ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DE SUBSIDIARIEDADE
Sumário


I- A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
a) Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art. 145º, nº 2, CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
b) Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante os deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art. 140º, nº 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) M. A. veio intentar ação especial de interdição por anomalia psíquica contra M. P., onde conclui entendendo dever a presente ação ser julgada procedente por provada e, consequentemente, decretar-se a interdição do requerido M. P., por se mostrar incapaz, devido a anomalia psíquica, de governar a sua pessoa e bens.
Alega, em síntese, que o requerido padece de uma deficiência mental, apresentando dificuldades cognitivas graves, que lhe provocam alterações no comportamento, quer afetivas, quer emocionais, na sua personalidade, que determina a completa incapacidade do requerido de realizar as tarefas mais elementares do dia a dia, não conhece o valor do dinheiro, nem se encontra orientado no tempo, nem no espaço.
Foi publicitada a ação e citado o requerido para contestar, que apresentou contestação onde conclui dever a ação ser julgada improcedente por não provada e, em consequência, ser o requerido absolvido dos pedidos formulados pela requerente, alegando, em síntese, não sofrer de qualquer anomalia psíquica e não necessitar de apoio de terceiros para gerir a sua vida.
Procedeu-se ao interrogatório do requerido e a exame pericial.
Procedeu-se à audição do beneficiário.

O Mº Pº, entendendo que o beneficiário é capaz de compreender e de responder de forma adequada, conhece o valor do dinheiro, orienta-se espácio temporalmente e não apresenta limitações cognitivas que o impeçam de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres, apresenta dificuldades motoras que necessitam de ser colmatadas com o auxílio de terceiro na medida do estritamente necessário à sua locomoção pelo que entende que, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 145º, nº 2, e 147º, nº 1, do Código Civil, se revelam adequadas e ajustadas as seguintes medidas, cuja aplicação promove:

1) Acompanhamento nos atos do quotidiano, nomeadamente na alimentação, vestuário, cuidados de saúde e de higiene;
2) Acompanhamento no tratamento de assuntos pessoais, designadamente em repartições ou entidades públicas (Serviços de Finanças, Segurança Social, Conservatórias ou outras) e entidades bancárias, na medida do necessário para a sua locomoção e para eventual auxílio na compreensão de documentos;
3) Acompanhamento no seu tratamento clínico, nomeadamente marcação de consultas, comparência às mesmas e cumprimento das terapêuticas prescritas.
O beneficiário apresentou requerimento em que afirma não necessitar de qualquer medida de acompanhamento, uma vez que as suas limitações cognitivas e físicas não o impedem de exercer os seus direitos e de cumprir os seus deveres, no entanto, devido a limitações motoras, necessita do auxílio de terceiros, decidindo socorrer-se do seu irmão L. J..

*
B) Foi proferida sentença onde foi decidido julgar procedente por provada, a presente ação especial e, em consequência:

1. Decretado o acompanhamento de M. P.;
2. Fixado o início da necessidade de acompanhamento em 31/03/2016;
3. Nomeado como acompanhante, o seu irmão, L. J., atribuindo-lhe os seguintes poderes:
I. Representação especial (cfr. artigos 145º, nº 2 e 147º, nº 1, a contrario, do Código Civil) que abranja:
a) Acompanhamento na celebração de negócios jurídicos que envolvam aquisição, venda ou oneração de bens imóveis, ou quaisquer outros de valor superior a 50 UC´s;
b) Acompanhamento no tratamento dos seus assuntos pessoais, nomeadamente em repartições/entidades públicas (serviço de finanças, segurança social ou outras) e entidades bancárias que não importem autorizações judiciais supervenientes;
c) Acompanhamento e tratamento clínico, designadamente a decisão na marcação de consultas, na sua comparência às mesmas, na adesão às terapêuticas prescritas, mormente na toma de medicação e à necessidade de intervenções cirúrgicas (cfr. artigo 145º, nº 2, alínea e), do Código Civil);
II. O requerido, em função das limitações já conhecidas e das necessidades delas decorrentes ficará impedido de exercer, designadamente, os seguintes atos de carácter pessoal (cfr. artigo 147º, nº 2, do Código Civil):
a) Ser tutor, vogal do conselho de família e administrador de bens de incapazes (cfr. artigos 1933º, nº 2, 1953º, nº 1 e 1970º, todos do Código Civil); e
b) Desempenhar, por si, as funções de cabeça-de-casal (cfr. artigo 2082º, do Código Civil).
Foi consignado que não há notícia de que o Beneficiário tenha celebrado testamento vital ou outorgado mandato para a gestão dos seus interesses.
*
D) Inconformado com tal decisão, veio o requerido (beneficiário) M. P. interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 100).
*
D) Nas alegações de recurso do apelante M. P., são formuladas as seguintes conclusões:

1. Apelante recorre da matéria de Facto e de Direito;
2. Existe uma clara incongruência entre o afirmado no facto 9º e os factos 10º, 13º, 15º e 17º do rol de factos provados;
3. Mas, também, entre as afirmações tecidas ao longo do texto do próprio facto 9º;
4. Afirmar que as limitações cognitivas do beneficiário não interferem na sua capacidade volitiva para gerir pessoas e bens, é o mesmo que dizer que essas dificuldades de aprendizagem e baixa escolaridade não interferem com tal capacidade;
5. Logo, depois de proferir tal afirmação, não é congruente dizer-se que «suas dificuldades de aprendizagem e a baixa escolaridade, podem impedi-lo de compreender os contornos de eventuais negócios»;
6. As medidas de acompanhamento revestem um caráter supletivo;
7. Destarte, a ideia não é incapacitar o sujeito, mas auxiliá-lo, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica;
8. Inultrapassável é, com efeito, a regra segundo a qual o acompanhamento se deve limitar ao necessário;
9. Diante elencados constantes do rol de factos provados na sentença da qual se recorre; das informações constantes dos dois relatórios periciais anexos aos autos do processo; e do conteúdo do próprio despacho de promoção do Ministério Público, é de concluir, desde logo, que não se encontram, preenchidos os requisitos substantivos para o decretamento do acompanhamento do réu.
10. Não se verifica qualquer razão de saúde, deficiência ou comportamento, impeditivos do exercício dos seus direitos, bem como do cumprimento dos seus deveres; nem existe qualquer alteração nas suas capacidades intelectuais, bem como no seu domínio da vontade, que implique uma incapacidade de compreensão dos atos por ele praticados;
11. Ao igual que é de concluir, que tampouco se verifica a condição positiva, orientada pelo princípio de necessidade, que implica a existência de uma justificação para decretar o acompanhamento do maior;
12. E, finalmente, atendendo, a que após o seu internamento passou a residir com o irmão, J. L., que desde 2016 o vem auxiliando em todas as suas tarefas diárias, especialmente ao nível de locomoção, tampouco se verifica o preenchimento da condição negativa de decretamento do acompanhamento.
13. Dado que a medida de acompanhamento é subsidiária, perante os deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art.º 140º, nº 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior. E, como ficou claro, têm-no sido, desde 2016 até ao momento.
14. Destarte, inexistem razões de facto e de direito que fundamentem a aplicação das medidas de acompanhamento determinadas na sentença da qual se recorre.
Termina entendendo que deve a sentença recorrida ser revogada e proferido Acórdão que considere procedente o recurso, nos termos das conclusões supra expostas.
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Não foi apresentada resposta.
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E) Foram colhidos os vistos legais.
F) As questões a decidir no recurso são as de saber:
a) Se deverá ser alterada a decisão da matéria de facto;
b) Se deverá ser alterada a decisão propriamente jurídica da causa.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) I. Factos Provados

1) O requerido M. P., é solteiro, maior, nasceu a -/09/1945, é natural da freguesia de ...., concelho de Monção, filho de L. A. e de M. C. e reside no Lugar de …, Santa Luzia, ...., UF de …, .... e …, em Monção. (cfr. fls. 5-6, 19, 27 v., 33-40, 74-76 e 80-81)
2) O requerido frequentou a escola até concluir a 4ª classe, registando retenções no primeiro e terceiro anos, porquanto tinha dificuldades de aprendizagem. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
3) Após terminar a escola, o requerido trabalhou na lavoura e na floresta, tendo ido para França entre os 14 e os 17 anos, permanecendo nesse País durante cerca de 26 anos, a trabalhar na cofragem (construção civil). (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
4) O requerido regressou de França e passou a residir com os pais, mormente a mãe, e a trabalhar na lavoura, acompanhando a mãe até à morte desta. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
5) Tendo continuado a viver sozinho até que, em março de 2016, sofreu acidente do qual resultou traumatismo crânio-encefálico, que determinou a orientação para consulta de neurologia, na ULSAM, tendo, após alta, passado a residir com o irmão L. J., em casa deste, na morada referida em 1). (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
6) O requerido apresenta historial de meningite na infância, evidenciou dificuldades na aprendizagem e défice cognitivo e, ao longo da vida, foi realizando sempre trabalhos pouco diferenciados e com predomínio de componente prática. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
7) Não obstante, sempre e até à ocorrência do acidente a que se alude em 5) foi independente e autónomo nas atividades da vida diária, tendo vivido sozinho e assumido inclusive a função de cuidador da mãe. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
8) Nos registos clínicos da ULSAM, e além da meningite na infância, estão identificadas outras patologias: hidrocefalia obstrutiva, pneumonia de aspiração, abuso de álcool, obesidade e fratura traumática de apófise transversa direita de L1 e gonatrose. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
9) Apesar de apresentar limitações cognitivas, estas não interferem na sua capacidade volitiva para gerir pessoas e bens, contudo, necessita de cooperação e assistência de terceiros, quer, principalmente, para colmatar as limitações de locomoção, com que se passou a defrontar, quer para o auxiliar no planeamento das tarefas de gestão do dia a dia, quer, ainda, para as tarefas de gestão financeira, mais complexas, sobretudo porque o requerido apresenta problemas de memória que podem, efetivamente, condicionar a sua capacidade volitiva e, bem assim, as suas dificuldades de aprendizagem e a baixa escolaridade, podem impedi-lo de compreender os contornos de eventuais negócios, com o inerente risco de realizar atos lesivos para a sua pessoa e património.
10) O requerido conhece, em geral, o valor do dinheiro e, bem assim, o seu valor económico, raciocinando, contudo, em escudos e não conseguindo converter para euros.
11) O requerido é capaz de se orientar no espaço, apresentando dificuldades na orientação no tempo (soube apenas indicar a estação do ano em que se encontrava aquando da audição).
12) O requerido é capaz de escrever o seu nome, contudo, fá-lo com grande dificuldade e lentidão, sendo incapaz de escrever em linha reta. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81, 82 A e 83)
13) O requerido é capaz de fazer cálculos, incluindo alguns mais complexos, tendo sido, igualmente, capaz de concluir provérbios. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
14) O requerido não identifica alguns objetos, como o agrafador, e afirma desconhecer saber como se utiliza o telefone ou o telemóvel. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
15) O requerido é proprietário de imóvel onde já não reside e, pese embora encarregue o sobrinho de materializar o que seja necessário fazer, mostra preocupação com pagamento de impostos e demais cuidados com o imóvel. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
16) De acordo com os Senhores Peritos, o requerido mostra-se dependente na realização mecânica de atividades de vida diária, por força da sua limitação de locomoção, conseguindo exprimir e decidir aspetos básicos da vida, necessitando, contudo, de ajuda para a planeamento de ações que impliquem maior exigência cognitiva, sejam elas atividades de vida instrumentais, sejam atividades de cariz financeiro. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81 e 83)
17) O requerido aufere pensões de reforma de €525,00 e €250,00, que gere com autonomia, embora com a ajuda do irmão e seus familiares, até porque tem dificuldades em saber, com exatidão e porque tem problemas de memória, quanto tem ao certo.
18) O requerido indica como pessoa para exercer o seu acompanhamento, o irmão L. J.. (cfr. Fls. 33-40, 74-76, 80-81, 83 e 85)
19) É desconhecida a outorga pelo Requerido de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde. (cfr. Fls. 60)

II. Factos não provados

a) O requerido padeça de deficiência mental e que apresente dificuldades cognitivas graves que impedem a sua progressão e que não consiga integrar as funções cognitivas de forma construtiva;
b) Que a doença de que padece, provoque ao requerido alterações de comportamento, afetivas, emocionais, na sua personalidade e na capacidade funcional, enquanto pessoa;
c) Que a doença que afeta o requerido tenha sido causada por um episódio de meningite;
d) Que o requerido desconheça do valor do dinheiro, não tenha noção do valor económico das coisas e não se oriente no espaço.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) O recurso visa a reapreciação da decisão de facto e de direito da sentença.

Relativamente à decisão da matéria de facto, o apelante discorda da formulação do ponto 9 dos factos provados, na parte em que se afirma que «(…)quer para o auxiliar no planeamento das tarefas de gestão do dia a dia, quer, ainda, para as tarefas de gestão financeira, mais complexas, sobretudo porque o requerido apresenta problemas de memória que podem, efetivamente, condicionar a sua capacidade volitiva e, bem assim, as suas dificuldades de aprendizagem e a baixa escolaridade, podem impedi-lo de compreender os contornos de eventuais negócios, com o inerente risco de realizar atos lesivos para a sua pessoa e património», entendendo que deve essa matéria integrar o rol de factos não provados.
O apelante chega a essa conclusão, nomeadamente pelo cotejo entre a formulação do ponto 9 com os pontos 10, 13, 15 e 17 dos factos provados, bem como com o relatório da UCSP de Valença assinado pela Perita Médica Dra. M. M. e com o relatório da Perícia Médico-Legal do Gabinete Médico-Legal e Forense do Minho-Lima, assinado pela Sra. Perita Médica Dra. I. F..

Refere o apelante quanto ao primeiro relatório, que aí se refere:

«O Sr. M. P. sabe aproximadamente de quanto dinheiro dispõe (…)
O examinado encontra-se vígil, com capacidade para prestar e manter atenção e concentração.
Orientado quer no tempo quer no espaço, asso, como auto e alopsiquicamente».

No que se refere ao segundo relatório, aí se refere:

«O examinado conta que se reformou aos 60 anos de idade e afirma auferir “uma reforma de 525€ de uma e 250€ de outra”. O examinado diz conhecer as suas despesas mensais, “pago a luz, a água e dou dinheiro ao meu irmão do que como. O resto fica no banco.” (…) Descreve o procedimento prático de simulação de troco monetário. Afirmou saber o seu património “tenho uma casa e o terreno onde fiz a casa”, acrescentando que “tenho uma mota que está lá parada porque já não posso andar nela”.
(…)
Neste sentido, e no momento atual, entende-se que as limitações cognitivas do executado não interferem na sua capacidade volitiva, nem de autonomia para gerir pessoas e bens.
(…)
Por tudo o que se afirma supra, e embora se considere que neste momento examinado não careça de medidas de acompanhamento, entende-se que o examinado deva ser reavaliado num prazo não inferior a 5 anos».
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Vejamos.

No ponto 9 dos factos provados consta o seguinte:

9) Apesar de apresentar limitações cognitivas, estas não interferem na sua capacidade volitiva para gerir pessoas e bens, contudo, necessita de cooperação e assistência de terceiros, quer, principalmente, para colmatar as limitações de locomoção, com que se passou a defrontar, quer para o auxiliar no planeamento das tarefas de gestão do dia a dia, quer, ainda, para as tarefas de gestão financeira, mais complexas, sobretudo porque o requerido apresenta problemas de memória que podem, efetivamente, condicionar a sua capacidade volitiva e, bem assim, as suas dificuldades de aprendizagem e a baixa escolaridade, podem impedi-lo de compreender os contornos de eventuais negócios, com o inerente risco de realizar atos lesivos para a sua pessoa e património.
Da apreciação crítica da totalidade da prova documental, pericial – particularmente desta – e da audição do requerido, não resulta dever alterar-se a formulação do ponto 9 dos factos provados, nos termos pretendidos pelo apelante.
Com efeito se atentarmos nas conclusões de fls. 76-77 e nas informações complementares de fls. 91, daí resulta que uma parte significativa da matéria aí mencionada foi acolhida no ponto 9 dos factos provados e não existe fundamento válido que permita desacreditar a matéria que consta do relatório pericial.
Na parte que não provem do referido relatório e das informações complementares, resulta da análise crítica da audição do requerido e da documentação constante dos autos e, mesmo da extrapolação lógica dos elementos de prova constantes dos autos, sendo inquestionável que “para as tarefas de gestão financeira, mais complexas, sobretudo porque o requerido apresenta problemas de memória que podem, efetivamente, condicionar a sua capacidade volitiva e, bem assim, as suas dificuldades de aprendizagem e a baixa escolaridade, podem impedi-lo de compreender os contornos de eventuais negócios, com o inerente risco de realizar atos lesivos para a sua pessoa e património.”
Assim sendo, manter-se-á a formulação do ponto 9 dos factos provados.
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Quanto à matéria de direito, entende o apelante entende ser desnecessária a aplicação de medidas de acompanhamento.
O Professor António Pinto Monteiro numa Conferência proferida no Centro de Estudos Judiciários, subordinada ao tema “Das incapacidades ao maior acompanhado – breve apresentação da Lei nº 49/2018” afirma ser favorável a um sistema de maior flexibilidade, que promovesse, na medida do possível, a vontade das pessoas com deficiência e a sua autodeterminação, que respeitasse, sempre, a sua dignidade e facilitasse a revisão periódica das medidas restritivas decretadas por sentença judicial.
E manifestou, ainda, concordar, em primeiro lugar, que, sempre que possível, devesse ser tomada em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva ou de apoio e, por maioria de razão, concordar com o mandato em previsão do acompanhamento ou da incapacidade, isto é, com a possibilidade de qualquer pessoa prevenir uma eventual necessidade futura, indicando, desde logo, quem a acompanhará ou a representará, caso isso venha a verificar-se, e que poderes lhe atribui.
Acrescenta ainda que todas estas medidas que advoga pressupõem a manutenção da capacidade de exercício de direitos por parte da pessoa que a elas recorre.
Trata-se de medidas de apoio a pessoa com deficiência assentes na sua autodeterminação.
“Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e para as alterações legislativas em vários sistemas jurídicos, como a Alemanha, França, Itália, Espanha e Brasil, entre outros, e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão.
Há, assim, uma mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos.
Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”
Na mesma referida conferência, subordinada ao tema “Fundamentos, conteúdo e consequências do acompanhamento de maiores” refere a Professora Mafalda Miranda Barbosa que “são dois os requisitos para que possa ser decretado o acompanhamento, um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva.
No que ao primeiro respeita, haveremos de considerar a impossibilidade de exercer plena, pessoal e conscientemente os direitos ou cumprir os deveres.
Em causa está, portanto, a possibilidade de o sujeito formar a sua vontade de um modo natural e são.
Por um lado, há-de ter as capacidades intelectuais que lhe permitam compreender o alcance do ato que vai praticar quando exerce o seu direito ou cumpre o seu dever.
Por outro lado, há-de ter o suficiente domínio da vontade que lhe garanta que determinará o seu comportamento de acordo com o pré-entendimento da situação concreta que tenha.
Em suma, trata-se da possibilidade de o sujeito se autodeterminar, no que respeita ao exercício dos seus direitos e ao cumprimento dos seus deveres.
A lei prescinde agora dos requisitos da habitualidade, permanência e durabilidade e permite que o acompanhamento seja decretado em relação a um especial domínio da vida do beneficiário e a situações transitórias.
Pense-se, por exemplo, no internamento subsequente a um acidente, tratamento ou intervenção cirúrgica, que deixa a pessoa impossibilitada de exercer os seus direitos por um período de tempo relativamente curto.
Mas continua a exigir-se uma certa constância, até porque o acompanhamento só será decretado quando não seja possível alcançar as finalidades que com ele se prosseguem através de deveres gerais de cooperação e assistência.
Quanto ao requisito de índole objetiva, exige-se que a impossibilidade para exercer os direitos ou cumprir os deveres se funde em razões de saúde, numa deficiência ou no comportamento do beneficiário.
Novamente, a formulação afigura-se ampla, dando margem ao julgador para cumprir as finalidades normativas do regime em função das especificidades dos casos com que se depare.
A jurisprudência terá, estamos seguros disso, um papel fundamental na densificação deste tríptico de fundamentos.
Mas, enquanto os Tribunais (maxime os Tribunais superiores) não se pronunciarem judicativamente sobre estas questões, cabe à doutrina ensaiar algumas respostas.
Para tanto, será fundamental quer o conhecimento da base sociológica que subjaz à disciplina jurídica em apreço, quer do quadro regulativo anterior.
Nas razões de saúde integram-se quer as patologias de ordem física, quer as patologias de ordem psíquica e mental.
Parece, portanto, haver um alargamento em relação ao quadro de fundamentos das interdições e inabilitações, não se ficando preso a uma ideia estrita de anomalia psíquica.
Já no que respeita à deficiência, integram-se na previsão normativa os cegos e os surdos-mudos, a que já se referia o anterior regime das interdições e inabilitações, tal como se integram as deficiências mentais, aí também contempladas.
Fundamental é que a deficiência limite o desempenho do sujeito em termos volitivos e/ou cognitivos.
Serão, por isso, residuais as situações de cegueira ou surdez-mudez que possam fundar o regime do acompanhamento, na medida em que dificilmente determinarão a limitação da possibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, o que não significa que sejam inexistentes.
Finalmente, no tocante ao segmento pelo seu comportamento, se dúvidas parece não haver quanto à possibilidade de, por essa via, se contemplarem os casos de comportamento pródigo, comportamento condicionado pelo abuso de bebidas alcoólicas e estupefacientes, hesita-se em saber se o regime se queda nestas hipóteses ou se permite que outros comportamentos inviabilizadores do exercício de direitos e do cumprimento de deveres possam ser tidos em conta para efeitos de decretamento do acompanhamento.
Ora, como não estamos balizados, na tarefa interpretativa, por um princípio de tipicidade que limite a autónoma constituição normativa, parece que podemos ir, orientados por este critério-guia, além das hipóteses clássicas de prodigalidade, de consumo de bebidas alcoólicas e de estupefacientes.
Fundamental é que o comportamento concreto se repercuta na impossibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, isto é, que o comportamento seja causa, em concreto, pelo menos num domínio específico da vida, da falta de autodeterminação da pessoa.
Pense-se por exemplo no sujeito A que é viciado em jogo, condicionando a gestão dos seus interesses patrimoniais por causa dessa adição.
Na determinação do âmbito de relevância do acompanhamento, haveremos de ter em conta uma outra ideia.
O regime é edificado com base num princípio de subsidiariedade.
Visando assegurar o bem-estar e a recuperação do maior, garantir o pleno exercício dos seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, a medida de acompanhamento só é decretada quando as finalidades que com ela se prosseguem não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e assistência, o que significa que, independentemente da verificação dos requisitos subjetivo e objetivo da medida de acompanhamento, pode não se justificar normativamente a nomeação de um acompanhante.
Por último, reforçamos uma nota: porque a ideia não é incapacitar o sujeito, mas auxiliá-lo, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica, o intérprete deixa de estar preso a uma lógica de taxatividade, o que torna viável uma maior flexibilidade.
Acresce que o acompanhamento é decretado a pedido do beneficiário ou mediante sua autorização.
Assim sendo, o julgador poderá ser menos restritivo.
E se é verdade que, em situações residuais, a mencionada autorização pode ser suprida pelo tribunal e que, noutras, o Ministério Público pode requerer o acompanhamento independentemente de autorização, então, haveremos de reservar para essas hipóteses um maior rigor no controlo dos fundamentos da adoção da medida.
Institui-se, portanto, um sistema móvel, em que a falta de manifestação de vontade por parte do acompanhado deve ser compensada por uma maior exigência na verificação dos requisitos que se analisam neste ponto expositivo.”
Do exposto ressalta já a posição de que, como acima se escreveu, a ideia não é incapacitar o sujeito, mas auxiliá-lo, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica, trata-se, assim, de proteger, sem incapacitar, isto é, o acompanhamento deve-se limitar ao necessário.

E, sintetizando, como refere o Professor Miguel Teixeira de Sousa na mesma Conferência, sob o tema “O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspetos processuais”, “a medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:

─ Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art. 145º, nº 2, CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
─ Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante os deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art. 140º, n.º 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
Importa, no que se refere à matéria de facto dada como provada e, especificamente, no que se refere ao ponto 9, esclarecer que o facto de se dar como provado que “o requerido apresenta problemas de memória que podem, efetivamente, condicionar a sua capacidade volitiva e, bem assim, as suas dificuldades de aprendizagem e a baixa escolaridade, podem impedi-lo de compreender os contornos de eventuais negócios, com o inerente risco de realizar atos lesivos para a sua pessoa e património” se trata de meras possibilidades que não têm tradução em situações reais de perigo para o requerido, nomeadamente na sua saúde financeira e não há exemplos na sua vida, pelo menos não constam dos factos apurados, que permitam considerar que se trata de potenciais situações danosas, com uma real perspetiva de ocorrência, são apenas possibilidades, meras hipóteses.
Não é certamente o facto de apresentar problemas de memória, desacompanhado de exemplos concretos, já ocorridos ou em risco iminente de ocorrerem, que permite que se incapacite o requerido.
E, a propósito da sua baixa escolaridade, o que se dirá daqueles investidores, com formação técnica superior que, por opções erradas, investiram em produtos financeiros ruinosos e tudo perderam ou daqueles gestores altamente qualificados que viram as empresas por si geridas entrarem em situação de insolvência?

Serve isto para dizer que face à matéria de facto apurada e face às razões acima expostas, tendo em conta as limitações do requerido, essencialmente de ordem física, mas também de natureza cognitiva, apenas se justificará a institucionalização do regime do maior acompanhado, mantendo-se como acompanhante o seu irmão L. J., por si indicado, bem como a data do início da necessidade de acompanhamento – 31/03/2016 – relativamente ao acompanhamento:

1) Nos atos do quotidiano, nomeadamente na alimentação, vestuário, cuidados de saúde e de higiene;
2) No tratamento de assuntos burocráticos, designadamente em repartições ou entidades públicas (Serviços de Finanças, Segurança Social, Conservatórias ou outras) e entidades bancárias, na medida do necessário para a sua locomoção e para eventual auxílio da compreensão de documentos;
3) No seu tratamento clínico, nomeadamente marcação de consultas, transporte, comparência nas mesmas, aquisição de medicamentos, tratamentos e cumprimento das terapêuticas prescritas.
No mais, a apelação terá de improceder.
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D) Em conclusão e sumariando:

1) A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
a) Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art. 145º, nº 2, CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
b) Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante os deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art. 140º, nº 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência proceder à institucionalização do regime do maior acompanhado, decretando-se o acompanhamento de M. P., mantendo-se como acompanhante o seu irmão L. J., por si indicado, bem como a data do início da necessidade de acompanhamento – 31/03/2016 – relativamente ao acompanhamento:
1) Nos atos do quotidiano, nomeadamente na alimentação, vestuário, cuidados de saúde e de higiene;
2) No tratamento de assuntos burocráticos, designadamente em repartições ou entidades públicas (Serviços de Finanças, Segurança Social, Conservatórias ou outras) e entidades bancárias, na medida do necessário para a sua locomoção e para eventual auxílio da compreensão de documentos;
3) No seu tratamento clínico, nomeadamente marcação de consultas, transporte, comparência nas mesmas, aquisição de medicamentos, tratamentos e cumprimento das terapêuticas prescritas.
Sem custas (artigo 4º nº 1 alínea l do RCP).
Notifique.
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Guimarães, 15/10/2020

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares