ESPECIAL COMPLEXIDADE
CRIMINALIDADE ORGANIZADA
Sumário

1.–O artº 215º do cód. procº penal, reporta-se aos prazos de duração máxima da prisão preventiva e que o legislador entendeu serem os normais para os processos em geral;

2.–Por sua vez no nº 2 daquele preceito consigna-se que esses prazos são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses, e dois anos, nos casos ali expressamente previsto, nomeadamente quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos.

3.–O regime de excepção encontra-se consagrado no nº 3 do artigo em causa, que pode ser determinado, designadamente, em função da natureza do crime e da natureza dos processos, ao estipular que, “os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime”.

4.–O conceito de “criminalidade altamente organizada” é-nos dado pelo artº 1º al. m) do cód. procº penal que refere expressamente, considera-se: “«Criminalidade altamente organizada» as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência ou branqueamento”.

5.–Já a “excepcional complexidade”, na sequência das alterações operadas pela Lei nº 48/2007, de 29/08, passou a ficar sempre dependente de uma decisão judicial, podendo derivar do número de arguidos ou de ofendidos ou do carácter altamente organizado do crime.

6.–O nº 3 do artº 215º do cód. proc. penal, consagra uma cláusula geral e ampla de preenchimento do conceito de excepcional complexidade, que nos permite concluir que a mesma há-de ser preenchida através da avaliação casuística e criteriosa do julgador, sob pena de violação do princípio da legalidade.

7.–Estando em investigação nos autos, a prática de crimes de associação criminosa, crimes de branqueamento, crime de burla informática e de falsificação de documentos, cometidos por uma vasta rede transnacional de indivíduos de várias nacionalidades e com numerosas vítimas originários de múltiplos países, é manifesto que o processo foi correctamente declarado de especial complexidade.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do
Tribunal da Relação de Lisboa.



RELATÓRIO:


No âmbito do processo de inquérito nº 365/17.5JGLSB-D que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, em que é arguida a recorrente (entre outros), MK_______ pela prática dos crimes de:
- Associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299º, nº 1 a 3, do cód. penal;
- Crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-Aº, nº 1 a 3 do cód. penal (tendo como crime precedente o crime de burla informática, de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1 e 5, alínea b), do cód. penal; e
- Um crime de falsificação de documento, p. e p. nos termos conjugados dos artigos 256º, nº 1, alíneas a), b) e/ou e), por referência ao artigo 255º, alínea c), ambos do cód. penal, decidiu o Sr. Juiz de Instrução, sob promoção do Ministério Público declarar a “especial complexidade do processo”, contra a qual se vem insurgir a recorrente.
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Inconformada com a decisão, veio a arguida, MK_______ a recorrer, tendo apresentado as seguintes conclusões:

a)- A arguida/recorrente discorda, em absoluto, do citado despacho prolatado, pelo Mmº Juiz de Instrução, em 17/04/2020, o qual declarou a especial complexidade do processo, tendo por base os fundamentos invocados pelo Ministério Público, os na sua douta promoção. Por conseguinte,
b)- Não concorda a recorrente que os fundamentos invocados pelo Ministério Público, e aceites pelo Tribunal a quo, preencham os requisitos para ser declarada a excepcional complexidade dos presentes autos. Pois,
c)- Não só porque a investigação no presente processo iniciou-se no ano de 2017, e estamos em Abril de 2020, sendo um lapso temporal bastante dilatado para a investigação em curso, sendo suficiente para análise da prova documental, que de resto é de fácil interpretação, por se tratar de informação bancária, e para proceder à realização das diligências probatórias que se mostrem necessárias para o apuramento da identidade dos agentes dos actos ilícitos em investigação e dos respectivos ofendidos, bem como para a emissão de mandatos e de envio de pedidos de cooperação judiciária internacional.
d)- Concorda-se que os presentes autos têm alguma densidade: pois deles fazem parte múltipla prova documental; contudo, interessa arguir que a investigação e os meios probatórios atinentes aos presentes autos se consolidam em termos singelos e, por isso, não necessitam de conhecimentos técnicos nem de outros elementos cognitivos especializados.
e)- Salienta-se que o número de arguidos e de ofendidos não é relevante, para considerar - se preenchido o requisito de especial complexidade, preceituado nº 3 do art. 215º do cód. proc. penal. Isto porque, se só faltam analisar 3 apensos com informação bancária, que de acordo com o Ministério Público, dizem respeito a um só indivíduo que terá usado três identidades falsas, e que terá beneficiado de uma dezena de transferências fraudulentas, e já se encontram em prisão preventiva 6 indivíduos, não se pode concluir que 7 indivíduos são um elevado número de suspeitos, e por conseguinte não encontra-se preenchido o requisito invocado e plasmado no nº 3 do 215º do cód. proc. penal.
f)- Cumpre salientar, que também não se concorda com o fundamento inovado para a declaração de especial complexidade dos presentes autos, de que falta analisar 3 apensos com extensa documentação e que por isso necessita de mais tempo para os analisar, isto porque quando o Ministério Público, na sua douta promoção conclui que os 3 apensos, os quais refere que não analisou ainda, dizem respeito a um só indivíduo, e que este usou 3 identidades falsas, que beneficiou de mais de 1 dezena de transferências e que as mesmas são fraudulentas. Estamos perante matéria conclusiva, e por conseguinte, só poderá ter chegado o Ministério Público a tais conclusões, após análise da documentação que compõem os três apensos e após investigação sobre as identidades constantes de tais documentos e sobre a origem das referidas transferências.
g)- Relativamente, ao modus operandi utilizado, o mesmo, salvo melhor opinião, não parece de todo complexo e indecifrável, pois foram efectuadas transferências internacionais e nacionais, o que deixa um rasto documental, e cuja prova documental referente às mesmas já conta dos autos, não foi um modus operandi, difícil de decifrar ou de rastrear, e por isso toda a prova documental encontra-se junta aos autos, e foi com base nessa prova documental que foram apuradas as transferências efectuadas, quem eram os titulares das contas de onde saíram as supostas transferências à revelia dos seus titulares e quais as contas destinatárias das mesmas e seus respectivos titulares, pelo que se conclui, que pelo modus operandi utilizado, não se pode declarar a especial complexidade do processo.
h)- A investigação deve ser minuciosa, mas não às custas dos arguidos, por isso os crimes investigados, já elevam os prazos da investigação, de acordo com o disposto no art. 215º, nº 2, als) a) e d) do cód. proc. penal.
i)- A prorrogação de prazos processuais, pode ser muito prejudicial para um arguido, nomeadamente, quando o mesmo está em prisão preventiva, pois toda a sua vida fica suspensa, ainda mais quando afinal é absolvido, além do mais de acordo com o preceituado no art. 20º, nº 1 da CRP: "Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo."
j)- Pelo exposto, conclui-se que os requisitos para ser declarada a especial complexidade do processo, nos termos do nº 3 do art. 215º do cód. proc. penal, não se encontram preenchidos, e que o que ainda não foi feito em termos de investigação e até de apuramento de identidades, não se deve à especial complexidade do processo, mas deve-se ao facto de não ter sido analisada atempadamente a documentação já junta aos autos, pelo que, as diligências em falta já podiam ter sido realizadas no lapso temporal já de si dilatado, pelo que, esse atraso não pode de todo ser suportado pelos arguidos, pelo que, se requer ao digníssimo do Tribunal que seja revogado o despacho que decretou a excepcional complexidade do processo.
Termos em que deve revogar-se o Douto Despacho do Tribunal a quo, e substituir-se por outro que:
- Revogue o despacho do Tribunal a quo, na parte em que declara a especial complexidade dos presentes autos.
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária Justiça».
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O Ministério Público, em 1ª instância, notificado nos termos do artº 413º nº 1 do cód. proc. penal não se pronunciou».
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Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu Parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
                                                                     
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pela recorrente, da respectiva motivação[1], que, no caso "sub júdice", se circunscreve à questão de saber se o despacho do sr. Juiz do Tribunal Instrução Criminal de Lisboa (recorrido) que declarou a “excepcional complexidade” do processo, viola ou não os pressuposto previstos no artº 215º nº 3 e 4 do cód. proc. penal.
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DESPACHO RECORRIDO

«Vieram a arguida MK_______ e o arguido DG_______, na sequencia da notificação feita nos termos do artº 215º nº4 do CPP, pronunciar-se através do requerimento que faz fls. 3583 a 3585 e 3587 a 3589 dos autos, pugnando pelo indeferimento do pretendido pelo Ministério Público, pelas razões que referem nos respetivos requerimentos que aqui se dão por reproduzidas entendendo, não se verificarem os pressupostos para a declaração da especial complexidade dos autos.

Cumpre decidir:

Indiciam fortemente os autos a prática pelos arguidos de um:
-Crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299º, nº 1 a 3, do Código Penal;
- Crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368º-Aº nº 1 a 3 do Código Penal (tendo como crime precedente o crime de burla informática, de valor consideravelmente elevado, p. e p. pelo artigo 221º, nº 1 e 5, alínea b), do Código Penal); e
-Um crime de falsificação de documento, p. e p. nos termos conjugados dos artigos 256º nº 1, alíneas a), b) e/ou e), por referência ao artigo 255º, alínea c), ambos do Código Penal
Os arguidos DG_______, MK_______, DR______, DK______, VS______, RN______, encontram-se presos preventivamente à ordem destes autos por ter sido essa a medida de coacção, que lhes foi imposta nos autos.

Como refere o Ministério Público “após a detenção dos referidos arguidos em território letão (datando as primeiras detenções do dia 20.10.2019), foram realizadas inúmeras diligências, tendo em vista o apuramento da identidade de todos os intervenientes na actividade criminosa, bem como a extensão da sua actuação em território nacional”.

Indiciam os autos que da análise da extensa documentação bancária junta aos presentes autos indicia-se a realização de várias dezenas de transferências fraudulentas.

Refere ainda o Ministério Público que:
“resta analisar três apensos, relativos a transferências bancárias realizadas para as contas bancárias abertas por um indivíduo cuja verdadeira identidade se desconhece (e que cabe ainda apurar), o qual utilizou as identidades falsas de ________, sendo de crer que o mesmo tenha beneficiado de mais de uma dezena de transferências fraudulentas, elevando o número total de transferências para cerca de uma centena.

Conforme decorre dos autos, apesar de já terem sido enviadas três Decisões Europeias de Investigação, uma para a Alemanha, uma para o Reino Unido e outra para a Itália (sendo certo que apenas esta última foi, até à data, cumprida, encontrando-se em análise pela Polícia Judiciária os elementos enviados pela Autoridade Judiciária Italiana), e ainda uma Carta Rogatória para os Estados Unidos da América (relativamente à qual também ainda não obtivemos resposta), a análise da documentação bancária permitiu evidenciar várias outras dezenas de transferências fraudulentas, relativamente às quais serão enviados, nos próximos dias, outros pedidos de Cooperação Judiciária Internacional.”

Mais refere o Ministério Público que importa ainda localizar e identificar outros indivíduos que se encontram fora de Território nacional e importa localizar e identificar por estarem envolvidos na pratica dos factos em investigação nestes autos.

Refere igualmente o Ministério Público que “é notória a complexidade da presente investigação, não só pelo número elevado de indivíduos que fazem parte desta associação criminosa, a que acresce a dificuldade suplementar de alguns deles recorrerem a diferentes identidades, a maioria delas falsas, mas também pela necessidade de apuramento do ‘rasto’ das quantias transferidas de forma fraudulenta, as quais foram sucessivamente transferidas entre as contas bancárias dos arguidos, até serem completamente dissipadas no circuito financeiro nacional e internacional.

No caso dos presentes autos, em face do elevado número de ofendidos, do 'modus operandi utilizado pelos arguidos (recurso a identidades falsas, necessidade de análise de extensa documentação bancária), e ainda ao carácter altamente organizado do crime, entendemos que o processo assume um carácter especialmente complexo.”

Compulsados autos consideramos que assiste inteira razão ao Ministério Público pese embora a discordância dos arguidos e o que os mesmos referem.

A investigação em curso e o cabal esclarecimento dos factos reveste enorme complexidade pelas razões que o Ministério Público refere, atenta a natureza dos factos o modo como os arguidos levaram a cabo a sua prática e a necessidade de obter elementos em vários países como refere o Ministério Público, sendo necessária a realização das diligências que o Ministério Público refere bem como de outras que forem surgindo necessárias com o avançar da investigação.

Do exposto flui com grande evidencia que com vista ao cabal esclarecimento dos factos importa ainda a realização no decurso do inquérito de diversas diligências em território nacional e fora deste, em mais que um país, o que torna a investigação em curso complexa, dado o número de diligências já realizadas e a realizar necessárias à investigação em curso, para cabal esclarecimento dos factos e consequentemente da boa administração da justiça.

Face ao exposto e pese embora a discordância dos arguidos entende-se, como se promove, que estão reunidos os pressupostos a que alude o número 3 do art° 215° do CPP para que seja declarada a especial complexidade dos presentes autos.

Assim sendo tendo em conta o exposto e pelas razões referidas pelo Ministério Público e ao abrigo do disposto no art° 215° n°1 al. a), n° 2, al. d) e e) n°3 e n° 4, todos do CPP, declaro, como se promove a especial complexidade dos presentes autos, pelo que e consequentemente elevo para doze meses o prazo de duração máxima da medida de coacção de prisão preventiva, sem ser deduzida acusação.
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Os arguidos DG_______, MK_______ DR_______ DK_______ VS_______ e RN_______ encontram-se presos preventivamente à ordem destes autos por ter sido essa a medida de coacção, que lhes foi imposta nos autos.

Foi declarada a especial complexidade dos presentes autos pelo despacho ora proferido e consequentemente elevado o prazo máximo de prisão preventiva sem dedução de acusação para um ano.

Na sequência do referido pelo arguido DG_______ no requerimento de fls. 3587 dos autos, de que face à declaração de especial complexidade, importa verificar se se continuam a mostrar preenchidos, os pressupostos para sujeição dos arguidos, à medida de coacção de prisão preventiva cumpre proceder ao reexame da mesma.

Compulsados os autos e pese embora o referido pelo arguido DG_______ a fls. 3587, bem como o referidos pelo arguido RN_______, quanto ao seu estado de saúde e pese embora o estado de saúde pública que se vive, relacionado com o surto de COVD-19 e o alargamento do prazo máximo de prisão preventiva sem dedução de acusação, face ao despacho ora preferido, considera-se que se continuam a mostrar inalterados os pressupostos de facto e de direito, que determinaram a aplicação aos arguidos da medida de coacção de prisão preventiva, constantes dos despachos que determinaram a aplicação aos arguidos da referida medida de coacção e dos que a mantiveram os quais para todos os efeitos legais aqui dou por integralmente reproduzidos.

Assim sendo ao abrigo do disposto nos artº 212º, 215° n°1 al. a), n°2 al. d) e e) e n°3, 191°, 192°, 193°, 194°, 202° n°1 al.s c) e d) e art° 204° al.s a), b) e c) do CPP e art° 7° n°2 da Lei 9/2020, mantenho a medida de coacção suprarreferida, pelo que e consequentemente, continuarão os arguidos DG_______, MK_______ DR_______ DK_______VS_______e RN_______, a aguardar em prisão preventiva, os ulteriores termos do processo, por ser no caso a única medida de coacção ajustada e adequada às exigências cautelares que o caso requer, relativamente a todos os arguidos, sendo qualquer outra medida de coacção inadequada e insuficiente para tanto.

Notifique e providencie pela tradução para a língua que os arguidos dominam.

Após cumprimento devolva de imediato ao DIAP».
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DO DIREITO:

Em causa nos presentes autos, está apenas a questão de saber se, se mostra justificado e fundamentado o despacho declarou os presentes autos como de “excepcional complexidade”.

Com efeito, por decisão proferida pela srª Juíza de Instrução Criminal de Lisboa, em 17/04/2020 foram os presentes autos declarados como de especial complexidade, após requerimento do Ministério Público nesse sentido.

A questão que se coloca é apenas a de saber se há ou não fundamento bastante para a declaração de especial complexidade do processo.

De acordo com os elementos constantes do traslado remetido a este Tribunal, nos presentes autos investiga-se a “prática de crimes de associação criminosa; de branqueamento; crime de burla informática; e de falsificação de documento”, cometidos por uma vasta rede transnacional de indivíduos (várias nacionalidades) com numerosas vítimas.

Estão indiciados até ao momento mais de uma dezena e presos preventivamente estão 6 arguidos, entre eles a recorrente.  

A prova deste tipo de crimes é em geral e parece sê-lo particularmente neste processo, constituída por vasto conjunto de elementos probatórios documentais, cartas rogatórias para vários países (referem-se pelo menos três, Reino Unido, Alemanha e Itália) que carecem de exames periciais que são em regra morosos e complexos.

Segundo se refere, haverá “milhares de documentos, informações financeiras, e elevado número de testemunhas (vítimas) a ouvir” diligências em Itália, Alemanha e Reino Unido, para além de uma Carta Rogatória para os Estados Unidos da América, relativamente à qual segundo se refere, “ainda não se obteve resposta”.

Alega o Ministério Público, a quem compete a direcção do inquérito, que “a análise da documentação bancária permitiu evidenciar várias outras dezenas de transferências fraudulentas, relativamente às quais serão enviados, nos próximos dias, outros pedidos de Cooperação Judiciária Internacional”.

Mais refere o Ministério Público que, “importa ainda localizar e identificar outros indivíduos que se encontram fora de Território nacional e importa localizar e identificar por estarem envolvidos na prática dos factos em investigação nestes autos”.

Decorre da natureza dos crimes e do esquema montado pelos indiciados, que estamos perante uma complexa investigação, não só pelo número elevado de indivíduos que fazem parte da associação criminosa, como a verificação de uma dificuldade acrescida, pelo facto de alguns usarem identidades falsas, por outro lado, também a imperiosa necessidade de se apurar o rasto e circuito das quantias indevidamente transferidas para uma cadeia de contas bancárias que visavam ocultar os destinatários últimos do dinheiro.

No caso dos presentes autos, em face do elevado número de ofendidos e arguidos, do modus operandi utilizado por estes (recurso a identidades falsas, necessidade de análise de extensa documentação bancária), e ainda ao carácter altamente organizado do crime, entendemos que o processo assume um carácter especialmente complexo.

De acordo com o despacho recorrido há 6 (seis) arguidos (nele se incluindo a recorrente) sujeitos a prisão preventiva, o que torna ainda mais premente a necessidade de reconhecimento da especial complexidade, sob pena de se esgotarem os prazos mínimos, face à natureza dos factos e dificuldades de investigação.

Perante tal situação, segundo o Ministério Público, não se perspectiva ser possível realizar todas as diligências de prova em falta, no prazo legal estabelecido, sem prorrogação.

A investigação deste tipo de crimes é manifestamente demorada, sendo certo que os prazos de prisão preventiva e de conclusão do inquérito, são em casos desta natureza, claramente insuficientes.

O Sr. Juiz “a quo”, socorrendo-se dos factos concretos apresentados no processo e da interpretação da norma do artº 215º do cód. procº penal, entendeu estarem reunidos os pressupostos para declarar a “excepcional complexidade” do processo. O que importa apreciar por este Tribunal “ad quem”, é a decisão de declaração da especial complexidade proferida ao tempo do pedido, independentemente do decurso e tramitação posterior do processo.

Vejamos.

O artº 215º do cód. procº penal, reporta-se aos prazos de duração máxima da prisão preventiva e diz-nos no seu nº 1 que a prisão preventiva não pode exceder:
- Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
- Oito meses sem que tenha sido proferida decisão instrutória, no caso de se ter procedido à instrução;
- Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em primeira instância;
- Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
Por sua vez no nº 2 daquele preceito consigna-se que esses prazos são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses, e dois anos, nos casos ali expressamente previsto (nomeadamente quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos).

No nº 3 do artigo em causa, consagra-se uma espécie de regime de excepções, que são determinadas, designadamente, em função da natureza do crime e da natureza dos processos, ao consagrar que, “os prazos referidos no nº 1 são elevados, respectivamente para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.

O conceito de “criminalidade altamente organizada” é-nos dado pelo artº 1º al. m) do cód. procº penal que refere expressamente, considera-se:
-“«Criminalidade altamente organizada» as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, tráfico de pessoas, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas, corrupção, tráfico de influência ou branqueamento”.

Sob o ponto de vista formal e de acordo com um critério estritamente objectivo, os crimes em causa inserem-se naqueles que o legislador previu com possível enquadramento no conceito de “excepcional complexidade” – cfr. artº 215º nº 2 al. d). São crimes puníveis com pena de prisão que abstractamente poderá ser de 1 a 8 anos (corrupção activa) e de 1 a 5 anos (corrupção) – cfr. artº 373º nº 1 e 374º nº 1 ambos do cód. penal -  e integram também o conceito de criminalidade altamente organizada.

A excepcional complexidade pode derivar do número de arguidos ou de ofendidos ou do carácter altamente organizado do crime. Todavia no nº 3 que consagra uma cláusula geral e ampla de preenchimento do conceito de excepcional complexidade, que nos permite concluir que a mesma há-de ser preenchida através da avaliação casuística e criteriosa do julgador, sob pena de violação do princípio da legalidade.

Antes da alteração introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto ao artº 215º do cód. procº penal, era entendimento unânime, pelo menos desde o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência nº 2/2004, de 1 de Fevereiro de 2004, publicado no Diário da República nº 79, Série I-A, em 2 de Abril de 2004, que os processos em que estivesse em causa a prática de um crime como os acima mencionados e em investigação, tinham automaticamente a natureza de “excepcional complexidade”. Esta interpretação abrangente da lei, se por um lado podia retardar determinado tipo de processos, tinha pelo menos o mérito de evitar disparidades de entendimentos.

Na sequência das mencionadas alterações (Lei nº 48/2007, de 29/08) [2], a excepcional complexidade de um processo-crime passou a ficar sempre dependente de uma decisão judicial.

Não podemos todavia esquecer, que a referida declaração de excepcional complexidade tem essencialmente a ver com os efeitos de prorrogação da prisão preventiva[3] e deve obedecer a despacho prévio do juiz de instrução criminal, sobre o qual recai também a análise dos respectivos pressupostos e o dever de pronunciar-se sobre a revogação, alteração e extinção das medidas de coacção, sendo que a declaração de excepcional complexidade de um processo constitui uma alteração da regra geral das medidas coactivas.

No caso concreto, existiam à data do despacho (e persistem) seis (6) presos preventivos e outros arguidos não detidos, mas sob suspeita. Face ao decurso das investigações e natureza dos crimes, nada obsta a que as medidas coactivas actuais possam vir a ser reforçadas relativamente a outros, pelo que não faz sentido alterar a declaração de especial complexidade do processo, essencialmente devido à natureza dos crimes e complexidade das investigações. 

Perante estes elementos e o dispositivo legal invocado, (artº 215º nº 3 e 4 do cód. procº penal) afigura-se-nos existirem fundamentos suficientes para podermos desde já concluir pela “excepcional complexidade” do processo.

Atendendo ao elemento literal da norma, o reconhecimento de tal declaração, não se basta com uma investigação complexa, morosa ou mais difícil. Exige-se que seja “excepcional”. O carácter de excepcionalidade mostra-se para já verificado, reconhecendo-se que os crimes apontados e o tipo de investigação exige uma especial morosidade, que no fundo parece ser essa a razão fundamental do requerimento do Ministério Público, embora se deva ter em conta que esta (morosidade) não se pode confundir com aquela, (excepcionalidade) que implica que seja invulgar e acima do comum.

Conforme se decidiu em acórdão do Trib. da Relação do Porto:
«I. A declaração de excepcional complexidade é uma medida cautelar, um compromisso necessário do legislador, em política criminal, de forma a estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de combate ao crime e perseguição dos criminosos, em certos ilícitos mais graves catalogados por lei e os direitos ou garantias do cidadão arguido em prisão preventiva.
II. Na conformação prática da declaração de excepcional complexidade (215º/3CPP) o Tribunal, enformado nos princípios da razoabilidade, da justa medida, do ‘processo justo’, ponderará as dificuldades do procedimento, tomando em linha de conta, nomeadamente, as dificuldades da investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de actos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, a intensidade de utilização dos meios», Cfr. Ac. Rel. Porto de 14.09.2011, disponível em www.dgsi.pt/trp.

As limitações operadas com a alteração legislativa de 2007, acima citada, independentemente de se poderem considerar eficazes ou não, visaram no fundo traduzir esse equilíbrio entre a almejada celeridade processual por um lado e o direito a que, qualquer cidadão tem de ver a sua causa investigada e julgada, equitativa e publicamente, num prazo razoável. No fundo alinha-se com o entendimento previsto no artº 6º nº 1 da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do Homem)[4].

Assim, conclui-se estarem preenchidos os pressupostos para a declaração de “excepcional complexidade” do mencionado inquérito.
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DECISÃO:

Face ao exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto.
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Custas a cargo da recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC, (cinco unidades de conta).
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Lisboa 23 de Setembro de 2020



(A. Augusto Lourenço)
(João Lee Ferreira)


[1]-Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2]-A propósito desta Lei decidiu o acórdão nº 555/2008, o Tribunal Constitucional:
“a)- Não julgar inconstitucional a norma do artigo 215º, nº 4, do cód. procº penal, na versão dada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir que, durante o inquérito, a excepcional complexidade, a que alude o n.º 3 do mesmo artigo, possa ser declarada oficiosamente, sem requerimento do Ministério Público;
b)- Julgar inconstitucional a mesma norma, quando interpretada no sentido de permitir que, em caso de declaração oficiosa da excepcional complexidade, esta não tem que ser precedida da audição do arguido, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição”.
[3]- Aliás, a epígrafe do artº 215º é justamente “prazos de duração máxima da prisão preventiva”.
[4]- Artº 6º nº 1 da CEDH: - «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça».