INSOLVÊNCIA
LIVRANÇA
OBRIGAÇÃO LÍQUIDA
OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
PAGAMENTO PARCIAL
Sumário

I - A instauração de um processo de insolvência contra os subscritores de uma livrança não possui a virtualidade de transformar, para a avalista, em ilíquida uma obrigação já liquidada e excutida.
II - Uma obrigação ilíquida é aquela que não pode ser determinada pelo devedor por mero calculo matemático ou subtração de um determinado valor.
III - O pagamento parcial obtido nos autos de insolvência deve ser atendido no processo executivo mas não põe em causa a liquidação previamente efetuada dessa obrigação.

Texto Integral

Processo 1710./16.6T8OVR-A.P1

Sumário:
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No decurso dos presentes autos de “embargos de executado” que B…, intenta contra C…, SA e na qual foi habilitada D…, LIMITED veio esta alegar que:
1º- ocorreu a impossibilidade de sub-rogação legal da embargante, por o portador da livrança dada à execução não ter demandado aquela mais cedo, dando-lhe a possibilidade de reclamar o seu crédito (regresso recuperatório) no processo de insolvência dos avalizados;
2º-existe a iliquidez do crédito exequendo, em virtude de a embargada beneficiar do rateio final no âmbito do processo de insolvência dos devedores avalizados, dado que só nessa altura a exequente terá conhecimento do montante ressarcido, e, em consequência, o montante ainda em dívida nestes autos (arts. 32.º a 37.º da PI).
A sociedade exequente contestou, impugnando os fundamentos da oposição nos termos alegados pelo embargante e respondeu às exceções por esta invocadas
Mais juntou a carta com os dizeres de fls. 45 destinada a provar a comunicação à avalista antes do vencimento da livrança dada à execução.
Esta carta não foi impugnada pela embargante.
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Saneada e instruída a causa foi realizado julgamento e após foi proferida decisão que julgou os embargos procedentes por provados nos seguintes termos: julgo parcialmente procedentes os Embargos do Executado, e, em consequência, determino o prosseguimento da execução para cobrança das seguintes quantias e nas condições a seguir indicadas:
- a quantia de capital ainda em dívida, após o recebimento do rateio final no processo de insolvência dos avalizados, que a embargada deve liquidar nos autos de execução;
- juros de mora, à taxa legal de 4%, sobre aquele capital, a contar da notificação à embargante, nos termos do disposto no artigo 221.º, n.º 1, do nCPC, do requerimento que a embargada vier a juntar aos autos principais contendo o novo cálculo do capital ainda em dívida, bem como imposto de selo sobre aqueles juros.
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Inconformada veio a exequente recorrer.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. arts. 629.º, n.º 1, 637.º, n.ºs 1 e 2, 638.º, n.º 1, 641.º, n.º 1, 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a), 647.º, n.º 1 e 853.º-, n.º 1, todos do Cód. Proc. Civil, na redação dada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06).
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Foram formuladas as seguintes conclusões.
I. A apelante intentou contra a Recorrida execução ordinária nos termos da qual reclamou desta o pagamento do montante de € 47.939,48, titulado por livrança subscrita por 3 e por esta avalizada.
II. Em paralelo com a referida execução – nos termos de cujos embargos foi proferida a sentença recorrida – correu o processo de Insolvência dos subscritores da mencionada livrança, sendo que o rateio final e o respectivo pagamento aos credores reclamantes apenas veio a ocorrer em momento posterior ao da entrada da aludida execução e, inclusivamente, da dedução de embargos pela Executada.
III. A Executada foi interpelada tanto judicial, como extrajudicialmente para proceder ao pagamento da quantia peticionada, tendo o tribunal a quo dado como provada a recepção da citação (a02/11/2016) e da carta registada (a 10/08/2016) enviadas para o referido efeito.
IV. A Executada não procedeu ao pagamento de qualquer quantia em momento posterior a qualquer uma das datas mencionadas em 3.
V. A Apelante recebeu, no entanto, a 21/12/2017, €9.291,91 do Sr. Administrador de Insolvência no âmbito do processo de insolvência dos subscritores da livrança dada à execução.
VI. Esse recebimento foi comunicado aos autos pela Exequente a fim de ser aplicado ao pagamento da dívida peticionada nos termos definidos no art.785.º do CC que no seu n.º1 determina que “Quando, além do capital, o devedor estiver obrigado a pagar despesas ou juros, ou a indemnizar o credor em consequência da mora, aprestação que não chegue para cobrir tudo o que é devido presume-se feita por conta, sucessivamente, das despesas, da indemnização, dos juros e do capital”.
VII. O juros, como resulta do art.º 805.º, n.º1 do CC, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.”
VIII. O que sucedeu no caso vertente, como indicado em 3.
IX. Pelo que, não pode o tribunal a quo ignorar pura e simplesmente tal facto, como parece resultar da douta sentença por si proferida em que entende que pelo facto de a Embargante não ter sido notificada da liquidação do novo cálculo do capital ainda em dívida, não se poderá considerá-la em mora,
X. Isto apesar de já se achar nessa condição desde, pelo menos, a data em que foi citada para proceder ao pagamento da quantia inscrita na livrança dada à Execução, acrescida de juros vencidos; juros vincendos e imposto de selo.
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III. Matéria de facto provada
1. - A embargante apôs pelo seu próprio punho a assinatura que a si é imputada na face posterior da livrança dada à execução, antecedida da expressão "dou o meu aval ao subscritor";
2 - A livrança exequenda está conexa com o empréstimo nº …-…..-.., de acordo com o instrumento de contrato junto a fls.16 a 20 dos presentes autos, cujo dizeres se dão por inteiramente reproduzidos;
3 - Os subscritores da livrança dada à execução (E… e F…) foram declarados insolventes por sentença datada de 07.04.2010, proferida nos autos nº 520/10.9T2AVR, que correm termos no Juízo de Comércio de Aveiro;
4 - Em 27.04.2010, a embargada apresentou-se a reclamar créditos por apenso àquele processo de insolvência, tendo formulado pedido de reconhecimento do seu crédito nos termos dos arts. 7º e 8º do requerimento aí apresentado, conforme os dizeres do documento junto a fls.12 a 15 dos presentes autos;
5 - Em 10.08.2016, a embargada expediu para a embargante, através de carta registada, a carta, com os dizeres do documento de fls. 85, que a segunda recebeu (cujo restante teor se dá por reproduzido);
6 - Em 02.11.2016, a embargante foi citada para os termos da execução.
7 - em 21/12/2017, a embargada recebeu a quantia de 9219,91€, do rateio final realizado pelo administrador de insolvência no âmbito do processo nº 520/10.9 t2avr, que correu termos no juízo de comercio de Aveiro;
8- o capital em dívida, relativo ao contrato mencionando na alínea b) dos factos provados, é de 30.000,00€.
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4. Motivação
4.1. Do cumprimento da obrigação
Entre nós, decorre do art. 762° n.º 1 CC, que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado. In casu, a obrigação dos embargantes enquanto avalistas dos seus pais seria liquidar o montante mutuado acrescido de juros e despesas contratualmente assumidas.
Ora, o cumprimento assenta sobre vários princípios um dos quais é o da pontualidade.
O princípio da pontualidade consagrado no artigo 406° n.º 1 CC, estipula que o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
O cumprimento implica a extinção do crédito, como contrapartida da prestação recebida, tendo pois eficácia extintiva total ou parcial da obrigação a que respeita.
In casu é evidente que os embargantes não cumpriram
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2. Da liquidação
Depois, resulta demonstrado que a obrigação foi liquidada e exigida por notificação pessoal aos embargantes em data anterior à interposição de um processo de insolvência.
Daí resulta que, mesmo que a obrigação fosse íliquida, esta foi liquidada e comunicada aos embargantes em data anterior à interposição da acção de insolvência.

3. Do processo de insolvência e da sua influência na liquidação da obrigação
Antes demais, convém esclarecer que a obrigação ilíquida é aquela que existe mas cujo montante ainda não pode ser determinado ou determinável por mero cálculo matemático.
Conforme salienta, por exemplo o Ac da RC de 23.10.2012 nº 2073/10.9T2AVR.C1: “para que se possa falar em obrigação ilíquida é necessário que o seu valor não esteja apurado ou não seja conhecido das partes (ou, pelo menos, do devedor), quer porque está dependente de factos ou operações adicionais que ainda não ocorreram ou não foram realizadas, quer porque esses factos ou operações ainda não foram levados ao conhecimento do devedor, de tal forma que este não está em condições de saber qual o exacto conteúdo da sua obrigação”.
Ora, sempre com o devido respeito por melhor opinião parece seguro que a instauração da insolvência não pode provocar que uma obrigação vencida e liquidada assuma ex novo a natureza de ilíquida.
Desde logo, porque estabelece o n.º 4 do artigo 217.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que "as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra (…) os terceiros garantes da obrigação".
Por causa disso, "seja qual for a posição assumida no processo, o credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra (…) terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário" - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, pág. 724.
Resulta daí, pois, que a instauração e pendência desse processo não afectam os direitos da exequente/embargada contra os avalistas dos insolventes.
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Em segundo lugar, mesmo que a obrigação ainda não estivesse vencida decorre do Artigo 91.º do CIRE que a declaração de insolvência implica: “o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva”.
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Em terceiro lugar, ao contrário do que sucedia no anterior CPEREF, com o CIRE o legislador, ainda que sujeitos às limitações do art. 48º, optou por aceitar que os juros sobre créditos continuem a vencer mesmo depois da declaração de insolvência[1].
Quer isto dizer que a instauração da insolvência nem sequer interrompeu a contagem dos juros que são apenas liquidados, se houver saldo no rateio final, como créditos subordinados, nos termos do art. 48º, al. B).
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Por fim, resta apenas determinar se a existência de bens no processo de insolvência teve a virtualidade de tornar ilíquido o crédito da embargada.
Pretendem os embargantes que não podiam cumprir a sua prestação porque não sabiam o valor do rateio final.
Antes demais importa notar que o cumprimento nos autos falimentares só tem efeitos liberatórios quando a quantia é efectivamente posto na disponibilidade do credor.
Depois, o conceito de iliquidez nas obrigações é distinto do afirmado pelo tribunal a quo.
Uma obrigação ilíquida não é aquela que não está determinada mas sim aquela que não pode ser determinada de forma simples por cálculo aritmético.
Nesta medida, por exemplo, o Ac da RL de 06/12/2011 nº 7303/06.9TBALM.L1-7 considerou: “o n.º 3 do artigo 805º do Código Civil deve ser interpretado no sentido de que o crédito só é ilíquido quando, à data em que deve ser efectuado o pagamento, não for possível proceder à sua liquidação, ou seja, saber qual a quantia em dívida” sendo que “…para que o crédito se considere ilíquido não basta que o devedor impugne a obrigação de pagar ou alegue que a quantia pedida não é (total ou parcialmente) devida”.
E, o Ac do STJ de 29/11/2005, nº 05B3287 decidiu que: “Para efeito da aplicação do princípio in illiquidis non fit mora constante da 1ª parte do nº3º do art. 805º C.Civ. só releva a iliquidez objectiva, e esta só se verifica quando o devedor não estiver em condições de saber quanto deve”; “O princípio referido não tem cabimento quando, dispondo o devedor dos elementos necessários para saber o montante do seu débito, ocorra, afinal, iliquidez tão só aparente ou subjectiva”.
Ora, a embargante é filha do insolvente, tem conhecimento dos autos falimentares e pode ter acesso a estes ou em último caso pedir neles essa informação. Logo, se isso fosse de facto essencial poderia facilmente saber qual o montante que foi efectivamente entregue ao seu credor, caso este não actualiza-se o valor em divida quando pretendesse liquidar a prestação.
Mas, coisa diversa é pretender que a natureza da obrigação se transformou de liquida em ilíquida pela mera pendencia de um processo de insolvência que pode até, ter sido originado por acto de terceiro.
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Por fim sempre se dirá que a liquidez da obrigação se afere no momento da instauração da acção, que in casu ocorreu antes da instauração da insolvência. Ou seja, além de tudo o mais, e só isto bastaria, mas nem sequer foi alegado, estamos perante o âmbito de aplicação da normal especial do art. 716º, do CPC. Logo, o eventual recebimento posterior de qualquer quantia nesses autos seria apenas fundamento para a “obrigação” da exequente informar o mesmo no processo e desistir parcialmente dessa parte do pedido formulado.
Nesta medida o recente Ac da RE de 14.3.2019 nº 145/17.8T8SLV-A.E1 decidiu de forma semelhante considerando que: “Inexiste essa relação de prejudicialidade entre a pendência do processo de insolvência e eventual pagamento ao exequente do crédito exequendo e reconhecido nesse processo, com a presente execução, tendo apenas como consequência a consideração desse montante na quantia exequenda, devendo o exequente, de acordo com a regra de boa-fé processual (art.ºs 7.º e 8.º do CPC), informar o montante recebido nesse processo, sem prejuízo do tribunal diligenciar oficiosamente pela obtenção desses elementos”.
Ou seja, a pendência de outro processo judicial pode implicar a existência de conexão de objectos processuais mas não transforma uma obrigação liquidada em ilíquida.
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Finalmente por forma a dar o cumprimento possível às questões deduzidas mas não apreciadas pelo tribunal a quo, bastará dizer que o aval é o acto pelo qual uma pessoa estranha ao título cambiário, ou mesmo um signatário – art. 30º da LULL – garante, por algum dos co-obrigados no título, o pagamento da obrigação pecuniária que este incorpora. Ora, o direito de regresso contra co-devedor, nos termos do art. 524º do CC, só nasce após satisfação do credor por parte do devedor. In casu, esse crédito poderia quando muito ter ocorrido posteriormente à insolvência dos RR., pelo que nunca poderia ser reclamado nos termos do CIRE. E, mesmo que assim não fosse a pendência do processo falimentar não impede o posterior exercício dos direitos contra outros devedores seja através do referido art. 217º, seja pelo porque nos termos do art.º 233.º, 1, a), do CIRE, após o encerramento do processo os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos”.
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V- Decisão
Pelo exposto, os juízes desta relação acordam em julgar procedente o recurso interposto e por via disso revogar a decisão recorrida determinando o prosseguimento da execução com a dedução de todas as quantias recebidas nos autos de insolvência que consta do ponto 3) dos factos provados.

Custas da apelação a cargo da apelada porque decaiu.
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Porto em 14 de Julho de 2020
Paulo Duarte Teixeira
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
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[1] vide Maria do Rosário Epifânio, in Manual do Direito da Insolvência, 2010, 2ª edição, pag. 212.