AGRAVAMENTO DE PENA
FACTOS NÃO PONDERADOS
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário


I) Mostrando-se documentalmente comprovado, conforme se extrai dos elementos de fls. 26/27 dos autos, cuja veracidade não foi infirmada, que o arguido, por decisão proferida em 3/5/2018, beneficiou de uma suspensão provisória do processo pelo período de 6 meses, por factos susceptíveis de integrar o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tratando-se de uma circunstância com interesse para a boa decisão da causa, mais concretamente no contexto da determinação da medida da pena, operação que envolve o conhecimento de factos relativos à pessoa do arguido, cremos que devia a mesma ter sido elencada na factualidade provada e ponderada, como o foi também a menção à ausência de antecedentes criminais.
II) Sendo inquestionável que o registo do mencionado processo de suspensão provisória do processo não pode ter o peso de uma condenação transitada em julgado, nada obsta que o tribunal o tenha em conta na dosimetria da pena, devendo atender-se que o artigo 71º,nº2, do Código Penal, na determinação concreta da pena, manda considerar “as condições pessoais do agente e a sua situação económica” (al.d)), a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al.e)) e “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto” (al.f)).
III) Resultando do texto da decisão recorrida que dela não consta a menção à existência de tal suspensão provisória do processo e revelando-se tal circunstância de interesse para a determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, na medida em que não pode deixar de sopesar ao nível das exigências de prevenção especial, cremos poder concluir-se que a mesma padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a) do nº2 do artigo 410º do C.P.P..

Texto Integral


Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira

Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.
No processo sumário, com o número 91/19.0GTVRL, que corre termos no Juízo Local Criminal de Vila Real, realizado o julgamento, foi proferida sentença a condenar o arguido A. C., para além do mais, pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º1 do C. Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo a quantia global de € 300,00 (trezentos) euros.
Mais foi condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º1, al. a) do Código Penal (por referência ao artigo 292.º do mesmo Código).

2.
Não se conformando com o decidido, o Ministério Público recorreu da sentença, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
«CONCLUSÕES

A)Decidiu o Tribunal a quo condenar o arguido A. C., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal (C.P.), na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo a quantia global de € 300,00 (trezentos) euros [na parte que ora efetivamente releva];
B)Recorremos da medida da pena concreta, em termos de quantitativo punitivo da pena principal, de multa, e bem assim do quantitativo diário estipulado;
C)O arguido, como se extrai objetivamente do documento de fls. 23, aquando da fiscalização e detenção em flagrante delito, encontrava- -se a conduzir um veículo automóvel com uma TAS de 1,628 g/l [deduzida a margem de erro máxima admissível e correspondente à TAS registada de € 1,77 g/l], taxa esta que se afasta substancialmente do limite de 1,20 g/l;
D)O arguido não apresenta antecedentes criminais, é certo, mas, conforme resulta do documento de fls. 26/27, beneficiou já da aplicação de uma suspensão provisória do processo por factos da mesma natureza, praticados no ano de 2018, no âmbito da qual lhe foi aplicada, além do mais, uma injunção pecuniária no valor de € 400,00 (quatrocentos euros), suspensão que o mesmo cumpriu, já finda a 26-11-2018;
E)Em relação às suas condições pessoais e socioeconómicas, o arguido declarou que trabalha por conta própria, em nome individual, como carpinteiro, auferindo mensalmente salário não inferior a € 600,00, a esposa trabalha numa loja de roupa, auferindo mensalmente cerca de € 500,00; de despesas fixas mais relevantes tem o empréstimo da casa ao banco, mas que é própria, no valor mensal de € 430,00 e € 147,00 do infantário do filho de 6 anos de idade;
F)Face à factualidade dada como provada, com ênfase de apreciação na concreta taxa de álcool apresentada, já muito elevada, bem como ao registo de suspensão provisória aplicada ao arguido no ano de 2018, por factos idênticos, e pese embora a ausência de antecedentes criminais, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo e melhor entendimento, não se nos afigura adequado nem proporcional à gravidade do crime, nem satisfaz as exigências de prevenção geral e de prevenção especial o quantum punitivo da pena principal, de multa, em que o arguido foi condenado;
G)Concordamos apenas com o quantum estipulado a título de pena acessória;
H)Elementos fundamentais da operação da escolha e determinação da pena, são a proteção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente portanto, fins de prevenção – geral e especial – por um lado, e a sua limitação pela medida da culpa do agente, por outro;
I)O crime por que o arguido foi condenado, tal como preceitua o art.º 292.º, n.º1 do C.P. “(…) é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. (…)”;
J)Chamando à colação o disposto no art.º 47.º, n.º1 do mesmo código, temos que o limite punitivo da pena de multa sub species está compreendido entre 10 (dez) e 120 (cento e vinte) dias de multa;
K)O Tribunal a quo condenou o arguido em 50 (cinquenta) dias de multa, em limite inferior ao meio da pena;
L)Atentas as circunstâncias a que nos referimos concretamente supra em C), D) e H) não poderia o Tribunal a quo, sempre sem prejuízo de melhor entendimento de Vossas Excelências, condenar o arguido em menos de 90 (noventa) dias de multa;
M)O arguido exercia a condução com uma taxa de álcool muito elevada, substancialmente superior ao limite máximo permitido (para consubstanciar o crime);
N)Apesar de não apresentar antecedentes criminais, nada impede o Tribunal a quo de, face ao registo anterior de uma suspensão provisória do processo, ter esse elemento documental em conta para efeitos de melhor ponderação em sede de medida concreta da pena; não é agravante porque não consta do registo criminal como qualquer condenação anterior, mas é um elemento documental a ter em conta na melhor prossecução da justiça material;
O)Se é um facto que não prejudica o arguido pois também não o pode favorecer;
P)Relativamente à fixação do quantitativo diário da pena de multa, ultrapassada que se mostra a primeira das fases da determinação da medida concreta da pena, o tribunal tem de atender à situação presente para adequar a pena de multa de modo a não fixar uma pena nem que seja de cumprimento impossível, nem que se traduza numa quase absolvição;
Q)Se o montante for desajustado porque demasiado baixo o cumprimento da pena não gera nem sacrifício, nem desconforto, e acaba por não se fazer sentir;
R)In casu, o arguido trabalha por conta própria (não esqueçamos) e a mulher também tem emprego remunerado, tendo ambos rendimentos que ascendem mensalmente, a pelo menos € 1.100,00;
S)O montante diário da pena de multa, € 6,00, tendo em conta os patamares abstratos tão distantes um do outro previstos no art.º 47.º, n.º2 do C.P., deve ser fixado em termos de tal sanção representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar a génese da pena, os tribunais e a própria justiça, além de se elevar um absoluto sentimento de impunidade;
T)Como assim têm decidido de forma unânime os nossos tribunais superiores, o quantitativo diário de € 5,00 apenas deverá ser aplicado aos condenados de mais baixos rendimentos, designadamente, àqueles que nem sequer ganham o suficiente para fazer face às necessidades mais elementares, sob pena de se desvirtuar a essência da pena de multa e se criarem injustiças relativas entre os condenados;
U)Por questões de estrita justiça material e de Lei, também por proporcional, adequado, razoável e exigível, que o mínimo diário da taxa da multa tem de se situar entre os € 7,00 (sete euros) e os € 8,00 (oito euros);
V)50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) não é pena, nem o arguido irá sentir esta condenação como qualquer pena, por absolutamente desajustada e desrazoável, em violação crassa e indesculpável, pelo menos, dos artigos 14.º, 26.º, 40.º, 47.º, 70.º, 71.º e 292.º, n.º1, todos do C.P..

Nestes termos, deverá, pois, proceder o presente recurso, revogando-se parcialmente a Sentença proferida e substituindo-a por outra que 1)condene o arguido A. C. na pena de 90 (noventa) dias de multa e 2)em quantitativo diário compreendido entre € 7,00 (sete euros) e € 8,00 (oito euros), por proporcional, necessário, adequado, razoável e exigível, ou, se assim não se entender, num quantitativo punitivo substancialmente superior aos 50 (cinquenta) dias estipulados, e em quantitativo diário superior a € 6,00 (seis euros).
Deverá manter-se, no mais, a condenação em pena acessória nos seus precisos termos, bem como quanto às custas processuais e encargos, por assertivo o sentido decisório do Tribunal a quo, nesta parte.
Farão, contudo, Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, a reiterada JUSTIÇA

3.
O arguido não respondeu ao recurso.

4.
Neste tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador – Geral Adjunto emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da pena de multa dever rondar o ponto médio (65 dias) e o seu quantitativo diário um valor compreendido entre 7€ e 8€.

5.
Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., o arguido não respondeu a tal parecer.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.


II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – nestas se incluindo a detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no artigo 410º,nº2, do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devem considerar-se sanadas, nos termos do artigo 379º,nº2 e 410º,nº3, do mesmo diploma – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
No caso vertente, deteta-se efectivamente da sentença recorrida um desses vícios decisórios, concretamente a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a), do citado nº2, do artigo 410º.

Assim, tendo presente, por um lado, a necessidade de conhecer oficiosamente desse vício e, por outro, as conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões a decidir:

- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
- A medida da pena de multa aplicada, quer quanto ao número de dias fixado, quer quanto ao quantitativo diário.

B) Da decisão recorrida

Da decisão recorrida importa ter presente os seguintes factos dados como provados:
No dia - de dezembro de 2019, pelas 17h43min, na Estrada Municipal …, Km 12, União de Freguesias de … – Chaves, o arguido conduzia o veículo automóvel com a matrícula BN, com uma taxa de álcool (TAS) de 1,628 g/l [deduzida a margem de erro máxima admissível e correspondente à TAS registada de 1,77 g/l, onde foi intercetado por autoridade policial que ali se encontrava em funções de patrulhamento e/ou fiscalização de trânsito (sublinhado nosso).
Sabia o arguido que não lhe era permitida a condução de veículos com motor na via pública após a ingestão de bebidas alcoólicas e, não obstante, agiu livre, voluntária e conscientemente, levando por diante a sua conduta, nos termos em que o fez, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei.
O arguido reside com a esposa e o filho de seis anos.
Trabalha por contra própria e aufere cerca de seiscentos euros por mês.
A esposa também trabalha e aufere cerca de seiscentos euros por mês.
O arguido reside em casa própria e paga cerca de quatrocentos e trinta euros mensais a título de empréstimo bancário que contraiu para comprar a casa em que atualmente reside, bem como cento e quarenta e sete euros relativo ao infantário privado em que se encontra atualmente o seu filho, com o qual reside.
O arguido não tem antecedentes criminais.»

C)Apreciando

O arguido foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº1, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 (seis euros), o que perfez a quantia total de €300,00 (trezentos euros), bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de cinco meses.
Desta decisão, o recorrente apenas concordou com o quantum estipulado a título de pena acessória, pugnando pela alteração do decidido quanto à medida da pena de multa e respectivo quantitativo diário.
Considera o recorrente que face à factualidade dada como provada, com ênfase de apreciação na concreta taxa de álcool apresentada, já muito elevada, bem como o registo de suspensão provisória aplicada ao arguido no ano de 2018, por factos idênticos, e pese embora a ausência de antecedentes criminais, o número de dias de multa fixado (50 dias) não se afigura adequado nem proporcional à gravidade do crime, nem satisfaz as exigências de prevenção geral e de prevenção especial que se fazem sentir, pugnando que a sua fixação não seja inferior a 90 dias.
Também quanto ao quantitativo diário dessa pena, considerou desajustado o fixado na sentença recorrida (6,00€), porquanto, atendendo ao rendimento global do agregado familiar, tal pena não gera nem sacrifício, nem desconforto, acabando o arguido por não a sentir.
Antes de entrar na apreciação da concreta questão objecto do presente recurso, cumpre conhecer do vício decisório de que padece a decisão recorrida e já supra identificado, o qual pese embora não tenha sido invocado expressamente é do conhecimento oficioso do tribunal, conforme jurisprudência fixada no acórdão nº7/95 de 19 de outubro, in D.R, I Série –A, de 28/12/1995.
A propósito do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, referem Simas Santos e Leal Henriques, in CPP Anotado, II volume, 2ª edição, pág. 737, que o mesmo refere-se “…à insuficiência que decorre da omissão pronuncia pelo tribunal, sobre factos, alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão”.
(…)
“Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição”.
O conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito do ponto de vista das várias soluções que se perfilem: absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc.. E tal porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa (art.368,nº2, do C.P.P.), ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, dada a sua importância para a decisão.
Consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. É algo que facto para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efectivamente, seja outra, em sentido diferente.
Ora, um dos argumentos invocados pelo recorrente para fundamentar o desajuste do quantum da pena de multa prende-se com o facto do arguido já ter um registo de uma suspensão provisória do processo, por factos idênticos, ocorridos no ano de 2018, circunstância que não foi ponderada pela Mma Juiz na decisão recorrida.
E, na verdade, tendo este tribunal procedido à audição da sentença oral, resulta à evidência que tal circunstância não foi ponderada, em nenhum momento, na operação da determinação da pena.
Não foi ponderada é certo, mas também não consta do elenco dos factos provados.
No entanto, compulsados os autos, mostra-se documentalmente comprovado, conforme se extrai dos elementos de fls. 26/27 dos autos, cuja veracidade não foi infirmada, que no âmbito do inquérito 20/18.9PTCHV, o arguido, por decisão proferida em 3/5/2018, beneficiou de uma suspensão provisória do processo pelo período de 6 meses, por factos susceptíveis de integrar o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo na sequência das injunções que lhe foram impostas e que cumpriu, ficado proibido de conduzir veículos a motor pelo período de quatro meses e procedido à entrega nos Bombeiros Voluntários ... da quantia de €400,00.
Ora, tratando-se de uma circunstância com interesse para a boa decisão da causa, mais concretamente no contexto da determinação da medida da pena, operação que envolve o conhecimento de factos relativos à pessoa do arguido, cremos que devia a mesma ter sido elencada na factualidade provada e ponderada, como o foi também a menção à ausência de antecedentes criminais.
Sendo inquestionável que o registo do mencionado processo de suspensão provisória do processo não pode ter o peso de uma condenação transitada em julgado, nada obsta que o tribunal o tenha em conta na dosimetria da pena, devendo atender-se que o artigo 71º,nº2, do Código Penal, na determinação concreta da pena, manda considerar “as condições pessoais do agente e a sua situação económica” (al.d)), a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al.e)) e “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto” (al.f)).
Nesse sentido, entende Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”pág.253, Ed.Notícias, 1993, que “Diferente será a situação relativamente a factos que tenham conduzido ao arquivamento ou à suspensão provisória do processo, nos termos dos artigos 280º e 281º do C.P.P: não podendo, decerto, o juiz equiparar estas situações às de «condenações» anteriores, nada parece impedir, em definitivo, que ele possa valorar estes elementos em sua livre convicção, para determinar a medida da culpa e (ou) as exigências da prevenção”.
Resultando do texto da decisão recorrida que dela não consta a menção à existência de tal suspensão provisória do processo e revelando-se tal circunstância de interesse para a determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, na medida em que não pode deixar de sopesar ao nível das exigências de prevenção especial, cremos poder concluir-se que a mesma padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a) do nº2 do artigo 410º do C.P.P..
No entanto, sendo tal vício passível de ser reparado por este tribunal, em face dos elementos documentais juntos aos autos a fls. 26/27, sem necessidade de proceder ao reenvio dos autos à primeira instância, procede-se à sua imediata sanação, aditando-se ao elenco dos factos provados, com base em tais elementos, o seguinte:
“No âmbito do inquérito 20/18.9PTCHV, o arguido, por decisão proferida em 3/5/2018, beneficiou de uma suspensão provisória do processo pelo período de 6 meses, por factos susceptíveis de integrar o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo na sequência das injunções que lhe foram impostas e que cumpriu, ficado proibido de conduzir veículos a motor pelo período de quatro meses e procedido à entrega nos Bombeiros Voluntários ... da quantia de €400,00”.

Vejamos agora se assiste razão ao recorrente quanto ao desajuste da pena aplicada.
O crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tipificado no artigo 292º, nº1, do C.Penal é punido em abstracto com “pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
O tribunal a quo optou pela aplicação da pena de multa, opção que não foi questionada pelo recorrente.
A multa é uma pena fixada em dois momentos, sendo no primeiro acto de fixação dos dias (de multa) que o juiz deve atender à culpa e às exigências de prevenção (art.71ºdo C.Penal).
A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1 do C. Penal) mas, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo).
Por outro lado, estabelece o art. 71º, nº 1 do C. Penal que, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Um dos princípios basilares do C. Penal vigente reside na compreensão de que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como desde logo pronuncia o art. 13º ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
Tal princípio da culpa significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena, ou seja, a culpa não constitui apenas o pressuposto-fundamento da validade da pena, mas firma-se também como limite máximo da mesma pena.
A este propósito, e conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal II, pag. 229, dentro do binómio culpa-prevenção há que ter em conta que a medida da pena não poderá ultrapassar a medida da culpa; a verdadeira função desta na teoria da medida da pena reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso, pois, a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer questões preventivas, sejam de prevenção a nível geral positiva ou negativa, de integração ou intimidação; sejam de prevenção, neutralização ou pura defesa social.
Há decerto, uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias: medida, pois, que não pode ser excedida em nome de considerações de qualquer tipo. Mas, abaixo desse ponto óptimo, outros existem em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.
Nesta acepção, poderá até afirmar-se que é a prevenção geral positiva, ela sim (e não a culpa), que fornece um « espaço de liberdade ou de indeterminação, uma « moldura de prevenção », dentro da qual podem e devem actuar considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização.
Mas, para além dos mencionados critérios orientadores gerais contidos no artigo 71º do C.Penal - culpa e exigências de prevenção, geral e especial - na determinação da medida concreta da pena atender-se-á, ainda, a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo deponham a favor ou contra aquele.

São elas, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do doto ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
j) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena".

Alinhados estes princípios, vejamos então se a pena de multa peca por brandura quanto ao número de dias.
Para o recorrente, como já referimos, não foi devidamente ponderada na determinação do número de dias de multa a elevada taxa de álcool apresentada. Para além disso, não foi tido em conta pelo tribunal a quo que o arguido já beneficiou no ano de 2018 da aplicação de uma suspensão provisória do processo, que cumpriu, por factos da mesma natureza.
Tendo-se procedido à audição da gravação da sentença proferida oralmente, pode retirar-se da mesma que o tribunal a quo, na ponderação da medida concreta da pena de multa, considerou a taxa de alcoolémia de que era portador o arguido, o seu grau de culpa (médio/alto), as exigências de prevenção geral, as quais considerou elevadas, e de prevenção especial, estas de nível médio/baixo, atenta a postura assumida pelo arguido em audiência de julgamento (confissão dos factos) e a ausência de antecedentes criminais.
Cremos, no entanto, que não sopesou de forma adequada o grau de ilicitude na medida da pena.
Com efeito, tendo em conta a TAS que o arguido apresentava (1,628 g/l) a mesma não pode deixar de ser tida como elevada, considerando o limite a partir do qual o comportamento é punido como crime, o que aponta, portanto, para um grau de ilicitude elevado, grau este que não se compadece com o número de dias fixado.
É certo também que, como assinalou e reforçou o tribunal a quo, o arguido não tem antecedentes criminais, para além de que confessou integralmente e sem reservas os factos.
Todavia, tais circunstâncias atenuantes, não podem, de modo algum, ser ponderadas de molde a neutralizar quase por completo o elevado grau de ilicitude da conduta e da culpa e as fortíssimas exigências de prevenção que se fazem sentir neste tipo de ilícito, sendo que a confissão é de reduzida ou nula relevância para a descoberta da verdade material, uma vez que o arguido foi detido em flagrante delito.
Acresce que, fazendo-se sentir com pertinência neste tipo de crime as exigências de prevenção especial, com vista à consciencialização e socialização do arguido de que no futuro paute a sua conduta/condução de acordo com o prescrito na lei, cremos que também as mesmas não foram devidamente sopesadas.
Na verdade, importa considerar que não obstante a ausência de antecedentes criminais, o arguido já havia sido confrontado, em data anterior aos factos em apreço, com uma condução de veículo em estado de embriaguez com uma TAS superior a 1,20 g/l, tendo no âmbito de tal episódio e do respectivo inquérito que lhe foi instaurado beneficiado de uma suspensão provisória do processo, com a consequente imposição de injunções, que cumpriu.
Não obstante tal confronto, o arguido voltou a envolver-se neste tipo de condução, o que ao nível das exigências da prevenção especial não pode deixar de ser ponderado com mais intensidade do que aquela que foi ponderada pelo tribunal recorrido, impondo-se fazer sentir que a condução automóvel enquanto actividade perigosa que é, pelos riscos que comporta, não se compadece com a ingestão de elevadas quantidades de álcool, que quanto mais elevadas, afectam as suas capacidades de concentração, reacção e destreza e, consequentemente, diminuem os seus reflexos.
Deste modo, ponderada a ilicitude do facto, já elevada, a culpa do arguido e as prementes exigências de retenção, de defesa do ordenamento jurídico e da paz social em tal tipo de ilícito, sem deixar de lado as necessidades de prevenção especial, cremos que a pena de multa peca por brandura, julgando-se assim adequada, proporcional e necessária, em face das finalidades da punição, a pena de 75 (setenta e cinco) dias multa.
Volvendo-nos agora na fixação do quantitativo diário da pena de multa - segunda operação no âmbito da determinação da pena de multa – dispõe o artigo 47º,nº2 do C.Penal, que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre €5 e €500, que o tribunal fixa em função da situação económico-financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”.
O tribunal a quo fixou-o em €6, ou seja, 1,00 € acima do mínimo legal.
O recorrente pugna pela fixação do quantitativo diário da pena de multa entre os €7 e €8 euros.
Tendo em conta o que resultou provado a respeito da situação pessoal e económica do arguido e que se impõe realçar a natureza de pena da multa criminal, com a inerente inflição de um sacrifício ao condenado, porquanto este é essencial à prossecução das finalidades das penas, tanto de prevenção geral, como de prevenção especial, afigura-se-nos que o quantitativo fixado peca por alguma brandura.
“Como a multa é uma pena, o montante diário da mesma deve ser fixado em termos de tal sanção representar um sacrifício real para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade de impunidade” (Acórdão do S.T.J de 2/10/97, in CJ, Ano V, tomo 3, págs.183/184).
Também F. Dias, in ob. cit. p. 119, salientou que “Impõe-se…que a pena de multa represente em cada caso uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada”.
Assim, até porque a multa é muitas vezes percebida mais como uma taxa que como uma pena, a sua credibilidade enquanto consequência jurídica do crime não pode deixar de assumir carácter aflitivo para o condenado, sendo igualmente inerente a esta pena, como às demais, que possa afetar o modo de vida do próprio e dos que dele dependam, mesmo na sua vertente patrimonial.
Ainda a propósito da determinação da medida concreta da pena (abrangendo, portanto a fixação do quantitativo diário), refere também Figueiredo Dias que “… o único limite inultrapassável é constituído, em nome da preservação da dignidade da pessoa, pelo asseguramento ao condenado do nível existencial mínimo adequado às suas condições sócio económicas; tanto mais que o condenado tem sempre a possibilidade (em todo o caso político-criminalmente indesejável, e na verdade indesejada pela ordem jurídica) de não pagar a multa, sofrendo, todavia, nesse caso, os efeitos ou as sanções subsidiariamente cominados” – cfr ob. cit. pp. 119-120.
Deste modo, tendo presente, por um lado, que o arguido vem exercendo uma actividade por conta própria, com a qual vem obtendo um rendimento mensal que ronda os 600,00 euros, que a sua esposa também desempenha uma actividade profissional, com a qual aufere um rendimento igual, que o casal teve capacidade económica para adquirir casa própria, ainda que com o recurso a empréstimo bancário e suporte da respectiva prestação, que apenas têm um filho menor a cargo e, por outro, que vem sendo entendimento dos tribunais superiores que os quantitativos mínimos devem ser reservados para aqueles indivíduos que vivem abaixo ou no limiar da subsistência – o que não parece ser a situação do arguido - graduando-se a partir daí os demais, temos por mais adequado, proporcional e razoável fixar o quantitativo diário da pena de multa em €7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), sendo certo que o arguido sempre poderá requerer formas diferentes ou substitutivas de cumprimento da pena.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso e, consequentemente:

A)Sanar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, oficiosamente detetado na sentença recorrida, determinando-se que do elenco dos factos provados passe a constar que: “No âmbito do inquérito 20/18.9PTCHV, o arguido, por decisão proferida em 3/5/2018, beneficiou de uma suspensão provisória do processo pelo período de 6 meses, por factos susceptíveis de integrar o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo na sequência das injunções que lhe foram impostas e que cumpriu, ficado proibido de conduzir veículos a motor pelo período de quatro meses e procedido à entrega nos Bombeiros Voluntários ... da quantia de €400,00”.
B)Alterar o quantum da pena de multa em que o arguido A. C. foi condenado para 75 (setenta e cinco) dias, fixando-se o seu quantitativo diário em €7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), mantendo-se no demais o decidido.

Sem tributação.

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)

Guimarães, 12 de outubro de 2020