ARRENDAMENTO URBANO
ARRENDAMENTO DE PARTE DE PRÉDIO NÃO CONSTITUÍDO
DIREITO DE PREFÊRENCIA DO ARRENDATÁRIO
VENDA DE PARTE ALÍQUOTA DE PRÉDIO INDIVISO
Sumário

I - A lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o acto de transmissão.
II - Não estando o prédio onde se insere o locado constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência incide sobre a totalidade do prédio, com recurso ao mecanismo de licitações em caso de pluralidade de interessados.
III - O artigo 47.º RAU reconhece o direito de preferência na venda do imóvel ou de fracção autónoma, mas não de uma parte alíquota.
IV - A circunstância de as partes de um prédio indiviso serem passíveis de autonomização é irrelevante para o exercício do direito de preferência porque enquanto não se proceder à constituição da propriedade horizontal a autonomia dos espaços não têm qualquer significado jurídico, não podendo ser objecto de negócio jurídico.

Texto Integral

Apelação n.º 10307/16.0T8PRT.P2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, Ld.ª, com sede na Rua …, n.º .., …, Guimarães, intentou acção declarativa constitutiva sob a forma de processo comum contra C…, com sede na …, n.º .., Porto, e D…, S.A., com sede na Rua …, n.º …, 9.º, Porto, pedindo:
a) o reconhecimento judicial à A. do direito a preferir à R. D…, S.A., na compra identificada na petição inicial;
b) o reconhecimento judicial do direito da A. a haver para si o prédio identificado na petição inicial;
c) o cancelamento da inscrição registada pela ap. 2218, de 05 de Fevereiro de 2015, relativa ao prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º …/20040504-…;
d) o cancelamento de quaisquer inscrições prediais averbadas ao mesmo prédio, e relativas a qualquer transmissão ou oneração do direito de propriedade por parte da R. D…, S.A..

Alegou para tanto, e em síntese, que, por contrato celebrado a 21 de Setembro de 2012, tomou de arrendamento o rés-do-chão e sobreloja do prédio urbano sito na …, n.ºs .., .. e .., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob parte do n.º …/20040504, inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias … sob o artigo 4984.º.

E que, por escritura pública outorgada a 05 de Fevereiro de 2016, a R. C… declarou vender à R. D…, S.A., 60/100 do prédio urbano sito na …, n.ºs . a .. e .. a .., e …, n.º .., da União das Freguesias …, Porto, venda submetida à condição suspensiva do não exercício de direitos de preferência no prazo de 8 dias.

Afirma que, notificada da escritura e para exercer o seu direito de preferência, exerceu-o a 19 de Fevereiro de 2016, estritamente sobre o imóvel identificado e caracterizado no contrato de arrendamento que havia celebrado, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 417.º CC, propondo pagar, pela parte que preferiu, o valor constante da escritura para o artigo matricial 4984.º.

E que, por instrumento lavrado a 04 de Março de 2016, os representantes da R. C… autorizaram a extinção da cláusula suspensiva fixada na venda, com o fundamento de não ter sido exercido o direito de preferência.

Alega inexistir prejuízo apreciável na venda separada das diversas lojas e espaços arrendados, e invoca a seu favor as normas previstas no n.º 1 do artigo 417.º, na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º, e no artigo 1410.º, todos CC.

Contestaram as RR..

A R. C… aceitou a venda invocada na petição inicial, a qualidade de arrendatária da A. relativamente a parte do prédio objecto da venda, e ainda a comunicação que recebeu da A. relativamente à sua pretensão em preferir na aquisição do imóvel descrito na alínea n) da escritura de compra, pelo preço que proporcionalmente lhe foi atribuído.

Afirma que a venda celebrada com a R. D…, S. A., incidiu sobre uma parte indivisa de uma unidade predial, e não sobre o “quid” que a A. pretendia e pretende adquirir.

Alega que a A. tomou de arrendamento uma parte de um prédio muito maior que o espaço dado em locação, integrando o locado uma única unidade predial com diversas construções, tudo edificado ao longo de diversos anos, mas com unidade estrutural, na medida em que os seus elementos essenciais, designadamente paredes-mestras, pilares e vigas de sustentação, bem como os seus telhados, constituem uma só unidade predial.

E que a que a R. D…, S. A., pretendia e pretende tornar-se dona de um prédio urbano a criar através da divisão física e jurídica do actualmente existente, carecendo este de vultuosas obras de separação física para que, de uma perspectiva jurídica, se possa afirmar a existência de dois prédios distintos.

Afirma que mesmo a descrição constante do contrato de arrendamento mostra-se incorrecta, na medida em que os pisos superiores do espaço dado de arrendamento não têm, nem nunca tiveram, entrada pelos n.ºs .., .. e .. da …, o que sucedia já à data da celebração do arrendamento.

E que a descrição constante do artigo matricial 4984.º não possui autonomia do restante conjunto predial pertença da contestante, e não coincide com o espaço arrendado à A..

Por isso defende a impossibilidade jurídica da pretensão da A., atento o disposto nos artigos 202.º e 280.º CC.

Explica as motivações que presidiram à decisão de venda feita, alegando que jamais pretenderia alienar separadamente a parte que a A. pretende haver para si.

Em qualquer caso, afirma que da venda separada do espaço locado à A., se possível, sempre resultaria prejuízo apreciável para a parte restante do imóvel.

A R. C…, S. A., aceitando a celebração da compra com a R. D… e o contrato de arrendamento invocado na petição inicial, afirma ser inaplicável aos autos a norma consagrada no n.º 1 do artigo 417.º do Código Civil, na medida em que a venda incidiu sobre 60/100 de uma única coisa jurídica, e não sobre várias coisas com convenção global sobre o preço, e a realidade sobre que a A. pretende preferir não coincide com o objecto da venda feita.

Afirma que, segundo a lei vigente, o direito de preferência reconhecido ao arrendatário de parte de imóvel de maiores dimensões não abrange a faculdade de preferir no caso de venda da totalidade do imóvel.

Invoca existir discrepância entre o objecto do contrato de arrendamento e o artigo matricial indicado no contrato de arrendamento, na medida em que aquele inclui apenas a cave e o rés-do-chão do prédio inscrito na matriz sob o artigo 4984.º, e neste inclui-se ainda um primeiro andar.

Alega que a separação da parte do imóvel correspondente ao locado ocupado pela A., consequente ao reconhecimento da legitimidade do exercício da preferência, traria prejuízo assinalável à vendedora, na medida em que a declaração de compra da contestante foi emitida no pressuposto de inexistir qualquer separação.

Nega que a venda separada dos vários espaços do imóvel fosse ou seja mais rentável que a venda dos 60/100 como uma coisa só.
Defende que, em qualquer caso, o preço a depositar pelo preferente ascende a € 9.200.000,00, depósito que a A. não efectuou.

Afirma que a A., na data em que se apresentou para alegadamente exercer o seu direito de preferência, não havia cumprido as obrigações fiscais inerentes à transmissão que pretendia, concretamente não havia procedido ao pagamento do imposto de selo e do IMT, o que, defende, sempre obstaria à celebração da escritura de venda a favor da A..
Conclui pedindo a procedência das excepções peremptórias de caducidade, e, em qualquer caso, a improcedência da acção, com a consequente absolvição da R. do pedido.
Expressamente notificada, ao abrigo disposto no n.º 3 do artigo 3.º CPC, para se pronunciar quanto às excepções suscitadas pelas RR. nas suas contestações (cfr. fls. 310), a A. apresentou novo articulado, no qual, em súmula, afirma que o depósito da quantia de € 150.000,00 que fez à ordem dos presentes autos constitui o resultado da avaliação efectuada por técnico, representando a contrapartida a pagar pela A. à R. C… a título de preço da compra do imóvel tal como identificado no contrato de arrendamento, único depósito a que, defende, está vinculada para eficazmente exercer a preferência a que se arroga.
Reafirma que a venda feita à R. D…, S. A., abrangeu diversos bens, pelos quais foi pago um preço global, assistindo à A. a faculdade de preferir quanto a apenas um dos bens objecto da venda.
Conclui pedindo a improcedência da excepção de caducidade e a procedência do pedido formulado na petição inicial.
Dispensada a audiência prévia, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente.
Interposto recurso pela A., foi anulado o saneador sentença e determinado o prosseguimento dos autos para produção de prova sobre a matéria de facto indevidamente levada aos pontos 6 a 15 dos factos dados como provados na decisão recorrida.
A A. recorreu para o STJ, que não conheceu do objecto do recurso.
Regressados os autos, foi inicialmente dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, e procedido à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
Tendo pelas partes sido apresentadas reclamações, foi designada data para a realização de audiência prévia, no âmbito da qual aquelas foram apreciadas.
Procedeu-se à audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a acção improcedente.
Inconformada, apelou a A., apresentando as seguintes conclusões:

1. É entendimento da Recorrente, pelos motivos supra alegados que foram dados como incorrectamente provados os factos 8-, 9-, 16-, 17-, 18-, e 19-, inclusive, constantes dos factos dados como provados na douta sentença recorrida.

2. Na verdade os depoimentos prestados pelas testemunhas enunciadas na alegação supra, o relatório de peritagem junto aos autos e os esclarecimentos fornecidos pelo Sr. Perito Eng. E… levam a um entendimento factual totalmente distinto do que vem plasmado na douta sentença recorrida, o que procedendo, como certamente V. Exas. não deixarão de o fazer, ao correcto enquadramento dos factos, tal só poderá levar à procedência total da acção.

3. Ao contrário do que se defende no douta saneador sentença, não corresponde à verdade que “o registo predial não possui conceito próprio de prédio, tomando, como não poderia deixar de ser, o da lei civil geral – artigos 79.º ss do Código do Registo Predial”.

4. Para além de o conceito de prédio não encontrar uniformidade de entendimentos na doutrina, o próprio legislador o considera de diversos ângulos, de acordo com o respetivo enquadramento legal: profusão de entendimentos que se materializam em vários preceitos legais.

5. Assim, embora o artigo 204.º do Código Civil não avance com nenhuma definição de “prédio”, ajuda, no entanto, na pretendida fixação do conceito, ao traçar o âmbito do conceito das “coisas imóveis”, através da distinção entre os prédios, as águas, as plantações e as próprias partes integrantes dos prédios.

6. Posição diferente, designadamente quanto à abrangência do conceito, assume o legislador no CIMI, cujo n.º do artigo 2.º define “prédio” como:
“…Toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontram implantados, embora situados numa fracção de território que constitua parte integrante de um património diverso ou tenha natureza patrimonial.”

7. Sem qualquer menção às fracções autónomas, a alínea s) do artigo 6.º do Decreto Lei n.º 224/2007, de 31 de Maio (que visa a criação do SINERGIC – Sistema Nacional de Exploração e Gestão de Informação cadastral), também define “prédio”, como “a parte delimitada do solo juridicamente autónoma, abrangendo as águas, plantações e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes com carácter de permanência.”

8. E porque o comércio jurídico imobiliário compreende todas as coisas imóveis (os prédios rústicos e urbanos, as águas, as plantações, os direitos inerentes a todos os imóveis e as partes integrantes dos prédios rústicos e urbanos), não faz sentido restringir o conceito de prédio, para fins registrais, ao que se retira da alínea a) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Civil.

9. Por sua vez, o artigo 79.º do CRP determina que a descrição do prédio tem por fim a sua identificação física, económica e fiscal. Ora, não é possível tratar adequadamente a identificação física de um prédio sem nele incluir a menção de águas, plantações, direitos inerentes e partes integrantes, que assumam importância física e económica relevante.

10. Ressalta, ainda, do preceituado no artigo 28.º do CRP, a exigência da harmonia entre a descrição predial constante do registo e a correspondente inscrição matricial dos serviços fiscais. Harmonização que impõe a uniformidade de entendimento no conceito de “prédio”.

11. A mesma preocupação de harmonia, é espelhada em outros diplomas, entre os quais se destaca o já referido Regulamento do cadastro Predial (artigo 27.º do Regulamento) e, bem assim, o Decreto Lei 224/2007, de 31 de Maio – alínea m) do artigo 6.º, n.º 1 do artigo 22.º e n.º 2 do artigo 3.º deste diploma).

12. Na sequência da referida harmonização, pode ler-se no Preâmbulo da resolução do Conselho de Ministros n.º 45/2006, de 2 de Março:
“A informação predial única (…) consiste na reconciliação e condensação sistemática da realidade factual da propriedade imobiliária com o registo predial, as inscrições matriciais e as informações cadastrais.”

13. Daqui se conclui (ao contrário do que se diz na douta sentença recorrida) que, para efeitos de registo predial, o conceito de prédio se afasta do conceito da lei civil para se aproximar da legislação fiscal e da regulamentação cadastral. O mesmo é dizer que, na área registral, prédio e coisas imóveis são conceitos idênticos.

14. Tendo (apesar de tudo o supra alegado) esta classificação, assim como a classificação provinda da inscrição matricial, como indiferente para efeitos da qualificação civil, que tem critérios próprios, é muito importante nelas atentar, porque “quer da descrição predial, quer da inscrição matricial, podem resultar elementos de facto úteis, para o julgador, no que toca ao conhecimento das realidades prediais que lhe cumpre qualificar.” – Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Tomo II, 2.ª edição, página 123.

15. O arrendado é uma parte indivisa (legal), mas materialmente autonomizada, sendo totalmente autónomo e independente do resto do prédio em que se insere, distinto e, deste totalmente isolado, com saída própria quer para parte comum, quer para a via pública.

16. O que aliás ocorre (como é visível e de conhecimento público, há mais de pelo menos 100 anos) com a esmagadora maioria das “locais arrendados” pela R. C… e referentes ao piso térreo da quota parte do prédio alvo do negócio entre as RR.

17. Ou seja, este destino que pela primeira R. foi sendo dado às várias partes materialmente autonomizadas do predito piso térreo do prédio denominado como da C…, instituída em 29 de Agosto de 1756, foi um destino sempre desejado, mormente para rentabilização económica dos espaços e, com isso, da própria C1….

18. A venda da propriedade da coisa, ou seja, a alienação do direito de propriedade da coisa mediante um preço, tanto abrange o direito de propriedade na sua totalidade (a totalidade única e exclusiva sobre a coisa), como qualquer das fracções ideais em que o direito de domínio se pode decompor.

19. Por um lado, é a própria lei civil que, sistemática e dogmaticamente, considera a compropriedade como uma variante do direito de propriedade, e, por outro lado, a preferência legal baseada na venda de determinada coisa tanto aproveita, pela sua especial razão de ser, à venda do direito de propriedade na sua totalidade, como à venda de uma quota ideal dele ou à venda de uma fracção determinada da coisa (Vg. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência de 02-02-1993/Proc. 075346).

20. A justificação que preside à atribuição do direito de preferência a favor do arrendatário é a de facilitar a aquisição do prédio urbano, proporcionando o acesso à propriedade a quem beneficia já de um direito de gozo mais ou menos prolongado sobre o imóvel.

21. O arrendado em causa nos presentes autos é um bem jurídico autónomo.

22. A ratio da norma do art. 1091.º n.º 1, alínea a), do Código Civil (que a douta sentença recorrida de forma surpreendente declara ser manifestamente inaplicável ao caso em apreço), com respaldo nos fins que ao Estado incumbe prosseguir fixados pela Constituição da República Portuguesa, não se coaduna com um tratamento desigual dos inquilinos consoante o local por si arrendado seja uma fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal ou uma quota parte de prédio indiviso.

23. Perante partes de prédio urbano que constituem unidades independentes e individualizadas, não será razoável negar a atribuição do direito de preferência ao inquilino apenas e só por não serem qualificadas juridicamente como fracções autónomas, ainda que o sejam materialmente (como in casu sucede).

24. A constituição da propriedade horizontal sobre o prédio não é fundamento material bastante para o tratamento diferenciado dos arrendatários urbanos decorrente da interpretação do artigo 1091.º, não sendo objectivamente justificada por qualquer valor ou interesse constitucionalmente relevantes.

25. Não existem razões materiais que justifiquem a diferença de tratamento entre arrendatários de fracções autónomas e de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal pelo que, nessa interpretação (que parece ser a que se extrai da sentença recorrida), a alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.

26. Desde logo, porque essas razões materiais haveriam de se encontrar numa diferente situação de facto e de direito dos arrendatários de andares em prédios não constituídos em propriedade horizontal, e não na diferente situação jurídica do local arrendado, que é estranha à relação locatícia e cuja configuração não depende da sua vontade, na medida em que a propriedade horizontal pode ser livremente constituída e desconstituída pelo (s) proprietário (s) no decurso daquela relação, sem com ela interferir.

27. Não é lógico e fere o sentido de justiça do cidadão comum, que se aceite a celebração de um contrato de arrendamento de uma parte legalmente indivisa, mas materialmente autonomizada, depois se lhe tolham os efeitos jurídicos, designadamente a atribuição de preferência na compra e venda do imóvel locado.

28. O objecto e o regime do contrato de arrendamento não se define pelo objecto e o regime do direito de propriedade do senhorio. O arrendamento é um direito pessoal de gozo que tem por objecto a coisa ou parte dela, e não aquele direito de propriedade.

29. Por maioria de razão, o direito de preferência dos arrendatários tem de se definir pelo objecto do seu direito (de arrendamento) e não pelo objecto do direito (de propriedade) do senhorio.

30. Sendo o direito de preferência um direito real de aquisição normativamente atribuído, nada obsta a que ele permita a aquisição apenas da parte do prédio que corresponde ao direito do arrendatário, como aliás a doutrina e a jurisprudência tem entendido ser juridicamente possível.

31. «Se o legislador admite como possível que possam existir no mesmo prédio vários arrendatários com direito de preferir na alienação do prédio, é porque este direito se constitui mesmo nos casos em que o “local arrendado” é apenas uma parte desse prédio, não autonomizada juridicamente.» - Agostinho Cardoso Guedes in O exercício do Direito de Preferência UCP 2006, p. 186.

32. E ainda no mesmo sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, «O direito de preferência, tratando-se de prédio urbano indiviso, só pode ser exercido sobre todo o prédio ou sobre uma parte alíquota do mesmo» – Supremo Tribunal De Justiça, 8-10-1992 (BMJ n.º 420, p. 502).

33. Na venda que a R. C… fez à Ré D…, SA, projecto de que para o efeito foi a autora judicialmente notificada, está incorporado o local arrendado pela autora, podendo esta (como fez), por força do estatuído no artigo 1091.º n.ºs 1 e 4, exercer o seu direito de preferência nos termos do 417.º n.º 1, todos do Código Civil.

34. Concluiu-se, portanto – em frontal discordância com o plasmado na douta sentença recorrida – que o direito de preferência da autora tem protecção e fundamento legais e que “o local arrendado” apesar de parte integrante de prédio indiviso, está abrangido pelo artigo 1091.º n.º 1 al. a) do Código Civil, e por via disso cabe, indiscutivelmente na previsão do artigo 417.º n.º 1 do mesmo diploma legal.

35. Aqui chegados, permitimo-nos recordar que “quer da descrição predial, quer da inscrição matricial, podem resultar elementos de facto úteis, para o julgador, no que toca ao conhecimento das realidades prediais que lhe cumpre qualificar.” – Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Tomo II, 2.ª edição, página 123.

36. E fazêmo-lo porque a realidade predial que cumpre apreciar ao Exmo. Senhor Juiz à quo, não é aquela que as RR quiseram fazer crer nas suas contestações, e que surpreendentemente foi dada como provada nos números 6 a 15 da fundamentação da sentença recorrida.

37. Não, não é!

38. É antes uma edificação composta de um andar e sobreloja, erigida verticalmente, com entrada única, própria, que apesar de edificação conjunta, está do restante completamente isolada ou, de qualquer parte desta, por forma a possibilitar a sua utilização sem dependência da parte restante da mesma edificação.

39. Podendo, portanto a sua descrição matricial ser objecto de uma única inscrição predial.

40. Ora esta realidade predial com cabimento e protecção legais que pode e, é, objeto de direitos privados e de ralações jurídicas, cabe na hermenêutica da definição de coisa do artigo 202.º do Código Civil. Não faria sentido de outra forma!

41. E, se assim é, como por elementar dever de justiça é, então, a aplicação in casu do artigo 417.º n.º 1, ao contrário de “flagrantemente inaplicável” (como de forma impetuosa se deixou pronunciado na sentença recorrida), é ajustável, fundada, legítima, imparcial, recta, adequada e INDUBITÁVEL.

42. O art. 47.º, n.º 1, do RAU consagra o princípio da coincidência do objecto do direito de preferência com o do direito preexistente que o justifica; e, por isso, justificado que está o direito de preferência exercido pala autora apenas em relação ao local arrendado, nada fundamenta a improcedência da presente acção!

43. Quando no artigo 417.º se diz “vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global”, tal venda refere-se – in casu – à venda do “local arrendado” (como está ínsito na previsão
da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil) juntamente com outra ou outras partes ou alíquotas que fazem parte do designado prédio indiviso.

44. E a “coisa”, o local arrendado, como supra se alegou, tem a autonomia jurídica que confere ao seu arrendatário o direito de preferência que se reclama.

45. Ora, dúvidas não restam que, contratual e legalmente, a Ré C… está obrigada à preferência e que, o enquadramento factual declaradamente inadequado (naturalmente com todo o devido respeito) que foi feito pelo Exmo. Senhora Juiz a quo na douta sentença recorrida, levou-o a outro entendimento quanto à interpretação do direito, mas que não se coaduna, nem com a realidade dos factos, nem muito menos com a certeza e segurança jurídica que emanam do contrato de locação estabelecido e do concomitante direito legal de preferência que do mesmo decorre.

46. A sentença recorrida viola os artigos 417.º n.º 1 e 1091.º n.º 1 ambos do Código Civil.

47. A sentença recorrida viola o princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2.º da CRP, na sua vertente subjectiva de princípio de protecção da confiança.

48. A sentença recorrida viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP.

49. Como bem refere o Professor Doutor Antunes Varela “não querendo, por um lado, prejudicar a essência ou pureza do direito de preferência, forçando o preferente, para salvar o seu direito, a adquirir coisas que não lhe interessam e a desembolsar para o efeito um preço superior ao previsto, a lei (…) permite ao preferente reduzir, se quiser, a alienação global projectada pelo dono da coisa e exercer o seu direito apenas em relação à coisa objecto da preferência.” (Venda judicial de fracções sujeitas ao direito de preferência do arrendatário (parecer), in CJ (STJ), Ano V (1997), Tomo I, págs. 5 e ss.)
Nestes termos e, nos demais de Direito que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando a sentença recorrida, farão, como sempre, inteira e sã J U S T I Ç A!

Contra-alegou a R. D…, S. A., assim concluindo:

1. Nos dias de hoje, a jurisprudência que tem vindo a ser produzida desde 2016 até à presente data tem vindo a afirmar-se, de forma cada vez mais sólida e consistente, sem exceções, nos termos da posição que obteve vencimento nestes autos, isto é, a de que “o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não goza do direito de preferência, nem sobre a parte locada do prédio, nem sobre a respetiva totalidade”.

2. São disso exemplo os muito recentes (com menos de dois anos) acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.11.2019, processo 14276/18.3T8PRT.P1.S2, de 11.07.2019, processo 3818/17.1T8VNG.G1.S2, de 26-02-2019, processo n.º 9/13.4TBFAF.G1.S1, de 18-10-2018, processo n.º 3131/16.1T8LSB.L1.S1, de 24.05.2018, processo 1832/15.0T8GMR.G1.S2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

3. Pelo que, apenas de direito, o presente recurso deverá desde logo improceder, sendo que, independentemente da decisão que venha a ser proferida sobre a matéria de facto, o seu resultado deverá ser sempre a improcedência dos presentes autos.

4. Por outro lado, as alegações de recurso a que ora se responde, na parte em que se referem à impugnação da matéria de facto, não respeitam as disposições legais aplicáveis nesta sede, concretamente, as previstas no artigo 640.º do Código de Processo Civil, estando, portanto, o recurso a que ora se responde condenado a nem sequer ser admitido nessa parte, devendo ser rejeitado.

5. Isto porque a Autora Recorrente, não é explícita nem organizada em relação à indicação de todos os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não é explícita nem organizada acerca dos concretos meios probatórios que, no seu entender, impõem uma decisão diversa sobre esses pontos da matéria de facto, como também não é explícita nem organizada acerca da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

6. Por outro lado, atente-se que, perscrutadas as alegações de recurso da Autora Recorrente, constatamos que a indicação dos meios probatórios que, no seu entender, impõem uma decisão diversa sobre esses pontos da matéria de facto, é feita de forma absolutamente abstrata e genérica, para a globalidade de cada um dos depoimentos indicados, sem indicação das concretas e exatas passagens relevantes para o efeito pretendido.

7. Essa forma de proceder por parte da Autora Recorrente, não só não permite que este Venerando Tribunal de Recurso aprecie devidamente as questões suscitadas pela Autora Recorrente e as confronte com a Douta Sentença recorrida, como também afeta frontalmente o exercício do direito ao contraditório por parte das Rés Recorridas.

8. De facto, a Autora Recorrente, ao não indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, não permite a este Venerando Tribunal de recurso localizar, na gravação, as passagens que sustentam a sua visão, mas, pelo contrário, procede à transcrição completa e integral de determinados depoimentos, em relação aos quais teceu apenas considerações totalmente genéricas, tolhidas por uma visão claramente parcial e distorcida da realidade.

9. Por sua vez, no que concerne aos concretos pontos da matéria de facto que a Autora Recorrente pretende ver modificados, se este Doutro Recurso vier a ser admitido, o que não se concede, é importante atentar que os recursos não visam, de forma alguma, a realização de um segundo julgamento sobre a prova produzida na audiência de julgamento em primeira instância, o que parece ter querido a Autora Recorrente.

10. De facto, o poder de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal Superior, em segunda instância, constituiu apenas um remédio para eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida (erros in judicando ou in procedendo) na forma como o Tribunal Recorrido apreciou a prova.

11. Ora, conforme a Ré Recorrida procurou demonstrar, na Douta Sentença ora recorrida não se vislumbram quaisquer erros ou incorreções que, de alguma forma, obriguem ou imponham uma qualquer alteração da matéria de facto pelo Venerando Tribunal de recurso, o que se aplica a todos os pontos da matéria de facto que são impugnados pela Autora Recorrente.

12. De facto, agarrando-se a alguns dos depoimentos em que o Venerando Tribunal ad quo se sustentou, Autora Recorrente procurou apenas e, de alguma forma, tirá-los do seu contexto, adulterando o seu sentido e interpretando-os a seu bel-prazer, fazendo uma mera contraposição da análise valorativa feita pelo Venerando Tribunal ad quo.

13. Ou seja, existe apenas uma divergência entre a convicção pessoal da Autora Recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Venerando Tribunal ad quo firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, numa decisão bem e suficientemente fundamentada, socorrendo-se de um processo de raciocínio lógico, assente no senso comum e com recurso às regras da experiência.

14. Deste modo e atento o exposto, deverá ser confirmada a Douta decisão proferida pelo Venerando Tribunal ad quo acerca dos pontos 8, 9, 17, 18 e 19 dos factos dados como provados, e b) dos factos dados como não provados, uma vez que de forma alguma ficou demonstrado que, como se referiu, sobre tais factos deveria incidir uma decisão diversa.

15. No que concerne à matéria de Direito, importa desde logo realçar que, nas considerações que faz sobre esta matéria, nas quais a Autora Recorrente coloca em causa a justificação e a opção (que refere ser política) para a venda do edifício que albergava o Hospital …, bem como a conclusão de que essa terá sido a única saída para pagar aos credores, e afirma, pelo contrário, que a venda individualizada dos estabelecimentos comerciais, alegadamente, poderia ter realizado mais dinheiro, o que jamais se concede, em boa verdade a Autora Recorrente está mover-se num campo em que existia liberdade de escolha ou discricionariedade, por parte dos responsáveis da Ré C…, na condução deste processo e na opção entre a venda do edifício da … e outros edifícios pertencentes à Ré C….

16. Colocando em causa, pura e simplesmente, como a Autora Recorrente refere expressamente, o exercício de uma opção política e, eventualmente, uma opção própria do campo da gestão, permitida por lei, o qual a mesma procura escrutinar tanto quanto pode, sem se perceber ao certo em que é que isso pode contribuir para o exercício do direito de preferência que a mesma invoca e que constitui o objeto dos presentes autos.

17. Ou seja, a Autora parece mover-se em duas direções distintas, procurando não apenas a procedência deste recurso e, portanto, o concretizar do direito de preferência que alega assistir-lhe, como também no sentido de impugnar a decisão de venda do edifício onde se encontrava o locado que lhe foi arrendado, o que importará necessariamente a improcedência dos presentes autos…

18. Ou seja, a Autora Recorrente parece navegar em sentido contrário à procedência dos presentes autos, como de boa-fé deveria ser o seu desiderato.

19. Ora, conforme já adiantamos supra na introdução das presentes alegações, estamos em crer que a Autora Recorrente carece de qualquer razão, em qualquer dos argumentos que apresenta, tendo o Venerando Tribunal ad quo feito uma interpretação e aplicação correta dos preceitos legais aplicáveis sub judice, designadamente, considerando desde logo o sentido quase unânime em que os mesmos têm vindo a ser interpretados e aplicados pelos nossos Tribunais superiores e para o qual remetemos em seguida.

20. Desde logo no que concerne à aplicação da lei no tempo, importa atentar que é entendimento unânime na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que a lei reguladora do direito de preferência é a lei vigente na data em que se concretizou o ato de alienação, neste caso, o Código Civil na redação que lhe foi dada, cerca de dez anos antes, pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que instituiu o NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano).

21. Deste modo, decaem desde logo as alegações de recurso da Autora Recorrente quanto a este ponto, quando a mesma invoca a aplicação in casu do regime do RAU (Regime do Arrendamento Urbano), aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro.

22. Por sua vez, quanto à extensão do direito de preferência, importa desde logo atentar que o preceito consagrador da preferência legal se reveste de uma índole excecional, pois traduz uma limitação da liberdade de contratar - artigo 405.º do Código Civil - na vertente relativa à escolha da contraparte, e, de índole imperativa/injuntiva, pois que lhe subjazem razões de interesse público.

23. Por consequência, o intérprete está obrigado a confiná-la imperativamente aos casos expressamente previstos na lei.

24. Depois, importa atentar num outro princípio também determinante nesta sede e que apenas teve uma verdadeira e pacífica consagração ou afirmação com a entrada em vigor da Lei 6/06, de 27 de fevereiro, que instituiu o NRAU, e que é designado como o princípio da coincidência entre o objeto do arrendamento e o objeto da preferência, no sentido em que a preferência não se pode exercer sobre a totalidade do prédio em que se insere o locado, porque até aí não se estende o direito do arrendatário, mas apenas sobre o local arrendado.

25. Por outro lado, indo ao cerne da questão sub judice, é imperioso atentar que, desde a primeira Lei que atribuiu ao inquilino direito de preferência na venda do locado pelo senhorio, no âmbito do arrendamento comercial ou industrial, Lei n.º 1662, de 4 de setembro de 1924, até hoje, que o direito de preferência apenas pode incidir sobre uma coisa juridicamente autónoma e independente, que seja efetivamente “uma coisa”, e não sobre uma “parte de uma coisa”, como a Autora Recorrente procura, não inocentemente, interpretar o artigo 417.º do Código Civil, para o qual remete o artigo 1091.º do mesmo diploma.

26. Efetivamente, tanto o confronto isolado com o atual preceito (art. 1091.º do Código Civil), como a comparação com o texto anterior (art. 47.º do RAU), o direito de preferência apenas se constitui na esfera jurídica do arrendatário quando o contrato de arrendamento abarca todo o prédio ou pelo menos uma sua fração autónoma e juridicamente independente, estando excluído em casos, como o presente, em que incide sobre uma parte do prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal.

27. Em concreto, ainda que possa haver coincidência entre a parte do prédio indiviso e a fração autónoma do prédio constituído em propriedade horizontal, que, quando arrendadas, não facultarão, no primeiro caso, e, facultarão, no segundo caso, direito de preferência na venda, tal coincidência é meramente física e não jurídica.

28. Sendo os objetos do arrendamento, no caso de um andar de um prédio não constituído e de uma fração de um prédio constituído em propriedade horizontal, realidades jurídicas diferentes, existe, na base, uma situação que o sistema diversifica e que legitima o tratamento diferenciado, e coerente, na negação e na atribuição, respetiva, do direito de preferência.

29. Sobre esta matéria, importa considerar um argumento que nos parece determinante na correta interpretação dos preceitos legais aplicáveis e resolução da questão sub judice e que tem a ver com duas medidas legislativas mais recentemente adotadas e que aqui importa considerar para efeitos interpretativos da vontade do legislador, ainda que não se apliquem ao presente caso.

30. Ora, a adoção destas duas medidas legislativas só pode significar a assunção pelo legislador de que, nos termos do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, não assiste ao arrendatário urbano de parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento sobre a totalidade do mesmo, já que a existência deste direito tornaria desnecessárias essas medidas.

31. Solução esta que, conforme já foi reconhecido pelo próprio Tribunal Constitucional, para além de outros Tribunais, não é inconstitucional.
32. Sem conceder, se não se entender conforme supra alegado, e se decidir pela procedência do recurso interposto pela Autora Recorrente, o que não se concede, deverá considerar-se que houve uma questão que integrava o objeto de discussão dos presentes autos e que ficou prejudicada pela decisão proferida na Douta Sentença ora recorrida.

33. Questão essa que se prende com a caducidade do direito de preferência e que foi invocada ab initio pelas Rés Recorridas, a título de exceção, tanto por falta de depósito do preço como pela falta de cumprimento, pela Autora Recorrente, dos demais pressupostos ao exercício do direito de preferência, designadamente o cumprimento das obrigações fiscais necessárias à celebração da escritura de compra e venda.

34. Nestes termos, por razões de mera cautela de patrocínio, a entender-se pela procedência do recurso interposto pela Autora Recorrente, o que não se concede, a título subsidiário requer-se que a referida questão da caducidade, invocada a título de exceção e que integrou o ponto a) do pedido formulado pela Ré Recorrida na sua contestação, seja apreciada por este Venerando Tribunal de recurso.

TERMOS EM QUE, e nos mais que Vossas Excelências se dignarem suprir dentro do Vosso mais alto saber e critério:

- O recurso da matéria de facto apresentado pela Autora Recorrente não deverá, sequer, ser admitido, devendo considerar-se, para todos os efeitos, que o julgamento de tal matéria pelo Venerando Tribunal ad quo se consolidou, na sua totalidade, pelo seu trânsito em julgado;

- Sem conceder, se o recurso da matéria de facto vier a ser admitido, o que não se concede, deverá ser negado provimento ao mesmo, confirmando-se a Douta Sentença recorrida, por ter feito um julgamento correto e justo da prova produzida em audiência, nos termos supra expostos;
- Sem conceder, deverá ser negado provimento ao recurso da matéria de Direito, julgando-o totalmente improcedente e confirmando-se a Douta Sentença recorrida, nos termos supra expostos;

- Sem conceder, e a título subsidiário, na hipótese meramente académica de o Douto Recurso a que ora se responde ser julgado procedente, o que não se concede, requer-se que este Venerando Tribunal de Recurso aprecie a questão da caducidade do direito de preferência exercido pela Autora Recorrente, invocada ab initio pela Ré Recorrida, a título de exceção, na sua contestação, e que integrou o ponto a) do pedido aí formulado.

Com o que se fará inteira e merecida
JUSTIÇA!

Também a R. C… contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1- Por documento escrito, outorgado a 21 de Setembro de 2012, a R. C… declarou dar de arrendamento à A., que declarou tomar, para instalação de um estabelecimento de gelataria e afins, pela renda mensal de € 1.908,00, com início a 01 de Outubro de 2012 e pelo período de 10 anos, o rés-do-chão e cave do prédio urbano sito na …, n.ºs .., .. e .., descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob parte do n.º …/20040504, inscrito na matriz predial urbana da freguesia … sob o artigo 1005.º [artigos 1.º a 3.º da petição inicial; matéria aceite pela R. C… no artigo 16.º da sua contestação; matéria aceite pela R. C…, S. A., nos artigos 33.º e 71.º da sua contestação; documento que consta de fls. 15 a 20].

2- Por escritura pública celebrada a 05 de Fevereiro de 2016, em Cartório Notarial, a R. C… declarou vender à R. D…, S. A., que declarou comprar, pelo preço global de € 9.200.000,00, a quota-parte indivisa de 60/100 do prédio urbano sito na …, n.ºs . a .. e .. a .., e …, n.º .., da União das freguesias …, no Porto, composto por diversos edifícios, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/…, inscrito na matriz predial sob os artigos 2906.º, 2912.º, 2918.º, 2924.º, 2930.º, 2936.º, 2942.º, 2948.º, 2954.º, 2960.º, 2966.º, 2972.º, 2979.º, 4984.º, 4988.º e 4992.º [artigo 5.º da petição inicial; matéria aceite pela R. C… nos artigos 2.º a 4.º da sua contestação; matéria aceite pela R. D…, S. A., nos artigos 2.º e 71.º da sua contestação; documento que consta de fls. 23 a 36].

3- O negócio referido em 2- foi sujeito à condição suspensiva do não exercício de direitos de preferência no prazo legal de 8 dias [artigo 6.º da petição inicial; matéria aceite pela R. C… nos artigos 2.º a 4.º da sua contestação; matéria aceite pela R. D…, S. A., nos artigos 2.º e 71.º da sua contestação; documento que consta de fls 23 a 36].

4- Notificada da escritura e para exercer o seu direito de preferência, a A. apresentou-se a 23 de Fevereiro de 2016 no mesmo Cartório onde havia sido celebrado o negócio referido em 2-, declarando pretender preferir na aquisição do imóvel descrito na alínea n) do contrato de compra e venda (artigo urbano 4984.º), pelo preço proporcionalmente atribuído de € 256.000,00 [artigo 7.º da petição inicial; matéria aceite pela R. C… nos artigos 8.º e 9.º da sua contestação; matéria não impugnada pela R. D…, S. A., na sua contestação; documento que consta de fls. 72 a 75].

5- Por instrumento lavrado no dia 04 de Março de 2016, os representantes da R. C… declararam autorizar a extinção da cláusula suspensiva constante da inscrição registada pela Ap. 2218, de 05 de Fevereiro de 2016 [artigo 8.º da petição inicial; matéria aceite pela R. C… no artigo 53.º da sua contestação; matéria aceite pela R. C…, S. A., no artigo 71.º da sua contestação; documento que consta de fls. 76 a 81].

6- A A., após 04 de Março de 2016, pelo menos durante certo período continuou a pagar à R. C… o valor da renda mensal prevista no contrato referido em 1- [artigo 12.º da petição inicial; matéria não impugnada pela R. C…; matéria expressamente impugnada no artigo 72.º da contestação da R. C…, S. A.].

7- O prédio urbano identificado em 2- era e é constituído pela Igreja, pelo edifício que lhe é contíguo, que faceia a …, com logradouro, e pelas construções anexas implantadas nesse logradouro [artigo 18.º da contestação da R. C…].

8- O espaço dado de arrendamento à A. , através do negócio referido em 1-, integra o edifício referido em 7- [artigos 18.º a 29.º da contestação da R. C…].

9- O edifício referido em 7-, construído ao longo de diversos anos durante o séc. XIX, tem unidade estrutural, constituindo as suas paredes-mestras, pilares e vigas de sustentação, bem como os seus telhados, uma só unidade [artigo 19.º da contestação da R. C…].

10- O revestimento exterior do edifício referido em 7-, ao nível da fachada principal que confina com a …, é composto de azulejos iguais, janelas e varandas repetidas, com elementos decorativos de ferro e madeira idênticos, designadamente ao nível dos 1.º e 2.º andares [artigo 20.º da contestação da R. C…].

11- O edifício referido em 7- ao longo dos anos teve utilizações económicas diversas [artigo 21.º da contestação da R. C…] ...

12- … Designadamente, enquanto algumas das suas partes ao nível do rés-do-chão foram objecto de arrendamentos separados a comerciantes diversos, os seus restantes pisos sempre estiveram ligados entre si pelo interior, e afectos a estabelecimento hospitalar e lar residencial [artigo 22.º da contestação da R.
C…].

13- As canalizações de águas e saneamento, bem como as instalações eléctricas dos pisos superiores, e, também, das partes do rés-do-chão que não foram cedidas a terceiro, constituem uma unidade [artigos 23.º e 24.º da contestação da R. C…].

14- Os pisos situados acima do espaço arrendado à A. não possuem acesso à via pública pelo espaço que abaixo deles se situa, mas sim por outras entradas que distam várias dezenas de metros desse espaço [artigo 25.º da contestação da R. C…].

15- Não existe acesso interior entre o espaço arrendado à A. e os pisos situados acima [artigo 29.º da contestação da R. C…].

16- O referido em 7- a 15- ocorria já na data da celebração do arrendamento referido em 1- [artigo 30.º da contestação da R. C…].
17- No início do ano de 2016 a R. C… necessitava com urgência de meios financeiros por forma a cumprir o plano de revitalização aprovado no Tribunal de Comércio, bem como para fazer face aos compromissos que havia assumido com credores correntes e estatutários (como trabalhadores, fornecedores, idosos, doentes e pessoas carenciadas que albergava e alberga) [artigo 44.º da contestação da R. C…].

18- No início de 2016, a R. C… encontrava-se em mora quanto aos pagamentos previstos no plano de revitalização, e estava na iminência de ser declarada em estado de insolvência [artigo 46.º da contestação da R. C…].

19- No início de 2016, o único activo que a R. C… possuía que permitia rapidamente encontrar interessados na aquisição reconduzia-se ao prédio identificado em 2- [artigo 45.º da contestação da R. C…].

20- A R. C…, no início de 2016 como hoje, tem a seu cargo mais de 50 idosos, doentes e pessoas carenciadas, que alberga, alimenta e de que cuida, no início de 2016 centrando essa actividade no edifício referido em 2- [artigo 49.º da contestação da R. C…].

21- Por força do referido em 20- a R. C… sempre recusou alienar a totalidade do edifício referido em 2- [artigos 49.º, 50.º e 52.º da contestação da R. C…]…

22- … Antes decidindo a outorga do negócio referido em 2- [artigos 51.º e 52.º da contestação da R. C…].

23- O artigo matricial 4984.º (antigo 1005.º), mencionado no contrato de arrendamento referido em 2-, compreende, não só a cave e o rés-do-chão dados de arrendamento à A., mas também um primeiro andar não incluído nesse contrato [artigos 36.º a 39.º da contestação da R. D…, S. A.].

Factos Não Provados

Não resultou provado, com relevo para a decisão a proferir, que:

a- a A. apenas tenha tido conhecimento do referido em 5- a 03 de Maio de 2016 [artigos 10.º, 11.º e 18.º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 59.º da contestação da R. C…; matéria expressamente impugnada no artigo 72.º da contestação da R. D…, S.A.];

b- a venda individualizada das diversas lojas e espaços que integram o prédio identificado em 2- em concreto seria economicamente mais rentável para a R. C… [artigo 24.º da petição inicial; matéria expressamente impugnada nos artigos 55.º e 69.º da contestação da R. C…; matéria expressamente impugnada nos artigos 43.º, 44.º e 73.º da contestação da R. D…, S. A.].

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se na seguintes questões:

— impugnação da matéria de facto provada;
— legislação aplicável ao caso dos autos (aplicação da lei no tempo);
— se ao arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal assiste direito de preferência na venda do prédio (ou de parte dele);
— Se a distinção de tratamento entre o arrendatário de fracção autónoma e arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º CRP.

3.1. Da impugnação da matéria de facto provada
Entende a apelante que foram incorrectamente considerados provados os factos constantes dos pontos 6, 9, 16, 17, 18 e 19 da matéria de facto provada.
É o seguinte o teor dos pontos da matéria de facto provada impugnados:
6- A A., após 04 de Março de 2016, pelo menos durante certo período continuou a pagar à R. C… o valor da renda mensal prevista no contrato referido em 1- [artigo 12.º da petição inicial; matéria não impugnada pela R. C…; matéria expressamente impugnada no artigo 72.º da contestação da R. D…, S. A.].

9- O edifício referido em 7-, construído ao longo de diversos anos durante o séc. XIX, tem unidade estrutural, constituindo as suas paredes-mestras, pilares e vigas de sustentação, bem como os seus telhados, uma só unidade [artigo 19.º da contestação da R. C…].

17- No início do ano de 2016 a R. C… necessitava com urgência de meios financeiros por forma a cumprir o plano de revitalização aprovado no Tribunal de Comércio, bem como para fazer face aos compromissos que havia assumido com credores correntes e estatutários (como trabalhadores, fornecedores, idosos, doentes e pessoas carenciadas que albergava e alberga) [artigo 44.º da contestação da R. C…].

18- No início de 2016, a R. C… encontrava-se em mora quanto aos pagamentos previstos no plano de revitalização, e estava na iminência de ser declarada em estado de insolvência [artigo 46.º da contestação da R. C…].

19- No início de 2016, o único activo que a R. C… possuía que permitia rapidamente encontrar interessados na aquisição reconduzia-se ao prédio identificado em 2- [artigo 45.º da contestação da R. C…].

Discute-se no recurso determinar se o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal assiste direito de preferência na venda do prédio (ou de parte dele).
O ponto 6 da matéria de facto não tem qualquer interesse para a matéria aqui em discussão.
A existência ou não de unidade estrutural do prédio objecto da preferência é irrelevante, porquanto é a realidade jurídica — a forma como se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial — e não a material que releva para efeito de preferência.
Não estando o prédio constituído em propriedade horizontal, nem sendo possível coagir o proprietário nesse sentido, é irrelevante discutir a problemática da unidade estrutural do prédio.
Finalmente, não se alcança qual a utilidade dos pontos 16, 17 e 18 da matéria de facto provada, reportados à situação económica do vendedor, para a questão da preferência. O proprietário dispõe como entender do prédio que lhe pertence, não tendo que dar ao arrendatário satisfação acerca da sua situação económica e dos motivos que o levaram a decidir-se pela venda de parte do prédio (60/100).
Ora, a reapreciação da matéria de facto constitui uma garantia das partes no sentido de ver reapreciado o julgamento por uma instância de recurso, assumindo natureza instrumental da decisão, e não um exercício académico.
Por isso, apenas há que conhecer da matéria de facto que seja relevante para a apreciação do mérito da causa, não se podendo desperdiçar recursos escassos em actividades inúteis. Assim o impõe o princípio da economia processual, com ganhos evidentes em matéria de celeridade.
Neste sentido, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 2014.05.27, Moreira do Carmo, www.dgsi.pt.trc, proc. n.º 1024/12.0T2AVR.C1; de 2014.01.14, Henrique Antunes, www.dgsi.pt.trc, proc. n.º 6628/10.3TBLRA.C1; de 2012.04.24, Beça Pereira, www.dgsi.pt.trc, proc. n.º 219/10.6T2VGS.C1.
Termos em que, por manifestamente irrelevante, não se conhece da impugnação da matéria de facto provada.
3.2. Da legislação aplicável
A sentença recorrida entendeu aplicar-se ao caso dos autos o artigo 1091.º CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, atento o disposto no artigo 12.º, n.º 2, CC, de acordo com o qual Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Constitui entendimento unânime do STJ que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o acto de transmissão, por o direito legal de preferência configurar uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que apenas se transforma em direito potestativo quando o senhorio não lhe ofereceu a preferência (acórdãos do STJ, de 14.07.2016, Fernanda Isabel Pereira, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 695/05.9TBLLE.E1.S1, de 21.01.2016, Tavares de Paiva, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, de 12.11.2009, Sebastião Póvoas, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 1842/04.3TVPRT.S1).
À data da celebração do contrato de compra e venda entre as 1.ª e 2.ª apeladas (05.02.2016 — ponto 2 da matéria de facto provada) encontrava-se em vigor o artigo 47.º RAU (Regime do arrendamento urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro), que é, por isso, a lei aplicável.
3.3. Se ao arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal assiste direito de preferência na venda do prédio (ou de parte dele)
A sentença recorrida aplicou o disposto no artigo 1091.º CC, na redacção introduzida pela Lei 6/2002, norma indicada como norma violada nas alegações da apelante, que, no entanto, reclama na conclusão 42.ª a aplicação do artigo 47.º RAU.
Assim, a pretensão da apelante será apreciada à luz do artigo 47.º RAU, sem prejuízo de uma breve referência ao regime estabelecido no artigo 1091.º, CC, na redacção de 2006.
A legislação relativa ao arrendamento, em especial o habitacional, é particularmente sensível às concepcões político-ideológicas prevalentes em cada período histórico.
A primeira consagração legal do direito de preferência do arrendatário (apenas o comercial e industrial) na venda do prédio arrendado deu-se com a lei 1162, de 4 de Setembro de 1924.
A Lei 2030, de 22 de Junho de 1948, que reformulou o regime do arrendamento urbano, estendeu a preferência ao titular de arrendamento para o exercício de profissões liberais, regime que transitou para os artigos 1117.º a 1119.º CC.
A Lei 63/77, de 25 de Agosto, no intuito de dar execução ao disposto no artigo 65.º, n.º 2, CRP, estendeu a preferência ao arrendamento habitacional e previu o direito de preferência na alienação de fracções autónomas de prédios constituídos em propriedade horizontal.
Como dá conta o acórdão do STJ, de 21.01.2016, Tavares de Paiva, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, indicando jurisprudência, na vigência destes preceitos consolidou-se, nos tribunais superiores, o entendimento de que, em prédios não submetidos ao regime de propriedade horizontal, o direito de preferência estabelecido a favor dos locatários, habitacionais ou para comércio ou indústria, podia ser exercido em relação à totalidade do prédio vendido onde se situava o local arrendado; se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia, naturalmente à fracção respectiva.
Sublinhava-se a finalidade de a preferência concretizar a política de acesso à habitação própria, consagrado no artigo 65.º, n.º 2, CRP, e a consagração de licitação entre vários preferentes (artigo 1117.º, n.º 4, CC, e artigo 2.º da Lei 63/77), que teria o seu campo de aplicação privilegiado aos arrendatários de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal, já que relativamente a fracções autónomas a questão não se colocava.
É neste contexto que é publicado o RAU, cujos artigos 47.º e 49.º têm a redacção seguinte:
Artigo 47.º
Direito de preferência
1 - O arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
2 - Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.
(….)
Artigo 49.º
Regime
Ao direito de preferência do arrendatário é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil.
De acordo com Oliveira Ascensão, Direito de preferência do arrendatário, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocência Galvão Teles, Almedina, Vol. III, 2002, pgs. 254 e ss., a teoria do local postulava que o arrendatário apenas poderia exercer o seu direito de preferência em relação ao local arrendando, o que pressupõe a sua autonomização, caso contrário, não poderia ser transacionado; já a teoria expansionista sustentava que, incidindo a transacção sobre a totalidade de um imóvel não constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência caberia a todos o co-arrendatários que preenchessem o requisito temporal (ser arrendatário há mais de uma ano).
Prevaleceu de forma significativa o entendimento que se consolidara no âmbito da legislação anterior, desvalorizando-se a referência ao local arrendado, em que a tese minoritária se estribava.
Nunca se defendeu que a preferência pudesse recair especificamente sobre o arrendado não autonomizado do ponto de vista jurídico.
Em síntese, não estando o prédio onde se insere o locado constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência incide sobre a totalidade do prédio, com recurso ao mecanismo de licitações em caso de pluralidade de interessados.
A este propósito vejam-se os acórdãos do STJ, de 21.01.2016, Tavares de Paiva, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, de 18.10.2018, Abrantes Geraldes, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 3131/16.1T8LSB.L1.S1, da Relação de Lisboa, de 08.02.2018, Jorge Leal, www.dgsi.ptjtrl, proc. n.º 3131/16.1T8LSB.L1, da Relação de Guimarães, Maria João Matos, www.dgsi.ptjtrg, proc. n.º 1832/15.0T8GFMR.G1, com indicações doutrinárias e jurisprudenciais.
Revertendo ao caso concreto, resulta do ponto 2 da matéria de facto provada que, por escritura pública celebrada a 05 de Fevereiro de 2016, em Cartório Notarial, a R. C… declarou vender à R. D…, S. A., que declarou comprar, pelo preço global de € 9.200.000,00, a quota-parte indivisa de 60/100 do prédio urbano sito na …, Porto, n.ºs . a .. e .. a .., e …, n.º .., da União das freguesias …, no Porto, composto por diversos edifícios, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/…, e inscrito na matriz predial sob os artigos 2906.º, 2912.º, 2918.º, 2924.º, 2930.º, 2936.º, 2942.º, 2948.º, 2954.º, 2960.º, 2966.º, 2972.º, 2979.º, 4984.º, 4988.º e 4992.º.
Por seu turno, e conforme consta do 3 da matéria de facto provada, ponto por documento escrito, outorgado a 21 de Setembro de 2012, a R. C… declarou dar de arrendamento à A., que declarou tomar, para instalação de um estabelecimento de gelataria e afins, pela renda mensal de € 1 908,00, com início a 01 de Outubro de 2012 e pelo período de 10 anos, o rés-do-chão e cave do prédio urbano sito na …, n.ºs .., .. e .., descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob parte do n.º …/20040504, inscrito na matriz predial urbana da freguesia … sob o artigo 1005.º.
A primeira questão a abordar prende-se com a natureza do locado e sua relação com a transação em apreço.
A sentença recorrida entendeu que a apelante, sendo arrendatária de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal, não é titular do direito de preferência, tanto mais que a alienação não incidiu sobre a totalidade do bem mas apenas sobre 60/100.
A 1.ª instância negou o direito de preferência na venda em causa aplicando o disposto no artigo 1091.º CC, que, rompendo com a tradição, afastou a preferência do arrendatário de parte de prédio indiviso, segundo vem sendo maioritariamente, embora não unanimemente, entendido.
Com efeito, ao dispor no seu n.º 1, alínea a), que o arrendatário tem direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, pretendeu o legislador estabelecer a coincidência entre o local arrendado e o bem sobre o qual incide a preferência, o que justifica a eliminação do mecanismo de licitação em caso de pluralidade de preferentes.
Nessa conformidade, a jurisprudência dos Tribunais superiores tem entendido que, no âmbito do artigo 1091.º, CC, na redacção introduzida pela Lei 6/2016, o arrendatário de parte de imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal não goza de direito de preferência na venda do imóvel, que apenas é reconhecido ao arrendatário de fracção autónomo ou da totalidade do prédio.
A este propósito, e para mais desenvolvimentos, para além dos acórdãos supra referidos, vejam-se ainda os acórdãos, do STJ, de 11.07.2019, Tomé Gomes, www.dgsi.ptjtrl, proc. n.º 3818/17.1T8VNG.G1.S2, de 21.03.2019, Francisca Mota Vieira, www.dgsi.ptjtrp, proc. n.º 14276/18.3T8PRT.P1, da Relação de Lisboa, de 15.11.2018, Cristina Neves, www.dgsi.ptjtrl, proc. n.º 13101.17.7T8LSB.L1, de 26.03.2015, Tomé Ramião, www.dgsi.ptjtrl, proc. n.º 9065/12.1TCLRS.L1.
Em sentido contrário, Elsa Sequeira Santos, nota 4 ao artigo 1091.º CC, Código Cicil Anotado, coordenação de Ana Prata, Almedina, vol. II, pgs. 1334-5; voto de vencido do acórdão da Relação de Lisboa, de 08.02.2018, Jorge Leal, www.dgsi.ptjtrl, proc. n.º 3131/16.1T8LSB.L.
Sublinha-se que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/2016, Teles Pereira, não julgou inconstitucional a norma extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio
O artigo 47.º RAU, que entendemos ser a lei aplicável, é mais favorável ao arrendatário de espaço individualizado em imóvel não submetido ao regime da propriedade horizontal por lhe reconhecer o direito de preferência sobre a totalidade do prédio.
O caso dos autos apresenta a particularidade de o objecto da transacção aqui em causa não ser a totalidade do prédio, mas apenas uma parte alíquota — 60/100.
O artigo 47.º RAU reconhece o direito de preferência na venda do imóvel ou de fracção autónoma, mas não de uma parte alíquota.
E bem se compreende que assim seja se atentarmos às finalidades da atribuição do direito de preferência ao arrendatário comercial.
Com efeito, são apontadas como razões para atribuição do direito de preferência ao arrendatário comercial, a extinção de ónus ou restrições que prejudicam o melhor aproveitamento do locado, diminuem o seu valor e potenciam litígios. Invoca-se ainda a proteção da empresa, já que o exercício de actividades comerciais pressupõe estabilidade e continuidade.
Ora, a atribuição de preferência no contexto dos autos — alienação de quota alíquota do prédio indiviso — implicaria que o arrendatário se tornaria comproprietário sem que o contrato de arrendamento se extinguisse, já que para continuar a usufruir da loja teria de continuar com o arrendamento — recorde-se que o comproprietário não é titular de parte determinada da coisa, mas apenas de uma quota ideal, não tendo direito exclusivo ao uso de parte especificada da coisa (Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural — Quadro Normativo e Natureza Jurídica, Coimbra Editora, pg. 161).
E afastado ficaria o desiderato da propriedade plena.
Por outras palavras, o arrendatário comercial nunca acederia à propriedade plena, mas tão só a uma quota alíquota do imóvel, que não lhe permitiria o uso exclusivo do locado. O imóvel continuaria onerado com o arrendamento, e em vez de dois comproprietários, teríamos três, contrariando a finalidade da concessão de preferência de se alcançar a propriedade plena.
Não faz, pois, sentido reconhecer ao arrendatário de parte de imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal o direito de preferência na venda de quota alíquota do imóvel.
O acórdão uniformizador do STJ, de 02.02.1993, proc. 075346, citado na conclusão 19.ª (O direito de preferência concedido ao arrendatário rural pelo artigo 29.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, abrange a venda de quota do prédio), não infirma o que fica dito, porquanto se reporta a arrendamento rural, em que o preferente era arrendatário de todo o prédio, podendo, assim, aspirar à propriedade plena por força de futuras vendas.
Acresce que a apelante se propôs exercer o direito de preferência não sobre a totalidade da venda (os 60/100 do imóvel), mas apenas sobre o “prédio” identificado no artigo 1.º da petição inicial, a saber o rés-do-chão e cave do prédio urbano sito na …, n.ºs .., .. e .., descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob parte do n.º …/20040504, inscrito na matriz predial urbana da freguesia … sob o artigo 1005.º.
Este “prédio” corresponde à loja arrendada à apelante, que se insere no prédio cujos 60/100 foram vendidos pela 1.ª apelada à 2.ª, sendo a descrição desse prédio a seguinte, conforme ponto 2 da matéria de facto provada: prédio urbano sito na …, Porto, n.ºs . a .. e .. a .., e …, n.º .., da União das freguesias …, no Porto, composto por diversos edifícios, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/…, inscrito na matriz predial sob os artigos 2906.º, 2912.º, 2918.º, 2924.º, 2930.º, 2936.º, 2942.º, 2948.º, 2954.º, 2960.º, 2966.º, 2972.º, 2979.º, 4984.º, 4988.º e 4992.º.
O “prédio” sobre o qual pretende a apelante exercer a preferência faz parte integrante do prédio cujos 60/100 foram transaccionados, não se encontrando autonomizado.
Começa a apelante por esgrimir que, apesar de ser uma parte indivisa, o locado está materialmente autonomizado e independente do restante prédio, com saída própria quer para a parte comum quer para a rua (cfr. conclusão 15.ª), para, na conclusão 21.ª, afirmar que o arrendado em causa constitui um bem jurídico autónomo.
Não lhe assiste razão.
A circunstância de as partes de um prédio indiviso serem passíveis de autonomização em nada releva para o exercício do direito de preferência — significa apenas a possibilidade de divisão de coisa comum e constituição da propriedade horizontal.
Enquanto não se proceder à constituição da propriedade horizontal, a autonomia dos espaços não têm qualquer significado jurídico, não podendo ser objecto de negócio jurídico.
Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, se o local arrendado não for passível de individualização jurídica, sobre ele não pode incidir jus in re (artigo 408.º, n.º 2, do Código Civil), uma vez que só após a constituição da propriedade horizontal (que não existe enquanto não houver apartamento) é que o arrendatário pode tornar-se proprietário exclusivo do local arrendado.

Daí que seja despicienda a discussão sobre se o arrendado é ou não autonomizável do prédio em que se insere.
Nesta sequência, a referência doutrinária constante da conclusão 30.ª e a invocação do acórdão do STJ, de 08.10.92 feita na conclusão 31.ª em nada aproveitam à apelante.
Na verdade, a referência feita na conclusão 30.ª significa apenas que o arrendatário de parte indivisa goza de direito de preferência sobre a totalidade do prédio, e não sobre o local arrendado, como pretende a apelante.
O mesmo resulta do acórdão citado na conclusão 32.ª.
Estava em causa a venda de um prédio indiviso, com dois arrendatários, pretendendo um deles exercer a preferência sobre apenas 50% do prédio proposto para venda, que entendia ser correspondente à parte que ocupava (o prédio era constituído por duas vivendas semelhantes).
Pretensão que improcedeu no STJ, tal como acontecera nas instâncias, sublinhando aquele Tribunal que os preferentes não podem, através do exercício do direito de preferência, impor ao comprador a divisão do prédio.
Reiteramos que nunca se defendeu que a preferência pudesse recair especificamente sobre o arrendado não autonomizado do ponto de vista jurídico.
Por o local arrendado não ter autonomia jurídica relativamente ao prédio em que se insere, não cabe aqui a invocação do artigo 417.º CC, relativo à venda de coisas conjuntamente com outras.
A tal não obsta que ao local arrendado corresponda um artigo matricial (que, no entanto, não se esgota nele), nem de no contrato de arrendamento esse local apareça “autonomizado” ao ser identificado como o rés-do-chão e cave do prédio urbano sito na …, n.ºs .., .. e .., descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob parte do n.º …/20040504, quando a descrição total do prédio é: prédio urbano sito na …, Porto, n.ºs . a .. e .. a .., e …, n.º .., da União das freguesias …, no Porto, composto por diversos edifícios, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/Vitória, inscrito na matriz predial sob os artigos 2906.º, 2912.º, 2918.º, 2924.º, 2930.º, 2936.º, 2942.º, 2948.º, 2954.º, 2960.º, 2966.º, 2972.º, 2979.º, 4984.º, 4988.º e 4992.º.
A referência sincopada ao prédio em que se insere o locado justifica-se por razões de comodidade, em nada alterando a natureza jurídica do imóvel.
Ainda que possa vir a constituir uma unidade predial autónoma se e quando vier a ser instituída a propriedade horizontal, o local arrendado carece de autonomia que lhe permita ser objecto de relações jurídicas.
O local arrendado não tem autonomia jurídica para efeitos de preferência, de nada valendo o conceito fiscal, utilizado apenas para efeitos de tributação.
Finalmente, refira-se que a notificação feita pela 1.ª apelada concedendo-lhe uma preferência que, afinal, não existe, não tem a virtualidade de criar uma preferência: a preferência resulta da lei (ou de pacto de preferência), não de uma notificação para preferir assente num erro de interpretação do vendedor (cfr. de 18.10.2018, Abrantes Geraldes, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 3131/16.1T8LSB.L1.S1).

3.4. Se a distinção de tratamento entre o arrendatário de fracção autónoma e arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º CRP
Insurge-se a apelante contra o tratamento desigual dos arrendatários consoante o local por si ocupado seja uma fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal, sustentando que, perante partes de prédio urbano que constituem unidades independentes e individualizadas, não será razoável negar a atribuição do direito de preferência ao inquilino apenas e só por não serem qualificadas juridicamente como fracções autónomas, ainda que o sejam materialmente.
Sustentando não ser a constituição da propriedade horizontal sobre o prédio fundamento material bastante para o tratamento diferenciado dos arrendatários urbanos, conforme os arrendados sejam fracções autónomas ou partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal, afirma a violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º CRP.
Entende que não é lógico e fere o sentido de justiça do cidadão comum, que se aceite a celebração de um contrato de arrendamento de uma parte legalmente indivisa, mas materialmente autonomizada, depois se lhe tolham os efeitos jurídicos, designadamente a atribuição de preferência na compra e venda do imóvel locado.
Desde logo, continua a apelante, porque essas razões materiais haveriam de se encontrar numa diferente situação de facto e de direito dos arrendatários de andares em prédios não constituídos em propriedade horizontal, e não na diferente situação jurídica do local arrendado, que é estranha à relação locatícia e cuja configuração não depende da sua vontade, na medida em que a propriedade horizontal pode ser livremente constituída e desconstituída pelo (s) proprietário (s) no decurso daquela relação, sem com ela interferir.
Apreciando:
Esta questão foi suscitada a propósito do artigo 1091.º CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, que eliminou, segundo entendimento da jurisprudência maioritária, o direito de preferência de arrendatário de parte de prédio indiviso.
Ficou, porém, prejudicada, por termos entendido que ao caso se aplica o regime estabelecido no artigo 47.º RAU, que reconhecia, também segundo entendimento da jurisprudência maioritária, o direito de preferência de arrendatário de parte de prédio constituído em propriedade horizontal na venda deste.
Recorde-se que, no caso vertente, entendemos que não assistia direito de preferência à apelante por a venda não ter a abrangido a totalidade do prédio, mas apenas 60/100.
Se a transacção tivesse tido por objecto a totalidade do prédio, à luz do artigo 47.º RAU poderia ser-lhe reconhecido direito de preferência sobre a totalidade do prédio, mas nunca sobre o “prédio” correspondente ao arrendado, por se tratar de parte de prédio indiviso.
Quanto aos argumentos esgrimidos pela apelante, se a propriedade horizontal pode ser livremente constituída pelo proprietário, preenchidos os requisitos legais, já o mesmo não se pode afirmar relativamente à sua “desconstituição”, contrariamente ao defendido pela apelante: uma vez constituída a propriedade horizontal, não existe possibilidade de regresso à propriedade comum.
O pretendido paralelo entre o arrendatário de fracção autónoma e o de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal enfrenta obstáculos intransponíveis sem intervenção legislativa, decorrentes do figurino do direito de propriedade e do princípio do numerus clausus consagrado no artigo 1306.º, n.º 1, CC:
Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei.
O legislador ensaiou a consagração dessa equiparação, no n.º 8 do artigo 1091.º CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, ainda que restringido ao arrendatário habitacional, na sequência de veto político do Presidente da República relativamente aos arrendamentos para outros fins.
Assim, e de acordo com esse normativo,
8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições:
a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;
b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;
c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.
Esta equiparação levanta problemas de desconformidade com a Constituição, problemas esses enfrentados pelo TC no acórdão n.º 299/2020 (com três votos de vencido), que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, por violação do n.º 1 do artigo 62.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, da Constituição.
Ponderou-se naquele acórdão, que na alienação de imóvel não sujeito à propriedade horizontal, o objecto da venda deixa de ser a totalidade do imóvel arrendado para passar a ser uma quota-parte do mesmo — o arrendatário já não adquire a totalidade do prédio onde se insere o arrendado, mas apenas uma parte alíquota dele, constituindo-se compropriedade sobre o imóvel.
Daqui resulta que a preferência concedida a estes arrendatários não lhes permite aceder à propriedade plena do arrendado, como sucede com o arrendatário de fracção autónoma, mas apenas a constituição de compropriedade sobre o imóvel.
Outra consequência desta situação é a alteração do objecto da preferência, que deixa de ser o imóvel para ser uma quota alíquota do mesmo, pondo em causa o princípio da paridade de condições, essencial na preferência — “tanto por tanto”.

Trata-se, com efeito, de um direito de preferência sui generis, que se afasta do figurino tradicional da preferência e se acomoda mal aos quadros da compropriedade, ao atribuir a um dos consortes o uso exclusivo da parte do prédio correspondente ao arrendado (cfr. 1406.º CC).

E que mereceu a censura do Tribunal Constitucional.

Do exposto resulta que a situação do arrendatário de parte de prédio não submetido a propriedade horizontal não é idêntica à do arrendatário de fracção autónoma para efeito do exercício do direito de preferência na transmissão do imóvel, justificando tratamento diferenciado por parte do legislador ordinário.

Constitui entendimento reiterado do Tribunal Constitucional que o princípio da igualdade postula tratamento idêntico para situações idênticas, mas tratamento diferenciado para situações distintas.

Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/2016, Teles Pereira
Expostos, em termos gerais, os parâmetros em que a apreciação da alegada violação do princípio da igualdade deve aqui mover-se, observa-se, antes de mais, que não pode afirmar-se igual a situação do arrendatário de uma parte de um imóvel com autonomia jurídica - designadamente, uma fração autónoma - e a do arrendatário de uma parte de um imóvel não autonomizada.
Desde logo, a igualdade não pode aferir-se por referência ao mais simplificado plano de facto, mas à situação global complexa de facto e de direito, já que é de efeitos jurídicos decorrentes da relação de arrendamento que tratamos. Ora, neste plano, é evidente que não estamos perante a mesma situação num qualquer caso em que o arrendamento incida sobre um objeto cujo domínio pode ser autonomamente transacionado e num outro caso em que incida sobre parte não autonomizada de um imóvel. Basta pensar que, no primeiro caso, a natureza da coisa dada em locação permite que a realidade física objeto do negócio sobre o domínio coincida com a realidade física do objeto do arrendamento e, no segundo caso, essa coincidência não é possível. Neste conspecto, o tratamento diferenciado de uma e outra situação não é arbitrário, parecendo razoável que o legislador tenha entendido que a autonomia negocial dos sujeitos (na dimensão de liberdade de escolha da contraparte negocial) não devia ser sacrificada no caso de o objeto do arrendamento não coincidir com o objeto do negócio real de aquisição, até mesmo porque, desse modo, se proporcionaria ao arrendatário a aquisição de mais do que o locado em função do qual a preferência é atribuída.
É certo que esta atribuição do direito de preferência a favor do arrendatário visa proporcionar o acesso à propriedade a quem beneficia já de um direito de gozo prolongado sobre o imóvel, com o que daí vem implicado de estabilidade na habitação, mas - até a essa luz - não pode dizer-se que há igualdade na situação de aquisição do espaço de habitação e na situação de aquisição de maior superfície, incluindo área que não correspondia à anterior habitação (que, aliás, até pode corresponder à habitação de terceiros).
Por outro lado, o objeto da propriedade não tem, forçosamente, que coincidir com o objeto do arrendamento, tratando-se de direitos de natureza diferente, podendo o legislador - por razões de segurança jurídica, ordenação do território, publicidade e boa gestão do registo predial e da realidade cadastral, entre outras - exigir que a propriedade tenha por objeto uma realidade física e jurídica unitária com certas características, não se fazendo sentir as mesmas exigências no caso de locação. Assim sendo, mostrando-se razoável a exigência da autonomia jurídica da coisa para que possa constituir objeto de um negócio translativo da propriedade, é também razoável que o direito de preferência a partir do arrendamento se projete por referência à mesma unidade jurídica, sendo ele tendente à aquisição do direito real. Este ponto é determinante, uma vez que a afirmação da igualdade entre situações que os Recorrentes procuram sustentar reduz os termos da questão à realidade puramente física da locação, esquecendo que o direito de preferência interfere com os termos do negócio real de compra e venda ou de dação em cumprimento.
2.2.2 - Em suma, não estando vedada ao legislador a previsão, como objeto da preferência, de um direito tão amplo como aquele que resulta da atuação da dita teoria expansionista (disse-o este Tribunal no citado Acórdão n.º 225/2000), a circunscrição desse objeto nos termos resultantes da chamada teoria do local, também não está vedada, pois a distinção de regimes envolvida nesta última opção não se apresenta arbitrária ou carecida de fundamento racional na diferenciação das situações envolvidas: as que, no quadro de uma pretensão de exercício da preferência pelo arrendatário habitacional, podem conduzir a um tratamento diferenciado de quem é confrontado com a venda, exclusivamente, do seu "local arrendado" e quem é confrontado com um negócio abrangendo um espaço mais amplo do qual não é juridicamente destacável o espaço correspondente ao objeto do arrendamento.
Como tal, não se mostra violado o princípio da igualdade.

No mesmo sentido, o acórdãos do STJ, de 21.01.2016, Tavares de Paiva, www.dgsi.ptjstj, proc. n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1.

4. Decisão

Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante (artigo 527.º CPC).

Porto, 8 de Setembro de 2020
Márcia Portela
José Igreja Matos
Rui Moreira