demandante, e nele radicar, o domínio da coisa reivindicada, e pelas pretensões jurídicas deduzidas, quais sejam, o do reconhecimento do direito de propriedade e o da restituição da coisa por outro.
II. Na perspectiva do demandado, caberá ao mesmo invocar e provar o facto impeditivo da entrega ou restituição do bem, pois, caso não demonstre que tem sobre o prédio outro direito real que justifique a sua posse ou que a possui por virtude de direito pessoal bastante, ou ainda que o bem pertence a terceiro, nada obstará à sua restituição.
III. Sem prejuízo do funcionamento das regras próprias do registo predial, mais concretamente da presunção de propriedade a favor do beneficiário do direito registado, a prova da propriedade não se basta pela demonstração da aquisição derivada da coisa, devendo aquele que reivindica provar uma forma de aquisição originária, como sejam a ocupação, a acessão ou a usucapião. Assim, conquanto a teoria da substanciação consagrada no direito adjectivo civil, a causa de pedir nas acções de reivindicação pode confinar-se ao facto base da presunção legal, donde, ao titular do registo, porque beneficiário de uma presunção, apenas basta invocá-la, sendo desnecessária a prova do facto presumido.
IV. A decisão da matéria de facto é da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta, razão pela qual, o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação. Outrossim, na medida em que o juízo presuntivo consubstancia um julgamento da matéria de facto, encontra-se igualmente o Supremo Tribunal de Justiça impedido de apurar a extracção da presunção judicial pela Relação, excepto nos casos de violação de lei e das normas disciplinadoras do instituto, designadamente, sempre que ocorra ilogicidade e/ou a alteração da factualidade adquirida processualmente, ou seja, quando a presunção parta de factos não provados.
V. O instituto da aceitação da herança prende-se com uma postura íntima do sucessível para com a personalidade e relações com o “de cujus” e também, com o conjunto de direitos e obrigações inerentes à herança. A aceitação da herança jacente é, na sua estrutura e natureza, um negócio jurídico singular, unilateral, indivisível, irrevogável e, não receptício, traduzido na vontade do sucessível adquirir, efectivamente, a herança.
VI. Ao invés do que ocorre para o repúdio, a aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser expressa (o que pressupõe a elaboração de um documento escrito, não estando sujeita à forma exigida para a alienação da herança) ou tácita (inferindo-se do comportamento do sucessível), conforme resulta da lei substantiva civil - art.º 2056º do Código Civil - importando que o enquadramento jurídico de aceitação expressa e tácita da herança, deve retirar-se a partir das noções gerais contidas no art.º 217º do Código Civil, daí que se deva entender como aceitação tácita da herança a manifestação de vontade que se deduz de simples factos que, com toda a probabilidade, a revelam.
VII. Como qualquer outro acto jurídico, a escritura de repúdio da herança é passível de ser impugnada judicialmente, na medida em que se a escritura pública faz prova plena de que, na presença do notário, foram emitidas as declarações nela vertidas, não prova plenamente que tais declarações sejam sinceras e verdadeiras ou válidas e eficazes, na medida em que isso é algo que ultrapassa a percepção da entidade documentadora
VIII. Demonstrada a aceitação da herança, enquanto manifestação de vontade positiva da sucessível em adquirir a ajuizada fracção, cuja natureza, é, além do mais, irrevogável, torna nula, ou mais propriamente, manifestamente inexistente em termos jurídicos, a escritura pública de repúdio da herança, outorgada posteriormente aos factos concludentes que determinaram o reconhecimento da aceitação da herança.
IX. A teoria da nulidade dos actos pode ser transposta para os actos de registo, e, se certo que nos termos do n.º1 do art.º 17 do Código do Registo Predial “a nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado”, tal não invalida que a nulidade possa ser invocada como excepção, em sede de demanda declarativa, com o objectivo de destruir a presunção que deriva do registo, daí que a prova em contrário da presunção decorrente do art.º 7º do CRP pode resultar da nulidade do próprio registo ou da invalidade do acto substantivo inscrito, significando que ao apurar-se factos que se subsumem à invalidade do acto substantivo inscrito (no caso a escritura repúdio da herança quando se demonstrou a aceitação da herança, cuja natureza é irrevogável), importa, necessariamente, a nulidade do registo.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

1. AA instaurou acção comum contra, BB, pedindo a declaração judicial de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao 1º andar direito do prédio urbano sito na Rua … n.º 5, freguesia de União das freguesias de … e …, concelho de …, melhor identificado nos autos, a par da condenação da Ré na restituição da identificada fracção à Autora, e no pagamento de indemnização de valor mensal não inferior a €600.00, acrescida de juros, desde 1 de Fevereiro de 2018 até à efetiva entrega.

Articula, com utilidade, que Autora e Ré são filhas da anterior proprietária da fração, sendo que, falecida esta, a Ré repudiou a herança, mantendo-se, no entanto, a residir na fração, pese embora as interpelações da Autora para a desocupar.

2. Regularmente citada, contestou a Ré, invocando a sua ilegitimidade passiva, porquanto, tendo aceitado tacitamente a herança, resulta ineficaz o repúdio, mantendo-se na sua titularidade a quota hereditária. Ademais, não deixou de invocar a exceção dilatória inominada uma vez que entende adequado, ao pedido formulado, o processo de inventário e não a intentada acção declarativa de reivindicação, alegando, outrossim, que o repúdio resultou de acordo entre Autora e Ré, a fim economizar nos encargos emergentes da sucessão, e facilitar a transação da fracção, uma vez emigrada a Ré.

Concluiu pela improcedência da demanda e condenação da Autora como litigante de má-fé, porquanto bem sabe a Autora que a Ré é proprietária da fracção ajuizada.

3. A Autora respondeu, impugnando de facto e de direito.

4. Calendarizada e realizada a audiência final foi proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou: “Pelo exposto, julgo parcialmente procedente por provada a presente ação, e, em consequência: 1. Declaro a A. titular do direito de propriedade singular da fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua … n.º 5. freguesia de União das Freguesias de … e …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 248 da Freguesia de Póvoa de … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 978; 2. Condeno a R. na restituição da fração à A.: 3. Condeno a R. no pagamento, à A. de quantia a liquidar, incidentalmente, correspondente ao valor locativo da fração, contada desde 1 de fevereiro de 2018 até restituição”.

5. Inconformada com o decidido, a Ré/BB interpôs apelação, tendo o Tribunal a quo conhecido do recurso, proferindo acórdão em cujo dispositivo enunciou: “Termos em que se acorda em julgar procedente o recurso, pelo que, revogando a sentença recorrida, se julga a acção improcedente por não provada, absolvendo-se a Ré, ora Apelante, do pedido. Custas pela Recorrida.”

6. É contra este acórdão, proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, que a Autora/AA se insurge, formulando as seguintes conclusões:

“1. Vem a Recorrente impugnar o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que julgou procedente o recurso interposto da douta sentença proferida pelo Juízo Local Cível de …, revogando-a e julgou a ação improcedente por não provada, absolvendo a Ré do pedido, em virtude de ter considerado que a mesma aceitou a herança em data anterior à da celebração da escritura de repúdio, pelo que a declaração de repúdio carece de qualquer efeito, por posterior à irrevogável declaração de aceitação da herança, valendo a primeira.

II. Salvo o devido respeito, na apreciação do recurso em causa, para além de o tribunal a quo ter, manifestamente, considerado factos dados como não provados, interpretou incorretamente o Direito substantivo e processual aplicável aos mesmos.

III. Tem assim o presente recurso fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 674º do CPC, ou seja, na violação da lei substantiva, consubstanciada no erro de interpretação das normas constantes dos artigos 217º, n.º 1, 342º, 2047º, n.º 1, 2056º, n.ºs 1 e 3, 2061º e 2062º do Código Civil e, bem assim, na alínea b) do n.º 1 do artigo 674º do CPC, ou seja, a violação da lei de processo, concretamente, o artigo 414º do CPC.

IV. Salvo o devido respeito, não foi a Ré capaz de fazer a prova que lhe caberia, de que, em momento prévio ao repúdio, praticou atos suscetíveis de consubstanciar a aceitação tácita da herança.

V. Prova esta que teria que ser capaz de ilidir a presunção registal decorrente do registo definitivo do bem em nome da Autora e ora Recorrente (Cfr. artigo 7º do Código de Registo Predial e artigo 350º, n.º 2 do Código Civil).

VI. A aceitação da herança é um negócio jurídico, não valendo o silêncio, para o efeito, como declaração negocial.

VII. Há que recorrer, pois, às regras gerais sobre a declaração negocial, designadamente ao artigo 217º do Código Civil, referindo o douto acórdão recorrido, a este propósito, que a declaração tácita é aquela que permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial, traduzindo-se num ou vários procedimentos concludentes, mas têm que ser inequívocos.

VIII. Relativamente aos elementos reconhecíveis da intenção do herdeiro em adquirir a herança, o douto acórdão recorrido dá como exemplos o caso de o familiar começar a utilizar o veículo automóvel do falecido ou começar a utilizar a casa do falecido, passando a exercer a posse dos bens do falecido.

IX. Como aí bem se refere, é exigível a existência de uma ação por parte daquele que pretende arrogar a qualidade de herdeiro, mediante a aceitação tácita da herança.

X. No caso sub judice, nenhuma ação foi praticada pela Ré da qual se possa, com toda a probabilidade, retirar uma declaração tácita de aceitação da herança, tendo-se provado unicamente que a mesma, após o óbito da mãe, se manteve a residir na fração, facto esse que não pode, de todo, sem outros que o sustentem, consubstanciar a aceitação da herança.

XI. A Ré já residia com a mãe no imóvel e mais não fez do que permanecer no mesmo após o óbito da mãe, aí continuando a residir mesmo após repudiar a respetiva herança. A permanência da mesma no imóvel não consubstancia, pois, a prática de qualquer ato revelador da intenção de tomar posse da herança deixada pela mãe.

XII. O que houve, pelo contrário, foi a sua inércia e acomodação à situação, sendo que o único ato efetivamente praticado foi o repúdio.

XIII. Repúdio esse que foi efetuado por sua própria iniciativa – tendo sido dada como não provada a existência de qualquer tipo de acordo entre as irmãs no sentido de um repúdio simulado – mediante declaração expressa prestada perante Notário, tendo-lhe sido explicado o conteúdo do ato que praticava.

XIV. Mal andaria a segurança dos negócios jurídicos se todo aquele que repudia a herança pudesse vir mais tarde “mudar de ideias”, alegando tê-la aceite em momento anterior.

XV. É certo que a Ré diligenciou pela participação do óbito no Serviço de Finanças competente, constando ambas as irmãs no Modelo 1 do Imposto do Selo como herdeiras e beneficiárias da transmissão, na qualidade de descendentes da autora da herança.

XVI. E, de facto, Autora e Ré, únicas filhas da falecida são herdeiras legitimárias da mesma (Cfr. artigo 2157º do Código Civil).

XVII. Mas a verdade é que a qualidade de herdeira e a aceitação da herança não se confundem, não se confundindo igualmente com a aceitação da herança a prática de atos de administração da herança pela Ré, na qualidade de filha mais velha e cabeça de casal (Cfr. artigos 2056º, n.º 3 e 2080º n.ºs 1, al. c), 3 e 4 do Código Civil).

XVIII. Por outro lado, o douto acórdão recorrido considera que o acordo entre Autora e Ré relativo ao pagamento de despesas e encargos, como o IMI e o condomínio, a suportar pela Ré e, bem assim, o pagamento, pela mesma, de uma compensação pela utilização exclusiva da casa são sintomáticos de que não só a Ré aceitou a herança como a própria Autora a tratou como herdeira e sucessora da mãe de ambas.

XIX. Salvo o devido respeito, consideramos que antes pelo contrário: se tivesse havido aceitação da herança por parte da Ré, nenhuma justificação haveria para que a mesma pagasse a totalidade do IMI e do condomínio – despesas que seriam, então, da responsabilidade de ambas – e que, além disso, pagasse ainda uma compensação pela utilização da casa de que, nessa hipótese, era também proprietária.

XX. De realçar que os pagamentos de IMI e condomínio foram negligenciados pela Ré, tendo sido dado como provado que os mesmos passaram a ser assegurados pela Autora desde o nascimento da filha da Ré.

XXI. Desde logo, não podemos admitir que o nascimento da filha sirva para justificar que a Ré deixasse de respeitar os compromissos assumidos: também a Autora é mãe, vivendo unicamente do seu trabalho e, nem por isso, deixa de pagar os respetivos encargos e despesas.

XXII. Claramente, o que motivou a Ré ao incumprimento dos pagamentos de IMI e condomínio foi a consciência de que nenhuma consequência para si ou para os seus rendimentos ou património poderia advir de tais incumprimentos, visto que a fração se encontrava registada unicamente em nome da irmã, aqui Autora.

XXIII. Como referido na audiência de discussão e julgamento, A R. tinha empregada doméstica e utilizava carro, não se percebia como não tinha dinheiro para pagar a prestação de condomínio.

XXIV. Resulta, pois, evidente que a Ré priorizou o seu bem-estar e conforto em detrimento do cumprimento das obrigações assumidas, continuando a usufruir gratuitamente de um bem que sabia não lhe pertencer, abusando ilegitimamente da boa-fé da sua irmã, que tudo fez para evitar o recurso à via judicial.

XXV. O tribunal a quo, no douto acórdão recorrido refere que não pode deixar de se estranhar que a Ré tivesse intenção de abdicar do único bem com valor que integrava a herança, sem qualquer contrapartida.

XXVI. Salvo o devido respeito, tal estranheza não pode passar disso mesmo, visto não existirem quaisquer factos dados como provados que sustentem que o repúdio por parte da Ré não foi feito de forma livre, voluntária e consciente.

XXVII. Diz ainda o douto acórdão recorrido que a Ré/Apelante, alegou que a escritura de repúdio resultou de um acordo entre ambas, transferindo a propriedade do imóvel para uma só herdeira, por ser a forma mais económica e, ainda, porque, como a Ré pretendia viajar para o estrangeiro para trabalhar, era mais fácil o imóvel estar registado somente a favor da A. para facilitar a venda, se necessário fosse.

Conclui este raciocínio dizendo: embora verosímil, a Ré não fez prova do alegado.

XXVIII. Salvo o devido respeito, para além do alegado não ter sido, de facto, dado como provado, nem verosímil é, quando analisado do um ponto de vista jurídico!

XXIX. Na verdade, nem o repúdio é a forma mais económica de formalizar a transmissão da fração autónoma para a esfera jurídica das herdeiras nem o mesmo se justifica para facilitar uma eventual venda ou arrendamento do bem em caso de ausência para o estrangeiro.

XXX. A habilitação de herdeiros e o registo da transmissão do bem por óbito não é mais nem menos dispendiosa por se referir a mais ou menos herdeiros. No caso, houve até um custo acrescido: o da própria escritura de repúdio.

XXXI. Também a alegação da intenção da Ré, de ir trabalhar para o estrangeiro, não justificaria, de forma alguma, o repúdio à herança: uma mera procuração por si emitida a favor da Autora seria o suficiente para permitir que esta, na eventual ausência daquela – para qualquer parte do mundo que fosse – pudesse arrendar ou vender o imóvel deixado por óbito da mãe de ambas.

XXXII. Bem vistas as coisas, a única beneficiária do repúdio, em termos económicos, considerando a versão defendida pela Ré, seria ela própria: não apenas pôde deixar de pagar o IMI e o condomínio quando entendeu sem que nenhuma consequência para si daí adviesse, residindo gratuitamente no imóvel, como, além disso, em caso de venda, apenas a Autora estaria sujeita ao pagamento de mais-valias.

XXXIII. Finalmente, entende o douto acórdão recorrido que a proposta da A., feita em Agosto de 2017, de entrega do andar, contra o pagamento à Ré de € 24.200,00, valor correspondente a cerca de metade do valor patrimonial do imóvel (…), indicia que a própria A. reconhece à Ré direito à herança.

XXXIV. Salvo o devido respeito, a esta proposta da Autora não pode ser conferido o significado constante do douto acórdão recorrido.

XXXV. A Autora sabia que a irmã não lhe restituiria voluntariamente o bem sem receber uma quantia avultada e, pretendendo a todo o custo recorrer à via judicial, dispôs-se a entregar-lhe a referida quantia para reaver, com brevidade, o apartamento de que é proprietária.

XXXVI. Aliás, salvo o devido respeito, esta proposta nunca poderia fazer prova da alegada aceitação tácita da herança por parte da Ré.

XXXVII. De facto – reforçamos – para que se pudesse configurar a existência de uma aceitação tácita da herança por parte da Ré, teria que ter ocorrido, por parte desta, comportamentos que, toda a probabilidade, a revelassem, visto tratar-se de um ato pessoal e voluntário do sucessível, sendo irrelevante por isso qualquer comportamento de outrem, no caso, da Autora, para que se pudesse considerar provada a aceitação da herança, ainda que tácita, por parte da Ré.

XXXVIII. Finalmente, não pode deixar de se considerar que o repúdio da herança por parte da Ré terá que contribuir para sedimentar a ideia de que a mesma não aceitou a herança deixada pela mãe e que apenas mediante a instauração dos autos que de deram origem ao presente recurso, fantasiou a alegada aceitação para, assim, se manter a residir no imóvel sem qualquer contrapartida e, mais ainda, para vir a receber, em caso de venda do bem, quantias às quais sabe não ter direito.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, decidindo assim V. Exªs. Venerandos(as) Conselheiros(as), com a habitual Justiça”

7. A Recorrida/Ré/BB apresentou contra-alegações, aduzindo as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso de revista interposto visa, o aliás, mui douto acórdão proferido em 21 de novembro de 2019, pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, reconhecendo que “tendo a Apelante aceitado a herança em data anterior à da celebração da escritura de repúdio (13 de Agosto de 2012), esta declaração de repúdio operada nessa data, carece de qualquer efeito, visto que é posterior à irrevogável declaração de aceitação, valendo a primeira.

2. Sendo a aceitação da herança irrevogável (art. 2061º Cód. Civil, o repúdio, embora formalmente válido, é ineficaz, pelo que ao aceitar a herança, a ora Apelante – pese embora o posterior repúdio – mantém a qualidade de herdeira de sua mãe, conjuntamente com a Recorrida.”

3. Inconformada, vem a então Apelada, ora Recorrente, interpor o presente recurso de revista.

4. A Apelada, ora Recorrente, vem pugnar pela revogação do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, defendendo que esse Venerando Tribunal violou a lei substantiva, aplicando erradamente as normas constantes nos art.ºs 217º, nº 1, 342º, 2047º, nº 1, 2056º, n.ºs 1 e 3, 2061º e 2062º do Código Civil, bem como a lei processual - art.ºs 674º, nº 1. al. b) do Código Processo Civil – violando o art.º 414º do mesmo CPC.

5. Recorrente e Recorrida são irmãs e únicas herdeiras de CC, falecida em 01/08/2010, no estado de divorciada, deixando como único bem com valor significativo a fração autónoma em causa.

6. Após o óbito da mãe, a Recorrida, que vivia com esta, na qualidade de cabeça de casal da herança, no cumprimento das respetivas obrigações fiscais, entregou o Processo de Imposto de Selo no Serviço de Finanças competente de … (doc. nº 1 junto à contestação).

7. Ao tempo do falecimento de sua mãe, a Recorrida pretendia sair do país e ir trabalhar para o estrangeiro.

8. Em 13/08/2012, por escritura outorgada no Cartório Notarial de DD, em Lisboa, a Recorrida repudiou a herança de sua mãe – (doc. nº 3 junto à pi) e em 24/09/2012, foi registada a favor da Recorrente, pela ap. 1451, a aquisição, por sucessão hereditária, da fração autónoma em causa (doc. nº 1 junto à pi).

9. Em março de 2016, a Recorrida teve uma filha, que reside consigo na fração objeto dos autos.

10. Em 02/08/2017, a Recorrente instou a Recorrida à entrega da fração até 31/01/2018, mediante o pagamento de 24.200,00 € e explicitou-lhe que, em caso de recurso à via judicial, a Recorrida “não terá direito a qualquer quantia” (doc. nº 4 junto à pi), o que a Recorrida recusou alegando não ter meios para proceder ao arrendamento de outro apartamento (doc. nº 5 junto à pi), tendo, por sua vez, a Recorrente respondido não aceitar tal proposta, contrapropondo a venda do bem pelo valor de € 65.000,00 (doc. nº 6 junto à pi).

11. A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita (art. 2056º, nº 1 Cód. Civil) e o facto de habitar a fração autónoma, acrescido pelo facto de ter assumido a posição de cabeça de casal e diligenciado, nessa qualidade, pelo cumprimento das obrigações legais e por todas as diligências burocráticas após o óbito da mãe, a Recorrida aceitou, senão expressamente, pelo menos, tacitamente, a herança da sua mãe (art. 2050º Cód. Civil) - neste sentido o Ac. da Relação do Porto, de 16/05/2007, no qual se decidiu o seguinte: “I - A aceitação da herança, como manifestação de vontade positiva, pode ser feita expressa ou tacitamente, sendo irrevogável e, na modalidade de expressa, não está sujeita à forma exigida para a alienação da herança; II - O repúdio da herança, apesar de formalmente válido por ser realizado por escritura pública, pode ser ineficaz, na justa medida em que com a anterior e irrevogável aceitação da herança, o herdeiro perdeu o direito de a repudiar.”

12. Sendo a aceitação irrevogável, nos termos do disposto no art. 2061º do Cód. Civil, pelo que a Recorrida é herdeira de sua mãe, conjuntamente com a sua irmã, ora Recorrente, pelo que a fração autónoma, fazendo parte da herança, é um bem propriedade de ambas (art. 2139º, nº 2 CC), e não única e exclusivamente da Recorrente.

13. Sendo a fração autónoma um bem propriedade de ambas as herdeiras, ora partes neste litígio, nos termos do nº 1 do art. 2101º CC, o meio próprio para dirimir este conflito seria o processo de Inventário por óbito.

14. Também o facto da Recorrente ter solicitado à Recorrida, em comunicação datada de 02/08/2017, “a entrega da fração até 31/01/2018, mediante o pagamento de 24.200,00 €” e explicar-lhe, na mesma data, que, “em caso de recurso à via judicial, a R. não teria direito a qualquer quantia” (doc. nº 4 junto à pi), tendo a fração o valor patrimonial de € 47.700,00 (cfr. doc. nº 2 junto à pi), prova que a fração era propriedade de ambas e que a Recorrente tinha conhecimento desse facto.

15. Tal como a comunicação enviada pela Recorrente, à Requerida, através da sua mandatária, datada de 01/02/2018, a propor-lhe a venda da fração pelo valor de € 65.000,00 (doc. nº 6 junto à pi).

16. E a Recorrida, pessoa de fracos recursos económicos, não poderia nunca abdicar do único bem deixado de herança por sua mãe, pois este bem faz-lhe falta para ajudar a criar e educar a sua pequena filha.

17. Só pode concluir-se, como alega a Recorrida, que a escritura de repúdio foi um acordo entre ambas para transferir a propriedade do imóvel para uma só herdeira, por ser a forma mais económica e, ainda, porque, como a Recorrida pretendia viajar para o estrangeiro para trabalhar, era mais fácil, o imóvel estar registado somente a favor da Recorrente para facilitar a venda, se necessário fosse.

18. Sendo a aceitação da herança irrevogável (art. 2061º Cód. Civil), o repúdio, embora formalmente válido, é ineficaz, pois ao aceitar a herança, a Recorrida perdeu o direito ao repúdio e mantém, efetivamente, a qualidade de herdeira de sua mãe, conjuntamente com a Recorrente, cfr. douto Acórdão da Relação do Porto datado de 16/05/2007 já citado.

19. No mesmo sentido o douto Acórdão da Relação de Évora, datado de 21/06/2007, no Proc. nº 1049/07, “A aceitação e o repúdio duma herança são por natureza incompatíveis. Assim uma vez aceite não pode haver repúdio”

Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se a mui douta decisão proferida, como é de JUSTIÇA!”

8. Foram dispensados os vistos.

9. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pela Recorrente/Autora/AA, consiste em saber se:

(1) Considerada a facticidade adquirida processualmente, divisamos errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao decidido, deverá ser declarado que a Autora/AA é titular do direito de propriedade singular da fração ajuizada, condenando-se a Ré/BB, não só, na restituição desta fração que ocupa, à sua proprietária, ora Autora, mas também no pagamento de quantia a liquidar, incidentalmente, correspondente ao valor locativo da fração articulada, contada desde 1 de fevereiro de 2018 até à efectiva restituição?

II. 2. Da Matéria de Facto


Factos Provados

“1. Pela ap- 1451 de 2012.09/24 foi registada a favor da A. a aquisição, por sucessão hereditária, da fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua … n.º 5, freguesia de União das Freguesias de … e …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n. 248 da Freguesia de … e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo 978 - Docs. 1 e 2.

2. Consta do respetivo registo a anotação do repúdio por parte da Ré. - Cfr. Doc. 1

3. Autora e Ré são irmãs e únicas herdeiras de CC, falecida em 01/08/2010, no estado de divorciada.

4. Em 13 de Agosto de 2012, por escritura outorgada no Cartório Notarial de DD, em …, a Ré repudiou a herança de sua mãe - Doc. 3.

5. Após o óbito, a R. manteve-se a residir na fração.

6. Em março de 2016. a R. teve uma filha, que reside consigo.

7. Entre A. e R. ficou acordado que a Ré assumiria os encargos com o IMI e com o condomínio.

8. Desde o nascimento da filha da R., esses pagamentos têm sido assegurados pela Autora.

9. Como compensação pela habitação da fração, a R. entregou A., mensalmente, a quantia de 200,00 € durante um período indeterminado.

10. Em 02/08/2017, a Autora instou a R. na entrega da fracção sua propriedade até 31/01.2018, mediante o pagamento de €24.200.00 - Doc. 4.

11. Mais explicitou que, em caso de recurso à via judicial, a R. não terá direito a qualquer quantia.

12. Através de mensagem de correio electrónico de 20.01.2018, a Ré recusou a proposta da Autora, alegando não ter meios para proceder ao arrendamento de outro apartamento e, por outro lado, informando não ser elegível para beneficiar de apoios sociais de habitação - Doc. 5.

13. Mais apresentou à Autora aquela que, nas suas palavras, seria a única alternativa: ser a Ré a comprar a parte da Autora no apartamento.

14. A Autora fez saber à Ré não aceitar tal proposta, contrapropondo a venda do bem pelo valor de €65.000,00, com a celebração da respetiva escritura pública até 02/03/2018 - Doc. 6.

15. A fração autónoma era o único bem com valor significativo da herança aberta por óbito da falecida mãe das partes.

16. Ao tempo do falecimento de sua mãe, a R. pretendia sair do país e ir trabalhar para o estrangeiro.

17. A R. diligenciou pela participação do óbito no Serviço de Finanças competente de … - Documento 1 junto com a contestação.

18. A A. diligenciou pela habilitação de herdeiros, documento de fls. 40 do processo em papel.”


II. 3. Do Direito


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjectivo civil - artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.


II. 3.1. Considerada a facticidade adquirida processualmente, divisamos errada subsunção jurídica da mesma, na medida em que, contrariamente ao decidido, deverá ser declarado que a Autora/AA é titular do direito de propriedade singular da fração ajuizada, condenando-se a Ré/BB, não só, na restituição desta fração que ocupa, à sua proprietária, ora Autora, mas também no pagamento de quantia a liquidar, incidentalmente, correspondente ao valor locativo da fração articulada, contada desde 1 de fevereiro de 2018 até à efectiva restituição ?(1)


Da exegese seguida no acórdão recorrido colhemos, inequivocamente, estarmos perante uma acção de reivindicação, sendo esta pacificamente aceite enquanto corolário da faculdade ou direito de sequela dos direitos reais, maxime do direito de propriedade.

O perfil da acção de reivindicação afere-se, por um lado, pela causa petendi que, em acções desta natureza, decorre do facto jurídico de que deriva o direito real, facto que, em concreto, deve ter a força suficiente para criar a favor do demandante, e nele radicar, o domínio da coisa reivindicada, e, por outro lado, pelas pretensões jurídicas deduzidas, quais sejam, o do reconhecimento do direito de propriedade e o da restituição da coisa por outro - neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil anotado, volume III, página 100.

Como contraponto, na perspectiva do demandado, caberá ao mesmo invocar e provar o facto impeditivo da entrega ou restituição do bem, pois, caso não demonstre que tem sobre o prédio outro qualquer direito real que justifique a sua posse ou que a possui por virtude de direito pessoal bastante, ou ainda que o bem pertence a terceiro, nada obstará à sua restituição, uma vez demonstrados factos que sustentem o arrogado direito de propriedade da coisa.

Assim, a lei substantiva civil - art.º 1311º n.º 1 do Código Civil - permite ao proprietário exigir judicialmente de qualquer detentor ou possuidor da coisa, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, porém, se é indubitável a necessidade de a acção ser exercida pelo proprietário não possuidor contra o detentor ou possuidor que não é proprietário da coisa, neste sentido, Mota Pinto, in, Direitos Reais, 1971, página 238, terá o demandante de fazer prova disso mesmo, ou seja, do seu direito de propriedade que abrange, entre outros o direito de restituição, mostrando também que a coisa reivindicada se encontra na posse ou detenção de outrem, neste sentido, entre outros, Manuel Rodrigues, in, A Reivindicação no Direito Civil Português, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 57, página 144, citado por Pires de Lima e Antunes Varela no Código Civil anotado, página 114, volume III.



Sem prejuízo do funcionamento das regras próprias do registo predial, mais concretamente da presunção de propriedade a favor do beneficiário do direito registado, a prova da propriedade não se basta pela demonstração da aquisição derivada da coisa, devendo aquele que reivindica provar uma forma de aquisição originária, como sejam a ocupação, a acessão ou a usucapião.

De acordo com o art.º 1311º do Código Civil “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade (…)”, sendo que este direito se adquire por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei (art.º 1316º do Código Civil).

É sabido que destes modos legítimos de aquisição, uns são meros actos translativos do direito, também designados de “modos de aquisição derivada”, como são os casos do contrato e da sucessão mortis causa, enquanto outros são constitutivos do próprio direito e, por isso, designados de “modos de aquisição originária”, como acontece com a usucapião (art.º 1287º do Código Civil), a ocupação (artºs. 1318º e seguintes do Código Civil) e a acessão (artºs. 1325º e seguintes do Código Civil).

A prova do direito de propriedade é feita através de factos que demonstrem a aquisição originária do domínio por parte de quem se arroga e quer ver declarado tal direito ou de qualquer dos seus antepossuidores, nos termos gerais do direito substantivo (art.º 342º do Código Civil), sendo que se aquele que reivindica invoca, como fonte do seu direito, uma das formas de aquisição derivada, porque não constitutiva, mas meramente translativa do direito, não lhe basta provar este modo aquisitivo para que possa ser considerado titular do direito, terá ainda que alegar e demonstrar que esse direito já existia na titularidade do transmitente e, bem assim, as sucessivas aquisições dos seus antecessores até atingir a aquisição originária em algum deles, tudo isto em razão do princípio nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet (ninguém pode transferir para outrem mais direitos do que aqueles que possui).

Na verdade, não basta que se demonstre a aquisição derivada, devendo também provar-se que o direito já existia no transmitente - aquisição originária - pois, as formas de aquisição derivada, na medida em que o direito adquirido se funda ou filia na existência de um direito na titularidade de outra pessoa, não são susceptíveis de, por si próprias, gerarem qualquer direito real, sendo apenas um meio de transmiti-lo.

Sublinhamos, porém, como já adiantamos, que assim não é quando o último transmitente beneficia da presunção do Código do Registo Predial que no seu art.º 7° estabelece que o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito.

Conquanto a teoria da substanciação consagrada no direito adjectivo civil, não sofre reservas que a causa de pedir nas acções de reivindicação pode confinar-se ao facto base da presunção legal, donde, ao titular do registo, porque beneficiário de uma presunção, apenas basta invocá-la, sendo desnecessária a prova do facto presumido.

A invocação, nestes casos, da usucapião como fonte do direito de propriedade, deve entender-se como meio subsidiário de provar o mesmo direito - neste sentido, Oliveira Ascensão, in, Direitos Reais, 1971, página 415 - onde sustenta que “na lei portuguesa actual, a usucapião é a última ratio na solução dos conflitos entre adquirentes de direitos reais”.

Ao dispor que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, o art.º 7º do Código do Registo Predial quer significar que se trata de uma presunção juris tantum, elidível por prova em contrário (art.º 350º n.º 2 do Código Civil) de que o direito registado existe e emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem determinada substância (a que o registo define).

O registo apenas garante ao comprador de um imóvel que o titular inscrito não realizou actos susceptíveis de o prejudicar, mas não garante que o imóvel pertence ao transmitente ou ao titular inscrito no registo, ou ainda que o prédio tem esta ou aquela configuração, estes ou aqueles limites e confrontações, esta ou aquela área nele referida, em suma, não dá nem tira direitos, uma vez que não constitui presunção da realidade substantiva.

Por outro lado, como também já avançamos, entre o pedido primário reclamado pelo (proprietário) demandante, ou seja, o reconhecimento - pronunciatio - do seu direito de propriedade e a consequência lógica que será a restituição - condemnatio - do que lhe pertence, poder-se-á verificar uma ruptura a qual ocorrerá se o demandado ocupar o prédio com titulo que a legitime.


Na verdade, nos termos do n.º 2 do art.º 1311° do Código Civil “(…) a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”, daí que, em principio, a restituição da coisa, sendo consequência directa do reconhecimento do direito de propriedade, exceptuar-se-á se o poder de gozo do proprietário estiver suspenso ou modificado pela constituição de um direito real ou obrigacional de outrem, caso em que se deve respeitar tal situação jurídica só devendo ordenar-se a restituição, se e enquanto não colidir com ela, consubstanciando a invocação dos respectivos factos uma verdadeira excepção peremptória, nos termos da lei civil adjectiva, neste sentido, entre outros, Castro Mendes, in, Acção Executiva, página 407.

Os casos previstos na lei serão, portanto, todas as situações em que se julguem as detenções como legitimas, traduzindo-se estas num circunstancialismo que se exprime na existência de um direito real ou obrigacional que pela sua natureza permita obstar à pretensão daquele que reivindica, nomeadamente, direito de retenção, direito de arrendamento, ou outro titulo que confira a posse ou detenção legitima.

Apreciada, em termos breves, a natureza da acção de reivindicação que interessa ao caso trazido a Juízo, importa recentrar a nossa atenção no caso sub iudice onde distinguimos que a Autora/AA alegou factos que, em concreto, têm força suficiente para criar, a seu favor, e neles radicar, o domínio da fracção reivindicada, enquanto condição primeira que lhe permite exigir judicialmente da Ré/BB, enquanto detentora do imóvel, a respectiva restituição, pois, ao sustentar que adquiriu o prédio, por sucessão mortis causa, bem sabendo que a alegada aquisição derivada não é susceptível de, por si própria, gerar qualquer direito real, sendo apenas um meio de o transmitir, não deixou de alegar, estando adquirido processualmente, ter registado, a seu favor, a enunciada aquisição por sucessão hereditária, da fração articulada, constando do registo a anotação do repúdio da herança, por parte da Ré/BB, conforme declarado em escritura pública outorgada, sendo, por isso, desnecessária a prova do facto presumido, qual seja o arrogado direito de propriedade.

Todavia, não podemos deixar de sublinhar que ao reconhecermos que o registo definitivo constitui presunção que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos do art.º 7º do Código do Registo Predial, importa ter presente que se trata de uma presunção juris tantum, e, por isso, elidível por prova em contrário.

Assim, tendo em consideração os factos adquiridos processualmente, impõe-se ponderar, para bem decidir da causa, se a presunção que decorre da registada aquisição da fração ajuizada, que tornaria desnecessária a prova do facto presumido, foi elidida, tornando exigível, neste caso, a prova da titularidade do direito de propriedade da fracção ajuizada que, como sabemos, deve ser feita através de factos que demonstrem a aquisição originária do domínio por parte de quem se arroga e quer ver declarado tal direito ou de qualquer dos seus antepossuidores, relembrando que, invocado, como fonte do direito de propriedade, uma das formas de aquisição derivada, porque não constitutiva, mas meramente translativa do direito, como decorre no caso em apreço, não basta provar este modo aquisitivo, no caso, a aquisição por sucessão mortis causa, para reconhecer a Autora/AA como titular do direito, importando ainda a demonstração que esse direito já existia na titularidade do transmitente, e, bem assim, as sucessivas aquisições dos seus antecessores até atingir a aquisição originária em algum deles.

O reconhecimento, ou não, de que resulta dos autos a elisão da presunção legal de que o direito de propriedade sobre a fracção ajuizada existe e pertence ao titular inscrito, isto é, à Autora/AA, passa, necessariamente, pela resposta a dar à evidente discordância das litigantes, reflectida no acórdão recorrido, quanto ao uso que o Tribunal a quo fez da presunção judicial que o levou a concluir pela aceitação tácita da herança.

Vejamos.

Como decorre da lei substantiva - art.º 349º do Código Civil - as presunções são ilações que o julgador, sustentado nas regras da experiência, extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos), traduzindo um juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido.

A decisão da matéria de facto é da competência das Instâncias, pese embora não seja uma regra absoluta, razão pela qual, o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação.


Outrossim, na medida em que o juízo presuntivo consubstancia um julgamento da matéria de facto, encontra-se, igualmente, o Supremo Tribunal de Justiça impedido de apurar a extracção da presunção judicial pela Relação, excepto nos casos de violação de lei e das normas disciplinadoras do instituto, designadamente, sempre que ocorra ilogicidade e/ou a alteração da factualidade adquirida processualmente, ou seja, quando a presunção parta de factos não provados.

A este propósito, estatui o art.º 662º n.º 4 do Código de Processo Civil que “das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” estabelecendo, por seu turno, o art.º 674º n.º 3 do Código Processo Civil “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, de igual modo, prescreve o art.º 682º n.º 2 do Código Processo Civil que a “decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674º”.

Deste modo, ao distinguirmos que a Relação proferiu o agora escrutinado acórdão, deitando mão da presunção judicial para concluir que a herança foi tacitamente aceite, não pode este Tribunal de revista, à partida, por se tratar de matéria de facto, modificar tal conclusão.

Na verdade, a situação apresentada em Juízo tampouco encerra a excepcionalidade a exigir do Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão de facto, pois, tomando em consideração a factualidade reconhecida como demonstrada, não podemos deixar de reconhecer, como isenta de qualquer reparo, a presunção judicial extraída e enunciada pelo Tribunal recorrido, qual seja, a ocorrência de aceitação tácita da herança, por parte da Ré/BB.

O reconhecido juízo presumido não se encontra inquinado de violação do critério legal nem se mostra assente em ilogicidade ou em factualidade não provada.

Assim.

O instituto da aceitação da herança prende-se com uma postura íntima do sucessível para com a personalidade e relações com o de cujus e também, com mais frequência, com o conjunto de direitos e obrigações inerentes à herança.

Como sabemos, a aceitação da herança jacente é, na sua estrutura e natureza, um negócio jurídico singular, unilateral, indivisível, irrevogável e, não receptício, traduzido na vontade do sucessível adquirir, efectivamente, a herança.

Ao invés do que ocorre para o repúdio, a aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser expressa (o que pressupõe a elaboração de um documento escrito, não estando sujeita à forma exigida para a alienação da herança) ou tácita (inferindo-se do comportamento do sucessível), conforme resulta da lei substantiva civil - art.º 2056º do Código Civil - importando sublinhar que o enquadramento jurídico de aceitação expressa e tácita da herança deve retirar-se a partir das noções gerais contidas no art.º 217º do Código Civil, daí que se deva entender como aceitação tácita da herança a manifestação de vontade que se deduz de simples factos que, com toda a probabilidade, a revelam.

No que respeita ao critério para aferir da inequivocidade dos factos concludentes na declaração tácita, sustenta Mota Pinto, in, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, página 425 que o art.º 217º n.º1 do Código Civil “não exige que a dedução, no sentido de auto regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade”, arrimando, assim, a um critério prático e não estritamente lógico, outrossim, Rui de Alarcão, in, A confirmação dos negócios anuláveis, Volume I, página192, “há que buscar um grau de probabilidade da vida da pessoa comum, de os factos serem praticados com determinado significado negocial, ainda que não seja afastada a possibilidade de outro propósito” e ainda, no mesmo sentido, Manuel de Andrade, in, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1953, página 81 “aquele grau de probabilidade que baste na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões”.

A lei substantiva civil, embora não tenha estabelecido uma definição de aceitação tácita da herança, mas tendo a preocupação de conformar a necessidade de clarificar situações ligadas à consumação da sucessão e de afastar equívocos relativamente à vontade real do sucessível, não deixou de indicar actos imprecisos da intenção de vontade de quem os pratica, enquanto condutas que, na sua raiz tanto podem ter subjacente a vontade de aceitar o chamamento, como a simples intenção de não deixar perder ou deteriorar os bens da herança, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora,1998, página 93.

Decorre da lei substantiva civil, a necessidade de distinguir, na actuação do sucessível, a prática de meras providências de cariz de gestão, dos actos que indiquem, inequivocamente, ou, pelo menos, que revelem com grande probabilidade, que a administração dos bens traduz uma aceitação da herança.

Revertendo ao caso sub iudice e atendendo à forma como o Tribunal a quo avaliou o comportamento da Ré/BB, importa reiterar que o juízo presuntivo reconhecido pelo Tribunal recorrido extraído a partir de factos conhecidos (3. Autora e Ré são irmãs e únicas herdeiras de CC, falecida em 01/08/2010, no estado de divorciada; 5. Após o óbito, a R. manteve-se a residir na fração; 7. Entre A. e R. ficou acordado que a Ré assumiria os encargos com o IMI e com o condomínio; 9. Como compensação pela habitação da fração, a R. entregou A., mensalmente, a quantia de €200,00 durante um período indeterminado; 15.A fração autónoma era o único bem com valor significativo da herança aberta por óbito da falecida mãe das partes; 17. A R. diligenciou pela participação do óbito no Serviço de Finanças competente de … - Documento 1 junto com a contestação), não viola a lei ou normas disciplinadoras do instituto, tampouco encerra ilogicidade e/ou a alteração da factualidade adquirida processualmente, pois, acaso se verificasse, o que, de resto, não se verifica, importaria a sindicância da decisão de facto, concretamente, daquele juízo presuntivo, por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

Reconhecida a imodificabilidade da decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo que extraiu o juízo presuntivo da aceitação da herança, por parte da Ré/BB, impõe-se retirar daqui as consequências no plano jurídico, ou seja, saber qual a repercussão do juízo presuntivo que reconhece a aceitação da herança face ao demonstrado registo, a favor da Autora/AA, da aquisição, por sucessão hereditária, da fração articulada, sustentado na outorgada escritura pública de repúdio da herança, por parte da Ré/BB.

Assim, para bem decidir se a Autora/AA deve beneficiar da presunção de titularidade do direito de propriedade por sucessão, ao abrigo do art.º 7º do Código de Registo Predial, importa apreciar se deve considerar-se válido, ou não, o repúdio da herança expresso pela Ré/BB que consta e sustenta o registo de aquisição por sucessão, a favor da Autora/AA.

Como vimos, a aceitação da herança é expressa ou tácita, sendo irrevogável, significando que, extraindo-se da actuação da Ré/BB a conclusão de que a mesma aceitou a herança de sua mãe, a irrevogabilidade dessa aceitação torna manifestamente inviável o demonstrado posterior repúdio da herança, sendo que, mais do que uma nulidade, será um caso manifesto de inexistência jurídica.

Como qualquer outro acto jurídico, também a escritura de repúdio da herança é passível de ser impugnada judicialmente, na medida em que se a escritura pública faz prova plena de que, na presença do notário, foram emitidas as declarações da outorgante, Ré/BB, nela vertidas, não prova plenamente que tais declarações sejam sinceras e verdadeiras ou válidas e eficazes, na medida em que isso é algo que ultrapassa a percepção da entidade documentadora (artºs. 370º e 371º do Código Civil), e, como vimos, reconhecido o juízo presuntivo que demonstra a aceitação da herança, por parte da Ré/BB, enquanto manifestação de vontade positiva desta sucessível em adquirir a ajuizada fracção, cuja natureza, é, além do mais, irrevogável, torna nula, ou mais propriamente, manifestamente inexistente em termos jurídicos, a escritura pública de repúdio da herança, outorgada posteriormente à actuação da Ré/BB que consubstancia os actos concludentes, reveladores da aceitação da herança.

Reconhecida, nos termos enunciados, a manifesta inexistência jurídica da escritura pública de repúdio da herança, outorgada pela Ré/BB, importa retirar as devidas ilações no que tange ao demonstrado registo de aquisição da propriedade, por sucessão mortis causa, ancorado nesta escritura pública de repúdio da herança, cuja inexistência jurídica declaramos.

Ao aludir-se ao registo predial tem-se em vista, primacialmente, o acto de inscrição predial que tem por objecto factos jurídicos e não situações jurídicas.

Os factos são inscritos no registo predial a fim de dar a conhecer aos interessados a situação jurídica dos bens.

O registo predial está, deste modo, indelevelmente ligado à fé pública registral que se implementa com a atribuição de valor presuntivo à respectiva inscrição, ou seja, quem beneficia da inscrição registral de um facto aquisitivo presume-se titular do respectivo direito, como já aludimos.


A nulidade, em geral, constitui uma espécie grave de invalidade dos actos jurídicos, sendo que a gravidade do vício é revelada pelo (e tem tradução no) regime legal, tanto no que respeita à invocação, como especialmente nas consequências.

As nulidades operam ipso jure ou ipsa vi legis, são invocáveis por qualquer pessoa interessada e são insanáveis pelo decurso do tempo ou mediante confirmação.

As consequências da nulidade pressupõem, pois, que só falhas muito graves a possam determinar. Por isso, as causas de nulidade devem estar directamente previstas na lei. A este propósito “A nulidade dos actos é uma pena muito grave e de efeitos transcendentes, porque produz a morte civil dos mesmos actos e, por isso, só a deve haver quando a lei por motivos de grande conveniência pública, a tenha expressamente cominado”, Castro Mendes, in, Direito Civil, Teoria Geral, volume III, 1979, página 696.

Tenhamos também em atenção que, de um modo geral, a teoria da nulidade dos actos pode ser transposta para os actos de registo.

É certo que nos termos do n.º 1 do art.º 17 do Código do Registo Predial “a nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado”, o que não invalida, conforme tem sido sustentado pela nossa Jurisprudência, que a nulidade possa ser invocada como excepção, com o objectivo de destruir a presunção que deriva do registo, não repugnando que essa demonstração possa ser levada a cabo em sede de demanda declarativa, com o desiderato de elidir a presunção registral decorrente do art.º 7º do Código do Registo Predial, sem necessidade de, previamente, se instaurar acção específica com vista exclusivamente à nulidade registral.

Salienta-se, a propósito, que o nosso ordenamento jurídico ao consagrar a referida presunção no art.º 7º do Código de Registo Predial, não contempla qualquer dúvida que a mesma é elidível, sendo que tal prova pode resultar da nulidade do próprio registo ou da invalidade do acto substantivo inscrito, neste sentido, Antunes Varela, in, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118º, página 307, expressando que ao estar adquirido processualmente factos que se subsumem à invalidade do acto substantivo inscrito (no caso a escritura repúdio da herança quando se demonstrou a aceitação da herança, cuja natureza é irrevogável), importa, necessariamente, a nulidade do registo, donde, com base nesta declaração de nulidade, reconhecemos que a Ré/BB logrou elidir a presunção invocada pela Autora/AA.

Tudo visto, conquanto a Autora tenha reunido a alegação dos requisitos da acção de reivindicação, enquanto manifestação típica do direito de sequela, em que pretende firmar o arrogado direito de propriedade e pôr fim à alegada situação ou actos que o violem, tendo como primeira vocação a declaração de existência do direito de propriedade, sustentado no apelo à aquisição derivada, aquisição por sucessão mortis causa, beneficiando da presunção do registo, bastando-lhe, por isso, invocá-la, e, como escopo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos, quais sejam, o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objecto desse direito, certo é que a Ré/BB fez prova em contrario da presunção do registo, daí que, elidida a presunção, esta não serve para fundamentar o direito pretendido fazer valer por quem a invocou, daí que a Autora/AA ao deixar de demonstrar, como lhe incumbia, o acto jurídico de que deriva o direito de propriedade, facto que, em concreto, devia ter a força suficiente para criar a seu favor, e nele radicar, o domínio da coisa reivindicada, verá, necessariamente, soçobrar a pretensão jurídica deduzida nos presentes autos.

Concluímos, assim, que as conclusões trazidas à discussão pela Recorrente/Autora/AA não encerram virtualidade no sentido de modificar o destino delineado no dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal recorrido.


III. DECISÃO


Pelo exposto, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam improcedente o recurso interposto, negando-se a revista.

Custas pela Recorrente/Autora/AA.

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Setembro de 2020


Oliveira Abreu (Relator)

Sacarrão Martins

Nuno Pinto Oliveira


Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no presente acórdão, atesto o respectivo voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos, Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira.