EXECUÇÃO FISCAL
PENHORA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO
Sumário

I. Por força do disposto no n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, se o imóvel penhorado pelas Finanças, no âmbito de execução fiscal, se destinar exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, e estiver efetivamente afetado a esse fim, não haverá lugar (no processo de execução fiscal) à realização da sua venda (posto que não se verifique nenhuma das exceções previstas nos n.ºs 3 e 6 do art.º 244.º).
II. Nesse caso, se o mesmo imóvel tiver sido objeto de penhora mais recente em execução comum, esta não deve ser suspensa ao abrigo do n.º 1 do art.º 794.º do CPC, mas deve prosseguir, sendo a Fazenda Pública citada para aí reclamar os seus créditos.

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1. Em 31.5.2019 Caixa (…) instaurou ação de execução para pagamento de quantia certa contra João (…) e Paula (…), reclamando o pagamento da quantia de € 155 799,91, referente a um empréstimo garantido por hipoteca constituída sobre o prédio sito na freguesia de Santo (…), descrito com o n.º (…) na Conservatória do Registo Predial de Sobral de Monte Agraço.
2. O Sr. Agente de Execução penhorou o “prédio urbano sito em Malgas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sobral de Monte Agraço sob a ficha n.º (…) da freguesia de Santo Quintino e inscrito na matriz predial com os artigos (…) destinado a habitação, e (…) destinado a arrecadações e arrumos da referida freguesia, composto de casa de r/c para comércio e adega e 1º andar para habitação e logradouro (…) e casa para arrecadação e logradouro (…)”.
3. A referida penhora foi registada no registo predial em 26.6.2019.
4. Em 05.12.2019 o Sr. Agente de Execução dirigiu ao Sr. Juiz de Execução o seguinte requerimento:
PAULO JORGE BRITO, Agente de Execução nos presentes autos vem informar que sobre o imóvel penhorado recai uma penhora anterior do Serviço de Finanças. Notificados nos termos do artigo 794º do C.P.C., foi o Agente de Execução informado que a situação do imóvel se enquadra nas disposições da Lei 13/2016, de 23 de Maio, no que se refere à protecção da casa de morada de família.
Face ao exposto, vem o Agente de Execução requerer autorização para vender o imóvel, tendo em conta que o mesmo não pode ser vendido no âmbito do processo fiscal.”
5. Em 09.12.2019 o Sr. Juiz de Execução proferiu o seguinte despacho:
Requerimento que antecede:
Sob a epígrafe “Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens” preceitua o artigo 794º do Código de Processo Civil o seguinte:
«1 - Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.
2 - Se o exequente ainda não tiver sido citado no processo em que a penhora seja mais antiga, pode reclamar o seu crédito no prazo de 15 dias a contar da notificação de sustação; a reclamação suspende os efeitos da graduação de créditos já fixada e, se for atendida, provoca nova sentença de graduação, na qual se inclui o crédito do reclamante.
3 - Na execução sustada, pode o exequente desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição.
4 - A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º.».
Este normativo legal não distingue quanto à natureza do processo no âmbito do qual foi realizada a primeira penhora, nem alude a quaisquer vicissitudes verificadas no âmbito daquele.
Subsistindo a penhora anterior, entende-se que é no âmbito do processo em que foi realizada a primeira penhora – no caso, no âmbito do processo de execução fiscal – que o exequente tem de reclamar o seu crédito (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-10-2017, relatado por SÍLVIA PIRES, disponível em www.dgsi.pt), inexistindo fundamento legal para o prosseguimento destes autos quanto ao bem em causa.
Pelo exposto, indefere-se o requerido.
Comunique.
A exequente apelou do referido despacho, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. Na presente execução, foi penhorado imóvel, casa de morada de família dos executados, sobre o qual incide penhora registada a favor da Fazenda Nacional.
2. Em consequência, o Sr AE requereu o prosseguimento da execução em virtude da venda em execução fiscal estar sustada nos termos do art.º 244º do CPPT, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2016, de 23/05
3. O que foi recusado pelo Tribunal a quo com o fundamento de que o disposto no art 794º CPC “não distingue quanto à natureza do processo no âmbito do qual foi realizada a primeira penhora, nem alude a quaisquer vicissitudes verificadas no âmbito daquele.
4. Subsistindo a penhora anterior, entende-se que é no âmbito do processo em que foi realizada a primeira penhora – no caso, no âmbito do processo de execução fiscal – que o exequente tem de reclamar o seu crédito
5. O despacho viola o disposto nos arts. 244º do CPPT, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2016, de 23/05, ART 794º CPC , art. 686º do Código Civil e arts 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa. Porquanto,
6. O disposto no art. 244 CPPT não impede que outros credores impulsionem execuções nas quais está penhorada a casa de morada de família dos executados, devedores fiscais.
7. O legislador, ao prever o impedimento de venda em execuções fiscais em que é penhorada casa de morada de família não pretendeu evitar que qualquer outro credor possa penhorar e ver vendido o imóvel em execução que intentou.
8. Sendo que o disposto no art 794º CPC interpretado como foi pelo Tribunal a quo impede que o credor exequente hipotecário seja ressarcido do seu crédito pelo produto da venda do bem .
9. Venda que haverá de preceder qualquer outra penhora de bens, nos termos do art. 752/1 CPC.
10. Ao proceder assim como procedeu o Tribunal a quo limita de forma excessiva, desproporcional e injustificada do credor hipotecário que vê impedida a obtenção de tutela jurisdicional do seu direito de crédito.
11. Em violação do disposto nos arts. 18º e 20º da Constituição da República Portuguesa. Ainda que assim não se entenda
12. O despacho recorrido é nulo, nos termos do art 195º CPC, por violação do disposto no art. 3 do CPC que impõe ao julgador, antes de se qualquer decisão, o exercício do contraditório sobre a questão a decidir.
O que não fez!
Pelo que, salvo melhor opinião, deverá a sentença recorrida ser substituída por outra conforme ao disposto as normas violadas ou caso assim não se entenda, dar oportunidade à exequente de se pronunciar previamente à tomada de qualquer decisão, fazendo assim os Venerandos Desembargadores, JUSTIÇA!
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas no recurso são as seguintes: nulidade da decisão recorrida; prossecução da execução instaurada pela apelante, para venda do imóvel penhorado.
Primeira questão (nulidade da decisão recorrida)
O factualismo a levar em consideração é o supra referido no Relatório.
O Direito
A apelante imputa ao tribunal a quo a violação do princípio do contraditório, porquanto terá tomado posição sobre o requerimento do Sr. Agente de Execução referido no n.º 4 do Relatório, indeferindo-o, sem ouvir primeiramente a exequente. A decisão recorrida estaria, assim, viciada de nulidade, nos termos dos artigos 3.º e 195.º do CPC.
Vejamos.
Alega-se que, antes de ter proferido a decisão recorrida, o tribunal a quo deveria ter determinado que a exequente fosse notificada para se pronunciar sobre o dito requerimento do Sr. Agente de Execução. Imputa-se, assim, ao tribunal recorrido, a omissão indevida de um ato processual. Ora, tal vício, a existir, constituiria, efetivamente, uma nulidade, nos termos do art.º 195.º n.º 1 do CPC. E, como tal, deveria ter sido arguido perante o tribunal a quo, no prazo de 10 dias após a ora apelante ter tomado conhecimento do vício, a fim de que o tribunal, se assim o entendesse, declarasse a nulidade, com as devidas consequências (artigos 196.º, 2.ª parte, 199.º n.º 1 e 149.º n.º 1 do CPC). O vício em causa não é um vício da decisão, não se enquadrando na previsão de nenhuma das alíneas do n.º 1 do art.º 615.º do CPC (aplicável ex vi art.º 613.º n.º 3 do CPC). Assim, por não existir, contrariamente ao aventado pela apelante, nulidade da decisão, decisão essa que cabe a esta Relação fiscalizar em sede de recurso (art.º 627.º n.º 1 do CPC), improcede a apelação nesta parte.
Segunda questão (prossecução da execução instaurada pela apelante, para venda do imóvel penhorado)
O factualismo a levar em consideração é o que consta no Relatório supra, e ainda, conforme resulta dos elementos constantes nos autos:
6. Sobre o prédio referido em 2 mostram-se inscritas, sob a AP. 41 de 2018/04/11 e a AP. 93 de 2018/04/11, penhoras a favor da Fazenda Nacional, para garantia da quantia exequenda de € 3 397,19, realizadas em processo de execução fiscal e seus apensos.
7. Em 14.10.2019 o AE enviou ao Serviço de Finanças de Sobral de Monte Agraço uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte teor:
Assunto: GPESE/SISAAE - Diligência efectuada no processo 5729/19.7T8LRS
Ex.mo(a) Senhor(a) Dr.(a)
Serve a presente comunicação para informar V. Ex.ª da diligência realizada no processo 5729/19.7T8LRS do tribunal Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte no valor de 155.799,91 com a referência interna PE-142/2019.
Intervenientes do processo:
- Exequente: Caixa (…)
- Executado: João (…)
- Executado: Paula (…)
Ato: E-mail.
Com os melhores cumprimentos,
Agente de Execução - PAULO JORGE BRITO.”
8. Em 17.10.2019 o Serviço de Finanças de Sobral de Monte Agraço enviou ao AE uma mensagem de correio eletrónico, com o seguinte teor:
Exmo(a) Sr(a)
Face ao pretendido no mail infra, informa-se que a AT em geral e este Serviço de Finanças em particular, cumprem com o que está estipulado na Lei, agindo em conformidade com a mesma.
Mais se informa que os processos que originaram as penhoras não se encontram extintos.
Com os melhores cumprimentos
A Chefe de Finanças
(…)”.
9. Em 24.10.2019 o AE enviou ao Serviço de Finanças de Sobral de Monte Agraço uma mensagem de correio eletrónico com o seguinte teor:
Exmo. (a) Senhor (a)
Chefe do Serviço de Finanças de Sobral de Monte Agraço
Na sequência do email de V. Exa., venho solicitar que nos termos do artº 24º do CPPT ateste que ao processo de execução fiscal mostra-se aplicável a Lei 13/2016 de 23 de Maio e que em face da previsão do 2 art. 244.º n.º 2 do CPTT não irá ser promovida a venda do imóvel, de forma a ser requerida junto do meritíssimo juiz a venda do imóvel e assim pagar o processo de execução fiscal e a presente execução.
Com os melhores cumprimentos,
P’ AE Paulo Jorge Brito
Celina Santos”.
10. Em 29.11.2019 o Serviço de Finanças de Sobral de Monte Agraço enviou ao AE uma mensagem de correio eletrónico, com o seguinte teor:
Exmo(a) Sr(a)
Do que vem solicitado e que já foi respondido no nosso mail em histórico, não se alcança o que se pretende que se certifique já que não é aplicável a passagem duma certidão a "certificar" a Lei.
Certo é que, de momento, a AT não pode efetuar a venda, desde que efetivamente se trate de casa de morada de família (e claramente, não será da competência da AT atestar a situação de casa de morada de família), conforme determina o nº 2 do art.º 244º do CPPT, com a redação que lhe foi dada pela Lei 13/2016, de 23 de Maio, nem tão pouco levantar a penhora sem que se mostre paga toda a dívida que consta subjacente à mesma, independentemente da proveniência da dívida.
Com os melhores cumprimentos
A Chefe de Finanças
(…).
11. Em 03.01.2020 [após ter sido proferido o despacho ora recorrido, transcrito em 5] o Sr. Agente de Execução proferiu o seguinte despacho:
Uma vez que sobre o bem melhor identificado da verba n.º 1, do auto de penhora que se anexa, já impende penhora anterior, registada no âmbito do processo de execução fiscal nº 1570201701022547 e Apensos - Serviço de Finanças de Sobral Monte Agraço APS. 41 e 93 de 11-04-2018 - Cumuladas (Comunicação de Penhora nºs 157020180000004219 e 157020180000003450 ), registada com a AP. 41 de 2018/04/11, há lugar à sustação da presente execução, quanto àquele bem, nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 794.º do CPC.
A decisão de sustação vai ser notificada ao(s) exequente para os efeitos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artº. 794.º do CPC, informado o processo a favor do qual foi realizada a primeira penhora.
12. O executado João (…) foi citado para a execução, por via postal, no seguinte endereço:
Rua (…) Malgas.
13. A executada Paula (…), após ter sido enviada carta para o endereço referido em 12, que foi devolvido com a indicação “mudou-se”, foi citada, por via postal, no seguinte endereço:
R (…) Mexilhoeira Grande.
14. O imóvel penhorado nestes autos, referido em 2, está inscrito no registo predial em nome do executado João (…), na Conservatória do Registo Predial de Sobral de Monte Agraço, freguesia de Santo Quintino, sob a AP. 2 de 2001/10/09, por aquisição resultante de partilha de herança, com o valor tributável de € 6 410,80.
15. Na escritura de mútuo por hipoteca que foi apresentada nos presentes autos como título executivo, datada de 11.3.2003, os executados, que aí são identificados como estando casados entre si no regime da comunhão de adquiridos e residindo em Rua Principal, (…), Malgas, freguesia de Santo Quintino, concelho de Sobral de Monte Agraço, confessaram-se devedores, perante a ora exequente, da quantia de € 225 000,00, nesse ato recebidos da ora exequente, que destinaram ao pagamento de encargos e à realização de obras de beneficiação do imóvel hipotecado, que, conforme consta na escritura, “se destina a habitação própria permanente.”
16. A cláusula terceira da escritura de mútuo por hipoteca referida em 15 tem a seguinte redação:
Para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato, para a parte devedora o segundo outorgante marido constitui a favor da CEMG hipoteca voluntária sobre o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão para comércio e adega e primeiro andar para habitação e logradouro; e casa para arrecadação e logradouro, sito em Malgas, freguesia de Santo Quintino, concelho de Sobral de Monte Agraço, descrito na Conservatória do Registo Predial de Sobral de Monte Agraço, sob o número (…), da referida freguesia, onde a respectiva aquisição se acha registada a favor da parte devedora pela inscrição G-dois, inscrito na respectiva matriz, sob os artigos 2202 e 2010.”
17. O ora executado João Filipe tem o seu domicílio fiscal na Rua Principal (…), Malgas, 2590-276 Sobral de Monte Agraço.
18. Atualmente a executada Paula ... tem o seu domicílio fiscal no seguinte endereço: R (…) Mexilhoeira Grande.
19. O executado João Filipe foi nomeado depositário do imóvel penhorado, pelo Sr. Agente de Execução, em diligência realizada na seguinte morada: Rua Principal n.º (…), Malgas, freguesia de Santo Quintino, concelho de Sobral de Monte Agraço, 2590-276, Malgas.
O Direito
Acerca da pluralidade de execuções sobre os mesmos bens, rege o art.º 794.º do CPC:
Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens
1 - Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga.
2 - Se o exequente ainda não tiver sido citado no processo em que a penhora seja mais antiga, pode reclamar o seu crédito no prazo de 15 dias a contar da notificação de sustação; a reclamação suspende os efeitos da graduação de créditos já fixada e, se for atendida, provoca nova sentença de graduação, na qual se inclui o crédito do reclamante.
3 - Na execução sustada, pode o exequente desistir da penhora relativa aos bens apreendidos no outro processo e indicar outros em sua substituição.
4 - A sustação integral determina a extinção da execução, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 850.º”.
Conforme já esclarecia Alberto dos Reis, relativamente à norma correspondente do CPC de 1939 (art.º 871.º), este regime não se inspira em razões de economia processual, mas visa evitar que em processos diferentes se opere a adjudicação ou a venda dos mesmos bens: “a liquidação tem de ser única e há-de fazer-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar” (Processo de execução, volume 2.º, reimpressão, Coimbra Editora, 1985, p. 287).
Há muito que se entende que esta solução legal pressupõe que a execução prevalecente está em condições de o respetivo exequente/reclamante aí poder exercer os seus direitos, não sendo aplicável no caso contrário (cfr. ac. do STJ, de 19.12.1972, BMJ 222, p. 360; ac. da Rel. do Porto, de 21.7.1983, na Col. de Jur., 1983, tomo IV, p. 231, ambos citados por José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol 3.º, Coimbra Editora, 2003, p. 526; idem, nos acórdãos adiante citados).
A questão que está na origem do presente recurso resulta do facto de o legislador ter decidido proteger, no âmbito das execuções fiscais, os imóveis destinados a casa de morada de família.
Com efeito, em 23 de maio de 2016 foi publicada a Lei n.º 13/2016, cujo objeto é assim definido no seu art.º 1.º:
A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado.”
A referida Lei alterou, nomeadamente, o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), cujos artigos 219.º e 244.º passaram a ter a seguinte redação:
Art.º 219.º
“Bens prioritariamente a penhorar
1 - Sem prejuízo do disposto nos n.os 4 e 5, a penhora começa pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostre adequado ao montante do crédito do exequente.
2 - Tratando-se de dívida com privilégio, e na falta de bens a que se refere o número anterior, a penhora começa pelos bens a que este respeitar, se ainda pertencerem ao executado e sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 157.º.
3 - (Revogado.)
4 - Caso a dívida tenha garantia real onerando bens do devedor por estes começará a penhora que só prosseguirá noutros bens quando se reconheça a insuficiência dos primeiros para conseguir os fins da execução.
5 - A penhora sobre o bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente está sujeita às condições previstas no artigo 244.º.
6 - Quando exista plano de pagamento em prestações devidamente autorizado, e a execução fiscal deva prosseguir os seus termos normais, pode a penhora iniciar-se por bens distintos daqueles cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização, quando indicados pelo executado e desde que o pagamento em prestações se encontre a ser pontualmente cumprido.”
Art.º 244.º
Realização da venda
1 - A venda realiza-se após o termo do prazo de reclamação de créditos.
2 - Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.
3 - O disposto no número anterior não é aplicável aos imóveis cujo valor tributável se enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis.
4 - Nos casos previstos no número anterior, a venda só pode ocorrer um ano após o termo do prazo de pagamento voluntário da dívida mais antiga.
5 - A penhora do bem imóvel referido no n.º 2 não releva para efeitos do disposto no artigo 217.º, enquanto se mantiver o impedimento à realização da venda previsto no número anterior, e não impede a prossecução da penhora e venda dos demais bens do executado.
6 - O impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente previsto no n.º 2 pode cessar a qualquer momento, a requerimento do executado.”
A Lei n.º 13/2016 foi antecedida da apresentação de três projetos de lei que incidiram sobre a mesma temática: Projeto de Lei n.º 86/87/XIII- 1.ª (apresentado por deputados do Bloco de Esquerda – BE), Projeto de Lei n.º 87/XIII – 1.ª (da autoria de deputados do Partido Socialista – PS) e Projeto de Lei n.º 88/XIII – 1.ª (da autoria de deputados do Partido Comunista Português – PCP).
Todas estas iniciativas se propunham auxiliar as famílias e cidadãos que, em virtude da grave crise económica decorrente das restrições financeiras a que o país estava sujeito, viam posta seriamente em perigo, por impossibilidade ou dificuldade no cumprimento das suas obrigações, a satisfação do seu direito à habitação, uma vez que a sua casa de habitação constituía, em regra, o único bem suscetível de satisfazer os direitos dos credores.
O Projeto do BE previa a impenhorabilidade da habitação própria e permanente, bem como a execução de hipoteca sobre esses bens, evitando que fossem penhorados em processos de execução de dívida fiscal.
O Projeto do PCP previa restrições à penhora ou execução de hipoteca sobre imóvel que fosse habitação própria e permanente do executado, bem como limitava a possibilidade da sua venda, tanto em execuções comuns como em execuções fiscais.
O Projeto do PS propunha que não houvesse lugar, em processo de execução fiscal, à realização da venda de prédio urbano ou fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, que efetivamente estivesse afeto a esse fim, excecionando-se tão só habitações de valor particularmente elevado.
Na respetiva Exposição de motivos (do Projeto apresentado pelo PS) salientava-se o seguinte:
A presente iniciativa legislativa assegura plenamente o objetivo presente no programa de governo, indo mesmo um pouco mais além, na medida em que são proibidas todas as vendas de casas de morada de família em processo de execução fiscal, independentemente do valor da dívida fiscal ou da dívida à segurança social. Apenas se excluem desta salvaguarda as habitações de muito elevado valor tributário, exclusão que se justifica para evitar que contribuintes com elevado património se coloquem intencionalmente ao abrigo desta proteção, convertendo o seu património numa única residência de elevado valor.
A solução legislativa equilibra também a salvaguarda do direito à habitação com alguma proteção dos direitos de crédito do Estado, na medida em que o mecanismo criado não impede a penhora mas suspende qualquer venda das casas por iniciativa do Estado. A penhora com proibição da venda acautela os créditos do Estado em relação a outras dívidas constituídas posteriormente, a garantias reais constituídas posteriormente e nos casos de venda voluntária do imóvel” (negrito nosso).
Como se vê, foi o projeto apresentado pelo PS que veio a prevalecer.
Assim, embora o imóvel seja penhorável, nos termos lapidares do n.º 2 do art.º 244.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (com a redação introduzida pela Lei n.º 16/2016) “Não há lugar [no processo de execução fiscal] à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.
Como exceções à impossibilidade da venda a lei prevê o consentimento (“requerimento”) do executado (n.º 6 do art.º 244.º) e o elevado valor do imóvel (“O disposto no número anterior não é aplicável aos imóveis cujo valor tributável se enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis” – n.º 3 do art.º 244.º).
Relativamente à articulação entre a suspensão da execução emergente do regime previsto no n.º 1 do art.º 794.º do CPC e a suspensão da venda da habitação própria permanente decorrente do n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, a doutrina e a jurisprudência dividiram-se.
Para uns, uma vez que o impedimento legal de venda da habitação própria permanente do devedor apenas afeta os créditos fiscais, caberá aos credores civis reclamarem o pagamento dos seus créditos na execução fiscal, pugnando pela venda do imóvel nesse processo, aplicando-se, se necessário, a solução legal emergente do disposto nos artigos 763.º n.º 2 e 850.º n.º 2 do CPC, ex vi art.º 2.º al. e) do CPPT.
Essa tese foi defendida por Delgado de Carvalho, em “As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e na Lei Geral Tributária”, inserido no Blog do IPPC, Papers n.º 339, 22.02.2018, também publicado, com modificações, em Temas de processo civil – A prática da teoria, p. 259 e seguintes, Quid Juris, 2019. Para este autor, o legislador apenas obsta à venda assente exclusivamente na preferência obtida pela administração fiscal com a penhora do imóvel (art.º 822.º n.º 1 do Código Civil), mas já não quando a administração fiscal concorre no produto da venda com credores comuns do executado, com base em privilégios creditórios – o que tanto poderá ocorrer na execução comum, como na execução fiscal: “Uma vez que é de admitir que a Autoridade Tributária se possa apresentar a reclamar créditos para fazer valer os privilégios creditórios de que beneficia quando em concurso com os credores comuns do devedor, então há que entender que é indiferente o processo de execução no qual se realiza o concurso de credores. Dito de outra forma: não funcionando a proibição da venda quando esta seja realizada para satisfazer conjuntamente créditos fiscais e créditos não fiscais, a fase de concurso de credores tanto pode ser aberta no âmbito da execução fiscal como no âmbito da execução comum. Tudo depende do processo em que a penhora seja mais antiga. Nos casos em que a execução comum seja sustada nos termos do art.º 794.º n.º 1 do CPC, os credores comuns poderão exercer os seus direitos sobre a casa de habitação no processo de execução fiscal: “Em suma, não se verifica o impedimento legal à realização da venda de imóvel afeto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar quando, citados os credores comuns (isto é, não fiscais) do devedor na sequência da penhora de imóvel abrangido pela sua garantia, estes se apresentem a reclamar créditos no processo de execução fiscal, por ser este o processo em que a penhora é mais antiga. Quer dizer: o regime instituído pela Lei n.º 13/2016 não pode implicar nem isentar os credores comuns do concurso da Autoridade Tributária (o que, aliás, teria como consequência um injustificado favorecimento dos particulares em detrimento do Estado), nem isentar a Autoridade Tributária do concurso dos credores comuns.”
Na jurisprudência, no mesmo sentido, veja-se, v.g.: Relação de Coimbra, acórdão de 24.10.2017, processo 249/13.6TBSPS-A.C1; Relação do Porto, acórdão de 08.3.2019, processo 11128/11.1TBSNG-C.P1; Relação de Coimbra, decisão sumária de 08.4.2019, processo 1325/16.9T8ACB.C1 – todos publicados em www.dgsi.pt; Relação do Porto, acórdão de 07.5.2019, processo 1546/17.7T8OVR-A.P1, publicado em Col. de Jur., ano XLIV, tomo III, p. 197 e ss, também consultável em Coletânea de Jurisprudência on line, referência 9342/2019.
Outros, porém, defendem que a previsão do n.º 1 do art.º 794.º do CPC não deverá aplicar-se quando a penhora mais antiga tiver ocorrido no âmbito de processo de execução fiscal e tiver por objeto a casa de habitação permanente do devedor (e não ocorram as exceções ao dito impedimento legal previstas nos n.ºs 3 e 6 do art.º 244º) – pois nesse caso a administração fiscal, em cumprimento do n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, não irá proceder à venda do imóvel e não caberá ao credor comum substituir-se à administração fiscal na prossecução dessa venda. Assim, o credor comum diligenciará pela satisfação do seu crédito na execução comum, devendo a Fazenda Nacional ser citada para reclamar os seus créditos na execução comum. Insistir em solução contrária, que não tem base legal e não é seguida pela administração fiscal, colocaria o credor comum num “beco sem saída”, afrontando-se o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido no art.º 62.º n.º 1 da CRP.
Neste sentido, na doutrina, vide Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª edição, Almedina, 2020, pp. 534 a 537, e António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, Almedina, pp. 208 a 210.
Na jurisprudência, vide os acórdãos da Relação de Coimbra, de 26.9.2017, processo 1420/16.4T8VLS-B.C1; da Rel. de Évora, 12.7.2018, processo 893/12.9TBPTM.E1; da Rel. de Guimarães, 17.01.2019, processo 956/17.4T8GMR-C.G1; da Rel. de Lisboa, 07.02.2019, processo 985/15.2T8AGH-A.L1-6; Rel. de Évora, 30.5.2019, processo 402/18.6T8MMN.E1; Rel. de Guimarães, 30.5.2019, processo 2677/10.0TBGMR.G1; Rel. de Lisboa, 12.9.2019, processo 1183/18.9T8SNT.L1-2; Rel. de Lisboa, 22.10.2019, processo 2270/07.4TBVFX-B.L1-7; Rel. de Lisboa, 21.5.2020, processo 19356/18.2T8SNT-B.L1-8; Rel. de Lisboa, 04.6.2020, processo 13361/19.9T8SNT-A.L1-2.
Chamado a pronunciar-se em recurso de revista, ao abrigo do art.º 629.º n.º 2 al. d) do CPC, também o STJ, em acórdão proferido em 23.01.2020 (processo 1303/17.0T8AGD.B.P1S1), enveredou por esta última posição.
Também nós consideramos ser esta a solução a seguir.
Em primeiro lugar, não vislumbramos que fosse intenção do legislador excecionar, na proibição da venda da casa de habitação permanente do devedor no âmbito das execuções fiscais, transmissões aí operadas por iniciativa de credores comuns.
O art.º 1.º da Lei n.º 13/2016 anuncia, taxativamente, que “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado” – sem excecionar o tipo de crédito que aí seja garantido.
Consequentemente, o n.º 2 do art.º 244.º do CPPT passou a estipular, tout court: “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.” Isto é, se o imóvel penhorado pelas Finanças, no âmbito de execução fiscal, se destinar exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, e estiver efetivamente afetado a esse fim, não haverá lugar (no processo de execução fiscal) à realização da sua venda – ponto.
O processo de execução fiscal foi concebido e desenhado para se obter a cobrança coerciva das dívidas ao Estado indicadas no art.º 148.º do CPPT, além de, em certas condições, a outras pessoas coletivas de direito público (n.º 2, al. a), do art.º 148.º do CPPT).
A única situação em que o CPPT admite que a execução fiscal prossiga (e pode até ser por ele instaurada) por iniciativa de credor particular é no caso de sub-rogação, isto é, quando terceiro paga a dívida exequenda: cfr. art.º 92.º n.º 2 do CPPT. Conforme expende Jorge Lopes Sousa (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 6.ª edição, 2011, vol. I, p. 752, Áreas Editora), “[e]sta solução justifica-se por a possibilidade de utilização do processo de execução fiscal ser um benefício que é concedido aos terceiros com o objectivo de os incentivar a pagarem as dívidas tributárias, cuja cobrança é de interesse público, e, estando a dívida paga à Fazenda Pública, não haver qualquer interesse público em incentivar qualquer outro terceiro a pagar ao sub-rogado.”
Ressalvado o aludido caso da sub-rogação, a tramitação no processo de execução fiscal deve ser promovida pelo órgão da execução fiscal durante a “fase administrativa” (artigos 10.º n.º 1, al. f) e 152.º n.º 1 do CPPT) e pelo representante da Fazenda Pública na “fase judicial” (art.º 15.º n.º 1 al. a) e n.º 2, do CPPT) (Jorge Lopes Sousa, ob. cit., vol. III, p. 248). Com efeito, pese embora o legislador qualifique o processo de execução fiscal como “processo judicial” (art.º 103.º da Lei Geral Tributária – LGT), o processo de execução fiscal português é um modelo híbrido, com aspetos próprios de um procedimento administrativo, conjugados com elementos típicos de um processo jurisdicional (vide a comunicação do Sr. Professor Joaquim Freitas da Rocha, “Sobre a natureza jurídica dos atos praticados em execução fiscal”, em e-book do CEJ, Execução fiscal, março de 2019, pp. 33 a 59; também, no mesmo e-book, a Exm.ª Juíza Conselheira Dulce Neto, “A natureza da execução fiscal na jurisprudência do STA”, pp. 11 a 21).
Se o executado pagar voluntariamente a dívida fiscal exequenda, a execução extingue-se, só prosseguindo para satisfação dos interesses dos credores reclamantes no caso de o pagamento ter ocorrido após a venda do bem penhorado (artigos 264.º n.º 1 e 265.º n.º 3 do CPPT). Nesta matéria o regime do processo de execução fiscal é especial, não se aplicando o disposto no art.º 850.º n.º 2 do CPC (correspondente ao art.º 920.º n.º 2 do CPC de 1961). Neste sentido tem decidido o STA (cfr. acórdãos de 15.02.2007, processo 01065/06; de 27.6.2007, processo 0446/07; de 03.02.2016, processo 087/15).
Na versão do seu estudo publicada no Blog do IPPC (que não no texto publicado em Temas de Processo Civil, citado), Delgado de Carvalho admite que, em último recurso, se levante a suspensão da execução decorrente do n.º 1 do art.º 794.º do CPC. Tal só deverá ocorrer quando o credor comum tiver esgotado os meios ao seu alcance para fazer valer, primeiramente face à administração fiscal, e depois, se necessário, face ao tribunal tributário (cfr. direito de reclamação previsto nos artigos 276.º e seguintes e 151.º n.º 1 do CPPT e direito de recurso previsto nos artigos 279.º n.º 1 al. b) e seguintes do CPPT), os seus direitos no âmbito da execução fiscal:
“Uma vez que seja decidido pelo tribunal tributário de 1.ª instância que os credores comuns, que hajam reclamado, não podem requerer o prosseguimento da execução fiscal e das diligências de venda, o juiz a quem foi distribuída a execução comum que se encontra sustada nos termos do n.º 1 do art. 794.º do nCPC, invocando a competência residual da jurisdição comum (cf. art. 211.º, n.º 1 da CRP), levanta a sustação daquela execução para que prossiga a realização da venda no processo executivo comum e se providencie pela convocação da administração fiscal para que esta também participe na distribuição do produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação. Esta medida afigura-se, então, necessária para assegurar o direito de execução do credor comum, na dimensão jusconstitucional do direito fundamental em matéria processual de acesso aos tribunais (cf. art. 20.º, n.º 1 da CRP)” (citado estudo publicado no Blog do IPPC, p. 20).
Cremos, a este respeito, que se o credor comum considerar, como a nós nos parece, que não tem jus à prossecução da execução fiscal nos termos já acima referidos, não faz sentido compeli-lo a reivindicá-la perante o órgão de execução fiscal e, depois, perante a autoridade jurisdicional (da 1.ª instância e, eventualmente, depois em sede de recurso para o TCA competente e/ou para o STA).
Veja-se o que, a propósito, se expendeu no supra citado acórdão da Relação de Lisboa, de 07.02.2019:
Aqui chegados, temos, pois, que o único interesse a ponderar nesta sede é o relativo à tutela efectiva. A melhor solução do problema proposto será, assim, a que melhor assegurar a tutela dos direitos dos credores munidos de títulos executivos.
A este nível, o Tribunal «a quo», após louvável e respeitável construção que revelou séria preocupação com a coerência do sistema, concluiu que, apesar da decisão contrária já obtida da Administração Fiscal, a Exequente deveria, ainda, lutar, porfiar, recorrer, convencer a Justiça Tributária a impor a essa Administração que promova a venda do bem, apesar de o legislador lhe dizer expressamente para não o fazer, com fundamento em se tratar de situação em que existem créditos não tributários a graduar, reconhecer e fazer honrar.
Digamos que, apesar de válida, esta solução, porque sempre dependente de futuras interpretações de sinal diverso e potenciais bloqueios é por demais incerta e potencialmente menos efectiva. Por esta via, inegavelmente relevante e decisiva, a construção questionada dá o flanco e revela fragilidade.
(…)
O sistema jurídico não pode remeter os titulares de direitos para potenciais becos sem saída no que à sua protecção efectiva se refere.”
Daí que o STJ, no já acima citado acórdão datado de 23.01.2020, tenha exarado o seguinte:
“Dito ainda de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 09.06.2005 (processo nº 05B1358), pretendeu o legislador [no art.º 794.º n.º 1 do CPC] «aproveitar o decurso de duas execuções em plena actividade na sua tramitação e onde foi penhorado o mesmo bem, remetendo o modo de pagamento coercivo da obrigação para aquele processo que maior funcionalidade e maior comodidade concede ao exequente e sem causar dano ao executado.
Por isso é que só se justificará a reclamação do crédito exigido na execução sustada, desde que a execução para onde se remete a reclamação desse crédito esteja em condições de poder efectivar, com a usual normalidade, esta assinalada prerrogativa do credor exequente».
Daí que, nesta perspetiva, seja de entender, por um lado, que só se verifica utilidade no regime do citado art. 794º, nº1, se ambas as execuções se encontram a correr termos, pois só assim é que o exequente/ reclamante pode obter o pagamento dos seus créditos por via executiva.
E, por outro lado, que suspensa ou por qualquer modo “parada” a execução na qual o credor exequente deve ir reclamar o seu crédito, por força do art. 794º, nº1 do CPC, deve prosseguir a instância da execução que havia sido sustada, nos termos deste mesmo artigo.
Ora, a verdade é que, encontrando-se a execução fiscal “parada” em consequência do regime previsto no art. 244º, nº 2 do CPPT, que impede a Autoridade Tributária de promover a venda, nesse processo, do imóvel penhorado por o mesmo ser a casa de morada de família do executado, não se vê razão para interpretar o citado art. 794º, nº1 de modo diferente, pelo que nenhuma censura merece o acórdão recorrido ao decidir que «em face da situação concreta verificada, não há lugar no caso à sustação da execução, nos termos do art.º 794.º n.º 1 do C.P.C., devendo a mesma prosseguir os seus termos com a venda do imóvel penhorado, dando-se a possibilidade à Fazenda Nacional de reclamar os seus créditos na execução comum, se assim o pretender, para deles ser paga no lugar em que venham a ser graduados, impondo-se a revogação do despacho recorrido».”
Assim, discorda-se do despacho recorrido quando nele o tribunal a quo indefere a requerida prossecução da execução comum limitando-se a invocar o regime previsto no n.º 1 do art.º 794.º do CPC e a citar, sem análise crítica, o supra mencionado acórdão da Relação de Coimbra, de 24.10.2017 e sem dar relevância ao impedimento legal invocado pelo Sr. Agente de Execução (“foi o Agente de Execução informado que a situação do imóvel se enquadra nas disposições da Lei 13/2016, de 23 de Maio, no que se refere à protecção da casa de morada de família” – n.º 4 do Relatório supra).
Conforme decorre do art.º 244.º n.º 2 do CPPT, o impedimento legal de venda do imóvel em questão pressupõe que se trate de imóvel exclusivamente destinado a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, e que o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim.
Ora, os elementos constantes nos autos demonstram que o imóvel penhorado na execução comum se destinava, na altura da celebração do contrato de empréstimo hipotecário, à residência permanente dos devedores, ora executados (vide n.ºs 14, 15 e 16 da matéria de facto supra indicada). Atualmente, os elementos constantes no processo indicam que o executado João (…) continua a aí residir, mas a executada Paula (…) já não (cfr. n.ºs 12, 13, 17, 18 e 19 dos factos provados).
Quanto ao órgão de execução fiscal, apesar de ter sido diretamente interpelado para certificar que a venda do bem em causa não era legalmente possível no processo de execução fiscal, ao abrigo do n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, por duas vezes respondeu de forma ambígua, conforme descrito nos n.ºs 8 e 10 da matéria de facto supra, que aqui, de novo, se transcrevem:
8. “Exmo(a) Sr(a)
Face ao pretendido no mail infra, informa-se que a AT em geral e este Serviço de Finanças em particular, cumprem com o que está estipulado na Lei, agindo em conformidade com a mesma.
Mais se informa que os processos que originaram as penhoras não se encontram extintos.
Com os melhores cumprimentos
A Chefe de Finanças
10. “Exmo(a) Sr(a)
Do que vem solicitado e que já foi respondido no nosso mail em histórico, não se alcança o que se pretende que se certifique já que não é aplicável a passagem duma certidão a "certificar" a Lei.
Certo é que, de momento, a AT não pode efetuar a venda, desde que efetivamente se trate de casa de morada de família (e claramente, não será da competência da AT atestar a situação de casa de morada de família), conforme determina o nº 2 do art.º 244º do CPPT, com a redação que lhe foi dada pela Lei 13/2016, de 23 de Maio, nem tão pouco levantar a penhora sem que se mostre paga toda a dívida que consta subjacente à mesma, independentemente da proveniência da dívida.
Com os melhores cumprimentos
A Chefe de Finanças”.
Isto é, as Finanças admitem que não podem efetuar a venda, embora não lhes caiba “atestar” a situação de casa de morada de família.
De tudo o supra exposto resulta que, efetivamente, não estão reunidas condições para que o imóvel que foi penhorado nesta execução comum seja vendido no âmbito da execução fiscal: o executado, proprietário do imóvel, nele tem a sua residência permanente, estando reunidos os pressupostos do impedimento legal da venda no processo de execução fiscal previsto no n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, conforme foi asseverado pelo Sr. Agente de Execução, sem que qualquer sujeito processual o desmentisse. Daí que haverá que autorizar que a execução comum prossiga, quanto ao imóvel nela penhorado, pese embora a subsistência de penhora mais antiga numa outra execução, sob pena de violação do direito, constitucionalmente garantido, a uma justiça efetiva e célere (art.º 20.º n.ºs 1 e 4 da CRP).
Note-se que embora a lei utilize a expressão “casa de morada de família”, o que remete para uma utilização plural de pessoas, não foi seguramente intenção do legislador proteger apenas os imóveis que servem de residência a uma família, mas também aqueles que constituem o lar de uma única pessoa. Tanto tem dignidade constitucional o direito à habitação dos agregados familiares, no sentido plural do termo, como das pessoas que habitem o imóvel sozinhas (neste sentido, cfr. Andreia Barbosa, “A proteção da casa de morada da família e da casa de habitação efetiva no processo de execução fiscal”, in Cadernos de Justiça Tributária, Braga, n.º 14 (Out-Dez 2016), p. 6). Por isso o texto da lei coloca o devedor/executado a par do agregado familiar, na destinação do imóvel relevante para a mencionada proteção legal (n.º 2 do art.º 244.º do CPPT: “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim”).
Na sequência do despacho ora recorrido o Sr. Agente de Execução sustou a execução quanto ao imóvel penhorado nos autos, aplicando o disposto no art.º 794.º n.º 1 do CPC. Uma vez revogado o referido despacho judicial (cuja impugnação só cabia, como coube, à exequente), poderá o Sr. Agente de Execução, dando sem efeito a sustação da execução, prosseguir, no uso dos seus poderes, a execução quanto ao imóvel penhorado nos autos.
De notar que a suspensão da execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado, prevista no art.º 8.º, alínea e), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.3 (que adotou medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença COVID-19) cessou em 01 de outubro de 2020, nos termos da redação introduzida pela Lei n.º 16/2020, de 29.5.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo dos apelados, que nela decaíram (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).
Notifique-se, incluindo o Sr. Agente de Execução.

Lisboa, 22.10.2020
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins