INTERDIÇÃO
INABILITAÇÃO
LEI NOVA
JUÍZO DE COMÉRCIO
JUÍZO CÍVEL
Sumário

I - Respeita o primado da vontade do beneficiário e não afronta quaisquer normas imperativas, designadamente as dos n.os 4 e 6 do artigo 252.º do Código das Sociedades Comerciais que consagram o princípio da pessoalidade da gerência, a decisão de nomear acompanhante o seu filho, mais concretamente, a medida de administração total do seu património, nomeadamente no que tange à gestão da sociedade comercial por quotas “G…, Lda”, de que ambos são sócios e gerentes.
II – Quer porque não estamos perante uma transmissão da gerência, nem isolada, nem juntamente com a quota, quer porque o acompanhante não é um mandatário nem um procurador do maior acompanhado.

Texto Integral

Processo n.º 15347/19.4T8PRT.P1

Sumário do acórdão elaborado nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Processo n.º 15347/19.4T8PRT.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto (J4)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório[1]
O Ministério Público na Comarca do Porto intentou acção especial de acompanhamento de maior, pedindo que sejam aplicadas a B…, viúvo, as medidas de acompanhamento que se mostrem necessárias e adequadas com vista à salvaguarda dos superiores interesses do beneficiário, designadamente «a Administração Total de Bens, nos termos do disposto no artigo 892.º, n.º1 b) do Código Civil»[2].
Em síntese, alegou que o requerido padece de patologias diversas (descritas nos relatórios médicos de 02.10.2018 e de 13.02.2019), apresentando deterioração importante das funções cognitivas que o incapacita de entender um documento ou um contrato e de gerir de forma responsável uma sociedade comercial, sendo que tal quadro clínico caracteriza-se como actual, permanente e irreversível, interferindo de modo definitivo no seu funcionamento pessoal e social, determinando que o beneficiário seja dependente de apoio e orientação de terceiros.
Mais alegou que o beneficiário é sócio maioritário de sociedade comercial por quotas, aufere pensão de reforma e é titular de contas bancárias; porém, em consequência do quadro clínico descrito nos aludidos relatórios, muito embora identifique o valor facial do dinheiro e o valor da reforma, desconhece o valor em depósito na sua conta bancária, tal como desconhece o valor dos movimentos da conta e o valor do seu património.
Para exercer o cargo de acompanhante, indicou a filha do beneficiário, C…, conforme indicação do próprio que consta do auto de atendimento nos Serviços de Ministério Público.
Tendo-se constatado que o requerido aparentava não ter capacidade para compreender o sentido e alcance da citação, foi-lhe nomeada defensora oficiosa.
Defensora que, por requerimento com a referência 33204871 veio alegar que o exercício da administração dos bens, apenas, pela filha do requerido poderá gerar conflitos com o outro filho, pois resulta de um dos relatórios médicos que a relação entre os filhos é conflituosa, o que pode transparecer para o requerido e assim criar-lhe alguma inquietação e preocupação, que podem ser evitadas.
Concluiu que, em substituição da nomeação da filha C…, deverá ser constituído um conselho de família para a administração total de bens do requerido B….
Por despacho datado de 3 de Setembro de 2019 foi solicitado ao Hospital … a realização de exame pericial ao beneficiário, tendo a médica, especialista em Psiquiatria, desta instituição, Dra. D…, elaborado o relatório pericial que fez chegar aos autos e consta de fls. 64 a 74.
Em requerimento com a referência 23520432, C… - alegando que o irmão E… afastou a cuidadora F…, pela qual o requerido nutria afecto, contra a vontade deste e, ainda, que o mesmo irmão mantém na sua posse o cartão de cidadão do requerido e não o entrega às cuidadoras que até então o utilizavam para o aviamento de receitas médicas - solicitou que fosse determinada, provisoriamente, a manutenção das duas cuidadoras do requerido e que o cartão de cidadão do mesmo o acompanhe.
Posteriormente, em novo requerimento, veio a mesma C… requerer a junção aos autos de acta de assembleia geral da sociedade G…, Lda., presidida pelo pai e assinada pelo próprio, alegando que confrontou o pai com tal requerimento, o qual negou que alguma vez a tenha assinado.
Terminou requerendo a sua nomeação como acompanhante provisória.
Por despacho de 21.11.2019, decidiu-se que a factualidade apurada não justifica o decretamento de medida provisória e, no que diz respeito aos bens, considerando que estamos perante divergência entre irmãos, foi determinado a audição do requerido, com vista a auscultar, se possível, a posição do mesmo sobre a nomeação de acompanhante.
Procedeu-se à audição do beneficiário, sendo que, em tal diligência e na presença da filha C…, o beneficiário indicou para acompanhante o seu filho.
Foram os autos com vista ao Ministério Público que, em 20.12.2019, promoveu o seguinte:
«Atendendo às declarações do beneficiário e ao facto de o mesmo ter reiterado que “se dá bem com ambos os filhos” e aos demais elementos constantes dos autos, mantemos a posição já assumida, ou seja, entendemos que deve ser nomeada como acompanhante a sua filha C…, o que se promove».
Por requerimento com a referência 34612477 veio o referido E… comunicar aos autos que há litígios familiares sobre o património do requerido e pediu a realização de nova perícia ao beneficiário e que seja chamado para acompanhante deste.
Por despacho de 04.02.2020, foi indeferido o requerimento para realização de segunda perícia.
Em novo requerimento apresentado em 06.02.2020, a referida C… comunicou aos autos que o irmão tem lançado mão de todos os meios para se apoderar, como se apoderou, de toda a documentação pessoal do requerido, bem como para tomar decisões com impacto na vida deste e, no passado domingo, 2 de fevereiro de 2020, o requerido foi internado no Hospital H…, onde permanece e aí foi-lhe diagnosticada pneumonia e insuficiência renal, facto do qual tomou conhecimento pela pessoa que presta apoio ao requerido.
Mais alegou que tomou conhecimento de que é intenção do filho do requerido assinar um termo de responsabilidade e retirá-lo do Hospital, não concordando a requerente com tal decisão.
Termina insistindo pela sua nomeação como acompanhante provisória do seu pai, de modo a impedir que aquele abandone o Hospital, enquanto não tiver alta clínica.
O Ministério Público voltou a promover a nomeação daquela filha do beneficiário como sua acompanhante provisória.
Entretanto, foi junta aos autos informação prestada pela ACES, da qual consta que o beneficiário não possuiu testamento vital e/ou outorgou procuração para cuidados de saúde.

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Foi, então, proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Em face do supra exposto, julga-se a ação procedente por provada, e, em consequência:
A) Instituiu-se a favor de B…, nascido no dia 11 de outubro de 1924, a medida de acompanhamento de representação especial para a prática de atos de natureza patrimonial, como de celebração de negócios jurídicos, atos de disposição de bens de proceder a pagamentos, assunção de obrigações pecuniárias e gestão de contas bancárias e ainda para atos relacionados com os cuidados para as atividades básicas de vida diária do beneficiário e natureza médica, como sujeição a tratamentos, e a medida de administração total do seu património, nomeadamente do rendimento que aufere a título de reforma e a gestão da sociedade/sociedades da qual/quais o beneficiário seja sócio e outros rendimentos que aufira ou venha a auferir, em conformidade com o disposto nos artigos 138.º e 145.º, n.º 2, al.ºs b) (2.ª parte) e c) do Código Civil.
B) Em ordem à proteção do beneficiário, decide-se restringir ao beneficiário o direito para contrair casamento, constituir união de facto, testar e de recorrer à procriação medicamente assistida e de adotar, ficando o mesmo impedido de exercer tais direitos, bem como exercício dos direitos pessoais previstos no artigo 5.º, n.º3 da Lei de Saúde Mental, o que confere à acompanhante legitimidade para requerer as providências previstas no artigo 13.º da Lei de Saúde Mental.
C) Nomear para exercer as funções de acompanhante E…, filho do beneficiário e identificado a folhas 80.
D) Nomear para membros do conselho de família C…, filha do beneficiário, para o cargo de protutora e como vogal o neto mais velho do beneficiário;
E) Fixar a residência do beneficiário na Rua …, n.º…., 1.º andar direito, ….-… Porto;
F) Fixar em 2 outubro de 2018 a data a partir da qual as medidas ora decretadas se tornaram convenientes;
G) Fixar o prazo de revisão da medida em 2 anos, sem prejuízo do previsto no artigo 904.º, n.º2 do Código de Processo Civil».
*
Inconformado com a decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
«1. Por decisão de 12 de fevereiro de 2020, foi instituída, entre outras, a seguinte medida de acompanhamento a favor de B…: a gestão da sociedade/sociedades da qual/quais o beneficiário seja sócio, tendo sido nomeado para exercer as funções de acompanhante o seu filho, E….
2. O Tribunal a quo deu como provado que “o beneficiário é sócio maioritário da sociedade por quota G…, Lda”.
3. O beneficiário é sócio da sociedade “G…, Lda.”, sociedade por quotas, com sede na Rua … n.º …., freguesia …, cujo objecto social é oficina de reparação de automóveis e recolhas.
4. São ainda sócios da referida sociedade E… e C….
5. A gerência da referida sociedade está a cargo do beneficiário e do seu filho E…, nomeado seu acompanhante, obrigando-se a sociedade com a intervenção isolada do gerente B… ou com a intervenção conjunta dos dois gerentes.
6. Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo ao atribuir a gestão da sociedade/sociedades da qual/quais o beneficiário seja sócio na pessoa do seu filho E…, também ele sócio gerente da sociedade “G…, Lda.”, está a reunir a qualidade de gerentes da sociedade numa única pessoa, cuja vontade individual vai ditar os destinos da sociedade.
7. Ora, salvo melhor opinião, tal medida viola os estatutos da sociedade “G…, Lda.”, pois tal sociedade obriga-se com a intervenção isolada do gerente B… ou com a intervenção conjunta dos dois gerentes.
8. Mais viola o disposto no artigo 252.º, nºs 4 e 6 do Código das Sociedades Comerciais, uma vez que a contemplação de poderes tão latos como o que foi instituído pela decisão agora posta em crise posterga a pessoalidade da gerência.
9. Existe uma relação de confiança na designação do gerente tendo em conta as suas qualidades e competência para o exercício do cargo.
10. Ora, afigura-se-nos que a concentração da qualidade de gerente numa única pessoa como é o caso sub judice acaba por conferir ao outro gerente da sociedade os mais amplos poderes de gestão da vida da sociedade, fazendo com que objectivamente o beneficiário, enquanto sócio maioritário e também gerente da sociedade, perca o comando dos destinos da sociedade.
11. O n.º 6 do artigo 252.º do CSC, ao consentir à gerência a faculdade de nomear mandatários ou procuradores da sociedade, não o fez irrestritamente, antes se consignando que tal nomeação de mandatários ou procuradores se reporta “à prática de determinados actos ou categorias de actos”.
12. A ratio legis do preceito visa salvaguardar um núcleo intangível de poderes que não podem ser delegados, sob pena de se perder a pessoalidade da gerência que passaria de modo completo e incontrolável para mandatários ou procuradores que, dispondo de poderes amplos, controlariam a gestão da sociedade, à margem dos gerentes.
13. No caso concreto, afigura-se-nos que, salvo melhor opinião, com a instituição de tal medida, o Tribunal a quo habilitou o acompanhante que foi nomeado ao beneficiário a praticar, segundo a sua própria vontade e na veste de o outro sócio gerente da sociedade “G…, Lda.”, todos os actos necessários ou convenientes à realização do objecto social da sociedade.
14. Pelo que cumpre-se-nos perguntar: o que resta para o aqui beneficiário B… enquanto gerente da sociedade “G…, Lda.” agora representado pelo outro gerente da mesma sociedade? O que fica no que respeita ao controlo e gestão da sociedade, coexistindo a sua gerência nominal com os poderes que foram conferidos ao outro sócio gerente da sociedade, por via da sua nomeação para o cargo de acompanhante?
15. Temos, assim, que nesta parte, a decisão do Tribunal a quo enferma de nulidade, por violação do disposto nos artigos 295.º do Código Civil».
O nomeado acompanhante, E… Correia, contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:
«I – A sentença recorrida não viola qualquer norma do Código Civil, nem comete qualquer nulidade ou acto anulável;
II – A sentença recorrida não é uma procuração ou mandato proibido por lei, sendo antes uma designação de representação legal de incapaz;
III – A sentença recorrida é correcta e criteriosa, cumprindo todas as regras de designação de acompanhante a maior;
IV – Não violando e nem nada tendo a ver com o artigo 252º do Código das Sociedades Comerciais;
V - A sentença recorrida, além de obedecer aos mais criteriosos ditames da prudência de convivência e oportunidade, cumpriu integralmente os princípios da representação de “incapaz” e do acompanhamento de maior.
Conclui defendendo a improcedência do recurso e a consequente confirmação do decidido.
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
O recorrente afirma a nulidade da decisão de nomear E… acompanhante do beneficiário B…, mas limitada ao segmento da gestão da sociedade “G…, Lda.”, de que este é sócio e gerente, por violação do disposto no artigo 295.º do Código Civil (conclusão 15.ª), que manda aplicar aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente, entre as quais as que prevêem os vícios que afectam a validade dos negócios jurídicos.
Se bem entendemos a argumentação do recorrente, aquela nomeação não afronta qualquer norma do regime jurídico do maior acompanhado, mas sim o Código das Sociedades Comerciais, concretamente, o seu artigo 252.º, n.os 4 e 6, que consagra o princípio da pessoalidade da gerência das sociedades por quotas.
Seria a violação desse princípio que viciaria a sentença recorrida, tornando-a nula nesse segmento.
Esse é o único ponto da sentença que, com o recurso interposto, o Ministério Público submete à sindicância deste tribunal e, portanto, é essa a questão que nos compete apreciar e decidir.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância deu por assente.
A) Factos provados
1 – B… nasceu no dia 11 de outubro de 1924 e está registado como filho de I… e J….
2 - O requerido celebrou casamento com K…, o qual foi dissolvido por óbito desta em 11 de novembro de 2006.
3 – E… nasceu no dia 25 de outubro de 1951 e está registado como filho de B… e K….
4 – C… nasceu no dia 17 de agosto de 1953 e está registada como filha de B… e K….
5 - O requerido apresenta como antecedentes patológicos de saúde carcinoma gástrico operado em 1996, considerado curado, tendo as consequentes alterações fisiológicas pela perda de estômago e das suas funções, nomeadamente na digestão de alimentos, com redução e difícil recuperação do peso corporal e com risco aumentado de carências nutricionais e desnutrição; vários episódios de erisipela (infeção dermo-hipodérmica) do membro inferior direito desde 2010, com critérios de gravidade e implicando a administração de antibioterapia injetável; insuficiência cardíaca diagnosticada em 2016 e desde então tratada, com resposta favorável ao tratamento instituído, sendo que a insuficiência cardíaca concorre para a redução de aporte sanguíneo ao cérebro, bem como os fenómenos obstrutivos da arterosclerose inerente à idade avançada e também doença arterial periférica avançada de que também sofre e desde então relata redução progressiva das suas capacidades intelectuais e cognitivas; em 2017 sofre descompensação da insuficiência cardíaca e consequente hemorragia digestiva e pneumonia da base pulmonar esquerda com défice de oxigenação sanguínea/cerebral; doença arterial periférica; com a terapêutica instituída apresentou melhoria do estado geral, mantendo, no entanto défice e deterioração progressiva do estado cognitivo, conforme relatório médico datado de 2 de outubro de 2018 da autoria da Dra. L…;
6 - Conforme o mesmo relatório médico, o requerido tem sofrido redução progressiva das suas capacidades intelectuais, com falhas de memória recente, raciocínio lento, períodos de desorientação no espaço e no tempo e alheamento da realidade, tendo a médica subscritora do relatório concluído que o requerido sofre progressiva deterioração das suas faculdades mentais, com importante perda de funções cognitivas que se deve a um conjunto de fatores, incluindo a idade, doença aterosclerótica, insuficiência cardíaca, com redução do aporte de sangue ao cérebro e a atrofia cerebral.
7- O requerido foi sujeito a avaliação psiquiátrica cujo objeto foi a avaliação da capacidade de contratualizar ou de gerir uma sociedade, tendo o senhor perito médico depois de entrevista clínica, entrevista com a filha do beneficiário, exame, concluído que o examinado apresenta deterioração importante das funções cognitivas e que o incapacita de entender um documento ou um contrato e de gerir de forma responsável uma sociedade comercial.
8 - O requerido apresenta quadro clínico compatível com perturbação neurocognitiva major (demência) com uma etiologia provavelmente mista (neurodegenerativa e vascular).
9 - O requerido apresenta linguagem bem articulada, com discurso lógico e coerente.
10 - Sabe dizer o montante da reforma, mas não consegue exprimir de que forma são pagas as despesas.
11 - Sabe que tem contas bancárias, mas não sabe dizer o valor depositado em tais contas, desconhece os movimentos da conta e o valor do seu património.
12 - Reconhece o dinheiro, mas tem dificuldade em fazer trocos simples.
13 - Mostra-se capaz de exprimir as suas preferências no que diz respeito a assuntos de natureza pessoal, aceitando os cuidados que lhe são prestados.
14 - O requerido carece de acompanhamento na realização das atividades da vida diária, beneficiando durante o período diurno da companhia de M…, a qual assegura as suas necessidades de vida diária, como alimentação e limpeza e durante o período noturno de uma outra pessoa.
15 - O beneficiário é sócio maioritário da sociedade por quotas “G…, Lda”.
16 - No dia 2 de julho de 2019 o requerido compareceu nos serviços do Ministério Público junto desta comarca e declarou, além do mais, que: «(…) tem consciência de que, devido à sua idade, já não tem capacidade para continuar a tomar decisões relativas à sociedade, nem a gerir o seu património; reconhece que, por vezes, assina documentação relativa à sociedade sem ter ideia do seu conteúdo; entende, assim, que deverá beneficiar de uma medida de acompanhamento para a gestão do seu património, sendo da sua vontade que seja sua acompanhante a sua filha C…; declara expressamente que pretende que C… seja sua acompanhante e o represente em todas as questões relativas ao seu património».
17 - Em setembro de 2019 o filho do beneficiário procedeu à substituição de uma das cuidadoras do beneficiário.
18 - Consta dos autos ata de assembleia geral da sociedade G…, Lda. realizada no dia 2 de agosto de 2019 da qual se retira que o requerido B… presidiu e deliberou na mesma.
19 - Em sede de audição o requerido referiu que não tem conhecimento da ata da assembleia geral da sociedade deliberações tomadas.
20 - O beneficiário desloca-se regularmente à oficina de mecânica da sociedade, na qual contacta com clientes, mas já não toma decisões relativamente a sociedade, a qual está entregue e é gerida pelo filho E….
21 - Em sede de audição o beneficiário declarou que pretende que seja o filho que o represente porque o mesmo “já toma conta” dos seus assuntos, há muito tempo. Mais declarou que confia nos dois filhos.
22 - A síndrome de que padece o beneficiário é crónica e progressiva e embora os primeiros sinais e sintomas se tenham iniciado previamente, a incapacidade para administrar o seu património está presente pelo menos desde 2 de outubro de 2018, segundo perito médico que procedeu à avaliação já no âmbito dos presentes autos.
23 - Não existem medidas de tratamento à luz do conhecimento médico atual, que permitam a cura desta patologia, sendo a mesma permanente e irreversível.
24 - Não há notícia que o beneficiário tenha outorgado testamento vital ou procuração para cuidados de saúde.

2. Fundamentos de direito
É sabido que, desde 10 de Fevereiro de 2019, está em vigor o Regime Jurídico do “Maior Acompanhado” instituído pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que substituiu os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação, até então regulados nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil.
Na sua origem, esteve a Proposta de Lei n.º 110/XIII e da respectiva “Exposição de Motivos” salientamos a seguinte passagem:
«Os fundamentos finais da alteração das denominadas incapacidades dos maiores – ordenada pela sua integração harmónica no Código Civil, assim obstando a quebras sistemáticas que dificultem a sua aplicação e façam perigar os objetivos prosseguidos - são, em síntese, os seguintes: a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, próprios de qualquer situação familiar; a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; a manutenção de um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; (…)».
A um modelo de substituição ou representação (em que a vontade que relevava era a do representante, o tutor) sucedeu um sistema denominado de “acompanhamento”, em que o visado, o “acompanhado”, é apoiado, ou seja, a sua vontade (aquela que releva) é formada e manifestada com o apoio de terceira pessoa, o acompanhante. Só assim não será quando ao acompanhado, em virtude da sua deficiência, não seja possível formar e manifestar qualquer vontade livre e esclarecida (os chamados hard cases), funcionando então o instituto da representação.
Em suma, sempre que possível, deve ser tida em conta a vontade de quem vai ser sujeito a qualquer medida restritiva ou de apoio e essa preocupação pela vontade do deficiente e pela sua autodeterminação concretiza-se, desde logo, na determinação legal de que o tribunal ouça, pessoal e directamente, o beneficiário e só depois defina as medidas adequadas à situação concreta (actual artigo 139.º, n.º 1, do Código Civil).
Outra manifestação da relevância da vontade do acompanhado está na escolha do acompanhante. Este, sendo designado pelo tribunal, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal (artigo 143.º, n.º 1) e só na falta de escolha é que o acompanhamento é deferido a outra pessoa, de entre as elencadas no n.º 2 do mesmo artigo.
O tribunal nomeou como acompanhante do requerido o seu filho mais velho, E…, preterindo a, também, filha C…, indicada pelo Ministério Público, e justificou assim a sua opção:
«Importa, agora, decidir sobre quem deve exercer as funções de acompanhante, sendo que o beneficiário tem dois filhos que reclamam o exercício de tal cargo e, por outro lado, a relação entre os dois irmãos é conflituosa, como aliás se retira dos requerimentos juntos aos autos, tal como já referido supra.
(…)
No caso dos autos o beneficiário num primeiro momento quando prestou declarações nos serviços do Ministério Público manifestou, conforme consta do auto de atendimento, a vontade que fosse a filha C… a pessoa a nomear para exercer as funções de acompanhamento; porém, em sede de audição no âmbito dos presentes autos, e perante o Tribunal e até da filha C…, declarou de forma livre e espontânea que pretende que seja o filho a representá-lo nos assuntos de gestão dos seus bens e da sociedade/oficina, justificando o motivo de tal escolha, embora tenha ressalvado que confia em ambos os filhos.
Como referimos, o legislador conferiu ao beneficiário o poder de escolha do acompanhante e no caso dos autos o beneficiário apesar do síndrome de que padece e das afeções e incapacidades que apresenta, denotou capacidade para exprimir a suas preferência, justificou a mesma e que aliás até é compreensível, tendo presente, como referiu o beneficiário em sede de audição que é o filho que tem tratado dos assuntos da oficina e questões bancárias e pagamentos, a quem o beneficiário confiou tais funções.
Assim, e tendo presente a intenção do legislador em confiar ao acompanhado a escolha do acompanhante, e o relevante facto de no caso dos autos o beneficiário de forma livre e espontânea e até na presença da filha, ter exprimido e declarado perante o Tribunal que pretende que seja o filho a representá-lo nas matérias relacionadas com a administração dos seus bens; ao que acresce que o filho do requerido é o mais velho, o Tribunal decide confiar ao filho mais velho do beneficiário o cargo de acompanhante, respeitando a vontade mais recente do beneficiário e declarada perante o Tribunal.
De referir que o Tribunal ponderou e teve presente os conflitos existentes entre os irmãos, bem o também declarado pelo beneficiário quanto ao desconhecimento da assembleias da sociedade, cujas atas foram juntas aos autos; porém concedeu, tal como o legislador o plasmou no artigo 143.º, n.º1 do Código Civil, a prevalência da vontade do beneficiário; vontade que, repita-se foi prestada de forma livre e espontânea perante o Tribunal. Ao que acresce, ainda, o exercício do cargo de acompanhante está rodeado de limitações legais, como o disposto no artigo 145.º, n.º3 do Código Civil e 150.º do mesmo diploma legal, nos termos do qual: «O acompanhante deve abster-se de agir em conflito de interesses com o acompanhado e a violação de tal dever tem as consequências previstas no artigo 261.º (anulabilidade)».
Por outro lado, no caso dos autos atenta a relação de conflitualidade existente entre os dois irmãos, o Tribunal irá constituir conselho de família nomeando para o cargo de protutora a segunda filha do beneficiário a quem incumbirá a fiscalização da ação do acompanhante com caracter permanente.
De dizer, ainda, que os factos alegados, mas não apurados, de o filho do beneficiário estar na posse do cartão de cidadão do beneficiário, bem como a intenção de retirar o beneficiário da alegada instituição hospitalar onde alegadamente se encontrará, em abstrato, não permitem ao Tribunal concluir pela falta de idoneidade do filho do beneficiário, sendo que, conforme resultou da audição do beneficiário, o mesmo confia em ambos os filhos e também da audição da testemunha M… resultou que o filho do beneficiário assegura os cuidados necessários ao pai.
Deste modo, e concluindo, e ao abrigo do disposto no artigo 143.º, n.º1 do Código Civil, nomeia-se para exercer o cargo de acompanhante o filho mais velho do beneficiário, E…, melhor identificado a folhas 80 e para membros do conselho de família a segunda filha do beneficiário C…, identificada na petição inicial e para vogal o neto mais velho do beneficiário».
Como legalmente prescrito, o tribunal respeitou a vontade do requerido e não há razão para duvidar que a escolha deste foi livremente determinada e manifestada.
Tendo o requerido confiança nos seus dois filhos, é compreensível que, num primeiro momento, quando compareceu nos Serviços do Ministério Público, tenha indicado a sua filha C… para sua acompanhante. Tal como é natural que, quando foi ouvido pela Sra. Juiz, a sua escolha já tenha recaído sobre o seu filho E1…. Afinal de contas, é este quem, desde que se acentuou a deterioração progressiva do seu estado cognitivo, tem zelado pelos seus interesses patrimoniais e assumido a gerência singular da sociedade comercial de que o requerido é sócio maioritário.
De resto, a nomeação de E… releva do puro bom senso. Com efeito, os autos patenteiam que a relação entre os filhos do requerido é pautada por uma forte conflituosidade e nomear a filha C… como acompanhante redundaria numa transposição para a gerência da sociedade “G…, L.da” desse conflito, com os inerentes perigos que isso acarretaria para a estabilidade e solidez da empresa.
Vejamos, então, se essa nomeação afronta normas imperativas e, consequentemente, é nula, nos termos do artigo 294.º do Código Civil, como propugna o recorrente.
O digno Magistrado recorrente defende que «a concentração da qualidade de gerente numa única pessoa como é o caso sub judice acaba por conferir ao outro gerente da sociedade os mais amplos poderes de gestão da vida da sociedade, fazendo com que objectivamente o beneficiário, enquanto sócio maioritário e também gerente da sociedade, perca o comando dos destinos da sociedade» (conclusão 10.ª) e questiona: «o que resta para o aqui beneficiário B… enquanto gerente da sociedade “G…, Lda.” agora representado pelo outro gerente da mesma sociedade? O que fica no que respeita ao controlo e gestão da sociedade, coexistindo a sua gerência nominal com os poderes que foram conferidos ao outro sócio gerente da sociedade, por via da sua nomeação para o cargo de acompanhante?» (conclusão 14.ª).
É caso para perguntar se não aconteceria o mesmo, seja, se o requerido não perderia, igualmente, o controle da gestão da sociedade se o tribunal tivesse nomeado acompanhante a sua filha C… cometendo-lhe o mesmo regime, concretamente, a medida de administração total do seu património, nomeadamente no que tange à gestão daquela sociedade comercial.
Em boa verdade, o requerido já não tinha o controlo da gerência da sociedade porque a «perturbação neurocognitiva major (demência), com uma etiologia provavelmente mista (neurodegenerativa e vascular)», que o afecta fê-lo perder, progressivamente, as suas capacidades intelectuais e cognitivas.
Por isso está assistido pelo seu filho e, nesse ponto, a decisão recorrida mais não fez do que conferir cobertura legal a uma situação de facto existente, com a vantagem de que o acompanhante sabe agora que no exercício da sua função deve privilegiar os interesses do acompanhado e que terá a protutora a fiscalizar a sua acção.
A tese do recorrente de que, nesse segmento, a decisão recorrida é nula porque viola o princípio da pessoalidade da gerência consagrado no artigo 252.º, n.os 4 e 6, do Código das Sociedades Comerciais, sem o citar, busca arrimo no acórdão do STJ de 24.11.2009, publicado com o seguinte sumário:
«I) – A ratio legis do preceito do art. 252, n.º 6, do CSC que consagra o princípio da pessoalidade da gerência visa salvaguardar um núcleo intangível de poderes que não podem ser “delegados”, sob pena de se perder tal pessoalidade que passaria, de modo completo e incontrolável para mandatários ou procuradores que, dispondo de poderes amplos, controlariam a gestão e representação da sociedade, à margem dos gerentes.
II) – Existe uma relação de confiança na designação do(s) gerente(s) tendo em conta as suas qualidades e competência para o exercício do cargo, que é a um de tempo de representação e administração, pelo que, se os gerentes através de procuração com latíssimos poderes de administração da vida da sociedade, outorgam procuração a um terceiro poderes compreendidos na gestão, representação e administração da sociedade, objectivamente demitem-se do comando dos destinos do ente societário, abdicando das funções de gerência, cometendo-as integralmente a outrem, ficando, assim, sem qualquer controle dos destinos e gestão, alienando a sua responsabilidade ante os sócios que os incumbiram da gerência, mais a mais se, como no caso, a procuração passada a favor do Réu é irrevogável.
III) – A nomeação de mandatários ou procuradores só é válida se se reportar “à prática de determinados actos ou categorias de actos”, o que exclui um mandato geral.
IV) A procuração em causa, sem embargo de discriminar alguns actos cuja competência é conferida a favor do Réu, desde logo e de maneira indeterminada, confere-lhe poderes amplíssimos como sejam os habilitantes – “Para praticar todos os actos e contratos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social da sociedade, nomeadamente:
a) representar a sociedade perante tribunais (...); perante os entes e órgãos de administração central, regional (...) todo o tipo de entidades públicas ou privadas (...) b) comprar e vender matérias-primas, bens de equipamentos, utensílios, veículos automóveis e produtos acabados;
c) comprar, vender e onerar bens imóveis e móveis;
d) fazer contratos de locação de bens móveis e imóveis, incluindo no regime de leasing, bem como fazer a sua alteração, revogação e rescisão;
e) contratar operações financeiras, activas a passivas e abrir linhas de crédito;
f) O fazer contratos de trabalho, bem como fazer a sua revogação e rescisão, exercer o poder disciplinar, instaurar processos disciplinares e proceder a despedimentos;
g) constituir mandatários judiciais (...);
h) subscrever livranças, aceites bancários, garantias bancárias e termos de fianças (...);
i) fazer despachos alfandegários e assinar e endossar conhecimentos e respectivos comprovantes;
j) receber quaisquer valores, bens e documentos e dar quitação;
k) outorgar quaisquer escrituras sempre que, no caso concreto, lhe tenham sido atribuídos ou delegados por acta da gerência ou da assembleia-geral que precisará o seu conteúdo;
1) e em geral, exercer todos os poderes de gestão e representação que a gestão e a defesa dos interesses da sociedade exijam.

V) -Por isso viola o n. 6 do art. 252º do CSC enfermando de nulidade».
O citado acórdão confirmou o acórdão desta Relação de 20.04.2009, cujo sumário é, no essencial, muito idêntico ao do STJ, pelo que é despiciendo transcrevê-lo.
Os n.os 4 a 6 do artigo do CSC estabelecem o seguinte:
«1 - (…)
2 - (…)
3 - (…)
4 - A gerência não é transmissível por acto entre vivos ou por morte, nem isolada, nem juntamente com a quota.
5 - Os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 261.º
6 - O disposto nos números anteriores não exclui a faculdade de a gerência nomear mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados actos ou categorias de actos, sem necessidade de cláusula contratual expressa.».
Não se questionando a natureza imperativa destas normas, é patente, no entanto, que não têm aplicação no caso sub iuditio.
Desde logo, porque não estamos perante uma transmissão da gerência, nem isolada, nem juntamente com a quota.
Por outro lado, o acompanhante não é um mandatário nem um procurador do maior acompanhado.
O novo “Regime” permite, expressamente, que o maior, “prevenindo uma eventual necessidade de acompanhamento”, celebre um contrato de mandato “para a gestão dos seus interesses, com ou sem poderes de representação” (artigo 156.º), mas não é isso que aqui se verifica.
Não é demais sublinhar que o modelo instituído não é de substituição, mas de apoio e assistência (“proteger sem incapacitar”) e só em casos excepcionais se justificará a aplicação de uma medida de pura substituição da vontade do acompanhado.
A Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, introduziu uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses dessas pessoas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário (artigo 145.º, n.º 1) e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada (vide, a propósito, as comunicações reunidas in Cadernos do CEJ, “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”).
O objectivo do acompanhamento é o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício da sua capacidade de agir (sem cair na posição irrealista de ignorar que há casos em que a absoluta incapacidade do acompanhado impõe que se lance mão da medida de representação legal) e nesse sentido prevê a lei que o acompanhamento cesse ou se modifique mediante decisão judicial que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram (artigo 149.º, n.º 1).
Manifestamente, não existe similitude entre a situação tratada nos citados arestos e o caso que aqui se julga.
Concluindo, a decisão recorrida respeita o primado da vontade do acompanhado e não afronta quaisquer normas imperativas, pelo que não está ferida do vício da nulidade que o recorrente nela vislumbrou.

III - Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 14 de Julho de 2020
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Reproduzimos, com pontuais alterações, o relatório da sentença recorrida.
[2] Quis-se, certamente, referir o Código de Processo Civil