JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
PRÉDIO RÚSTICO
FRACCIONAMENTO
USUCAPIÃO
FRAUDE À LEI
DUPLICAÇÃO REGISTRAL
PRESUNÇÃO DERIVADA DO REGISTO
Sumário


I- O conceito de prédio rústico previsto no C.C. não coincide com a noção da linguagem comum, nem com o conceito tributário ou do registo predial.
II- A impugnação da justificação notarial apenas por via de acção (ou reconvenção) pode ser efectuada e não por via de excepção.
III- O fraccionamento do prédio rústico a que alude o art. 1376º do C.C. não ocorre com a justificação notarial, que é um mero acto declarativo de aquisição de um direito por via da usucapião, e não um acto constitutivo, nem translativo de direitos, mas ocorre, por ex., com a doação de prédio que corresponde a uma parcela de outro.
IV- O fraccionamento de prédio rústico para construção é admissível nos termos do art. 1377º c) do C.P.C. sendo apenas anulável se a construção não for sido iniciada dentro do prazo de três anos, acção de anulação essa que caduca decorrido deste momento outros três anos (art. 1379º nº 1 e 3 do C.C. na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27/08).
V- A diversidade de situações que surgem nos tribunais relacionadas com a questão de saber se a aquisição do direito de propriedade por usucapião prevalece sobre as normas referentes ao fraccionamento dos prédios rústico aconselha a defesa de uma tese intermédia, nos termos da qual só ‘casuisticamente e não aprioristicamente, devem os tribunais apreciar a validade dos actos de divisão e fraccionamento da propriedade rústica’.
VI- No R.G.U.E. e na legislação que regula a R.A.N e a R.E.N. inexistem normas imperativas de conhecimento oficioso cuja violação conduza à nulidade do negócio através do qual ocorre o fraccionamento.
VII- Em caso de duplicação parcial de descrições prediais (quando determinada porção de terreno no sistema registral é simultaneamente tratada como prédio e como parte integrante de prédio) nenhum dos titulares registais pode invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

Fábrica da Igreja Paroquial de X, com sede na Rua …, freguesia de X, concelho ..., instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M. O., J. O. e J. A., todos residentes no Lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., pedindo que:

a) Se declare que a autora é legítima proprietária do prédio rústico, composto de terreno de cultura arvense de regadio, sito no lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., descrito na C.R. Predial ... sob o nº .../X e inscrito na matriz sob o art. ...º;
b) Os réus sejam condenados a restituir à autora, livre de pessoas e bens, o supra referido prédio, devendo os réus retirar todas as plantações realizadas no mesmo.
c) Os réus sejam condenados a abster-se de praticar qualquer acto que ofenda ou perturbe o direito de propriedade da autora sobre o prédio em causa.
d) Os réus sejam condenados a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento do vertido em b) e c).

Para tanto alega, em síntese, que é legítima dona e proprietária do prédio que identifica e que adquiriu por doação do anterior proprietário, antecessor dos réus. De qualquer modo, há mais de 20 anos que, por si e pelos seus antecessores, exerce actos de posse de forma púbica, pacífica, sem oposição de ninguém e na convicção de que exerce um direito próprio pelo que sempre teria adquirido o direito de propriedade sobre o referido prédio por usucapião.
Os réus vêm ocupando o prédio da autora, sem o seu consentimento e autorização, efectuando nele uma plantação de ervas aromáticas. Os réus, com a sua conduta, não permitem que a vontade do doador – utilização do prédio em apreço em benefício da freguesia – seja cumprida.
A autora por diversas vezes solicitou a restituição do prédio, mas até à data os réus não deram cumprimento a tais interpelações, mantendo todas as plantações realizadas. Assim sendo, violam o direito de propriedade da autora, sendo que a autora não está na disposição de permitir que os réus continuem a ocupar o prédio.

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Os réus contestaram dizendo o seguinte:

Aceitam que, por escritura de justificação e doação, o seu tio avô doou à autora o prédio em questão, tal como aceitam que têm ocupado o referido prédio com uma plantação de ervas aromáticas. A parcela de terreno doada por A. F. à autora fazia parte de um terreno maior de que era proprietário e que o doador tinha adquirido por escritura de habilitação, partilha, doação e partilha em vida dos seus pais, com 25.000 m2, prédio este inscrito na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial, sendo que o mesmo sempre foi por si agricultado como um todo único.
Para fazer a doação do terreno à autora havia dois impedimentos legais: a área a doar integrava a RAN e a REN pelo que violava a lei do fraccionamento da propriedade rústica e não podia constar das confrontações que a parcela a doar confrontava com uma propriedade rústica do doador pelo que viola a lei do emparcelamento da propriedade rústica.
Assim, para contornar tais impedimentos, o doador, com conhecimento da autora, participou às Finanças a existência do prédio com 1020 m2, omisso na matriz, a confrontar a norte com caminho vicinal, do sul e nascente com M. C. (sua mulher) e do poente com a igreja, criando novo artigo rústico – .../X - e declarou ainda que terreno doado não estava descrito no registo predial, o que não correspondia à verdade. Assim, as declarações prestadas na escritura de justificação e doação – participação à matriz, declaração que não estava descrito no registo, que lhe foi doada verbalmente e a confrontação com a sua mulher - são falsas e tiveram por objectivo defraudar a lei pelo que a participação matricial e a escritura são nulas por violação de normas de interesse e ordem pública, de natureza imperativa e conhecimento oficioso.
Acresce que o doador sempre disse às pessoas que lhe são próximas que não queria morrer sem ver a obra feita e que a autora tinha o prazo máximo para a fazer até 3 anos depois da sua morte.
Por outro lado, a parcela sempre se manteve na posse do doador e depois da sua morte, na posse dos seus herdeiros, os aqui réus, que sempre a cultivaram como um todo único, o que se ficou a dever ao facto de ter sido acordado com a autora que a posse da parcela só seria transferida para a autora se e quando fosse aprovado o projecto e iniciada a construção da obra, o que sempre deveria acontecer no prazo de 3 anos após o seu falecimento. Porém, decorridos 14 anos, não há ainda projecto aprovado na Câmara Municipal uma vez que a obra não é autorizada porque o prédio se encontra em zona de RAN e REN.
O primeiro réu, no âmbito da revisão do PDM, solicitou à Câmara Municipal que o terreno doado fosse incluído em zona de construção, o que não obteve o provimento do Município, do que deram conhecimento à autora.
Constou na freguesia que a autora pretende construir no local um parque de estacionamento, tendo a autora recentemente pedido a entrega do prédio aos réus. Os réus, face à pressão, ponderaram fazer a entrega, mas fizeram exigências que a autora não aceitou, mas não obstante os réus nomearam um topógrafo que mediu e delimitou a parcela.

Os réus terminam pedindo que a acção seja julgada improcedente e não provada e que se declare oficiosamente:

1 - A nulidade do ato da participação matricial que deu origem à criação do art. ... da matriz rústica de X;
2 – A nulidade da escritura de justificação e doação, por dupla fraude às leis: do fraccionamento e do emparcelamento da propriedade rústica (institutos de natureza imperativa, de interesse e ordem pública).
3 – A nulidade da doação por impossibilidade legal do objecto da cláusula modal ou condição resolutiva do negócio jurídico.
4 – Subsidiariamente, impugnada a justificação notarial por usucapião, irrelevando-se a presunção registral da mesma.
5 – O cancelamento na C.R.P. de … da descrição n.º ... de X e a sua inscrição a favor da autora e eventuais inscrições posteriores.
6 - A absolvição dos réus do pedido, com as demais consequências legais.
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A autora pronunciou-se quanto aos documentos juntos e invocou a ilegibilidade de alguns. Mais alegou que os réus, depois da propositura da acção, comunicaram à autora que tinham limpo o prédio e que consideravam o mesmo entregue, pelo que reconheceram o direito de propriedade da autora e ao apresentarem a contestação, estão a litigar em abuso do direito.
Termina pedindo que os réus sejam condenados como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a favor da autora, em quantia que deverá ser fixada em montante não inferior a €.5.000,00.
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Os réus, notificados de tal requerimento, vieram juntar os documentos ilegíveis e incompletos e vieram opor-se à junção dos documentos apresentados pela autora pugnando pela extemporaneidade dos mesmos, com o consequente desentranhamento. Responderam ao pedido de condenação como litigantes de má-fé.
Os réus vieram juntar mais documentos que foram impugnados pela autora.
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O tribunal proferiu despacho determinando a notificação dos réus para, em 10 dias, esclarecerem se pretendiam, ou não, deduzir reconvenção quanto aos pedidos que formulam na contestação e notificou a autora para esclarecer o valor atribuído à acção.
A autora veio responder que o valor atribuído corresponde ao valor da parcela, com o que os réus concordaram.
Foi ordenada a avaliação do prédio em discussão de forma a apurar-se o valor do mesmo que concluiu que o mesmo tem um valor de mercado de € 7.000,00.
Foi ordenado o registo da acção e foi fixado valor à causa.
Foi proferido despacho saneador, despacho a admitir os meios de prova e a designar data para audiência final.
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Procedeu-se a audiência de julgamento.
No início da audiência de julgamento, a autora pronunciou-se quanto às excepções invocadas pelos réus na contestação defendendo que não existiu qualquer destaque fraudulento, de qualquer forma a violação das regras do fraccionamento implica a anulabilidade do acto (art. 1379º nº 1 do C.C. na redacção anterior à Lei nº 111/15 de 27/08) sendo que tal direito de anulação já se extinguiu por caducidade (citado art. 1379º nº 3). Mais referiu que a cláusula modal ou resolutiva constante da escritura de doação não é legalmente impossível, mas mesmo considerando que o é tal não prejudica a validade da doação (art. 2230º ex vi 967º do C.C.).
Durante a audiência de julgamento a autora requereu que a instância seja julgada extinta por inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos formulados em b) e d) da petição inicial. Os réus, pediram prazo para se pronunciar quanto a tal requerimento, mas não disseram nada nos autos.
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Após, foi proferida sentença, cuja parte decisória, na parte que interessa, reproduzimos:

“Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a acção procedente e, em consequência:

A. Declara-se a autora Fábrica da Igreja Paroquial de X dona e legítima proprietária do prédio rústico denominado de «...», inscrito na matriz sob o artigo ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00.../2005-01-21 da freguesia de X e aí inscrito a favor da autora pela apresentação n.º 09/2005-01-21.
B. Condena-se os réus M. O., J. O. e J. A. a abster-se de praticar qualquer acto que ofenda ou perturbe o direito de propriedade da autora sobre o prédio identificado em A.
C. Julga-se extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto aos pedidos formulados sob as alíneas b) e d) da petição inicial.
D. Absolvem-se os réus M. O., J. O. e J. A. do pedido de condenação com litigantes de má fé. (…)”
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Não se conformando com esta sentença vieram os réus dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“Questão I – falta de alegação e prova da presunção do artº 7º, CRP:
1ª – No atual quadro do CPC, as partes continuam oneradas à alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e daqueles em que se baseiam as exceções deduzidas, estando o tribunal limitado na sua atividade por tal factualidade essencial e apenas podendo considerar, além dela, a factualidade instrumental, os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa de pedir, desde que sobre os mesmos as partes tenham tido oportunidade de tomar posição - cfr. artº 5- 1 e 2, CPC – (in casu, a A. fundamentou a causa de pedir na escritura de “justificação e doação” de 30.9.2004 ; na usucapião e na presunção da posse ; e os RR. impugnaram esta escritura e deduziram as seguintes exceções:- a) – a nulidade da escritura por falsidade das suas declarações; b) – nulidade da escritura por inexistência do seu objeto; c) - nulidade da escritura por “fraude à lei”; d) - nulidade da escritura por violação de normas e autorizações administrativas do ordenamento do território; d) – duplicação de descrições registrais e presunção da posse do prédio pelos RR., desde tempos imemoriais até à propositura da ação).
2ª – Na ação de reivindicação, a causa de pedir é o facto de que deriva o direito real de propriedade (princípio da consubstanciação – artº 581-4, CPC), cabendo ao autor no caso de aquisição derivada, a prova de que o direito existia no transmitente (“nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet”).
Porém, para obviar à dificuldade desta prova, a lei criou duas presunções: - a derivada do artº 7º da CRP e a derivada da posse (artº 1268, CC).
3ª – Assim, no caso de aquisição derivada, para além da transmissão da propriedade, deve o autor reivindicante alegar e provar a aquisição originária no transmitente (usucapião, ocupação ou acessão) e, caso entenda conveniente, os factos consubstanciadores de alguma, ou ambas, as referidas presunções.
4ª – “Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência da confissão do réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação” (artº 265-1, CPC) – o que não ocorreu no caso sub-judice – cfr. Resposta da aqui A. pelo que a(s) causa(s) de pedir da ação há-de achar-se apenas e só na PI.
5ª – Compulsando agora a PI, a A. alegou factos essenciais de três causas de pedir: - 1) – a aquisição derivada (artº 1º e 2º); 2) – a aquisição originária, por si e pelos antepossuidores – usucapião (artº 3º a 10º); 3 – a presunção derivada da posse (artº 12º), pelo que não pode o tribunal ocupar-se senão destas três questões suscitadas pela A – não sendo a presunção de registo (não alegada) de conhecimento oficioso – sob pena de violar o artº 5 – 1 e 2 e o artº 608-2, 2ª parte, CPC.
6ª – Na verdade, se atentarmos bem, no artº 1º e 2º da PI, a A. alega,”ipsis verbis” que… “é dona e legítima proprietária do prédio rústico, composto de terreno de cultura arvense de regadio, sito no lugar de ..., freguesia de X, descrito na C. Reg. Predial ... sob o nº .../X e inscrito na respetiva matriz sob o artº ... – docs 1 e 2” e que… “adquiriu este prédio a A. F. e mulher, já falecidos, através da escritura de justificação e doação de 30.9.2004 – doc. 3” (anotando-se que a refª à descrição registral e ao artº matricial apenas é feita como meros elementos de identificação do prédio e que a A. não deu sequer o doc. 1 e 2 como reproduzidos).
7ª – Assim, contrariamente à alegação da presunção decorrente da posse (artº 12º), é inquestionável que a A. não alegou o facto constitutivo da presunção de registo do prédio a seu favor na C. Reg. Predial, donde que, em consequência, deve retirar-se do “facto provado” nº 10 a referência …”e está inscrito a favor da autora pela ap. 9/2005-01-21” (Nb:- o doc. 2 não foi dado como reproduzido na PI e esse doc .também não identifica quem o emitiu e não está sequer datado, ou seja, também não contém a “formalidade especial” mínima para prova plena, nos termos do artº 607-5, 2ª parte, CPC. Verifica-se ainda divergência na localização do prédio – confrontações – entre a descrição na matriz (doc. 1) e no registo (doc. 2) - o que retira também por aí força probatória ao doc. 2 para prova plena do facto nº 10).
8ª – Para além disso, limitando-se a A. a alegar no artº 1º da PI ser “dona de um prédio rústico, terreno de cultura arvense, sito no lugar de ..., X…” omitindo os seus elementos identificadores (“parte delimitada do solo” – artº 204 – 2,CC) como seja, a sua área, configuração e confrontações e não tendo provado nenhum ato de posse exercido por si e pelos antepossuidores sobre o prédio justificado/doado (artº 3º a 10º da PI “não provado”), o douto tribunal recorrido não podia dar como provados aqueles elementos de identificação – como fez no facto provado 10 – com base apenas na dita descrição predial (uma vez que, como é jurispª uniforme, a descrição registral não faz prova dos elementos de identificação dos prédios – área, configuração, limites, destino).
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Questão II – Nulidade da escritura, por: a) - inexistência do seu objeto; b) – falsidade das suas declarações
9ª – Define-se “prédio rústico” como uma porção delimitada do solo com autonomia própria, quer física, quer funcional, quer económica (agrícola ou florestal) – cfr. artº 204 – 2,CC.

Assim, a justificação notarial ou judicial exige como condição:

1) – que a posse que leva à justificação/usucapião seja exercida sobre uma unidade predial autónoma, individualizada, quer física, quer funcional (“a característica da coisa para ser objeto de relação jurídica é a existência autónoma ou separada” cfr -Mota Pinto, in “Teoria Geral, 3ª ed. pag 340).
2) – que haja ausência de documento que comprove a propriedade do imóvel – cfr. artº 89-1 e 2 do Cº Not. e 91-1, CRP.
10ª – Resultando provado - da leitura conjugada dos “factos provados” nº 9, 11, 18, 27 e 28, com a visualização das fotos aéreas do doc. 5, 6 e 7 da Cont. e planta a tracejado de fls. 40 - que…”desde tempos imemoriais até 31.7.2018, a parcela doada pelo A. F. sempre foi agricultada pelo justificante e depois da sua morte pelos RR, a milho, erva e plantas aromáticas, como parte integrante de um terreno de 25.000 m2, melhor identificado nos factos 1) a 5), como um todo único, sem quaisquer barreiras, desde as casas de habitação até às paredes exteriores do adro da igreja e ao caminho vicinal, sito a norte nascente, conforme configuração a tracejado da planta de fls 40”,

Concluímos, sem margem para dúvidas:

a) – que o terreno justificado/doado, materialmente, quer antes, quer depois da escritura de justificação/doação, até 31.7.2018, nunca existiu ;.
b)– e que o justificante/doador havia adquirido tal prédio por doc. de partilha, doação e partilha de 1976 – cfr.”facto provado” nº 3.
11ª - Verificando-se a inexistência material e funcional de um “prédio” no transmitente até 31.7.2018 (artº 204-2 e 280, CC), a beneficiária da alienação (A.) nada poderia ter adquirido (“nemo plus iuris…”), sendo ineficaz a presunção de registo assente em ato nulo ou ineficaz. Na verdade, o registo não sana os defeitos de que porventura enfermam os títulos subjacentes, antes perdem eficácia no caso de, e como consequência, da nulidade ou ineficácia do ato.
12ª - Seguindo a Jurispª do douto AUJ nº 1/2008, DR de 31.3.2008 … “impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnada se tem de haver esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção que a lei concede no pressuposto da existência do direito registado”
De contrário, dizemos nós, estar-se-ia a atribuir ao registo um efeito constitutivo – que ele, decididamente não tem – como fez a douta sentença recorrida.
13ª – Assentando a causa de pedir do artº 2º da PI na escritura de “justificação e doação” que os RR. impugnaram – e até provaram “o seu contrário”, ou seja, a falsidade das suas declarações – cabia à A. , nos termos do artº 342-1 e 3 e 1311, CC, o ónus da prova da verdade e da validade das declarações dessa escritura, sem que possa beneficiar de hipotética presunção do artº 7º, CRP, uma vez que a impugnação da escritura tanto pode ser feita por via da ação, como por via de exceção (não se exigindo ,nesta hipótese, a dedução de reconvenção).
14ª – Assim, impugnada a escritura de justificação, in casu por via de exceção, a falta de prova da A. e a prova pelos RR da sua invalidade, por “prova do contrário”, implicam a nulidade ou a ineficácia da dita justificação e dos respectivos atos subsequentes, vg, a doação e a eventual presunção de registo – cfr. ac. STJ de 9.7.2015, procº nº 448/09, dgsi.
Questão III – vontade real dos outorgantes; nulidade do negócio jurídico por violação das normas e autorizações administrativas; conhecimento oficioso desta questão:
15ª – É dado adquirido que “um negócio jurídico consubstancia-se no fim que tende a respetiva declaração de vontade, sendo por aí que tem de aferir-se a possibilidade ou impossibilidade do objeto do negócio ou da sua contrariedade ou conformidade à lei, nos termos a que alude o artº 280, do Cº Civil”– cfr. Mota Pinto, in “Teoria Geral”, 3ª ed. Pag. 547 e concl. I do douto ac. RC de 9.5.2000, in CJ, tº 3º, pag. 5 – nada importando o “nomen juris” ou a qualificação do negócio pelos outorgantes (artº 5-3, CPC).
E ainda …“a infracção de qualquer das exigências formuladas neste artº 280, CC, acerca dos requisitos do objeto negocial, implica a nulidade do negócio jurídico, independentemente de as partes conhecerem ou deverem conhecer o vício de que padece o objeto negocial” e...“os arts 280 e sgs. utilizam a expressão “ objeto negocial”, abrangendo o conteúdo ou efeitos jurídicos do negócio, seja do objeto imediato, seja o mediato” (Mota Pinto, in ob. cit ,pag 553.e 547).
16ª – Isto posto, compulsando os “factos provados” nº 18, 27 e 28, é inequívoco que o negócio imediato, efetivamente querido pelas partes na escritura notarial de “justificação e doação” de 30.9.2004, consubstanciou uma doação por destaque duma parcela de 1.020 m2, exclusivamente para construção urbana (…”na condição de o imóvel ser destinado a nele ser edificado o salão paroquial e/ou a residência do respetivo pároco” – cfr. parte final do facto nº 13) – parcela essa a destacar da parte rústica de 25.000 m2 do prédio identificado nos factos 1 a 5 e configurado a tracejado na planta de fls 40.
17ª – Porém, aquela doação formal de parcela de terreno para construção constituiu efetivamente um fracionamento ilegal, clandestino, discricionário, que estava sujeito ao cumprimento de normas, comunicações e autorizações prévias das entidades administrativas (do Notário, da Câmara, da RAN e da REN), previstas à data no DL nº 555/99, de 16.12, alterado pelo DL 177/01, de 4.6, que nomeadamente exigiam (artº 6, nº 4, 5, 6, 7, 8, 9 e artº 49):
- que o lote destacado tenha confrontação com arruamento público (e não caminho “vicinal” ou “de servidão de vizinhos vários” – cfr. confrontação norte do facto 11 e 13 e planta de fls 40);
- que a parcela seja destacada da RAN e da REN – cfr. doc. 11 da Contestação cuja autoria não foi impugnada pela A, na Resposta;
- a aprovação pela Câmara Municipal da construção projetada, exclusivamente para construção de habitação;
- o averbamento ao registo do prédio originário da proibição de novo destaque no prazo de 10 anos – condicionantes estas que a A. não alegou, nem provou, quer à data da escritura, quer até à prolação da sentença.
18ª – No tocante a esta matéria, a questão nuclear é saber: - se deve prevalecer um ato de destaque ou de fracionamento ilegal para construção e consequente registo (no qual singelamente se sustentou a decisão recorrida) sobre as normas que sucessivamente têm vigorado em matéria de ordenamento do território, desde o DL 46.673, 29.11.65, passando pelo DL 289/73, de 6.6, pelo DL 400/84, de 31.12., DL 334/95, de 28.12 e finalmente o DL 555/99, de 16.12 e DL 177/01 (artº 6, nº 4, 6, 7, 8, 9 e artº 49), vigentes à data da citada escritura notarial, chegando à versão atual do DL nº 214-G/2015, de 2.10, sobretudo, quando nem sequer se verificou uma situação de Usucapião.
19ª –Ora, contrariamente à douta sentença recorrida, tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurispª que as citadas normas, comunicações e autorizações administrativas que regulam o fracionamento da propriedade fundiária - quer destinada a cultura, quer a construção urbana e as que, com o mesmo objetivo, proíbem com a nulidade o estabelecimento da compropriedade (artº 54-1 e 4 da Lei nº 64/03, de 23.8, vigente à altura) - integram o direito público do ordenamento do território e, por isso, são de caráter imperativo e com foros de defesa constitucional (artº 9, e), 65-4 e 66-2, b), da n/CRP), pelo que o ato que as viola é ferido de nulidade, de conhecimento oficioso, a todo o tempo (artº 286, CC – pese embora a nulidade também foi pedida pelos RR) - o que leva, por arrasto, à declaração de insubsistência ou de ineficácia dos negócios e atos subsequentes, vg, do registo assente em ato nulo.
20ª – A n/Jurispª tem tratado este thema em conformidade com o entendimento supra, mesmo no caso de ter havido lugar os requisitos da Usucapião.
Veja-se, por todos, o brilhante e análogo ac. STJ de 26.1.2016, procº nº 5434/09.2, caso análogo, vg, a Concl. 5ª a 8ª (…“o diálogo entre o Dtº Civil e o Dtº do Urbanismo e o objetivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fracionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento da propriedade, mormente da usucapião” … “na ausência de demonstração do cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território … não podem os atos de posse baseados num facto proibido por essas normas permitir uma aquisição por usucapião” e … “é nulo, por impossibilidade originária objetiva de cumprimento da prestação (artº 401-1 e 289-1, CC), o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os recorridos e os justificantes que tenha por referência o prédio objeto de tal escritura de justificação”).
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Questão IV – Nulidade do negócio jurídico, por “fraude à lei” (autonomia deste instituto)
21ª– Reproduzindo aqui as Conclusões 10ª a 12ª, supra, concluímos:
- que pela escritura de “justificação e doação” o justificante e a A. procederam efetivamente a uma operação de destaque duma parcela de 1.020 m2 para construção, retirada de um prédio rústico de 25.000 m2 devidamente descrito na respetiva matriz e registo predial – destaque esse proibido por lei ou sujeito a comunicações ou autorizações administrativas prévias;
- que, acaso a parcela de 1.020 m2 se destinasse à agricultura, estariam os outorgantes da escritura notarial perante um fracionamento proibido pelo artº 1376-1 e 2, CC (face à área da nova parcela ser inferior à unidade de cultura e ao encrave da nova parcela, atenta a sua confrontação norte com caminho “vicinal” ou de “servidão de vizinhos vários” – cfr. estas refsª na parte final do facto 13 e 11).
22ª – É da experiência dos profissionais do foro (advogados e juízes) que para ludibriar as referidas imposições e condicionalismos legais, é comum os outorgantes procedem na prática: - ou à constituição da compropriedade, seguida duma divisão de facto ( vg, em partilhas) ; ou à criação, por via enganosa, de (falsos) prédios omissos à matriz (por norma, não sindicado pela A.T.), seguido duma escritura de justificação com base na usucapião, com vista à criação duma nova descrição predial. Foi este último o artifício utilizado pelos outorgantes da escritura de 30.9.2004. Na verdade,
23ª – Do confronto dos “factos provados” 11, 12 e 13, com os “factos provados” nº 16, 18, 27 e 28 e com as Conclusões 10ª a 12ª, supra, resulta evidente que os outorgantes da escritura notarial de “justificação e doação” – com ou sem intenção – efetivamente contornaram as atrás referidas imposições e condicionalismos legais do direito ao ordenamento do território, ou seja, agiram em “fraude à lei” (decorre da referida factualidade, da lógica e da experiência, ter havido efetiva intenção burlar a lei, No entanto, a doutrina e jurispª dominantes defende a corrente objetivista, segundo a qual não é necessário haver a intenção das partes de burlar ou defraudar a lei, basta o resultado obtido – cfr. brilhante exposição da doutrina e jurispª sobre o thema no douto ac. STJ de 12.9.2019, in procº 8049/15.2PRT e o ac. STJ de 25.1.2005, dgsi 04A3915, escrevendo este último acórdão …”decisivo para afirmar a ilicitude e a consequente nulidade por fraude à lei é o resultado com ela obtido e não a intenção das partes”).
24ª – Concluímos, entre outros, como Menezes Cordeiro, in “Tratado do Dtº Civil”, parte geral, 2ª ed. Almedina, tº I, 490, ss …“a fraude à lei reconduz-se no essencial a uma forma de ilicitude que envolve, por si, a nulidade do negócio. A sua particularidade residirá no facto de as partes terem através de artifícios formais, mais ou menos assumidos, conferir ao negócio uma feição inócua”.
25ª – A doutrina e a própria jurispª atribuem autonomia ao instituto da “fraude à lei” e declaram a nulidade dos negócios em “fraude à lei”, nos termos do artº 280, 294, e 295, CC, independentemente das prescrições próprias das normas defraudadas, pela simples razão de, na “fraude à lei”, o agente cria uma aparência de juridicidade que impede o conhecimento e a pronta reação das entidades encarregadas de sindicar tais atos e negócios jurídicos (daí, mesmo que apenas fossem anuláveis tais negócios, a contagem do prazo de anulação também só se inicia a contar do momento em que é possível o conhecimento da fraude).
26ª – A douta sentença recorrida não só não declarou a nulidade do negócio de 30.9.2004 e do subsequente ato de registo, por violação das normas e autorizações administrativas e constitucionais, de carácter imperativo, levadas às Conclusões 19ª e 20ª, supra, como também não declarou a nulidade própria, prevista para a “fraude à lei”, como instituto autónomo (artº 280, 294 e 295, CC), levada à Conclusão 21ª a 25ª, supra,
27ª – Por outro lado, salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida aplicou erradamente o regime da anulabilidade previsto na 2ª parte do nº 1 do artº 1379, CC (anterior redação) quando escreve …“a proibição do fracionamento não é aplicável … se o fracionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção prevista na al. C) do artº 1377, CC” (é que este regime de anulabilidade e de caducidade da ação só é aplicável “se a construção não for iniciada no prazo de 3 anos”).
28ª - E se é verdade que a al. c) do artº 1377 CC, permite “o fracionamento de prédios rústicos se tiver por fim a desintegração de terrenos para construção”, não é menos verdade que não deixa de exigir o pressuposto do cumprimento das normas e autorizações administrativas prévias a tal fracionamento e da possibilidade do seu conhecimento por banda das Autoridades – o que, in casu, o artifício meramente formal da “justificação e doação” e o não fracionamento material ate 31.7.2018 decididamente contornou e escondeu das referidas Autoridades até hoje (!!!) (competindo à A. a prova até à sentença de que isso assim não aconteceu – matéria que não alegou, nem provou).
29ª – Por outro lado, não tendo havido um destaque material da parcela, desde tempos imemoriais até 31.7.2018 (posterior à instauração da ação – cfr. facto 27 e 28 e doc. 5, 6 e 7 da Contestação), alguma jurispª entende que o verdadeiro fracionamento só poderá ocorrer depois de 31.7.2018 (irrelevando, pois, o destaque formal de 2004). Daí, essa jurispª entende ser aplicável ao fracionamento as regras em vigor aquando da verdadeira e efetiva divisão ou destaque material da parcela - in casu, as normas administrativas atuais e a atual redação do artº 1376 a 1379 CC, pela razão de só a partir do destaque material, físico e público ser possível o seu conhecimento e a consequente reação das entidades públicas fiscalizadoras daquela operação de destaque ilegal e discricionário.
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Questão V – Duplicação de descrições e consequências; presunção de posse:

30ª – Decorre dos “factos provados” nº 2 a 9 e do facto nº 11, nº 18, 27 e 28 que a unidade predial rústica de 25.000 m2 – de que o terreno justificado e doado faz parte integrante – desde 1976 até hoje, possui uma descrição matricial e uma descrição registral, própria, que não sofreu qualquer alteração formal, por efeito da escritura de 30.9.2004 (manteve até hoje a mesma descrição na matriz e no registo), encontrando-se atualmente essa descrição registral inscrita a favor dos RR. na Conservatória de Registo Predial.
31ª – Sendo assim, verifica-se a duplicação de descrições sobre a parcela formalmente destacada, dividindo-se a doutrina e a jurisprudência sobre qual das descrições prevalece para efeitos de presunção registral:
- segundo alguns Autores e Jurispª, prevaleceria a presunção a favor dos titulares inscritos da primeira descrição, nos termos do artº 6 e 34, CRP (trato sucessivo mais antigo). In casu, prevaleceria a presunção registral a favor dos RR.
- segundo outros Autores e Jurisp,ª ambas as presunções, mutuamente, se anulam “nenhum dos titulares registrais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artº 7º do CRP, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções” - vindo esta orientação a ter vencimento na Jurispª através AUJ nº 1/2017,DR de 22.2.2017.
32ª – Este AUJ discorre sobre a questão da má fé assim …“afigura-se, pois, que só estará de má fé quem seja responsável pela criação fraudulenta da situação de duplicação das descrições ou quem tenha, pelo menos, conhecimento dessa fraude” – “in casu”, o justificante A. F. e a donatária, aqui A. (não podendo por aqui esta beneficiar da presunção).
Porém, mesmo que se venha a entender que a A. desconhecia a “fraude à lei” atrás invocada (o que se não concede), sempre se aplicará o dito princípio/regra do AUJ nº 1/2017 (1ª parte), segundo o qual, ambas as presunções se anulam (nesta hipótese, cai também por terra a base de sustentação da douta sentença recorrida, devendo improceder a ação).
33ª – Da Conclusão 30ª, supra, e do “facto provado” nº 20, resulta que …“os réus, sem autorização, e consentimento da autora, cultivam aquela unidade predial de 25.000 m 2 – que inclui a parcela doada – como um todo, a milho, erva e ervas aromáticas, sucedendo na posse do antepossuidor, A. F., agindo como se fossem titulares de algum direito sobre o prédio (facto 20)”. Ora, pelos atos de uso e fruição praticados pelos RR (artº 1305,CC) se conclui que exercem uma posse pública, pacífica, titulada e de boa fé (titulada e registada) sobre toda a unidade predial possuída - que engloba a parcela de 1.020 m2 - desde tempos imemoriais até 31.7.2018, posse essa correspondente ao Dtº de Propriedade – cfr. artº 1251; 1252-2 e Assento do STJ de 14.5.96, BMJ, 457-55 e artº 1254-2; 1260-2; 1261; 1263, a) e b), CC - pelo que beneficiam os RR da presunção de titularidade contida no artº 1268-1, CC.
34ª – Segundo Vaz Serra, in RLJ, 103, 540 …“o artº 1255,CC, limita-se a declarar que, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa. Não diz que a posse continua nos herdeiros do possuidor com os mesmos caracteres e efeitos que tinha para este. O herdeiro não sucede na boa ou má fé da posse do autor da herança…” (sublinhado nosso), pelo que, salvo melhor, não tem fundamento a referência na douta sentença recorrida quando diz …”uma última nota para referir que, em nosso entender, a arguição de tais nulidades pelos réus sempre constituiriam uma situação de abuso de direito, pois os réus são sucessores do doador e estão a invocar nulidades praticadas pelo próprio doador, o que sempre constituiria uma “venire contra factum proprium”.
35ª – Àquele argumento de Vaz Serra, acresce ainda que, se por um lado, 1) – a proibição do “venire contra factum proprium” só atinge o exercício abusivo do próprio (como o termo latino diz), não se herda … pelo outro 2) - o abuso de direito não pode justificar que se considere válido um ato de “fraude à lei”(artº 280,294 e 295,CC) e em violação de normas imperativas, de interesse e direito público (dito doutra forma, só pode equacionar-se o abuso quando não estiverem em causa interesses de ordem pública).
36ª – Finalmente, tendo em conta os efeitos da própria nulidade do acto (art 286,CPC) e o acima exposto, discordamos também da douta sentença recorrida quando se julga incompetente para aplicar as atrás indicadas normas administrativas, alegando …“se tratar de nulidade de um ato administrativo (autorização de loteamento da Câmara Municipal) que também não é da competência deste tribunal conhecer (trata-se de um ato administrativo)”.
37ª – Do mesmo modo que discordamos da ilação tirada pela douta sentença recorrida do “facto provado” nº 32, na medida em que este facto não garante a viabilidade da construção, e nem a Câmara, nem a RAN, nem a REN se pronunciaram sobre a aprovação do negócio imediato, aqui em discussão (destaque formal de parcela para construção em “fraude à lei”, que ainda hoje aquelas entidades desconhecem…).”
Pugnam pela revogação da sentença recorrida, substituindo-a por outra que absolva os réus do pedido e subsidiariamente, deve anular-se a douta sentença recorrida por inconstitucionalidade material por violação dos art. 9º, al. e); 65º, nº 4 e 66º, nº 2, b) da C.R.P..
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Foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Apurar se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;
B) E apurar se ocorreu erro na subsunção jurídica.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1) Na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº .... estava inscrito o prédio “Campo da ..., de ... e mato, no Lugar de ..., freguesia de X, a confrontar do norte com J. L., do sul com caminho, do nascente com A. S. e do poente com M. S.”. (fls. 96)
2) Pela apresentação nº 9 de 06/06/1976, ao prédio descrito em 1 foi averbado que «o prédio supra n.º .... é misto e compõe-se de duas casas, sendo uma de dois pavimentos e outra de um pavimento ambos com a área coberta de 153 m2, coberto com 207m2, casa da adega com 58 m2, 3 dependências com 222,5m2, na qual está incluída a casa do alambique, e terrenos de ..., situado no Lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., a confrontar do norte e poente com estrada municipal e caminho público, do sul com caminho público, do nascente com ribeiro e L. L. …inscrito na matriz sob os artigos .. e .. urbanos e (…) rústicos. A este prédio foi anexado o descrito sob o n.º … fls. 104 do B253». (fls. 96)
3) No dia 06/07/1976, relativamente ao prédio identificado em 1) foi inscrito que:
Pela apresentação 9, com nº de inscrição 44513, a aquisição por sucessão hereditária a favor de M. L., casado com M. A., no regime da comunhão de bens, residente no lugar de ... freguesia de X, concelho ..., sendo sujeito passivo J. L. e mulher M. J., casados que foram no regime da comunhão de bens e que residiam no mesmo lugar e freguesia.
Pela apresentação 10, com nº de inscrição …, a aquisição de ½ por partilha extrajudicial a favor de M. L., viúvo, residente no lugar de ... freguesia de X, concelho ... e sendo sujeito passivo M. A..
Pela apresentação 11, com nº de inscrição …, a aquisição de ½ por doação e ½ por partilha extrajudicial a favor de A. F., casado com M. C., no regime da comunhão de adquiridos, residente no lugar de ... freguesia de X, concelho ... e sendo sujeitos passivos M. L. e M. J.. (fls. 102 a 103)
4) Pela apresentação nº 5662/20100730 foi averbado ao prédio descrito em 1 «Misto – a) casa de 2 pisos – s.c.257,50 m2 – art. 169; b) casa de 2 pisos – s.c. 418 m2 – art. 30; c) Campo da ... e Moinhos com cultura, ramada, 4 oliveiras e 50 fruteiras – 25.000 m2 – art. 575 rústico; norte estrada municipal, sul A. L. e ribeiro; nascente J. C.; poente L. S..» (fls. 96)
5) Em 30/07/2010, foi efectuada a anotação nº 1 ao prédio identificado em 5 de «extractada para o sistema informático sob o n.º .../20100730.» (fls. 96)
6) O prédio misto situado em ..., com a área total de 25.675,5m2, sendo 675,5m2 de área coberta e 25.000m2 de área descoberta, inscrito na matriz sob os art. 19º e 30º urbanos e 575º rústico, e que é composto por: a) casa de 2 pisos – s.c.257,50 m2 – art. 169; b) casa de 2 pisos – s.c. 418 m2 – art. 30; c) Campo da ... e moinhos com cultura, ramada, 4 oliveiras e 50 fruteiras – 25.000 m2 – art. 575 rústico; norte estrada municipal, sul A. L. e ribeiro; nascente J. C.; poente L. S., está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20100730, da freguesia de X e está inscrito a favor de M. O., J. O. e J. A., pela apresentação n.º … de 2010/07/30, por aquisição por legado, sendo sujeito passivo A. F.. (fls. 46)
7) O prédio rústico denominado “Campo da ... e moinhos”, situado em ..., com a área total de 25.000m2 de área descoberta, inscrito na matriz sob o art. 2056º, e que é composto por cultura, ramada, 4 oliveiras e 50 fruteiras; norte estrada municipal, sul A. L. e ribeiro; nascente J. C.; poente L. S. e ribeiro, está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/20170206, da freguesia de X e está inscrito a favor de M. O., J. O. e J. A., pela apresentação n.º … de 2010/07/30, por aquisição por legado, sendo sujeito passivo A. F. e corresponde a uma reprodução da descrição n.º .../20100730. (fls. 46v)
8) O prédio rústico situado em ..., descrito como Campo da ... e moinhos com cultura, ramada, 4 oliveiras e 50 fruteiras, que confronta norte estrada municipal, sul A. L. e ribeiro; nascente J. C.; poente L. S. e ribeiro, está inscrito na matriz predial rústica de … sob o art. …º (proveniente do art. …º) da União de Freguesias de X, … a favor dos réus M. O., J. O. e J. A.. (fls. 70)
9) O prédio rústico situado em ..., descrito como Campo da ... e moinhos com cultura, ramada, 4 oliveiras e 50 fruteiras, que confronta norte estrada municipal, sul A. L. e ribeiro; nascente J. C.; poente L. S. e ribeiro, estava inscrito na matriz predial rústica de … sob o art. …º (proveniente do art. 214º) da União de Freguesias de X, … a favor dos réus M. O., J. O. e J. A.. (fls. 43v e 44)
10) O prédio rústico denominado de “...”, destinado a cultura arvense de regadio, com a área de 1.020m2, que confronta de norte com caminho vicinal, de sul e nascente com M. C. e de poente com Igreja, inscrito na matriz sob o art. ...º, está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00.../2005-01-21 da freguesia de X e está inscrito a favor da autora pela apresentação nº …/2005-01-21 por “aquisição …por doação de A. F. cc M. C. na com. de adquiridos, ... X, …. CLÁUSULA: Condicionada à sua não transmissão e à construção no mesmo do Salão Paroquial e/ou Residência Paroquial.” (fls. 7 e 7v)
11) Em 28/10/1999, foi lavrado Testamento por A. F., no qual declarou «Que outorgou testamento público em 14.10.1997 no Primeiro Cartório Notarial desta cidade, exarado desde folhas …, que quer válido mas com as seguintes ressalvas:
Um: A instituída usufrutuária sua mulher poderá abater quaisquer árvores das propriedades legadas.
Dois: Da propriedade formada pelo “Campo da … e …”, inscrita na actual matriz sob o artigo …,e concretamente da Bouça da …, a que na anterior matriz correspondia o artigo … lega à Fábrica da Igreja de X uma parcela de terreno com 600 m2, de forma rectangular, na estrema norte da mesma Bouça, a confrontar do poente com a igreja paroquial, do nascente e sul com propriedade donde é desanexada e do norte com caminho de servidão de vizinhos vários, legado este que faz para a construção de um salão paroquial, do nascente e sul com a propriedade donde é desanexada e do norte com caminho de servidão de vizinhos vários, legado este que faz para a construção de um salão paroquial e desde que a edificação do mesmo seja feita no prazo de três anos após o seu falecimento.
Que em tudo o mais mantém o testamento em causa. (…)» (fls. 68 a 69v)
12) Por requerimento apresentado por A. F. na Repartição de Finanças de … em 30.09.2003, foi solicitado que “…vem requerer a V Exa., se digne mandar inscrever na matriz predial o prédio a seguir identificado, por se verificar a sua omissão: Campo de ..., de cultura e ramada, com a área de 1020 m2, sito no Lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., a confrontar do norte com caminho vicinal, do sul e nascente com M. C. e do poente com Igreja …O prédio veio à posse do requerente por lhe ter sido doado por seus pais por volta do ano de 1960 não chegando todavia a ser titulada a doação. Na extinta matriz o prédio estava inscrito sob o artigo ….” (fls. 78)
13) No dia 30/09/2004, foi outorgada escritura pública de “Justificação e Doação” na qual intervieram A. F. e mulher M. C., na qualidade de primeiros outorgantes, J. G., D. S., J. L., na qualidade de segundos outorgantes e o Padre A. C., em representação e com Presidente da Fábrica da Igreja Paroquial de X, foi declarado que:
«Declarou o primeiro outorgante:
Que é dono e legítimo possuidor, com exclusão de outrem, do prédio rústico, composto de terreno de cultura arvense de regadio, sito no Lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., com a área de 1020 m2, a confrontar a norte com caminho vicinal, sul e nascente com M. C. e poente Igreja, não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz sob o nome do justificante sob o artigo ... …
Tal imóvel veio à sua posse por lhe ter sido doado verbalmente por seu pai, já falecido, M. L., viúvo de M. A., residentes que foram ambos no Lugar de ..., … doação essa que teve lugar em 1971, em dia e mês que não pode precisar;
Não obstante não ter título formal de aquisição do referido prédio, foi ele que sempre o possuiu desde aquela data até hoje, logo há mais de 20 e mesmo 30 anos, em nome próprio, gozou todas as utilidades por ele proporcionada, pagou os respectivos impostos, fez obras de conservação, plantou-o e colheu os frutos, com o animo de quem exerce direito próprio, sendo reconhecido como seu dono por toda a ene, fazendo-o de boa fé, por ignorar lesar direito alheio, pacificamente, porque sem violência, continua e publicamente, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém;
Tais factos integram a figura jurídica da usucapião, que invoca, como causa e aquisição do referido prédio, por não poder comprovar a sua aquisição pelos meios extrajudiciais normais.
Disseram os segundos outorgantes que, por serem inteiramente verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.
(…)
Disse mais o primeiro outorgante:
Que doa o imóvel, à Fábrica da Igreja Paroquial de X, representada pelo terceiro outorgante, com a condição de que a donatária não o alienar, seja onerosamente, seja gratuitamente; e ainda com a condição de o imóvel ser destinado a nele ser edificado, obtidas as necessárias licenças, o Salão Paroquial e ou a Residência do respectivo Pároco.
Atribui à doação o valor de €500,00.
Pelo terceiro outorgante foi dito que aceita para a Fábrica da Igreja Paroquial de X, sua representada, a presente doação, nos temos exarados.
Declarou a primeira:
Que confirma as declarações prestados por seu marido, nomeadamente, quanto à natureza do prédio doado, de bem próprio dele; e que dá autorização a seu marido para a doação por ele acabada de efectuar.
(…)» (fls. 8 a 10v)
14) O prédio rústico situado na Travessa da …, destinado a cultura arvense de regadio, com a área de 1.020m2, que confronta de norte, sul e poente com herdeiros de A. F. e de nascente com Travessa da …, está inscrito na matriz predial rústica de … sob o art. ... (proveniente do art. ...º) da União de Freguesias de X, ... a favor da autora Fábrica da Igreja Paroquial de X. (fls. 6v)
15) O prédio rústico situado em ..., que confronta norte com caminho vicinal, de sul e nascente com M. C. e de poente com Igreja, estava inscrito na matriz predial rústica de … sob o art. ...º da União de Freguesias de X, ... a favor da autora Fábrica da Igreja Paroquial de X. (fls. 45v)
16) O prédio doado por A. F. pela escritura de justificação e doação referida em 13 é o que está representado a fls. 32 dos autos com tracejado.
17) Do prédio identificado em 1 a 5, em data não concretamente apurada, pelos antecessores de A. F. foi doada uma parcela junto à Estrada Municipal, onde depois foi construída a actual Igreja de X.
18) Após a construção da Igreja, o terreno da Igreja foi delimitado com um muro de pedra, do restante prédio rústico, tendo o prédio referido em 1 a 5 ficado com a configuração constante de fls. 40 dos autos com tracejado.
19) Os réus são filhos de uma sobrinha e A. F. e mulher, M. C..
20) Os réus, sem autorização e consentimento da autora, ocuparam o prédio identificado em 10 e 13 nomeadamente efectuando e cultivando uma plantação de ervas aromáticas, agindo como se fossem titulares de algum direito sobre o prédio.
21) A vontade dos tios dos réus era que o prédio fosse utilizado em beneficio da Paróquia da freguesia de X, apenas e só para fazer a construção do Salão Paroquial e/ou casa Residência do respectivo Pároco.
22) A autora, pelo menos em final de Março de 2018, através do Dr. A. N., interpelou os réus, por carta, no sentido de restituir o prédio.
23) Após a instauração da acção e citação dos réus, estes comunicaram à autora terem limpo as ervas aromáticas do prédio e consideraram o mesmo entregue à autora.
24) Os réus foram citados em 01/08/2018.
25) A ocupação referida em 20 ocorreu, pelo menos, até 01/08/2018, sendo que em tal data, os réus entregaram à autora o prédio doado livre de bens e plantações.
26) A. F. disse aos seus próximos, familiares e amigos, que não queria morrer sem ver a obra do salão executada.
27) Desde tempos imemoriais e até 31/07/2018, o terreno rústico de A. F. de 25.000 m2, melhor identificado em 1 a 5, em tempos rodeado a ramada, foi sempre agricultado por ele e depois da sua morte pelos aqui réus, como um todo único, a milho e erva e depois com ervas aromáticas, desde a casa de habitação até às paredes exteriores do adro da igreja e ao caminho vicinal, sito a norte/nascente do prédio.
28) A parcela doada por A. F. à autora pela escritura referida em 13 e melhor identificada em 10, pelo menos desde 1970 e até 31/07/2018, sempre foi cultivada, quer pelo doador, quer pelos réus, com milho e erva e, mais recentemente, com uma plantação de ervas aromáticas, juntamente com o restante terreno, como um todo único, sem quaisquer limites ou barreiras físicas, desde as casas de habitação, até às paredes exteriores do adro da igreja e ao caminho vicinal.
29) Isso deveu-se ao facto de o tio-avô dos réus, A. F., dizer sempre que enquanto não se iniciassem as obras de construção do Salão Paroquial e/ou Residência do Pároco, o prédio doado deveria continuar a ser cultivado para não ficar a monte.
30) Ainda não há projecto da obra aprovado na Câmara Municipal.
31) O réu M. O., em data não concretamente apurada do ano de 2015, no âmbito da revisão do PDM de …, solicitou à Câmara de … que o terreno localizado atrás da igreja de X fosse incluído em zona de construção (espaço urbano) para viabilizar a edificação que a Fábrica da Igreja ali pretende levar a efeito e que se destina a fins sociais.
32) Porém, em 01/09/2015, teve como resposta da edilidade que:
«…Porque o terreno se enquadra em solo rural, abrangido pelas condicionantes RAN e REN, esta situação foi apresentada e discutida quer com a DRAPN quer com a CCDRN, entidades que tutelam a RAN e a REN, respetivamente. Ambas as entidades recusaram proceder á desafetação do terreno das respetivas condicionantes pelo facto da construção pretendida, atendendo ao fim a que se destina, ser viável através das excepções previstas nos respectivos regimes jurídicos. Ou seja, foi preferido pelas entidades que a construção seja viabilizada por este meio e que o terreno permaneça enquadrado em solo rural.
Assim, concluída a elaboração do projecto do edifício pretendido, a fábrica da igreja deverá solicitar a desafectação do terreno da RAN e da REN directamente à DPAPN e à CCDRN, através das excepções previstas no Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de março – alínea l) do artigo 22º (no caso da RAN) e Decreto-Lei n.º 239/2012, de 2 de novembro alínea g) do n.º 1 do anexo II a que se refere o artigo 20.º (para o caso da REN). Refira-se que no caso da REN o uso e acção pretendida estão apenas sujeitos a comunicação prévia.» (fls. 47)
33) Pelo menos, no início de 2017, os réus ponderaram fazer a entrega, mas exigiam:
a. que antes da entrega o terreno fosse medido e delimitado por 2 topógrafos, nomeados por cada uma das partes;
b. que fosse reposta nas Finanças a alteração abusiva de confrontações que a A. lá fez no artº ... pelo requerimento que deu origem ao despacho “2013 e 002171264”; e
c. que se fixasse um prazo máximo para a autora proceder à execução da obra, que fora condição resolutiva da doação modal e sempre fora a verdadeira vontade do doador.
34) A autora rejeitou as exigências dos réus.
35) Os réus nomearam um topógrafo que mediu e delimitou a parcela doada de 1.020 m2, fazendo o levantamento topográfico que consta do documento de fls. 32 dos autos, em conformidade com a localização, área e confrontações referidas na escritura referida em 13.
36) Os representantes da autora, entre o dia 12/11/2019 e 10/12/2019, entraram no prédio identificado em 10 e 16, e procederam à sua limpeza e vedação.
*
Não se provou:

a) A autora, por si, antepossuidores e anteproprietários, há mais de 10, 20, 30 e mais anos, que zela pela conservação, arrenda e recebe as respectivas rendas, paga as contribuições devidas, cultiva e colhe os frutos do prédio identificado em 10 e 16.
b) O que acontece e aconteceu sempre à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, agindo como única dona, na convicção de não lesar direitos alheios.
c) O referido em 12 foi feito por A. F., com o assentimento da autora.
d) Para além da carta referida em 22, a autora por diversas vezes, interpelou os réus no sentido de lhe restituírem o prédio, retirando do mesmo todas as plantações realizadas.
e) Não obstante o teor da escritura de doação referida em 13, A. F., sempre disse que a autora tinha o prazo máximo para a fazer até 3 anos depois da morte essa a sua vontade real.
f) O referido em e) apenas por lapso foi omitido na escritura referida em 13.
g) A. F. impôs à autora o prazo limite para a construção da obra de até 3 anos após a sua morte.
h) A. F. confidenciava aos seus familiares e amigos próximos a vontade manifestada no testamento referido em 11, chegando isso ao conhecimento da autora.
i) A autora começou logo a pressionar A. F. para fazer antes uma doação da parcela de terreno.
j) Os réus deram conhecimento à autora do teor da carta remetida pela Câmara Municipal ... em 01/09/2015, através de carta registada com aviso de recepção de 23/09/2015, mas aquela situação de impossibilidade construtiva do salão/residência paroquial ainda hoje se mantém.
k) Entretanto começou a constar na freguesia (“vox populi”) que a autora pretende instalar na parcela de terreno um parque de estacionamento de automóveis.
*
A) Reapreciação da matéria de facto

Os apelantes insurgem-se contra o facto provado nº 10 defendendo, por um lado, que não devia constar da parte final do mesmo a menção referente à inscrição do prédio a favor da autora por consubstanciar um facto essencial não alegado e, por outro, que não devia do mesmo constar as confrontações do prédio por as mesmas não se mostrarem provadas.
A apelada pronunciou-se dizendo que tal facto deve manter-se como está.
Decidindo.
Não obstante os apelantes não terem autonomizado e qualificado esta questão como erro na apreciação na matéria de facto entendemos que é esta a correcta abordagem.
No caso em apreço mostram-se cumpridos os ónus previstos no art. 640º do C.P.C. uma vez que é assinalado o ponto da matéria de facto que consideram incorrectamente julgado, a decisão que deve ser proferida e o concreto meio probatório em que se baseiam compaginando-o com o ónus de alegação, bem como o seu valor probatório.

Vejamos.
O Tribunal da 1ª Instância, ao proferir sentença, deve, em sede de fundamentação “(…) declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” (art. 607º nº 4 do C.P.C.) (sublinhado nosso). E “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (art. 607º nº 5 do C.P.C.).
Este preceito deve ser conjugado com o disposto no art. 5º do C.P.C. que tem como epígrafe “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”.
Nos termos deste preceito o tribunal está sujeito às alegações das partes no que concerne à matéria de facto devendo considerar os factos articulados pelas partes que sejam essenciais, i.e., factos que constituam a causa de pedir no caso do autor e em que baseiam as excepções no caso do réu (nº 1). Mas esta vinculação não é absoluta podendo ainda o juiz considerar os factos instrumentais que resultem da discussão da causa (nº 2 a)), os factos complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e que resultem da instrução da causa, desde que sobre eles as mesmas tenham tido a possibilidade de se pronunciar (b)) e ainda os factos notórios e aqueles que o tribunal tem conhecimento por virtude das suas funções (c)).
A sentença não tem que incluir como provados e não provados todos os factos alegados pelas partes nos respectivos articulados, mas apenas os factos essenciais e os factos complementares ou concretizadores, i.e., aqueles que participam de uma causa de pedir ou de uma excepção complexa e por isso são indispensáveis à procedência da acção ou da excepção. Já os factos instrumentais, que se definem por contraposição aos factos essenciais e complementares, como sendo aqueles que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos, não têm que ser alegados pelas partes, podem ser livremente discutidos e apreciados na audiência final, não devem ser objecto de um juízo probatório específico e não carecem de ser dados como provados ou não provados na sentença.

No caso em apreço encontramo-nos perante uma acção de reivindicação, a qual tem uma causa de pedir complexa constituída pelo facto jurídico de que deriva o direito de propriedade nos termos do art. 581º nº 4 do C.P.C. e pela violação desse direito pelo reivindicado que detém a posse ou a mera detenção.

Da análise da petição inicial verificamos que a autora alegou uma forma de aquisição derivada – a escritura de justificação e doação de 30/09/2004 (vide art. 2º da p.i.) e uma forma de aquisição originária - a usucapião (vide art. 3º a 10º da p.i.). Mas, tendo em atenção que a prova desta última forma de aquisição é difícil, recorreu igualmente às presunções legais de propriedade, a presunção prevista no art. 7º do C.R.Predial (de que o direito existe na esfera do titular inscrito) e a prevista no art. 1268º nº 1 do C.C. (presunção da titularidade do direito por parte do possuidor). Em relação à segunda foram de aquisição a autora fez uma alegação expressa no art. 12º daquele articulado. Já quanto à primeira é feita uma alegação indirecta na medida em que no art. 1º da p.i. refere que “é dona e proprietária” e remete para o doc. nº 2 (cópia não certificada da descrição e inscrição predial referente ao imóvel em questão, onde consta a inscrição do mesmo a favor da autora pela Ap. 09/2005-01-21). Ora, as “declarações processuais” devem ser interpretadas do mesmo modo que as declarações negociais e o art. 238º nº 1 do C.C. exige que haja “um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso” sendo isto que se verifica no caso em análise.
Os apelantes suscitam ainda a questão de tal documento não ser uma certidão pelo que não podia tal facto ter sido dado como provado. Ora, antes de mais, encontramo-nos perante uma questão de direito probatório material que devia ser apreciada noutra sede, contudo, desde já se adianta que se trata de questão nunca suscitada e apreciada pelo tribunal recorrido, logo questão nova que extravasa o âmbito da presente apelação. Ainda que assim não fosse, sempre se diria que o disposto no art. 110º nº 1 do Código de Registro Predial, que preceitua que o registo se prova por meio de certidões, deve ser compaginado com o regime do direito probatório material previsto no Código Civil pelo que nos termos do art. 368º do C.C., tal reprodução faz prova plena do facto que representa dado que os réus não impugnaram a sua exactidão (aliás, no art. 4º da contestação reconhecem expressamente que o prédio em causa está averbado a favor da autora).
No que diz respeito à menção das confrontações no mesmo facto provado importa referir que a mesma é de manter uma vez que do mesmo resulta claramente que as confrontações referidas são as que constam na descrição no registo predial e, de modo algum, as reais, que podem não ser coincidentes. Este facto com esta redacção não invalida que a presunção registral não abranja os factores descritivos do prédio, como as áreas, confrontações e limites conforme jurisprudência pacífica.
Pelo exposto, é de manter o facto provado nº 10.
*
B) Subsunção jurídica

Vejamos agora as várias questões suscitadas pelos apelantes que, segundo eles, conduzem à revogação da decisão recorrida.
1.
Começam por defender que o prédio objecto de justificação notarial não existia autónoma e separadamente na data desta escritura, nem até à data da propositura da acção, concluindo pela nulidade da escritura de justificação e doação, bem como pela impossibilidade da sua transferência nos termos do art. 280º do C.C..
Ora, contrariamente ao defendido pelos apelantes, da matéria de facto dada como provada resulta que, em 30/09/2004, data da escritura de justificação e doação, o prédio objecto desta existia.
O Código Civil não fornece um conceito de prédio pelo que o mesmo terá que ser obtido pelo elemento comum às noções dadas no art. 204º nº 2 do C.C. - que dispõe: “Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe serviam de logradouro.”. E esse elemento comum é: “uma parte delimitada do solo”.
A distinção de prédio rústico e de prédio urbano é feita casuisticamente, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica.
O conceito civil de prédio rústico acima referido não corresponde à noção de prédio na linguagem comum que tem uma conotação rural.
Também não corresponde ao conceito tributário de prédio rústico, no qual assentam as matrizes prediais. Estas são “registos de que constam, designadamente a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários (…)” conforme dispõe o art. 12º nº 1 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), aprovado pelo Dec.-Lei nº 287/03 de 12/11, diploma que procedeu à reforma da tributação do património, alterando vários códigos e aprovando igualmente o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT). Da leitura do art. 3º do CIMI e art. 1º nº 2 do CIMT verificamos a referida não coincidência de conceitos sendo o conceito tributário bem mais vasto.
E também não corresponde ao conceito de prédio rústico resultante do Código de Registo Predial, aprovado pelo Dec.-Lei nº 224/84 de 06/07. Nos termos do art. 79º nº 1 deste diploma a descrição predial tem por finalidade a identificação física, económica e fiscal dos prédios e nos termos do art. 91º a inscrição a definição da situação jurídica dessas descrições. Com efeito, o registo tem por função essencial dar publicidade aos direitos reais inerentes às coisas imóveis pretendendo-se com o mesmo patentear a história da situação jurídica destas desde o momento em que foram descritas até ao presente (1º) e não garantir tais elementos de identificação sendo jurisprudência pacifica, como já referido, que a presunção a que alude o art. 7º do C.R. Predial não abrange os factores descritivos como as confrontações, limites ou áreas dos prédios.
Contudo, “quer da descrição predial, quer da inscrição matricial, podem resultar elementos de facto úteis, para o julgador, no que toca ao conhecimento das realidades prediais que lhe cumpre qualificar” – Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Tomo II, 2ª ed, p. 123.
In casu verificamos que o prédio objecto de justificação e doação – “terreno de cultura arvense de regadio, sito no Lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., com a área de 1020 m2, a confrontar a norte com caminho vicinal, sul e nascente com M. C. e poente Igreja, não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz em nome do justificante sob o artigo ...” – corresponde a um prédio rústico nos termos do art. 204º nº 2 do C.C. uma vez que é uma parte fisicamente delimitada do solo susceptível de destinação ou afectação económica. Defender que não existe um prédio rústico quando uma determinada parcela de terreno não seja ainda autónoma da parcela maior no qual se integra equivale a defender a impossibilidade dessa autonomização, o que não tem qualquer base legal. Igualmente a lei não veda a doação de parcela de terreno a autonomizar de outra sendo aquela um objecto física e legalmente possível nos termos do art. 280º do C.C..
Acresce que a doutrina e jurisprudência admitem a invocação da usucapião em relação a uma parcela de um prédio.
2.
Não assiste razão aos apelantes na parte em que referem que impugnaram a escritura de justificação e doação de 30/09/2004.

Vejamos.

Dispõe o art. 116º do C. R. Predial, sob a epígrafe “Justificação relativa ao trato sucessivo”:

1 -O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. (…).

E dispõe o art. 89º do Código do Notariado, aprovado pelo Dec.-Lei nº 207/95 de 14/08, sob a epígrafe “Justificação para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial”:
1 – A justificação para os efeitos do nº 1 do artigo 116º do Código de Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.
2 – Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.

A justificação notarial é, assim, um expediente técnico simplificado, um processo anormal de titulação (como se refere no preâmbulo do Dec.-Lei nº 40.603 de 18/05/56), um meio de se obter a primeira inscrição registral de um prédio que alguém afirma ser seu. Este novo título vai buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser.
Como se lê no Ac. da R.C. de 17/03/1998, in C.J., Ano XXIII – 1998, tomo II, pág. 25: “Este meio legal de justificação notarial não tem as necessárias garantias de efectiva correspondência com a realidade, sendo suficiente a declaração do interessado, confirmada por três declarantes que, aliás, não são perguntados pelo notário quanto à sua razão de ciência, nem são confrontados com outra razão diferente, embora os outorgantes sejam advertidos de poderem incorrer nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações, se, dolosamente e em prejuízo de outrem, as tiverem prestado ou confirmado”.

No caso em apreço, verificamos que, em 30/09/2004, A. F. e mulher, M. C., outorgaram uma escritura pública de justificação notarial que teve por objecto o acima referido prédio rústico que se mostrava inscrito na matriz predial da freguesia de X, concelho de …, sob o art. ...º.
Nela declarou o primeiro ser dono e possuidor do referido prédio que veio à sua posse por doação verbal de seu pai, M. L., em 1971, que desde esta data até hoje sempre o possuiu em nome próprio, aproveitando as suas utilidades, à vista de toda a gente, sem oposição, na convicção de que é proprietário do mesmo. Isto foi confirmado por três testemunhas.
No mesmo acto declarou doar o prédio com a condição aí referida a favor da aqui autora tendo esta aceite a doação.
Com este título foi possível proceder ao registo do mencionado prédio no Registo Predial ..., da Freguesia de X, com nº .../20050121 e, após, inscrever a aquisição por doação a favor da autora pela Ap. 9 de 2005-01-21.

Uma vez que a escritura de justificação notarial não tem, como se referiu supra, as necessárias garantias de correspondência com a realidade e pode ser usada de modo fraudulento previu a lei a possibilidade de impugnação do facto justificado mediante procedimento judicial a que alude o art. 101º nº 1 do Código do Notariado.
A acção de impugnação de justificação notarial é uma acção declarativa de simples apreciação negativa – art. 10º nº 1, 2, 3 a) do C.P.C. – uma vez que, com ela, se pretende obter a declaração de inexistência do direito de propriedade arrogado na escritura. Assim, nos termos do art. 343º nº 1 do C.C., compete ao réu o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
Segundo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2008, publicado no D.R. 63 Série I de 31/03/2008, “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts. 116º, nº 1, do Código de Registo Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial”. Compreende-se que assim seja, pois, com a impugnação, o direito de propriedade afirmado na escritura de justificação notarial, e com base na qual foi levado ao registo, passou a ser incerto pelo que não podem os réus beneficiar da presunção do registo.
Esta impugnação apenas por via de acção pode ser efectuada e não por via de excepção como defendem os apelantes. Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 11/07/2006 (Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt (endereço a pertencerão os acórdãos a citar sem menção de origem), onde se lê: “A impugnação deve ser feita por via de acção autónoma ou cruzada (reconvenção) que não por via de excepção.” Com efeito, uma vez que a justificação notarial permite obter a primeira inscrição registral de um prédio, a impugnação do direito de propriedade justificado e objecto de registo apenas se mostra possível através de acção judicial na qual se peça a declaração de inexistência desse direito, de invalidade da escritura, a nulidade do registo e o cancelamento do mesmo. Assim, a mera “impugnação” da escritura de justificação em sede de contestação, alegando designadamente a falsidade das suas declarações, não tem a virtualidade de “destruir” a escritura e o subsequente registo.
No caso sub judice os apelantes, não obstante haverem sido convidados a tal, não deduziram reconvenção pelo que não se pode afirmar que tenham impugnado validamente a justificação notarial.
E, enquanto esta escritura não for judicialmente impugnada mediante acção, e nesta tenha sido declarada nula, o registo declarado nulo e cancelado, este registo mantém-se válido e eficaz.
3.
A escritura de -/09/2004 desdobra-se em duas:
Por um lado, A. F., declarou que adquiriu por usucapião o prédio rústico com uma área de 1.020 m2, inscrito na matriz sob o art. ...º e omisso no registo, por doação verbal em 1971, uma vez que exerceu sobre o mesmo actos possessórios na convicção de ser seu proprietário.
E por outro declarou doar tal prédio à autora com a condição desta não o alienar e ainda do mesmo se destinar à edificação, obtidas as necessárias licenças, do salão paroquial e/ou residência do pároco.
Uma vez que, da matéria de facto provada resulta que o prédio rústico em causa (com uma área de 1.020 m2) é uma parcela do prédio misto descrito com o nº .../20100730 (cuja parte rústica tem uma área de 25.000 m2) e inscrito em nome de A. F., importa analisar a escritura à luz da legislação vigente.
3.1.
A primeira questão que se coloca é saber se ocorreu fraccionamento desta propriedade e em que momento.
Referem Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado – Coord. de Ana Prata, Vol. II, Almedina, 2017, p. 192: “O fracionamento é uma operação de estrutura fundiária que consiste na divisão da área de um prédio (…) em unidades prediais que passem a ser objecto de direito de propriedade autónomo (…). Não há, pois, fracionamento se o que se dividir for a titularidade mas não a área (…) ou se for dividido o prédio, mas as parcelas continuarem na esfera jurídica de um único proprietário.”.
No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência.

No Ac. da R.E. de 01/02/2007 (Bernardo Domingos) lê-se:

“I –A proibição de fraccionamento imposta pelo artº 1376º do C.Civil, tem um carácter, manifestamente, físico ou material e não tanto jurídico…e dirige-se, primordialmente, ao fraccionamento de terrenos, entendendo estes numa dimensão física ou material e de propriedade, razão pela qual na sua aplicação se atende às áreas dos terrenos, à sua localização contígua ou não, à sua situação no País e ainda ao seu proprietário.
II - Ora essa separação não ocorre quando se opera uma divisão da propriedade para efeitos matriciais ou registrais, ficando o domínio na mesma pessoa, mas sim quando esse domínio é transferido para outrem, designadamente por venda, troca ou outro negócio jurídico. É nesse momento que se opera o fraccionamento e não quando se procede à simples divisão formal. (…)
IV - Logo que ocorra um acto translativo opera-se o fraccionamento da propriedade e então impõe-se averiguar se nesse momento foram respeitados todos os limites impostos designadamente os respeitantes à unidade de cultura e à proibição de encravamento de prédios.
V- É a partir desse momento que se inicia o prazo de caducidade para a propositura da acção de anulação prevista no art.º 1379º n.º 1 do CC.”
No mesmo sentido, entre outros, Ac. do S. T.J. de 07/06/2011 (Nuno Cameira).
Assim sendo, e revertendo ao caso em apreço, concluímos que o fraccionamento ocorreu com a doação do prédio rústico à autora em 30/09/2004 (e não com a justificação notarial que é um mero acto declarativo de aquisição de um direito por via da usucapião e não um acto constitutivo, nem translativo de direitos).
3.2.
Dispõe o artigo 1376º do C.C., sob a epígrafe “Fraccionamento”:
1. Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; (…)
2. Também não é admitido o fraccionamento, quando dele possa resultar o encrave de qualquer das parcelas, ainda que seja respeitada a área fixada para a unidade de cultura.
(…)
Esta regra geral de proibição de fraccionamento de prédios rústicos admite excepções que se encontram previstas no artigo 1377º, designadamente “Se o fraccionamento tiver por fim a desintegração de terrenos para construção ou rectificação de estremas.” (c)).
E dispõe o art. 1379º do C.C., na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27/08, vigente na data do fraccionamento atento o disposto no art. 12º nº 2 primeira parte do C.C.:
1. São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.
(…)
3. A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto ou do termo do prazo referido no n.º 1.
Assim, enquadrando o caso em apreciação no citado art. 1377º c), verificamos que o fraccionamento em causa era anulável por a construção a que se destinava não ter sido iniciada dentro do prazo de três anos a contar da doação, contudo, tendo decorrido desta última data três anos, caducou a acção de anulação. A este propósito referem Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol III, 2.ª edição, p. 269: "embora as regras sobre fraccionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião)".
Este art. 1379º foi entretanto revogado pela Lei nº 111/2015 de 27 de Agosto, que passou a cominar com nulidade a violação do art. 1376º nº 1, mas mantém a anulabilidade para a violação do art. 1377º c)).
3.3.
Defendem os apelantes que a escritura de justificação e doação é nula por violação de normas e autorizações administrativas de conhecimento oficioso.
3.3.1.
Como já referimos supra, não sendo a justificação notarial um acto constitutivo de direitos, nem um acto translativo de direitos, mas um mero acto declarativo de aquisição de um direito por usucapião, a mesma não é susceptível de violar a legislação referente ao fraccionamento de prédios.
Acresce que esta escritura não é nula nos termos do art. 70º e 71º do Código do Notariado (C.N.), aprovado pelo Dec.-Lei nº 207/95 de 14 de Agosto, na redacção vigente na data da sua outorga. Também não o é atento o disposto nos art. 89º a 101º, que regulam a justificação notarial para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial.
O art. 173º nº 1 deste diploma preceitua que “O notário deve recusar a prática do acto que lhe seja requisitado (…) a) Se o acto for nulo (…)”. E nos termos do art. 174º “A intervenção do notário não pode ser recusada com fundamento de o acto ser anulável ou ineficaz” (nº1) e “Nos casos previstos no número anterior, o notário deve advertir as partes da existência do vício e consignar no instrumento a advertência que tenha feito”.
O art. 11º nº 1 do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Dec-lei 26/2004 de 4 de Fevereiro, resulta que “O notário deve apreciar a viabilidade de todos os actos cuja prática lhe é requerida, em face das disposições legais aplicáveis e dos documentos apresentados ou exibidos, verificando especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal e substancial dos referidos documentos e a legalidade substancial do acto solicitado”, contudo o nº 2 a) e nº 3 reiteram o referido no referido art. 173º do C.N..
Assim sendo, também a justificação notarial não é nula com este fundamento.
A incorrecção das declarações prestadas apenas podia ser atacada através de impugnação judicial nos termos do art. 101º nº 1 deste diploma, o que não foi feito.
3.3.2.
Importa agora analisar se a doação é nula com o fundamento invocado.
A lei não fornece um critério de conciliação entre o instituto da usucapião, de natureza privatística, e as disposições de natureza jurídica-administrativa que disciplinam o ordenamento do território (com consagração nos art. 9º e), 65º e 66º da C.R.P.) e que condicionam a utilização dos solos, as quais integram o direito do urbanismo, ramo este que, a nosso ver, tem como principal destinatário a Administração a quem incumbe a gestão territorial.
Com efeito, o art. 4º nº 2 da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo actualmente em vigor e aprovada pela Lei nº 31/2014 de 30 de Maio (que revogou a Lei nº 48/98 de 11 de Agosto) refere apenas: “O direito de propriedade privada e os demais direitos relativos ao solo são ponderados e conformados no quadro das relações jurídicas de ordenamento do território e de urbanismo, com princípios e valores constitucionais protegidos, nomeadamente nos domínios (…) do ambiente, (…) da paisagem, (…), da habitação, da qualidade de vida e do desenvolvimento económico e social.”.
E na doutrina e jurisprudência discute-se se a aquisição do direito de propriedade por usucapião prevalece sobre as normas referentes ao fraccionamento dos prédios rústicos e ao ordenamento do território e urbanismo.
Uns defendem que é inadmissível a invocação do direito de propriedade por usucapião quando ocorra um fraccionamento ilegal, como seja um fraccionamento sem respeitar a unidade de cultura fixada por Portaria.
Os defensores desta tese apresentam os seguintes argumentos: o ordenamento jurídico é composto por normas e princípios de vários ramos do direito que devem ser interpretados conjugadamente; as normas que regem o ordenamento do território proíbem os loteamentos ou destaques ilegais, enquanto resultado, também proíbem os meios indirectos de lá chegar; como essas normas são imperativas a invocação da usucapião está ferida de nulidade e não poderá ter por efeito a aquisição da propriedade nos termos do art. 294º e 295º do C.C.; e o interesse no correcto ordenamento do território e legalidade urbanística prevalece sobre o interesse na estabilidade e certeza nas relações jurídicas nos termos do art. 335º do C.C..
Neste sentido, na doutrina, vide Fernando Pereira Rodrigues, in Usucapião, Constituição Originárias de Direitos através da Posse, Almedina, p. 33; Mónica Jardim e Dulce Lopes, “Acessão Industrial Imobiliária e Usucapião Parciais versus Destaque”, in O Urbanismo, o Ordenamento do Território e os Tribunais, Coord. da Prof. Fernanda Paula Oliveira, Dezembro 2010, Almedina, p. 806-808; na jurisprudência, vide, entre outros, Ac. do S.T.J. de 07/06/2011 (Nuno Cameira), de 30/04/2015 (Salazar Casanova), 26/01/2016 (Sebastião Póvoas).
Mónica Jardim e Dulce Lopes, ob. cit., propugnam a necessidade de se indagar pelo respeito ao direito do urbanismo antes de se reconhecer a usucapião sobre uma parcela ainda não autonomizada, sob pena de se consolidar uma situação desconforme com as normas que limitam o fraccionamento de prédios rústicos.
O Conselho Consultivo do Instituto de Registos e Notariado, nos seus pareceres, no que diz respeito à escritura de justificação notarial em que se invoque a usucapião do direito de propriedade sobre um lote de terreno para construção, tem defendido de forma unânime e constante que o Notário não está dispensado de fiscalizar o regime legal dos loteamentos urbanos e na escritura deve mencionar os loteamentos urbanos exigidos pela lei em vigor no momento em que se iniciou a posse e que se verificou a aquisição.
A doutrina e jurisprudência maioritária do S.T.J. parecem defender o oposto, i.e., que a aquisição do direito de propriedade por usucapião prevalece em princípio sobre o fraccionamento ilegal cominado com anulabilidade ou mesmo com nulidade.
Argumentam com a natureza originária da aquisição da propriedade que decorre do instituto da usucapião defendendo que a posse é “agnóstica”, não sendo curial distinguir entre posse justa e injusta e com a ausência de norma excepcional que estabeleça taxativamente que determinada posse não conduz à usucapião. Prevalecendo a usucapião será imputável à Administração o facto de não ter actuado atempada e preventivamente impedindo a consolidação de uma situação prejudicial ao ordenamento do território.
Neste sentido, na doutrina, vide, entre outros, Durval Ferreira, apud Posse e Usucapião – Loteamentos e Destaques Clandestinos, in Scientia Juridica, tomo LII, nº 295, Janeiro/Abril 2003, p. 100 e ss; Abílio Vassalo Abreu, in Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária versus Usucapião, Coimbra Ed., p. 19. Na jurisprudência vide, entre outros, Ac. do S.T.J. de 19/10/2004 (Azevedo Ramos), de 04/02/2014 (Fernandes do Vale).
Contudo, da análise da jurisprudência deste alto Tribunal resulta que, à grande diversidade de situações que surgem nos tribunais relacionadas com a questão da violação das regras de fraccionamento dos prédios agrícolas, têm sido dadas respostas não coincidentes.

O acórdão do S.T.J. de 08.11.18 (Abrantes Geraldes) dá conta desta diversidade de respostas quando refere:

“Relativamente a situações que envolvam a violação de normas imperativas cominadas com a nulidade verifica-se uma tendência jurisprudencial para a inviabilidade de contornar essa proibição através da invocação da usucapião.
Assim se decidiu, por exemplo, no Ac. da Rel. de Lisboa, de 30-4-02, www.dgsi.pt (001397) e Col. Jur. tomo II, p. 126, relatado pelo ora relator (sobre um caso em que estava em causa o regime das AUGI, com o seguinte sumário: “é insuscetível de conduzir à aquisição do respetivo direito de propriedade, por usucapião, a posse de uma parcela de terreno incluída num prédio rústico que foi objeto de operação de loteamento clandestino, integrado em Área Urbana de Génese Ilegal, dado que seriam violadas normas de natureza imperativa e lesados interesses de ordem pública”).
Outras situações têm sido apreciadas pelos tribunais e designadamente por este Supremo Tribunal de Justiça sendo a invocação da usucapião impedida quando está em causa a violação de regras de direito do urbanismo ligadas, por exemplo, ao regime dos loteamentos urbanos (v.g. Acs. do STJ de 26-1-16, 5434/09, de 30-4-15, 10495/08, de 7-6-11, 197/2000, em www.dgsi.pt; contra, com voto de vencido: Ac. do STJ, de 6-4-17, 1578/11).
Já, porém, estando em causa o regime de fracionamento de prédios rústicos sem objetivos urbanísticos, como ocorreu no caso concreto, a solução que vem sendo adotada pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça é de sentido inverso, como o comprovam os recentes acórdãos de 1-3-18, 1011/16, de 3-5-18, 7859/15 e de 12-7-18, 7601/16, em www.dgsi.pt.”.
Acresce que a redacção dada à norma do artigo 1379º, 1 do C.C pela Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto, que passou a cominar com a nulidade os actos de fraccionamento das propriedades rústicas em violação das normas do artigo 1376º do C.C., relançou a supra referida discussão.

Pelo exposto, inclinamo-nos para uma tese intermédia defendida no Ac. do S.T.J. de 12/07/2018 (Fonseca Ramos), nos termos da qual só “casuisticamente e não aprioristicamente, devem os tribunais apreciar a validade dos actos de divisão e fraccionamento da propriedade rústica”.
Esta tese apoiou-se na comunicação sob o tema “Usucapião, acessão industrial e construção clandestina” do Conselheiro Salazar Casanova, inserida na compilação do Centro de Estudos Judiciários, “A INTERAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO COM O DIREITO CIVIL”, pág. 94, Colecção Formação Contínua, Novembro de 2016, na qual, entre o mais, se conclui:
“107. Tudo isto evidencia a complexidade da matéria respeitante às operações urbanísticas na sua conjugação com sólidos institutos de direito civil como é a usucapião.
108. Afigura-se-nos que hoje o interesse público, no tocante ao direito do urbanismo, não parece centrar-se tanto na inviabilização absoluta dos actos de fragmentação da propriedade, mas antes na edificabilidade contra legem.
109. Há, no entanto, uma ideia base que tem atravessado a nossa legislação: impedir que construção clandestina se desenvolva a coberto de operações de divisão de propriedade.
110. Por isso, não se pode aprioristicamente, perante os casos que se deparam nos tribunais, considerar que a usucapião com base numa situação possessória desencadeada sobre parcela de um imóvel que foi dividido deve ser sempre decretada por não serem atendíveis os interesses que são prosseguidos pelo direito urbanístico; tão pouco deve ser sempre negada a usucapião, por se pressupor que a divisão de um imóvel, designadamente quando se geram parcelas com área inferior à unidade de cultura, se traduz sempre numa operação de loteamento.
111. Neste ponto de interacção da usucapião e do direito do urbanismo temos por certo que os tribunais, sensata e paulatinamente, vão continuar a prestar a sua colaboração para o aperfeiçoamento do Direito”.
*
Vejamos o caso em apreço analisando a legislação vigente na data da escritura em análise:

- art. 15º nº 1 da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e do Urbanismo , aprovada pela Lei nº 48/98 de 11 de Agosto (revogada pela Lei nº 31/2014 de 30 de Maio), preceitua que “O regime de uso do solo é definido mediante a classificação e a qualificação do solo.” E atento o nº 2 é possível qualificar a parcela em causa como “solo rural”;
- Dec.-Lei nº 384/88 de 2 de Outubro, que estabelece o Novo Regime de Emparcelamento Rural (revogado pela Lei nº 111/2015 de 27 de Agosto), dispõe no art. 19º nº 1 que “Ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º e 1379.º do Código Civil, as disposições da presente lei.”; o art. 20º prevê as situações em que o fraccionamento é possível – e nenhuma se enquadra no caso em apreço -, e o art. 21º refere que será objecto de decreto regulamentar designadamente “Os limites mínimos de superfície dos prédios rústicos, designados por unidades de cultura (…)”;
- Dec.-Lei nº 103/90 de 20 de Março, que desenvolve as Bases Gerais do Regime do Emparcelamento e Fraccionamento dos Prédios Rústico (revogado pela Lei nº 111/2015 de 27 de Agosto), fornece no art. 44º o conceito de exploração agrícola; no art. 45º faz depender o fraccionamento de parecer favorável da Direcção Regional de Agricultura; no art. 47º nº 1 sanciona com a anulabilidade o fraccionamento que viole o disposto no art. 20º do Dec.-Lei nº 384/88 de 2 de Outubro e no nº 3 deste preceito dispõe que o direito de acção de anulação caduca decorridos três anos sobre a celebração do referido acto;
- Portaria nº 202/70 de 21 de Abril (revogada pela Portaria nº 219/2016 de 9 de Agosto, alterada pela Portaria nº 19/2019 de 15 de Janeiro), que aprovou o Regulamento que Fixa a Unidade de Cultura para Portugal Continental, dispõe no art. 1º que a unidade de cultura para o distrito de Braga é de 2 ha para terrenos de regadio arvense, de 0,5 ha para terrenos de regadio hortícolas e de 2 ha para terrenos de sequeiro;
- Dec.-Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro, que aprovou o Regime Jurídico de Urbanização e Edificação (R.J.U.E.), na redacção introduzida pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, vigente na data da escritura, no art. 2º i) dá a noção de operação de loteamento; no art. 4º refere que a realização de operações de loteamento depende de prévia licença ou autorização administrativas nos termos aí referidos e com as isenções previstas no art. 6º; o art. 49º nº 1 refere que “(…) nos instrumentos notariais relativos a actos ou negócios jurídicos de que resulte, directa ou indirectamente, a constituição de lotes nos termos da alínea i) do artigo 2.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 6.º e 7.º, (…) deve constar o número do alvará, a data da sua emissão pela câmara municipal e a certidão do registo predial” (sublinhado e bold nosso); e o art. 50º nº 1 preceitua que “Ao fraccionamento de prédios rústicos aplica-se o disposto nos Decretos-Leis nº 384/88, de 25 de Outubro, e 103/90, de 22 de Março.”.
Pelo exposto, nestes diplomas inexistem normas imperativas de conhecimento oficioso cuja violação tivesse a virtualidade de conduzir à nulidade da doação.
A regra geral referente à exigência de licença ou autorização administrativa coloca-se numa fase subsequente à aquisição da propriedade e é da responsabilidade das entidades administrativas que podem recusar a pretendida edificação.
O S.T.J. proferiu Assento em 19/11/1987, in www.dgsi.pt, nos termos do qual decidiu que “Na vigência do Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, é válido o contrato-promessa de compra e venda de terreno compreendido em loteamento sem alvará, a menos que no momento da celebração desse contrato haja impossibilidade de obtenção do alvará, por haver lei, regulamento ou acto administrativo impeditivo da sua emissão.”, sendo que este entendimento se mantém em vigor face à legislação ora vigente.
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3.3.3.
O Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional (RAN) vigente na data da referida escritura foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 196/89, de 14 de Junho.
O art. 3º definia a RAN como “o conjunto das áreas que, em virtude das suas características morfológicas, climatéricas e sociais, maiores potencialidades apresentam para a produção de bens agrícolas” (nº 1), refere que “Para efeitos da sua gestão ordenada, a RAN divide-se em regiões que coincidem com o território de cada direcção regional de agricultura” (nº 2) e que “Cada região da RAN tem como órgão próprio uma comissão regional da reserva agrícola, existindo, a nível nacional, o Conselho Nacional da Reserva Agrícola” (nº 3). Este diploma no art. 13º dispõe que “Nas áreas da RAN, a unidade de cultura corresponde ao dobro da área fixada pela lei geral para os respectivos terrenos e região”. O art. 9º nº 1 preceitua que “Carecem de prévio parecer favorável das comissões regionais da reserva agrícola todas as licenças, concessões, aprovações e autorizações administrativas relativas a utilizações não agrícolas de solos integrados na RAN” e o art. 34º dispõe que são nulos os os actos administrativos praticados em violação desse preceito.
Este diploma foi revogado pelo Dec.-Lei nº 73/2009 de 31 de Março, que foi alterado pelo Dec.-Lei n 199/2015 de 16/09, que prevê naquilo que aqui importa, o seguinte: define as áreas integradas na RAN (art. 8º); as operações de loteamento são interditas (art. 21º a)); existem excepções a esta interdição como, por exemplo, a construção de empreendimentos públicos ou de serviço público (art. 22º l); as utilizações não agrícolas para as quais seja necessária concessão, aprovação, licença, autorização administrativa ou comunicação prévia estão sujeitas a parecer prévio vinculativo das respectivas entidades regionais da RAN (23º nº 1); são nulos todos os actos administrativos praticados em violação do disposto no art. 22º a 24º (art. 38).
3.3.4.
O Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional vigente à data da escritura foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 93/90, de 19 de Março, que sofreu alterações introduzidas pelos Dec.-Lei nº 316/90, de 13 de Outubro, nº 213/92, de 12 de Outubro, nº 79/95, de 20 de Abril, nº 203/2003, de 1 de Outubro.
Nos termos do art. 1º deste diploma “A Reserva Ecológica Nacional, adiante designada por REN, constitui uma estrutura biofísica básica e diversificada que, através do condicionamento à utilização de áreas com características ecológicas específicas, garante a protecção de ecossistemas e a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao enquadramento equilibrado das actividades humanas”. Segundo o art. 3º n 1 “ Compete ao Governo, por resolução do Conselho de Ministros, ouvida a Comissão referida no artigo 8.º, aprovar a integração e a exclusão de áreas da REN”. Dispõe o art. 4º que “Nas áreas incluídas na REN são proibidas as acções de iniciativa pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios (…)” (nº 1), mas exceptuam-se “A realização de acções de interesse público como tal reconhecido por despacho conjunto do Ministro (…)” (nº 2 c)), a confirmar por parecer favorável das delegações regionais do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais (nº 4). “Dos pareceres desfavoráveis emitidos ao abrigo do artigo 4º do presente diploma cabe recurso, no prazo de 30 dias a contar da sua notificação, para o Ministro do Ambiente e Recursos Naturais” (art. 7º). E “Constitui contra-ordenação, (…) a realização, em solos da REN, de operações de loteamento, obras de urbanização, construção de edifícios (…)”. Mais preceitua que “São nulos e de nenhum efeito os actos administrativos que violem os artigos 4º e 17º” (art. 15º).
Este diploma foi revogado pelo Dec.-Lei nº 166/2008 de 22 de Agosto, alterado pelo Dec.-Leis nº 166/2008, de 22/08, Rect. n.º 63-B/2008, de 21/10, Dec.-Lei nº 239/2012, de 02/11, Dec-Lei nº 96/2013, de 19/07, Dec.-Lei nº 80/2015, de 14/05 e Dec.-Lei nº 124/2019, de 28/08, que prevê naquilo que aqui importa, o seguinte: o conceito de REN (art. 2º); prevê as áreas integradas na REN (art. 4º); as operações de loteamento são em regra interditas (art. 20º, nº 1 a)); admite-se em certas condições a realização de acções de relevante interesse público (art. 21º); admite que as áreas integradas na REN possam ser incluídas em operações de loteamento desde que não sejam destinadas a usos ou acções incompatíveis com os objectivos de protecção ecológica e ambiental e de prevenção e redução de riscos naturais (art. 26º); e “São nulos os atos administrativos praticados em violação do disposto no presente capítulo ou que permitam a realização de ações em desconformidade com os fins que determinaram a exclusão de áreas da REN.” (art. 27º).
*
Ora, partindo do princípio que as parcelas em causa integram a RAN e REN - como parece resultar do requerimento do pároco dirigido à comissão regional da reserva ecológica nacional (doc. nº 11 junto com a contestação) e ofício da C.M. de … datado de 01/09/2015 referente a reclamação no âmbito de revisão do PDM - dos regimes jurídicos que as regem resulta claramente que são nulos os actos administrativos que os violem e não os actos notariais.
Acresce que esses diplomas não proíbem toda e qualquer operação de loteamento, contendo excepções ao abrigo das quais é possível edificar como, aliás, foi assinalado na resposta da Câmara Municipal ... ao réu M. O. supra referida.
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A interpretação que se vem fazendo é conforme com o disposto no art. 9º e), 65º nº 4 e 66º nº 2 b) da Constituição da República Portuguesa tanto mais que estas normas não conferem direitos subjectivos aos cidadãos, sendo antes normas programáticas que estabelecem para o Estado latu sensu o dever de assegurar o ordenamento do território.
*
Como bem se decidiu na sentença recorrida não resultou provado que o objecto da cláusula modal ou condição resolutiva da doação seja legalmente impossível.
Assim, e em resumo, a doação não é nula.
4.
Importa agora analisar se a mencionada escritura de justificação e doação é nula com fundamento em fraude à lei.
A fraude à lei encontra-se apenas prevista no art. 21º do C.C. em sede de conflito de leis.
Não obstante o Código Civil não tratar autonomamente esta figura, a doutrina tem reconduzido o seu tratamento a um problema de interpretação do negócio e da lei, não simplesmente literal, mas de acordo com o seu fim e o seu sentido.
Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 6ª reimp., Almedina, Coimbra, 1983, p. 337, refere: “(…) negócios em fraude à lei são aqueles que procuram contornar ou circunvir uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos dos que a lei designadamente previu e proibiu – aqueles que por essa forma pretendem burlar a lei”; “(…) só indirectamente podem considerar-se abrangidos por ela” (proibição legal); “como que ofendem o seu espirito”.
Mais adiante refere: “(…) a fraude à lei mais não será do que uma forma oculta de violação da lei e a respectiva teoria nada mais fará do que propor-nos uma directriz interpretativa quanto às leis proibitórias de negócios jurídicos – tudo em flagrante semelhança com o modo como se passam as coisas quanto ao abuso de direito e à respectiva doutrina” (p. 339).
Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, II, 4ª ed., 2018, Almedina, p. 580, refere: “Hoje, entendemos que a fraude à lei é uma forma de ilicitude que envolve, por si, a nulidade do negócio. A sua particularidade residirá, quando muito, no facto de as partes terem tentado, através de artifícios formais mais ou menos assumidos, conferir ao negócio uma feição inóqua”. E conclui que “A fraude à lei fica, assim, disponível como mais um instrumento ao serviço da concretização do direito” (p. 583).
Em suma, o traço característico da fraude à lei é reportado a situações em que se verificam comportamentos formalmente lícitos, mas indirecta ou obliquamente conducentes a resultados proibidos por lei, acabando, por isso, por ter o mesmo valor negativo da directa violação da lei.
Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 2015, Almedina, p. 519, ensina que “a fraude à lei torna-se possível sempre que o Legislador, ao redigir o texto legal, intenta impedir um resultado que considera indesejável, ou promover um resultado que considera desejável, através da proibição ou da imposição das condutas tidas como causais desses resultados desejáveis ou indesejáveis. Trata-se de casos em que a prossecução de uma determinada finalidade legal é feita, não diretamente, mas indiretamente através de uma atuação legal sobre as causas ou os comportamentos que se pensa serem causais daqueles objetivos legais. (…) Na fraude à lei, o conteúdo negocial não agride diretamente a lei defraudada, mas antes colide com a intencionalidade normativa que lhe está subjacente e que justifica a sua imperatividade. Esta intencionalidade normativa subjacente à imperatividade da lei é a Ordem Pública, como portadora dos critérios ordenantes do sistema. O juízo de fraude à lei coloca-se, assim, no domínio da Ordem Pública. O negócio jurídico fraudulento é ilícito”.
Existem duas concepções de fraude à lei: a subjectiva, segundo a qual importa a intenção fraudatória, o intuito de chegar, indirectamente, ao resultado legalmente proibido, e a objectiva, para a qual apenas interessa que a situação ou o resultado prático esteja em contraste com a fim da lei. Manuel de Andrade, ob. cit, adere à segunda dizendo que “Como princípio geral, o direito privado, em matéria preceptiva ou proibitiva, não deve curar nem cura de intenções, mas só de actos e resultados (…).”
Por fim, como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 20/10/2009 (Sebastião Póvoas): “É necessário um nexo entre o(s) acto(s) lícitos e o resultado proibido, não sendo essencial a intenção das partes em defraudar a lei, aderindo-se assim a uma concepção objectivista”.
Revertendo ao caso em apreço, verificamos que, em 30/09/2004, A. F. requereu na repartição de finanças a inscrição na matriz, por estar omisso, do “Campo de ..., de cultura e ramada, com a área de 1020 m2, sito no Lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., a confrontar do norte com caminho vicinal, do sul e nascente com M. C. e do poente com Igreja (…)” que “Na extinta matriz o prédio estava inscrito sob o artigo ...”.
Deste modo logrou inscrever na matriz esta parcela sob o art. ...º, que depois deu origem ao art. ....
Com base nesta inscrição A. F. outorgou a escritura de justificação notarial e doação de 20/09/2004 e com esta procedeu à descrição dessa parcela sob o nº .../2005-01-21 da Conservatória do Registo Predial ..., freguesia de X, e a sua inscrição a favor da autora por doação de A. F..
Com efeito, este poderia, em 2004, tão simplesmente ter procedido à doação à autora de 1.020 m2, a destacar do prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº … (e eventualmente inscrito na matriz sob o art. …º, se fosse esse o caso), “com a condição de que a donatária não o alienar, seja onerosa, seja gratuitamente; e ainda com a condição de o imóvel ser destinado a nele ser edificado, obtidas as necessárias licenças, o Salão Paroquial e ou a Residência do respectivo Pároco”.
E não fez a doação neste termos porque o destaque daquela parcela de 1020 m2 estava proibida por lei? E recorreu à escritura de justificação notarial e doação para contornar esta proibição?
Ora, é certo que o donatário optou por um “caminho indirecto” para proceder ao destaque da parcela de terreno doada à autora e fê-lo com base em declarações que não são conformes à realidade (sendo que podia ter sido a escritura de justificação impugnada judicialmente, o que não aconteceu), contudo o destaque propriamente dito não é um resultado proibido por lei conforme longamente vimos supra. Questão distinta, como também vimos, é saber se a administração concede ou não à autora a competente licença ou autorização administrativa para proceder à edificação e se, no caso negativo, há ou não fundamento para a resolução da doação.
Pelo exposto, concluímos que não se mostra verificada uma situação de fraude à lei que conduza à nulidade da doação.
*
5.
Por fim, invocam os apelantes uma duplicação de descrições prediais defendendo que as presunções resultantes do art. 7º do C.R.Predial se anulam pelo que prevalece a presunção derivada da posse dos réus.
Esta questão não foi suscitada, nem abordada pelo tribunal recorrido, contudo, tratando-se matéria de conhecimento oficioso será abordada.

O art. 86º do C.R.Predial tem como epígrafe “Descrições duplicadas” e dispõe:

“1 - Quando se reconheça a duplicação de descrições, reproduzir-se-ão na ficha duma delas os registos em vigor nas restantes fichas, cujas descrições se consideram inutilizadas.
2 - Nas descrições inutilizadas e na subsistente far-se-ão as respectivas anotações com remissões recíprocas”.

Embora este preceito não defina o conceito de “duplicação de descrições”, da conjugação do mesmo com o art. 79º nº 2 do C.P.C., resulta que se reporta apenas à duplicação total, pois apenas neste caso faz sentido a solução aí prevista de reproduzir na ficha de uma delas os registos em vigor nas restantes fichas, com a consequente inutilização das correspondentes descrições.

A propósito da duplicação parcial de descrições lê-se no Parecer do IRN p. R.P. 67/2010 SJC-CT (Duplicação de descrições), p. 8 – disponível em http://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-r-p-206-2010-sjc-ct/):

“A duplicação parcial de descrições consiste em uma porção de terreno, descrita autonomamente enquanto prédio sob determinado número, fazer também parte da descrição de outro prédio. Ou seja, existe duplicação parcial de descrições quando determinada porção de terreno no sistema registal é simultaneamente tratada como prédio e como parte integrante de prédio.
A lei, designadamente o Código do Registo Predial, não prevê sequer esta situação, não estabelecendo naturalmente para ela uma disciplina jurídico-registal própria.
Tem este Conselho entendido - parecer emitido no Pº C.P. 180/2000 DSJ-CT, in BRN nº 6/2001 - que, verificada a duplicação parcial, deve o conservador de imediato proceder oficiosamente às correspondentes anotações às respectivas descrições prediais, porquanto «o mínimo que se deverá exigir da publicidade registal é que aquelas anomalias fiquem a constar ao nível descritivo».
E mais adiante: “(…) perante o título do fraccionamento (legalmente permitido), e inexistindo no momento situação jurídica inscrita incompatível ou conflituante, qualquer interessado poderá pedir a eliminação das tábuas da duplicação parcial das descrições, que sempre se traduzirá, ao nível descritivo, no averbamento de desanexação da descrição da ficha …(…)”.

No Parecer do IRN p. R.P. 87/2010 SJC-CT (Duplicação de descrições), p. 8, alude-se às seguintes conclusões do parecer supra referido, bem como do parecer RP 50/2003 DSJ-CT 15:

“I - A repetição da descrição do mesmo prédio e a inscrição na nova descrição de factos jurídicos incompatíveis ou conflituantes com os que constituem objeto imediato dos registos que incidem sobre a descrição inicial implica o estabelecimento de um duplo trato sucessivo, cada um correndo paralelamente ao outro enquanto um deles não for eliminado por prevalência do outro.
II - Nesta eventualidade a fé pública – que se traduz na dupla presunção estabelecida no art. 7º do Cód. do Registo Predial – fica profundamente abalada, porquanto o Registo publicita duas presunções de titularidade antagónicas que se anulam, retomando a realidade substantiva o seu predomínio.”

A este propósito o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2017, publicado no D.R. nº 38/2017, Série I de 2017-02-22, fixou a seguinte jurisprudência: “Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”.
Aplicando esta jurisprudência ao caso em apreço conclui-se que a autora não pode beneficiar da presunção derivada do registo.
*
Reitera-se a sentença recorrida na parte em que concluiu que a autora não logrou provar a aquisição derivada da propriedade referente à parcela de terreno em causa, nem a aquisição originária por usucapião, nem ainda pode beneficiar da presunção inerente à posse prevista no art. 1268º nº 1 do C.C..
E, uma vez que, também não beneficia da presunção iuris tantum resultante do registo, conclui-se que a autora não logrou provar o seu direito de propriedade sobre a parcela pelo que a acção improcede.
6.
Por fim, contrariamente ao defendido pela autora, entendemos que os réus não exercem abusivamente os réus o direito de contestar e de recorrer, designadamente na modalidade de venire contra factum proprium.
Ainda que os réus, depois da citação, tenham limpo o prédio reivindicado e considerado o mesmo entregue à autora, é-lhes reconhecido constitucionalmente o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (art. 20º da C.R.P.). Acresce que não se pode razoavelmente concluir que tal comportamento, só por si, seja susceptível de criar na autora a confiança de que os réus desistem de fazer valer os seus direitos.
*
Atento os respectivos decaimentos as custas da acção e do recurso são da responsabilidade da autora (art. 527º do C.P.C.).
*
Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – O conceito de prédio rústico previsto no C.C. não coincide com a noção da linguagem comum, nem com o conceito tributário ou do registo predial.
II – A impugnação da justificação notarial apenas por via de acção (ou reconvenção) pode ser efectuada e não por via de excepção.
III – O fraccionamento do prédio rústico a que alude o art. 1376º do C.C. não ocorre com a justificação notarial, que é um mero acto declarativo de aquisição de um direito por via da usucapião, e não um acto constitutivo, nem translativo de direitos, mas ocorre, por ex., com a doação de prédio que corresponde a uma parcela de outro.
IV – O fraccionamento de prédio rústico para construção é admissível nos termos do art. 1377º c) do C.P.C. sendo apenas anulável se a construção não for sido iniciada dentro do prazo de três anos, acção de anulação essa que caduca decorrido deste momento outros três anos (art. 1379º nº 1 e 3 do C.C. na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27/08).
V – A diversidade de situações que surgem nos tribunais relacionadas com a questão de saber se a aquisição do direito de propriedade por usucapião prevalece sobre as normas referentes ao fraccionamento dos prédios rústico aconselha a defesa de uma tese intermédia, nos termos da qual só “casuisticamente e não aprioristicamente, devem os tribunais apreciar a validade dos actos de divisão e fraccionamento da propriedade rústica” (Ac. do S.T.J. de 12/07/2018 (Fonseca Ramos).
VI – No R.G.U.E. e na legislação que regula a R.A.N e a R.E.N. inexistem normas imperativas de conhecimento oficioso cuja violação conduza à nulidade do negócio através do qual ocorre o fraccionamento.
VII – Em caso de duplicação parcial de descrições prediais (quando determinada porção de terreno no sistema registral é simultaneamente tratada como prédio e como parte integrante de prédio) nenhum dos titulares registais pode invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e julgam a acção improcedente absolvendo os réus do pedido.
Custas da acção e da apelação pela autora.
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Guimarães,15/10/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade