EXECUÇÃO
PENHORA DE BEM COMUM
PARTILHA
ENTREGA DO REMANESCENTE DA VENDA AO CÔNJUGE PROPRIETÁRIO
Sumário


I- A partilha de bens constitui um acto oneroso e é, sem dúvida, como tal, um acto de ‘disposição de bens’, pois implica a emissão de uma declaração de vontade por parte dos intervenientes nesse acto que a lei tutela e que determina a alteração do estatuto jurídico dos bens no que respeita à sua natureza patrimonial e titularidade.
II- O acto de partilha, sendo um acto de disposição, não é oponível à execução face ao estatuído no artigo 819.º do CCivil e, como tal, a execução tem de prosseguir para venda na sua totalidade do bem imóvel objecto da penhora sendo, para estes efeitos, irrelevante que a dívida exequenda seja apenas da responsabilidade do executado; porém, após pagos os ónus que essa penhora produziu no bem, deverá ser ao proprietário entregue o produto do remanescente da venda do imóvel cuja propriedade lhe pertence.

Texto Integral


- Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães –

I. RELATÓRIO

Nos autos supra identificados através de requerimento de 08/03/2019, veio o Agente de Execução dizer que, efetuados os pagamentos devidos, existe um saldo a devolver ao executado, no montante de €32.451,81, resultante do produto da venda do bem imóvel penhorado nos autos, contudo, suscitam-se-lhe dúvidas sobre o beneficiário de tal montante, uma vez que o bem em causa era um bem comum do casal constituído pelo executado R. J. e C. R. (ref.ª836085).
Notificado desse requerimento, veio o executado R. J. pugnar pela repartição, em partes iguais, do saldo remanescente, pois, tendo o bem penhorado e vendido sido um bem comum do executado e de C. R., é a ambos que caberá a receção do remanescente do produto da venda (ref. ª8425582).
Já C. R. requereu que o remanescente do produto da venda lhe fosse entregue na totalidade, dado que, em 2015, o executado e a ora requerente, além de se terem divorciado, procederam à partilha do património conjugal, passando, desde então, o imóvel a ser habitado pela requerente, que paga exclusivamente e na íntegra todas as prestações relativas ao mesmo, não tendo o executado direito a qualquer provento da venda e, como tal, deve ser condenado como litigante de má fé (ref.ª8436617).

Seguiu-se a decisão que terminou com o seguinte dispositivo:
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Determinar a entrega da totalidade do remanescente do produto da venda do bem imóvel penhorado nos autos, no montante de €32.451,81, a C. R..
b) Julgar improcedente o pedido de condenação do executado R. J. como litigante de má-fé.

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Fixa-se ao presente incidente o valor de €32.451,81, nos termos dos artigos 296.º, n. º1, 297.º, n. º1, 304.º, n.º1 e 305.º, n.º2, todos do Cód. Proc. Civil.
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Custas do incidente a cargo do executado – cf. artigo 527.º, n.ºs1 e 2, do Cód. Proc. Civil.
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Notifique, incluindo o AE, e registe.

Descontente o executado apresenta recurso que termina com as seguintes conclusões:

I.As presentes alegações de recurso têm por objecto a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo que decidiu “determinar a entrega da totalidade do remanescente do produto da venda do bem imóvel penhorado nos autos, no montante de €32.451,81, a C. R. e julgar improcedente o pedido de condenação do executado R. J. como litigante de má-fé”.
II.Orecorrentenãoseconformacomoteordadecisãorecorridanaparterelativa à entrega do valor do remanescente, entendendo que o valor total deveria ser repartido por si e pela Recorrida em partes iguais.
III. Tendo em consideração que aquando da penhora o imóvel era um bem comum das partes, que o Tribunal aguardou pelas informações decorrentes da partilha em curso e que a execução acabou por prosseguir naqueles termos devido à conduta omissa da Recorrida, não poderá agora o douto Tribunal beneficiar injustificadamente a parte incumpridora dos ónus processuais.
IV. Ao manter-se a decisão recorrida inalterada são desrespeitadas ideias e princípios processuais estruturantes, tais como a equidade, justiça, igualdade processual das partes, preclusão dos actos e disponibilidade do processo.
V. No andamento dos autos a Recorrida não salvaguardou os seus interesses, na medida em que não carreou os factos relevantes para o desfecho da causa, não prestouquaisquerinformaçõessobreoestadodapartilha,nãolançoumãodos meios processuais ao seu dispor e unicamente por estas circunstâncias é que a execução prosseguiu sobre os bens comuns do casal.
VI. Assim, perante a inércia e passividade da Recorrida não poderá agora o douto Tribunalde1ªinstâncianeutralizareignorarasconsequênciasprocessuaisdaí decorrentes concedendo, sem mais, benefícios injustificados e infundados à Recorrida.
VII. Ademais, a decisão recorrida encontra-se em contradição com despachos outrora proferidos pelo próprio Tribunal a quo (cf. despachos datados de 10 de Dezembro de 2014 e a 18 de Maio de 2015) que determinaram o prosseguimento da execução sobre os bens comuns, assim como conferiram relevância processual ao silêncio da Recorrida (que não nada disse ao processo sobre o estado da partilha).
VIII. Os referidos despachos não foram colocados em crise pelas partes, pelo que transitaram em julgado e o seu teor tem força de caso julgado. Nessa medida, o Tribunal a quo deve actuar em conformidade com os mesmos, como deve pronunciar-se em coerência com as posições e entendimentos aí assumidos.
IX.Por conseguinte, o Tribunal de 1ª instância não poderia atender às circunstâncias vertidas nos pontos 11 a 14 da douta sentença recorrida, incorrendo em discordância com a posição que já havia assumido no que diz respeito à partilha do património comum.
X.A realidade é que o próprio Tribunal a quo concedeu à Recorrida a oportunidade de informar os autos sobre essas mesmas circunstâncias; não o tendo feito, esses elementos não foram carreados para o processo e a prática desses actos encontra-se precludida.
XI.significaqueoactodepartilhasempreteriaquesecomsiderarinoponívelface à execução (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Junho de 2018,noprocesso8031/14.7T8PRT-E.P1, relator Manuel Domingos Fernandes, ede18deNovembrode2013,noprocesso254/11.7TBPVZ-B.P1,relatorAlberto Ruço, ambos disponíveis em www.dgsi.pt)
XII.Em suma, a decisão recorrida terá forçosamente que ser alterada, de forma a sanar o erro cometido pelo douto Tribunal a quo na apreciação e decisão do mérito da questão em litígio e deixar de se encontrar em contradição com o teor de outras decisões anteriormente proferidas.

TERMOS EM QUE E NOS MELHORES DE DIREITO, deverá o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a sentença proferida e substituindo-se por outra que determine a entrega a cada um dos ex-cônjuges de metade do valor total de remanescente do produto da venda do bem penhorado fazendo assim Vossas Excelências a inteira e habitual
JUSTIÇA!

A recorrida contra-alega pugnando pela manutenção da decisão recorrida quer de facto quer de direito.

Apresenta as seguintes conclusões:

a) Estando provada nos autos a propriedade do imóvel vendido em execução será ao proprietário que deverá ser entregue o remanescente do produto da venda.
b) Importará atentar ao proprietário no momento da venda e não da entrada da ação executiva pois nada impede que se transacionem bem onerados.
c) Se a propriedade adveio após entrada da execução isso não impedirá que os credores sejam pagos pelo produto da venda pois o imóvel foi adquirido com um ónus de penhora. Porém, após pagos os ónus que essa penhora produziu no bem deverá ser ao proprietário entregue o produto do remanescente da venda do imóvel cuja propriedade lhe pertence.
d) Não deverá ser entregue qualquer provento da venda de um imóvel a quem dele já não é proprietário.
e) Constituiria, tal circunstância, uma ilegalidade face à falta de título de propriedade que o justificasse bem como, sempre, um abuso de direito.
f) O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a concreta aplicação de um preceito legal que, na normalidade das situações seria ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.
g) “O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. Do STJ, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, 3, 117.
h) Se aquando da entrada da execução o bem é comum isso não significa que a propriedade se mantenha comum se o bem durante a pendência da execução se tiver transmitido.
i) Se o bem, por partilha subsequente a divórcio, foi registado a favor do cônjuge mulher, isso significa, desde logo, que beneficia da presunção de que o direito de propriedade lhe pertence (cf. artigo 7.º do Código de Registo Predial),
j) Pelo que será ao proprietário, e não a terceiro, que deverá ser entregue o resultado da venda do mesmo.

Nestes termos
Deve ser negado provimento ao recurso, apresentado pelo recorrente, mantendo-se a douta Sentença proferida nos termos em que conclui.
Assim fazendo, também este superior Tribunal, a melhor JUSTIÇA
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito devolutivo – artºs 629º, nº1; 644º, nº1, al. a); 638º; 645º, nº1, al. a) e 647º, nº1, do Código de Processo Civil.
Mais se considerou não haver nulidades a suprir.

Foram colhidos os vistos legais.

II. ÂMBITO DO RECURSO.

As conclusões das alegações de recurso (cf. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art.º 608.º, n.º 2 e art.º. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).
A única questão suscitada e que cumpre apreciar é a de aferir se a decisão apelada deve ser revogada, justificando-se o deferimento do requerido pela apelante em sede de requerimento desatendido/indeferido pelo tribunal a quo.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

De Facto

Na decisão recorrida foi proferida a seguinte decisão de facto:

Tendo por base os elementos documentais constantes dos autos, com relevância para a apreciação da referida questão, importa ter presente a seguinte factualidade, que se mostra assente:

1. Em 30/01/2013, EDITORA X, LDA. intentou ação executiva contra R. J., para pagamento da quantia certa de €4.186,19, que corre termos por apenso ao processo crime com o n.º2607/11.1TABRG.
2. Para o efeito, muniu-se da sentença proferida nesse processo crime (n.º2607/11.1TABRG), onde o executado foi condenado a pagar à exequente a quantia de €4.124,27, acrescida de juros de mora, à taxa legal desde a notificação do pedido até integral pagamento.
3. No dia 04/03/2013, foi penhorada à ordem dos autos a fração autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao primeiro andar direito, virado a sul e poente, tipo T2, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, e Rua …, da freguesia de ..., concelho de Braga, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º 124/... e inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...º.
4. À data da penhora, o direito de propriedade do referido bem encontrava-se registado a favor de R. J. e mulher C. R., casados sob o regime da comunhão de adquiridos.
5. Sobre o referido bem incidia ainda hipoteca voluntária a favor do BANCO …, SA, para garantia do capital máximo assegurado de 10.737.530,00 escudos, registada através da Ap. 63 de 200/06/05.
6. Por despacho de 01/11/2013, foi declarada suspensa a execução até à partilha do bem comum penhorado.
7. Por despacho de 10/12/2014, «em face do silêncio do cônjuge e ao teor da informação prestada a fls.167 e sgs, pela Conservatória do Registo Civil, não tendo sido até ao momento efetuada a separação de bens», foi determinado o prosseguimento da execução sobre os bens comuns.
8. No dia 21/12/2018, procedeu-se à venda, na modalidade de leilão eletrónico, do sobredito bem imóvel, pelo valor de €45.450,00, tendo, a 31/12/2018, sido emitido título de adjudicação.
9. Elaborada nota discriminativa, apurou-se existir um saldo remanescente de €32.451,81.
10. Por decisão proferida a 12/02/2015, no processo de divórcio por mútuo consentimento n. º16066/2013, foi decretado o divórcio, por mútuo consentimento, entre R. J. e C. R..
11. No âmbito desse processo, os aí requerentes acordaram em atribuir a casa de morada de família, sita na Rua ..., n. …, Braga, a ex-cônjuge esposa, C. R..
12. (…) assim como acordaram em proceder à partilha do património conjugal, adjudicando à requerente mulher, C. R., a fração autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao primeiro andar direito, virado a sul e poente, tipo T”, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.º .., e Rua ..., n.º .., da freguesia de ..., concelho de Braga, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ../... e inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias de ... e ... sob o artigo ....º.
13. Tais acordos foram homologados, por decisão da Exma. Sra. Conservadora, de 12/02/2015, transitada de imediato.
14. Através da AP.2162, de 12/02/2015, foi registada, a favor de C. R., a aquisição por partilha subsequente a divórcio, da fração autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao primeiro andar direito, virado a sul e poente, tipo T”, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., n.º .., e Rua ..., n.º .., da freguesia de ..., concelho de Braga, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ../... e inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias de ... e ... sob o artigo ...º.

De Direito:

A questão que cumpre apreciar é a de aferir se a decisão apelada deve ser revogada, justificando-se o deferimento do requerido pelo apelante em sede de requerimento desatendido/indeferido pelo tribunal a quo.

Apreciando:

O património conjugal é integrado pelos bens comuns do casal, afectado por lei ao escopo de servir de suporte económico à sociedade conjugal.

Após a extinção do casamento, o bem comum do casal mantém-se nessa qualidade até ocorrer a sua divisão e partilha.
Com efeito, não é a simples extinção do vínculo conjugal que automaticamente opera a alteração do regime de bens, legal ou contratualmente fixado para o casamento, nem a retroacção dos efeitos patrimoniais do divórcio–cf. artigo 1789.º, n.ºs 1 e 2 doC. Civil-implica que o regime dos bens deixe de ser o da comunhão, se foi esse o adoptado, para passar ao da propriedade em comum, enquanto se não tiver procedido à partilha.
O regime prescrito no citado artigo 1789.º tem a ver com as relações entre os cônjuges e os respectivos e correlativos direitos/obrigações, visando evitar que um deles “seja prejudicado pelos actos de insensatez, de prodigalidade ou de pura vingança, que o outro venha a praticar, desde a proposição da acção, sobre valores do património comum.” – itálico nosso.
Só a partilha põe termo à comunhão podendo, ou não, dar lugar à compropriedade.
Enquanto aquela não ocorrer, o regime legal de bens mantém a imutabilidade que lhe é natural, podendo terceiros valer-se das normas legais que o pressupõem, como é o caso do citado na decisão recorrida e pelo recorrente artigo 819.º do Código Civil, onde se dispõe que “Sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados”.
Como reconhece a recorrida se a propriedade adveio após entrada da execução isso não impedirá que os credores sejam pagos pelo produto da venda pois o imóvel foi adquirido com um ónus de penhora.
De efeito a propriedade de imóveis adquire-se por contrato, sucessão, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei - cf.. artigo 1316.º C. Civil.
A enumeração legal não é taxativa.
Não se questiona que o bem imóvel em causa era pertença do casal constituído pelo recorrente e recorrida, donde que não interesse aqui o modo de aquisição dos bens por esse casal, mas apenas os efeitos do negócio jurídico da partilha entre eles outorgado no sequência do divórcio.

Relativamente aos bens, o divórcio tem os mesmos efeitos da dissolução do casamento por morte, razão pela qual esta cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges conduz à partilha dos bens do casal, se eles não pretenderem manter-se na indivisão (artigo 1689.º, nº 1 do CCivil).
Assim, a partilha dos bens do casal é juridicamente equiparável à que se opera na sucessão por morte. É, sempre, o acto destinado a fazer cessar a indivisão de um património que pertence, na unidade, a duas pessoas.
Cada um dos cônjuges já tinha o direito a uma parte ideal dos bens antes da partilha, sendo proprietário do património comum, pois que os bens comuns constituem uma massa patrimonial que pertence aos dois cônjuges que são, ambos, titulares de um único direito sobre ela.
Pela partilha o direito preexistente em propriedade colectiva concretiza-se em bens certos, continuando os adjudicatários na respectiva titularidade agora individualizada pelo termo da indivisão. Deste modo, o direito a bens determinados existente depois da partilha é o mesmo direito a bens indeterminados que existia antes dela; é o mesmo direito, apenas modificado no seu objecto.
Temos, consequentemente, que a partilha, não tendo carácter constitutivo de direitos, mas essencialmente declarativo, se apresente também com a natureza de acto modificativo, na medida em que altera, como referido, a situação jurídica anterior.
Daí decorre que, não sendo, embora, a partilha, abstractamente, meio legítimo de aquisição - efectivamente, o cônjuge ou o herdeiro nada adquire do outro, apenas se modificando o direito de que era titular-, aqueles efeitos declarativos-modificativos permitem a efectivação do domínio e posse sobre os bens em concreto na pessoa de cada um dos interessados.
A partilha representa, então, o título modificativo do direito preexistente através do qual ficam definidos os contornos e se “molda o direito na sua realidade concreta” que é, no caso, o reconhecimento da propriedade da recorrente sobre a totalidade do imóvel objecto da penhora que pela partilha lhe foi adjudicado.
Aplicando os princípios expostos, parece ter de concluir-se que, por via da dita partilha, o domínio sobre o bem imóvel adjudicado na totalidade à recorrida se efectivou na respectiva titularidade passando, desde então, a ser-lhe reconhecida a propriedade exclusiva e ficando a exercer sobre o imóvel os mesmos direitos que antes detinham em conjunto.
Daqui resulta que a partilha de bens, mesmo com os contornos que no caso se verificaram quanto à partilha do imóvel penhorado, constitui um acto oneroso e é, sem dúvida, como tal, um acto de “disposição de bens”, pois implica a emissão de uma declaração de vontade por parte dos intervenientes nesse acto que a lei tutela e que determina a alteração do estatuto jurídico dos bens no que respeita à sua natureza patrimonial e titularidade.
Sendo certo que o acto de partilha sendo um acto de disposição não é oponível à execução face ao estatuído no já citado artigo 819.º do CCivil e, como tal, a execução teve de prosseguir para venda na sua totalidade do bem imóvel como foi decidido, sendo, para estes efeitos, irrelevante que a dívida exequenda seja apenas da responsabilidade do executado, porém, após pagos os ónus que essa penhora produziu no bem deverá ser ao proprietário entregue o produto do remanescente da venda do imóvel cuja propriedade lhe pertence. – Negrito nosso.

Aliás, a interpretação propugnada permite definir a situação do cônjuge ou ex-cônjuge do executado relativamente à penhora e subsequente venda, de forma que o património comum seja separado e o não responsável pela dívida seja poupado a qualquer prejuízo, já que pelo cumprimento da obrigação, em princípio, apenas responde o património do devedor-cf. artigo 601.º do CCivil.
Isto dito, cumpre ainda salientar que não obstante a recorrida não ter oportunamente lançado mão do direito que lhe assistia de requerer a separação de bens nos termos do art.º 825º,nº1, do CPC, e de a execução ter assim prosseguido no bem (imóvel e bem comum) penhorado nos autos, tal não “obriga” necessariamente a que “perca” a recorrida o direito a receber a parte na venda referida e que correspondente ao valor do bem que é sua propriedade.
Invoca o recorrente que o Tribunal de 1ª instância não poderia atender às circunstâncias vertidas nos pontos 11 a 14 da douta sentença recorrida as quais contrariam despachos anteriores.
Esquece, porém, o recorrente a regra da atendibilidade, nos termos do nº1 do referido artigo 611 do CPC dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da, pressupõe que as partes tragam esses factos ao processo, através de articulados supervenientes, nos termos dos artigos 588 e sgs C.P.Civil, ou que os factos de que o tribunal tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções- art.º 412 nº2 do CPC. (1)
E este modo de decidir nada tem de contraditório ou violador de eventual caso julgado que no caso não se verifica, uma vez que os despachos referidos se reportam à tramitação adequada aos factos existentes , mais concretamente prosseguimento dos autos por ausência de partilha.
Por fim este modo de decidir não viola o alegado princípio da igualdade ou outro (s).
O Tribunal Constitucional por inúmeras vezes se pronunciou sobre este assunto , citando-se, a título de exemplo o Acórdão n.º 1007/96 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Dezembro de 1996), onde, uma vez mais, se realçou que o princípio da igualdade "obriga a que se trate como igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante. Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal". E acrescentou-se nesse aresto que "[P]ara que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva situação de diferenciação injustificada ou discriminação".
Nas palavras de Maria Glória Ferreira Pinto (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, p. 44), "[o] critério valorativo a que o princípio da igualdade, enquanto princípio jurídico apela, não deve ser, em consequência, um critério de valores subjectivos, mas, pelo contrário, um critério retirado do quadro de valores vigentes numa sociedade, interpretados objectivamente. É certo que tais valores vivem no âmbito das alterações históricas e civilizacionais, só sendo materialmente determináveis em presença de uma sociedade em concreto, mas nem por isso deixa de ser um quadro de valores objectivo."

Também este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa disse no seu Acórdão n.º 188/90 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990) que:
(…)
“Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade de vincula em primeira linha o legislador ordinário [...] Todavia, este princípio não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa.
Por outras palavras, o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular.
O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot).”
(…)
Ora, logo por aqui, se seria levado a considerar que nem sequer seria equacionável uma eventual violação do princípio da igualdade, justamente pela circunstância de se não colocarem situações que, à partida apresentavam semelhança. A casa é propriedade apenas da recorrida. O recorrente não tem qualquer direito de propriedade sobre a mesma. Seria injusto receber produto da venda de um bem que não lhe pertence.
Improcedem, desta forma todas as conclusões formuladas pelo recorrente e, com elas, o respectivo recurso.

Concluindo:

●. A partilha de bens, constitui um acto oneroso e é, sem dúvida, como tal, um acto de “disposição de bens”, pois implica a emissão de uma declaração de vontade por parte dos intervenientes nesse acto que a lei tutela e que determina a alteração do estatuto jurídico dos bens no que respeita à sua natureza patrimonial e titularidade.
● O acto de partilha sendo um acto de disposição não é oponível à execução face ao estatuído no artigo 819.º do CCivil e, como tal, a execução tem de prosseguir para venda na sua totalidade do bem imóvel objecto da penhora sendo, para estes efeitos, irrelevante que a dívida exequenda seja apenas da responsabilidade do executado, porém, após pagos os ónus que essa penhora produziu no bem deverá ser ao proprietário entregue o produto do remanescente da venda do imóvel cuja propriedade lhe pertence.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente por não provado e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo recorrente (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
Notifique.

Guimarães, 15 Outubro de 2020
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)

O presente acórdão é assinado eletronicamente pelos respectivos
Maria Purificação Carvalho (Relatora)
Maria dos Anjos Melo Nogueira (1ª adjunta)
José Cravo (2º adjunto)


1 - Artº 412 nº2 do CPC: “Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos deve fazer juntar ao processo documento que os comprove”.