ACÇÃO EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
ACORDO DE RECONHECIMENTO E CONFISSÃO DE DÍVIDA
CONSIDERANDOS INCORPORADOS NO TÍTULO
VALIDADE E RELEVÂNCIA
Sumário

1. Os considerandos de um acordo servem para mostrar o que efectivamente uniu as partes e o que  as levou a se obrigarem reciprocamente e, especificamente, quais foram os reais interesses para a formação daquele determinado vínculo.
2. Os considerandos adquirem relevância quando incorporados na parte dispositiva do acordo, podendo ser englobados na noção de causa.
3. Na ordem jurídica portuguesa o conceito de causa é um conceito dispensável.
4. A inclusão num acordo de reconhecimento e confissão de dívida de um considerando no qual a exequente declara estar, a título pessoal, a reunir o capital para, de uma só vez, liquidar a dívida reconhecida, não representa uma condição, mas a manifestação de um propósito, resultado da affectio que levou as partes a chegarem a esse acordo. 

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

B moveu execução contra P para haver desta a quantia € 23.247,88 acrescida de juros.
Deu à execução um Acordo de Reconhecimento e de Confissão de Dívida, outorgado entre P, na qualidade de Primeira Outorgante, e B, na qualidade de Segunda Outorgante, com o seguinte teor:
CONSIDERANDO QUE:
i. A Primeira Outorgante é Técnica Oficial de Contas;
II. A Segunda Outorgante é sócia gerente da sociedade E, Lda, sociedade por quotas com o número único de registo e de pessoa colectiva 504.;
III. Existiu uma relação de prestação de serviços de contabilidade;
IV. Dessa relação de prestação serviços surgiu à sociedade comercial de que a Segunda Outorgante é sócia uma dívida à Segurança Social por falta de pagamento das Taxas Sociais Únicas (TSU) relativas aos meses de Junho de 2008, Julho, Novembro, Dezembro de 2009, e Fevereiro e Março de 2010, no montante total de 13.531,33 EUR;
V. A Primeira Outorgante reconhece que tal dívida surgiu por manifesta falha dos serviços por si prestados;
VI. A Segunda Outorgante, a título pessoal, se encontra a reunir o capital para, de uma só vez, liquidar tal dívida;
É livremente celebrado, de boa fé firmado e reduzido a escrito o presente ACORDO DE RECONHECIMENTO E CONFISSÃO DE DÍVIDA, que se rege pelas cláusulas seguintes e pelos Considerandos anteriores:
Cláusula Primeira
A - Reconhecido o quantum da dívida à Segurança Social pela Primeira Outorgante, reconhece esta os juros vencidos desde a data do pagamento das TSU e os vincendos até integral e efectivo pagamento, os quais, à data de hoje, se computam em 2.268,11;
B — Assume ainda a Primeira Outorgante o pagamento dos honorários do profissional forense mandatado pela Segunda Outorgante para a resolução deste diferendo, quantia que se cifra em 3.000,00 EUR.
Cláusula Segunda
A totalidade desta dívida, no montante, à data de hoje, de 18.799,44 EUR, reconhece-a a Primeira Outorgante como verdadeira, aqui se confessando devedora, obrigando-se a liquidá-la em prestações mensais e sucessivas, cada uma no valor mínimo de 500,00 EUR (quinhentos Euros), com início no dia 13 de Agosto de 2013, vencendo-se cada uma das seguintes prestações no dia 25 de cada mês.
Cláusula Terceira
Cada uma das prestações acima reconhecidas deverá ser liquidada por transferência bancária para o NIB 003800004029507977156.
Cláusula Quarta
Sempre que a Primeira Outorgante liquidar prestação mensal superior ao aqui acordado, obriga-se a Segunda Outorgante a emitir o respectivo recibo de quitação.
Cláusula Quinta
As Primeira e Segunda Outorgantes atribuem a este acordo força executiva, mais acordando que o não pagamento de qualquer das prestações determina o imediato vencimento das restantes, ao que acrescerá os juros vencidos e os juros vincendos, à taxa legal em vigor, demais despesas com advogado legalmente constituído para a cobrança desta dívida e respectivas taxas de justiça.
Cláusula Sexta
Este acordo, é celebrado em dois exemplares e vai assinado por cada uma Outorgantes, por ser a expressão fiel da sua vontade’’.
Seguiram-se as assinaturas reconhecidas das outorgantes
A executada deduziu oposição invocando, entre outras razões, a falta de título executivo.
No saneador o tribunal julgou improcedente a Excepção de Falta de Título Executivo.
Inconformada, interpôs a executada competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
A) Nestes autos foi proferido Despacho Saneador, que entre outros aspectos decidiu improcedente a Excepção de Falta de Título Executivo.
B) A  decisão recorrida entende ser irrelevante, por ora, o facto de a credora, não ter cumprido com a condição a que estava sujeito o Acordo.
Na verdade,
C) Foi subscrito o “Acordo” em que o Exequente pagaria à Segurança Social 13.531,33€ (treze mil quinhentos e trinta e um euros e trinta e três cêntimos) e a Executada, em prestações a ressarcia daquele montante.
D) Porém dos termos do referido acordo consta expressamente que a Benvinda “se encontra a reunir o capital, para de uma só vez, liquidar tal divida”.
E) Nunca a Exequente liquidou a divida à Segurança Social.
F) A Exequente, não juntou aos autos, nem alegou, ter pago à Segurança Social.
G) Resulta dos “considerando”, do Acordo, dado à execução, que este estava dependente de uma condição.
H) Condição que não foi cumprida. Logo o título executivo não existe.
I) O título executivo deve conter os requisitos necessários para, por si só, certificar a existência da obrigação e do direito correspondente.
J) A certeza e liquidez são pressupostos de caracter material que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, pois sem eles não é admissível a satisfação da pretensão (art.° 713.° actual e 802.° anterior à reforma de 2013).
K) O documento junto como título apresenta-se sujeito a um conjunto de condições que afastam as declarações de divida exarada e que a tornam não exequível.
L) A condição a que está sujeito o Acordo de divida, nunca foi cumprida.
M) A declaração de divida sujeita a “Condição incerta” não é titulo executivo nos termos do art.° 46.° n.°1 do Código de Processo Civil. (redação anterior a 2013).
N) Sendo que a divida estaria condicionada à verificação daquele facto, e não tendo sido feita prova documental nesta execução, do seu cumprimento, não existe título executivo. (art.° 802.° do Código de Processo Civil redação anterior).
O) Mal andou o Tribunal “a quo” ao admitir a presente execução com base em documento particular, sujeito a condição, não cumprida, e por isso sem divida líquida.
P) Ao decidir como consta do despacho saneador o Tribunal “a quo” violou o disposto no art.° 713.° do CPC (802.° anterior à reforma de 2013), art.° 270.° do CPC e art.° 46.° do CPC ( anterior à reforma de 2013, aqui aplicável).
Q) Com o que revogando-se a decisão recorrida e em sua substituição proferido Acórdão que reconheça a falta de título executivo e por isso improcedente a presente execução se fará Justiça!’’.
Não houve contra-alegações.
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Constitui questão decidenda saber se existe título exequível.
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A factualidade relevante consta do relatório supra para o qual se remete.
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Do direito
O título executivo, como se sabe, é a condição necessária e suficiente para a acção executiva.
Toda a execução tem, na verdade, por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (artigo 10.º, 1, CPC2013; são deste Código os artigos ulteriormente citados sem diferente menção).
De acordo com o artigo 46.º, 1, c), do CPC, na redacção do decreto-lei n.º 38/2003, de 8 de março, podem servir à execução os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.
Assim, os documentos particulares, para se configurarem como títulos executivos, devem: (i) conter a assinatura do devedor; (ii) importar a constituição ou reconhecimento de obrigações e (iii) as obrigações devem reportar-se ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prstação de facto.
No caso sujeito não se suscitam dúvidas sobre a verificação de qualquer dos mencionados requisitos no que respeita à Executada.
Dúvidas existem sim sobre a exigibilidade da obrigação exequenda, sendo que a recorrente sustenta que estando a mesma sujeita a condição e não tendo sido feita prova documental, nesta execução, do seu cumprimento, não existe título executivo. (art.° 802.° do Código de Processo Civil redação anterior).
Não assiste razão à recorrente.
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O Acordo de reconhecimento e confissão de dívida dado à execução tem uma parte dispositiva e considerandos.
Nesse acordo consigna-se que: “É livremente celebrado, de boa fé firmado e reduzido a escrito o presente ACORDO DE RECONHECIMENTO E CONFISSÃO DE DÍVIDA, que se rege pelas cláusulas seguintes e pelos Considerandos anteriores.
Um desses considerandos, o VI, é o seguinte: “A Segunda Outorgante, a título pessoal, se encontra a reunir o capital para, de uma só vez, liquidar tal dívida’’.  
Nos sistemas de civil law não é frequente a utilização de considerandos, muito usados nos sitemas de common law, com a designação de reliances  
(“The reliances of a deed are the parts that merely declare facts and do not effect any of the substanceof the transaction they are usually inserted to explain the reasons for the transaction’’).
Segundo Paulo do Amaral Rocha “os considerandos de um contrato servem para mostrar o que efectivamente uniu as partes e o que  as levou a se obrigarem reciprocamente e, especificamente quais foram os reais interesses para a formação daquele determinado vínculo contratual’’ (“Considerandos’’: sua importãncia nos contratos civis brasileiros’’, RKLAdvocacia, 14.02.17, internet, consultado a 19.10.2020).
Este autor sublinha que os considerados revelam o espírito da contratação: “ao estabelecerem os considerandos de um contrato as partes têm a oportunidade de delimitar/demonstrar qual foi o real envolvimento que elas tiveram , quais as suas reais intenções, aonde querem chegar com esta contratação, e, o mais importante de tudo, qual a affectio que levou as partes a contratarem, ou seja, qual foi a real declaração de vontade expressa e manifestada livremente por quem quer contratar e o que, finalmente os uniu’’.
O autor acrescenta com pertinência que os considerandos sozinhos não têm força obrigacional/legal, pois se um contrato tivesse apenas os “considerandos’’ sem cláusulas obrigacionais não seria mais do que um pré-contrato.
No caso sujeito, note-se desde já, os considerandos foram incorporados na parte dispositiva do contrato pelo que este problema não se coloca. Prossigamos pois.
Alfredo Rovira sustenta que os “os considerandos adquirem relevância porquanto constituem o lugar e o meio idóneo para cada uma das partes explicitar não só a finalidade imediata, mas também os móbiles que levaram cada uma das partes (ou ambas) a contratar, sendo englobados na noção de causa que deve permanecer durante toda a contratação até à sua conclusão’’ (“La causa, los considerandos y la fuerza vinculante del contrato’’, Revista del Notariado, Buenos Aires, 933 (jul-set, 2018), internet consultado a 19.10.20202).
Somos então conduzidos à noção de causa e ao seu significado no ordenamento jurídico português.
Causa é usada entre nós numa pluralidade de situações: como justificação do despedimento, como título na posse causal, como atribuição patrimonial no enriquecimento sem causa, como fonte de obrigação ou ainda como causa do contrato (A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VII, Direito das Obrigações, Contratos, Negócios Unilaterais, Almedina, 2014: 613 ss.).
Não interessa para a economia deste Acórdão analisar os vários significados com que é utilizada a palavra causa no direito privado (v.g. causa-fonte, causa-fim e causa-motivo) nem abordar as múltiplas doutrinas da causa (v.g. subjectivistas, objectivistas, mistas e negativistas).
Isto porque apesar de nos impressionar as palavras de Oliveira Ascensão quando diz que “a ordem jurídica portuguesa não admite em princípio vinculações porque sim. Não basta dizer que promete. Que entrega. Que aliena. É necessário conhecer a razão jurídica por que o faz’’(Direito Civil, Teoria Geral, Vol II, Acções e Factos Jurídicos , 2.ª ed., coimbra Editora, 2003: 302), e quando vitupera os “brilhantes tecnocratas [leia-se anticausalistas] que pululam na vida pública’’, somos mais sensíveis aos argumentos de Manuel de Andrade quando na esteira de outros autores considera o conceito de causa um conceito dispensável: “Para agrupar as soluções razoáveis que dele se possam deduzir, basta o conceito de objecto (lato sensu), esse indispensável para outros efeitos. A noção de causa só pode interessar quanto aos negócios sem causa (negócios abstractos)… O prescindirmos de a utilizar quanto aos outros negócios é o que está conforme com o princípio da economia de conceitos, aplicação do princípio mais geral da economia de meios (princípio hedonístico). Na ciência do direito, como em qualquer outra vale a máxima de Bacon (Francisco): entia non sunt multiplicanda’’ (Teoria Geral Da Relação Jurídica, Vol II, 3.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 1972: 349).
Modernamente, Menezes Cordeiro segue Manuel de Andrade: “A causa do contrato não tem, pelas razões apontadas, lugar no Direito civil. No fundo, a sua utilidade derivava, apenas, da necessidade de consignar um válvula de segurança nas áreas onde, porventura, a clássica estruturação jurídica fosse incapaz de assegurar a prossecução dos fins do Direito. Mas actualmente, face à maior perfeição alcançada pelas cláusulas gerais, tal precaução afirma-se inútil. Posto o que a definitiva eliminação da causa é apenas questão de completa utilização de outras noções incontroversas’’ (op. cit: 627).
No caso sujeito não é sguramente o conceito de condição que empresta ao ajuizado acordo a natureza de fonte de uma obrigação inexegível.
Condição é uma cláusula acessória típica de um negócio jurídico que Andrade define “como a cláusula por virtude da qual a eficácia de um negócio (o conjunto dos efeitos que ele pretende desencadear) é posta na dependência dum acontecimento futuro e incerto, por maneira que ou só verificado tal acontecimento é que o negócio produzirá os seus efeitos (condição suspensiva) ou então só nessa eventualidade é que o negócio deixará de os produzir (condição resolutiva)’’ (op. cit: 356).
São vários, porém, os sentidos do termo condição, sendo também usado para referirmos qualquer pressuposto ou requisito exigido para a produçõ de algum efeito do negócio jurídico.
Pois bem, o considerando aludido pela recorrente não representa qualquer condição.
As cláusulas contratuais especificam o valor em dívida e reconhecido, modalidade de pagamento, perda de benefício do prazo e meios coercivos em caso de incumprimento. Mas em nenhum momento elas dão a entender qual a fonte dessa dívida, por que é que a primeira outorgante se vinculou e a segunda aceitou esse reconhecimento. São os considerandos que demonstram essas peculiaridades, mas sem afectarem e ou condicionarem qualquer elemento do acordo.
De resto, como bem argumenta o primeiro grau “mal se compreenderia que, como resulta claro da mais descomprometida leitura da cláusula segunda do Acordo, a Executada tivesse assumido e confessado, de forma incondicional, ser devedora da precisa quantia de 18.799,44€, e tivesse assumido perante a Exequente o seu pagamento em prestações, aprazando o vencimento da primeira para 13-08­2013 (dia da assinatura do acordo) e das restantes para o dia 25 dos meses seguintes, sem fazer depender o pagamento de todas ou parte das prestações do pagamento da dívida à Segurança Social pela Exequente’’.
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Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, em confirmar a decsião impugnada.
Custas pela recorrente.
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22.10.2020
Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura