PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS
TRIBUNAL COMPETENTE
CASO JULGADO FORMAL
LEI NOVA
Sumário

I – Tendo entrado em vigor a Lei nº 117/2019 de 13/9, na data de 1/1/2020, alterando o Código de Processo Civil, e designadamente a redação do artigo 1083.º n.º 1, passando esta norma agora a estabelecer que é da competência dos tribunais judiciais o inventário que constitua dependência de outro processo judicial.
II – Mas se o tribunal se pronunciou anteriormente pela incompetência em razão da matéria do tribunal de comércio, relativamente à ação de separação da massa insolvente dos bens comuns apreendidos, a subsequente alteração legislativa decorrente da revogação do Regime Jurídico do Processo de Inventário não se traduz na sanação da incompetência declarada, restando à Autora a via da norma do artigo 740,º CPCiv., posto que ainda não foi citada para o efeito.
III - Tendo-se conhecido da incompetência absoluta do tribunal, por incompetência em razão da matéria, a repetição da ação, no mesmo processo, ainda que em diferente apenso, conduz à verificação de “caso julgado formal”, já que o tribunal se veria na contingência de repetir a pronúncia no mesmo processo.

Texto Integral

• Rec. 2132/17.7T8AVR-D.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão de 1ª instância – 9/5/2020.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo incidental de restituição e separação de bens da massa insolvente nº2132/17.7T8AVR-D, do Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis.
Autora – B….
Réus – C…, Massa Insolvente de C… e Credores da Massa Insolvente.

Pedido
a) Que seja ordenada a separação da massa insolvente da meação da A. nos bens comuns do casal (compostos pelos bens melhor descritos no artigo 24.º e 47.º da petição);
b) que os RR. sejam condenados a separar da massa e a restituir à A. meação dessa nos bens comuns do casal (compostos pelos bens melhor descritos no artigo 14.º da presente petição);
c) que a liquidação da massa insolvente se cinja à meação que o insolvente C… detém no património comum do casal.

Tese da Autora
Em 08.07.2019, a A. deu entrada da acção de separação e restituição de bens que correu seus termos no apenso C.
No dito apenso, foram os RR. absolvidos da instância porquanto a Mmª Juiz declarou o “Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer e julgar a presente acção. À luz da Lei em vigor à altura da proposição da acção, entendeu-se competente para apreciar e tramitar tal processo o Cartório Notarial e não o Tribunal.
A A. tomou conhecimento dessa decisão por notificação electrónica à qual foi aposta a data certificada de 12.12.2019.
Dispõe o n.º 1 do artigo 279.º do C.P.C. que “a absolvição da instância não obsta a que se proponha outra acção sobre o mesmo objecto”.
“(…) Os efeitos civis derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se, quando seja possível, se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.”
A 28.06.2019, por carta registada com aviso de recepção e através da Srª Administradora da Insolvência, foi a ora Autora notificada nos termos e para os efeitos do artigo 141.º do C.I.R.E..
De acordo com a missiva que lhe foi dirigida pela Senhora Administradora de Insolvência, essa notificava esta “(….) para, no prazo máximo de 10 (dez) dias requerer, caso o pretenda, a separação do direito à meação sem determinação de parte ou direito na “lote de terreno urbano, denominado lote “A”, localizado no …, com uma área total de 420m2, já com uma construção, registado na Conservatória do Registo Predial de Espinho, com o n.º …/19880509, da freguesia …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1877 da mesma freguesia”, tudo nos termos combinados dos artºs 141, n.1, al.b) e 143º do CIRE.
A Autora casou com o ora 1º Réu, C…, no dia 3/8/80, tendo preliminarmente à realização do matrimónio, celebrado por escrito convenção antenupcial onde os nubentes optaram por submeter o seu casamento ao regime da comunhão geral de bens.
Recentemente, por iniciativa do “D…, S.A.”, nos presentes autos, o referido cônjuge da A. foi declarado insolvente.
A dívida que legitimou o pedido do “D…” contra o 1.º R. não é comum, já que a mesma resultou de um aval prestado única e exclusivamente pelo 1.º R. à sociedade “E…, Lda.”
Todo o património do 1.º R. insolvente deverá ser apreendido à ordem dos autos (património esse que é comum, à A.).
Integra o património comum do casal composto pela A. e pelo 1.º R.:
a) O “lote de terreno urbano, denominado lote “A”, localizado no …, com uma área total de 420m2, (….), registado na Conservatória do Registo Predial de Espinho, com o n.º …/19880509, da freguesia …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1877 da mesma freguesia, onde se encontra edificado o prédio urbano sito na Rua …, n.º … (e que é a casa de morada de família) composto por cave, rés-do-chão e 1.º andar, sendo que a cave é ampla, o rés-do-chão tem duas assoalhadas, cozinha, banho, vestíbulo, despesa e o andar tem quatro assoalhadas, dois banhos, vestíbulo e varandas, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o actual artigo 2599 da união de freguesias ….
b) Os bens móveis que compõem o recheio da casa morada de família situada na Rua …, n.º …, … (Espinho) e que aí podem ser encontrados, bastante usados e em bom estado de conservação.
c) a quota que o 1.º R. detém na empresa “E…, Lda.”, NIPC ………, com sede no …, ….-… … (Santa Maria da Feira), correspondente a 25% (vinte e cinco porcento) do capital social.
O 1.º R. é o cônjuge mais velho.

A Autora foi notificada para se pronunciar quanto à eventual ofensa de caso julgado, visto ter intentado nova acção contra os mesmos Réus, com a mesma factualidade e com o mesmo pedido que havia formulado no apenso C, no qual foi proferida decisão que declarou o Tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo os Réus da instância.
Respondeu a Autora, dizendo, em síntese, que o Tribunal apenas se pronunciou quanto à sua incompetência, não apreciando quaisquer dos fundamentos aduzidos.
Ora, a falta dessa apreciação de fundo obsta à verificação de caso julgado.
Acrescenta que, em função da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, deixou de se verificar qualquer incompetência.

Despacho Liminar Recorrido
Por força da ocorrência de caso julgado, correspondente a uma excepção dilatória (artigo 577.º, alínea i) do CPC) de conhecimento oficioso (artigo 578.º do CPC), os Réus foram absolvidos da instância (artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Conclusões do Recurso de Apelação da Autora:
1.º - De acordo com o Douto Tribunal A Quo, “(….) a sentença proferida no apenso C tem eficácia intraprocessual (….)”, “(…) ao contrário do que defende a Autora, a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro não acarretou qualquer modificação na competência material deste Tribunal. (….)” pelo que “(…)conclui-se manter-se o fundamento que determinou a absolvição dos Réus no apenso C, a violação das regras de competência em razão da matéria, geradora da incompetência do Tribunal . (….) A ocorrência de caso julgado corresponde a uma excepção dilatória (artigo 577.º, alínea i) do CPC), de conhecimento oficioso (artigo 578.º do CPC), que se julga verificada, acarretando a absolvição dos Réus da instância, o que se declara e determina (artigo 576.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).”
2.º - A Apelante não se conformando com a decisão proferida, entende, data vénia, que o Douto Tribunal A Quo faz uma enviesada interpretação do caso julgado e do valor da sentença produzida no âmbito do Apenso C dos autos.
3.º - Faz, ainda e salvo o devido respeito, uma errada interpretação da Lei 117/2019, de 13 de Setembro, e da implicação da entrada em vigor da mesma sobre aquela que é a competência de um Juízo de Comércio (tal e qual essa se encontra consagrada da Lei de Organização do Sistema Judiciário – doravante designada por LOSJ).
4.º- O Apenso C deu entrada em juízo a 08.07.2019 e aí se peticionava, em súmula, que: a) fosse ordenada a separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns do casal; b) fossem os RR. condenados a separar da massa e a restituir-lhe a sua meação nos bens comuns do casal (compostos pelos bens melhor descritos no artigo 14.º da presente petição); e c) a liquidação da massa insolvente se cingisse à meação que o insolvente C… detém no património comum do casal.
5.º - À data de entrada em juízo do Apenso C, estava em vigor a Lei 23/2013 de 05 de Março – R.J.P.I. e de acordo com essa, em caso de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, seria competente para o processo o cartório notarial - n.º 1 do artigo 81.º, artigo 79.º e n.º do artigo 3.º, todos do R.J.P.I.
6.º - O Tribunal da Comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado só praticaria os actos cuja competência se encontrava reservada ao juiz (ou seja, a decisão de questões que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto e de direito, não devessem ser decididas no processo de inventário e a apreciação de alguns actos dos Notários - v.g.: artigo 16.º, 57.º e 66.º do mesmo R.J.P.I.).
7.º - Em 11.12.2019, o Douto Tribunal A Quo proferiu sentença no âmbito desse mesmo Apenso C determinando que “(…) este Juízo de Comércio não é materialmente competente para conhecer da presente acção, o que se declara. (…)”, tendo absolvido os réus da instância.
8.º - A decisão foi notificada à, agora Apelante – por via electrónica e através do seu Mandatário – a 12.12.2019 e essa confrontada com esta sentença e para evitar uma possível condenação como litigante de má fé, decidiu não recorrer.
9.º - A Douta Sentença transitou, desse modo e no âmbito do apenso C, a 03.01.2020.
10.º - A 01.01.2020 entrou em vigor a Lei 117/2019, de 13 de Setembro - artigo 15.º do citado diploma.
11.º - A Lei 117/2019 alterou o C.P.C. e revogou o R.J.P.I., aplicando-se apenas aos processos iniciados a partir de 01.01.2020 – artigo 15.º, artigo 10 e n.º 1 do artigo 11.º, todos da Lei 117/2019.
12.º - A partir de 01.01.2020, a separação de bens por causa da insolvência de um dos cônjuges rege-se pelo regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento (ainda que com algumas especificidades) – artigo 1135.º do C.P.C.
13.º - Assim e sempre que o inventário constitua dependência de outro processo, os Tribunais Judiciais são exclusivamente competentes para esse. – n.º 1 do artigo 1083.º do C.P.C.
14.º - Deste modo e respeitando a previsão legal consignada pela nova lei em vigor desde 01.01.2020, a agora apelante, em 27.01.2020, deu entrada dos autos de Apenso D.
15.º - Face ao aduzido nas Conclusões 4.º a 14.º, é importante aferir da existência, moldes e amplitude do trânsito em julgado da Sentença do Apenso C e, por conseguinte, do seu valor (ou não) na produção da verificação da excepção dilatória prevista na alínea i) do artigo 577.º do Código de Processo Civil (de ora em diante, designado por C.P.C.).
16.º - “A decisão sobre a incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida” – artigo 100.º do C.P.C. -, do mesmo modo que “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo” – n.º 1 do artigo 620.º do C.P.C.
17.º - Havendo duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. – artigo 625.º do C.P.C.,
18.º - Significa isto que o pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida - em contexto estritamente processual e que não tenha sido objecto de recurso - seja objecto de nova e repetida decisão; quando tal aconteça, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia sentença. Tenta-se, assim, evitar repetições inúteis e o risco de decisões contraditórias.
19.º - Existe caso julgado material - assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada – e existe caso julgado formal - quando há decisão anterior proferida sobre a relação processual. (Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, e João Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol. pág. 276).
20.º - Para Manuel de Andrade (In “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304), o caso julgado formal consiste na força obrigatória que os despachos e as sentenças possuem dentro do processo e que dizem, única e exclusivamente à relação processual; “consiste na preclusão dos recursos ordinários, na irrecorribilidade, na não impugnabilidade”.
21.º - “O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (…), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. (….) Reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo (…):” – Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 578 (lição que se mantém actual apesar das diversas alterações legislativas produzidas no âmbito da lei processual civil)
22.º - Tendo presente tais Doutos Ensinamentos – e também por causa desses – é importante olhar para o caso em apreço nos presentes autos, uma vez que a decisão proferida no âmbito do Apenso C foi-o com o pressuposto de vigência do R.J.P.I.; regime esse cuja continuidade cessou a 31.12.2019 (ou seja, quase um mês antes da proposição dos autos de processo que correm seus termos sob o Apenso D).
23.º - É, por conseguinte e face a tudo o exposto, legítimo concluir que não existe violação do caso julgado formal se, por força da lei, a competência material do tribunal se altera.
24.º - Conclusão essa que, de resto e ainda que com as devidas adaptações, se chega no Aresto do S.T.J. de 08.03.2018, disponível em www.dgsi.pt
25.º - Apesar de ínsitos nos mesmos autos de processo principal, o Apenso C e o Apenso D – no que à competência absoluta do Juízo de Comércio respeita – são fundamentados em lei completamente distinta.
26.º - O Apenso D foi intentado à luz da Lei 117/2019; Lei essa que, precisamente, revogou o R.J.P.I. (regulamentação legal que ditou a decisão de incompetência do Tribunal A Quo no âmbito do Apenso C).
27.º - Isto posto e tendo presente que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo”, facilmente concluímos que a proposição (e continuação dos seus legais termos) do Apenso D em nada fere a eficácia de caso julgado formado no Apenso C.
28.º - Os fundamentos e o silogismo judiciário inerentes ao Apenso C foram determinado pela vigência do R.J.P.I., ao passo que os fundamentos e o silogismo judiciário inerentes ao Apenso D provêm da aplicação da Lei actualmente em vigor (Lei 117/2019) e que revogou integralmente (com a consagração de soluções diferentes) o dito R.J.P.I.
29.º - Da subsunção jurídica dos factos ao Direito aplicável, podemos, pois, concluir que, ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juiz do Tribunal A Quo desconsiderou e violou o disposto nos artigos 10º, 11.º e 15.º da Lei 117/2019, bem como os artigos 1135.º, 1083.º, alínea i) do 577.º e 625.º, todos do C.P.C. o que, desde já, se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
30.º - Sem prejuízo do já afirmado, também não se compreende como pode o Douto Tribunal A Quo afirmar que ser incompetente de acordo com a L.O.S.J..
31.º - Salvo o devido respeito, a Meritíssima Juiz do Tribunal A Quo tem uma interpretação algo peculiar sobre a L.O.S.J e, inclusivamente, ofende Jurisprudência pacifica quanto à questão da competência dos Juízos de Comércio.
32.º - A este propósito recorde-se que o processo de inventário é de competência exclusiva dos tribunais judiciais “(…) Sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.” - artigos 1135.º e 1083.º, ambos do C.P.C.. Solução legal essa que, de resto, era aquela que vigorava antes da entrada em vigor do R.J.P.I.
33.º - Era pacífico entre os vários Autores que “ (…) o processo especial de separação de bens previsto no art.º 141º tem de ser deduzido contra o administrador da insolvência, e, além disso, tem de ser por apenso ao processo de insolvência.”
34.º - Era, também, pacifico na Jurisprudência que “(…) o meio próprio para o cônjuge obter a separação da massa insolvente dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns é por apenso ao processo de insolvência nos termos do art. 141 do CIRE.” – nesse sentido, Ac. do T.R.G. de 20.11.2014, disponível em www.dgsi.pt.
35.º - Em sentido uníssono quanto à competência dos Juízos de Comércio encontramos, ainda, por exemplo, Ac do T.R.C. de 04.04.2017, Ac. do T.R.P. de 03.02.2014 e de 18.04.2016, de 27.09.2017 e Ac. do S.T.J. de 15.04.2015, todos disponíveis em www.dgsi.pt
36.º - Note-se, ainda, que o apontado artigo 128.º da L.O.S.J. – que, segundo o Douto Tribunal A Quo é o fundamento para exclusão de competência material para apreciação dos autos de processo do Apenso D – tem a mesma redacção (com a excepção do nome que era atribuído ao Tribunal) desde a Lei 62/2013, sendo que toda a Jurisprudência e Doutrina (citadas a este propósito na presente Apelação) são peremptórias em afirmar a competência do Juízo de Comércio para apreciar o pedido do cônjuge no sentido de obter a separação da massa insolvente dos seus bens próprios e da sua meação nos bens comuns.
37.º - A decisão do Tribunal A Quo desconsidera totalmente a letra da Lei e o entendimento Jurisprudencial e Doutrinal uniforme que existe acerca deste tema, bem como o disposto nos artigos 202.º e 211.º da Constituição da República Portuguesa que se referem à delimitação concreta da jurisdição entregue aos Tribunais.
38.º - Ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juiz do Tribunal A Quo desconsiderou e violou o disposto no artigos 202.º e 211.º da Constituição da República portuguesa, o artigo 128.º da L.O.S.J., os artigos 141.º e 146.º do C.I.R.E, e os artigos 1135.º e 1083.º do C.P.C., o que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos.

Factos Provados
Encontram-se os factos supra descritos, relativos à tramitação processual e ao teor dos requerimentos e despachos judiciais, designadamente o despacho judicial recorrido.

Discussão e Decisão
A pretensão resultante do presente recurso de apelação ancora-se no conhecimento dos seguintes pontos:
- saber se não se verifica caso julgado sobre a incompetência do tribunal, daquilo que foi declarado no apenso C, para os presentes autos;
- saber se, de todo o modo, e subsidiariamente, tinha o juízo de comércio competência para a tramitação dos presentes autos, ao contrário da afirmação igualmente feita no despacho recorrido.
Vejamos pois.

I
Partimos do pressuposto, indiscutido, de que a Autora, após ter sido proferida decisão de absolvição da instância no apenso C, por incompetência do tribunal em razão da matéria, vem agora intentar nova acção em que os sujeitos, o pedido e a causa de pedir são absolutamente idênticos.
Na altura em que foi proferida a citada anterior decisão judicial, já transitada, vigorava o denominado Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei nº23/2013 de 5/3), o qual previa um processo específico para a separação de bens em casos especiais, em particular para a separação de bens em consequência da insolvência de um dos cônjuges – cf. artº 81º.
Daí se seguia ser competente para a tramitação do processo de inventário em causa o Cartório Notarial com competência para este efeito – artº 3º RJPI.
Só que, neste ínterim, entrou de vigorar a Lei nº 117/2019 de 13/9, na data de 1/1/2020, que alterou o Código de Processo Civil, e designadamente a redacção do artº 1083º nº1, estabelecendo esta norma agora ser da competência dos tribunais judiciais o inventário que constitua dependência de outro processo judicial.
O presente apenso D deu entrada em juízo no dia 27/1/2020 e a Recorrente entende que os contextos processuais são agora diversos, pelo que se não pode falar de caso julgado formal.
Ora, mesmo o indeferimento liminar da petição, tendo por consequência a absolvição do demandado da instância, pode produzir caso julgado formal – Prof. J. Alberto dos Reis, CPC Anotado, V/157 e 169.
Este caso julgado ocorre “dentro do processo” (artº 620º nº1 CPCiv), conceito que abrange não só a acção principal, mas também os seus incidentes e apensos – cf. Profs. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC Anotado, 2º, 2ª ed., pg. 716, e Profs. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, 3ª ed., pgs. 752 e 753.
Só que não é do indeferimento liminar da petição que trata o caso julgado de que se conheceu em 1ª instância, mas sim da pura e simples “repetição da acção” – partes, pedido e causa de pedir, agora invocadamente à luz de lei nova.
Tendo-se conhecido da incompetência absoluta do tribunal, por incompetência em razão da matéria, a repetição da acção conduziria à verificação de um “caso julgado formal”, já que o tribunal se veria na contingência de repetir a pronúncia no mesmo processo (veja-se Profs. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, 1º, 3ª ed., pg. 551).
Fora do âmbito do caso julgado ficam os puros temas jurídicos, a aplicação e a interpretação de textos legais, pois que sobre eles nunca se forma caso julgado (assim, Prof. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pg. 583).
Na verdade, o único objectivo da excepção em causa é o de evitar a contradição prática de decisões, obstar a decisões concretamente incompatíveis, dentro do mesmo processo.
II
Todavia, mesmo a eventualidade de “caso julgado formal” não era impeditiva da propositura de nova acção, ainda que com as mesmas partes, pedido e causa de pedir, posto que, como estabelece a norma do artº 279º nº1 CPCiv, a absolvição da instância (artºs 99º nº1, 576º nº2 e 577º al.a) CPCiv) não obsta a que se proponha outra acção sobre o mesmo objecto.
Nessa nova acção, em tese, sempre poderia a Autora invocar os mesmos factos, com enquadramento legal diverso, entretanto ocorrido.
E será que foi isso o que verdadeiramente ocorreu?
Tendo entrado em vigor a norma do artº 1083º nº1 al.b) CPCiv, que atribui a competência para o inventário divisório na dependência de outro processo, no caso, do processo de insolvência do marido da Autora, aos tribunais judiciais, entendeu o despacho recorrido que a norma só pode ser entendida por referência ao tribunal comum, inexistindo norma que atribua tal competência aos juízos de comércio.
Todavia, basta um simples atentar no pedido formulado para se verificar que o processo intentado nada tem que ver com inventário divisório, designadamente na sequência de uma insolvência declarada de um dos cônjuges.
Trata-se antes de um pedido de separação de bens da massa insolvente, designadamente da separação do direito da Autora à respectiva meação nos bens comuns do casal que constitui com seu marido, agora insolvente.
Trata-se do pedido a que alude a norma do artº 141º nº1 al.b) CIRE.
É neste processo, seguindo a ritologia de uma reclamação e verificação de créditos, com adaptações, conforme disposto no artº 141º nº2 CIRE, que cumpre fazer valer a questão da propriedade dos bens e da comunicabilidade ao património da Autora da dívida contraída por seu marido – artº 1691º nº1 CCiv.
Estabelecida a propriedade comum, e só depois de esta propriedade comum se mostrar estabelecida, é que a Autora adquire o direito a fazer separar da massa, materialmente, a respectiva meação, através do inventário divisório a que alude a norma do artº 1083º nº1 al.b) CPCiv.
Na verdade, de acordo com o disposto no artº 1696º nº1 CCiv, na actual redacção de 1995, pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns.
Foi assim colocado termo à anterior moratória forçada (prevista na redacção da norma de pregresso).
Portanto, em caso de inexistência de património próprio, os bens que integram um património comum podem ser executados rectius apreendidos em insolvência, a fim de satisfazerem créditos invocados ou reclamados.
É neste contexto que o cônjuge do devedor é citado no processo.
Citado, e não notificado, como se demonstra que a Autora foi (notificada), através de carta registada com aviso de recepção, remetida pelo AI – pese embora se possa considerar suprida a falta de citação (artº 189º CPCiv).
Tratava-se de chamar ao processo, pela primeira vez, pessoa interessada na causa – artº 219º nº1 CIRE, a fim de requerer (ao abrigo do artº 141º nº1 al.b) CIRE), ou a fim de lhe proporcionar (ao abrigo do artº 740º CPCiv), enquanto cônjuge não insolvente, a efectivação da separação dos bens comuns.
Note-se que tal separação pode também ser simplesmente ordenada pelo juiz, a requerimento do AI, visto o disposto no artº 141º nº3 CIRE.
Mencionou-se o disposto no artº 740º CPCiv, no caso de insuficiência de património próprio do insolvente e da apreensão de bens comuns, processando-se eventual citação nos termos da norma em causa (note-se que as normas referentes à penhora e venda em processo executivo são aplicáveis subsidiariamente em processo de insolvência, face à remissão do artº 17º CIRE).
O cônjuge não insolvente virá ao processo, na sequência da citação, não como um terceiro, mas para requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa de haver requerido a separação noutro processo.
Mas para que operasse o disposto no artº 740º CPCiv, era necessário que tivesse existido pronúncia prévia nos termos da norma do artº 141º nº1 al.b) e/ou nº3 CIRE.
III
Correspondendo ao convite do AI, a ora Autora veio instaurar acção com vista à separação da sua meação nos bens comuns – fê-lo aliás nos exactos termos para que foi notificada.
Poderia dizer-se abrangida a pretensão formulada nos autos pelo caso julgado formal?
A Autora invocou a norma do artº 279º nº1 CPCiv, mais invocando também o enquadramento legal diverso do novel artº 1083º nº1 al.b) CPCiv, entretanto entrado em vigor, e que permitia à Autora, na sua tese, a regularização da instância (portanto, do respectivo ponto de vista, não existia caso julgado formal).
Todavia, tendo o pedido sido formulado nos termos aludidos da norma do artº 141º nº1 al.b) CIRE, o enquadramento genérico da matéria da competência em razão da matéria do tribunal tinha já sido adrede efectuado, por despacho judicial prévio, proferido em outro apenso e transitado em julgado, considerando a competência para o inventário subsequente à citação prevista na norma do artº 740º CPCiv.
E, na verdade, não existe qualquer norma que permita atribuir a competência para o processamento de um inventário divisório a um juízo de comércio, nos termos das normas do artº 141º CIRE e 128º LOSJ.
Esta situação demonstra estar verificado um “caso julgado formal”, decorrente da pronúncia prévia sobre competência, não afectada pela alteração da lei que retirou a referida competência aos cartórios notariais.
Não nos encontramos perante o facto de a Autor /Recorrente se encontrar objectivamente impedida de ver reconhecido o seu direito a requerer a separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns – a Autora continua a ter ao seu alcance a via da norma do artº 740º CPCiv, tal como lhe foi apontado no despacho proferido no apenso C, posto que não foi efectivamente citada nos termos do disposto naquele artº 740º CPCiv (a notificação, da parte do AI, não menciona norma em causa, apenas o disposto no artº 141º CIRE), continuando a poder requerer, a todo o tempo, a separação de bens prevista na norma citada, no tribunal para tanto competente.
A total igualdade de pretensões, que caracteriza o caso julgado formal, não é afectada pela alteração da lei, se essa referida alteração não tem qualquer repercussão na alteração da decisão anteriormente proferida.
Desta forma, existia um verdadeiro caso julgado formal, tal como foi declarado no douto despacho recorrido.

Concluindo:
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Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Julga-se improcedente, por não provado, o interposto recurso de apelação, e, em consequência, confirma-se o douto despacho recorrido.
Sem custas.

Porto, 14/7/2020
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença