INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
SUSTENTO DO INSOLVENTE
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
CESSÃO
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Sumário

I – A concretização do principio da dignidade humana e a inviolabilidade constitucional do direito a uma retribuição mínima periodicamente atualizada (cfr. art. 59º, nº 2 da CRP) – que é válido para cada dia da semana, para cada semana do mês, e para o mês de cada ano –, exige, tal qual como na fixação do montante indisponível por necessário ao sustento minimamente condigno do exonerando, que na consideração da referência temporal para o apuramento do rendimento disponível objeto de cessão se atenda às particularidades do caso concreto, numa ponderação casuística suportada em premissas gerais que, antes de mais, tenham como critérios orientadores o desiderato legal e constitucional de assegurar/salvaguardar o sustento minimamente condigno do devedor e do respetivo agregado familiar, e o cumprimento dos princípios constitucionais da igualdade e, na concretização deste, da justiça relativa.
II - Do facto de o salário mínimo mensal nacional constituir um critério referência para fixação do montante necessário ao sustento minimamente condigno dos exonerandos, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal, por referência estanque aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão, tando mais que, conforme art. 240º, nº 2 do CIRE, é anual a periodicidade para a elaboração e apresentação do relatório do período de cessão pelo Fiduciário.
III – Perante a irregularidade dos montantes mensais dos rendimentos auferidos pelos exonerandos, com inclusão de meses com rendimentos de montante inferior ao judicialmente excluído da cessão de rendimentos, só através do apuramento dos rendimentos objeto de cessão por referência aos rendimentos anualmente auferidos é possível garantir aos devedores disporem, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior, ou de valor o mais aproximado possível, ao rendimento mensal indisponível fixado.
IV - Os valores de subsistência minimamente condigna associados à fixação do montante dos rendimentos dos devedores excluídos da cessão, merecem tutela legal e constitucional prevalecente sobre o interesse dos credores na cessão do rendimento disponível sucessiva e isoladamente determinado por referência aos rendimentos por aqueles auferidos em cada mês.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,


I – RELATÓRIO
1. M…. e L….., casados entre si, apresentaram-se à insolvência, que foi declarada em 10.12.2013 por sentença transitada em julgado.
2. Simultaneamente deduziram pedido de exoneração do passivo restante, sobre o qual em 12.03.2014 recaiu despacho inicial que, admitindo-o, mais determinou que [o] rendimento disponível que os devedores venham a auferir, no prazo de 5 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, que se denomina, período da cessão, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia necessária para o sustento do agregado familiar dos insolventes., fixando [o] montante a excluir, nos termos do art.º239.º, n.º3 do CIRE, o equivalente a dois salários mínimos nacionais acrescido de metade.
3. Na mesma data, e na sequência da admissão inicial do pedido de exoneração do passivo restante, foi declarado encerrado o processo de insolvência com fundamento no art. 230º, n 1, als. d) e e) do CIRE, cuja notificação e publicação foi cumprida através de expediente de 13.03.2014.
4. Por requerimento de 07.11.2018 o Sr. Fiduciário apresentou relatório/quadro da cessão de rendimentos referente ao período de março 2014 a dezembro 2018, mais declarando que os insolventes não cederam valores à massa desde agosto de 2017 porque os seus rendimentos não atingiram o valor que lhes foi fixado para sustento, mas que está em falta o montante de € 1.738,05.
5. Ordenada a notificação dos insolventes para, conforme requerido pelo credor Cofidis, esclarecerem o não cumprimento da cessão do rendimento disponível e para procederem à sua entrega, sob pena de, não sendo entregue, se considerar violado o disposto no artigo 239º, nº 4, alínea c) e nos termos do artigo 243.º do CIRE., vieram aqueles pugnar pela inexistência de rendimentos a ceder porque, conforme resulta do quadro de rendimentos apresentados pelo Sr. Fiduciário, os valores por eles auferidos em cada um dos anos de 2014 a 2017 e até à presente data são inferiores aos fixados pelo tribunal para o seu sustento, sendo que a alegada diferença por aquele calculada resulta do facto de não considerar que os salários são anuais, o momento do pagamento dos subsídios de férias e de natal, o não recebimento de qualquer quantia em vários meses, ou o recebimento de quantias significativamente menores noutros.
6. Notificados do exposto pelos insolventes, o Sr. Fiduciário e o credor Cofidis pugnaram pela contabilização mensal, e não anual, dos rendimentos disponíveis, alegando este que o cálculo anual do valor a ceder implicará que os Insolventes em determinados meses disponham de um valor superior ao rendimento indisponível que lhe foi fixado., O que além de contrário à lei é prejudicial aos seus credores., e requerendo o indeferimento da pretensão dos insolventes. O Sr. Fiduciário mais declarou que, No quadro que foi apresentado, nos meses que estão em branco deve-se ao facto dos insolventes não terem apresentado documento comprovativo (do rendimento) ou ausência do mesmo.
7. Sobre o requerido pelos insolventes recaiu o seguinte despacho:
Resulta da sentença proferida nos autos que deferiu a pedido inicial de exoneração do passivo restante que a cessão é mensal e os valores a considerar são atendidos mensalmente e não anualmente, pelo que não assiste razão aos insolventes, devendo proceder ao pagamento da quantia em falta sob pena de, eventualmente, ser recusada a concessão da exoneração do passivo restante, a final.
8. Inconformados, os insolventes apresentaram recurso e juntaram alegações que, não obstante assim epigrafadas, as conclusões formuladas, longe de o serem, não cumprem o ónus de sintetização imposto pelo art. 639º, nº 1 do CPC porque mais não correspondem senão do que à reprodução quase integral das alegações contidas na motivação do recurso pelo que, suprindo a referida deficiente prestação processual dos recorrentes, sintetizam-se as conclusões do recurso no seguinte:
a) Não existem rendimentos disponíveis a ceder porque em cada ano do período de cessão já decorrido os insolventes/recorrentes auferiram rendimentos inferiores aos que o tribunal fixou para o seu sustento.
b) No caso concreto em que, conforme quadro de rendimento apresentado pelo Sr. Fiduciário, se verifica que os insolventes receberam rendimentos – salários, subsídios de Férias e de Natal - variáveis ao longo de cada ano, nos termos previstos no disposto no artigo 261º nº 3 do Código do Trabalho, deve ter-se em conta a média dos valores das prestações correspondentes aos últimos doze meses, à laia do que sucede para o apuramento dos impostos sobre rendimentos devidos ao Estado, que são aferidos pelo valor efetivamente recebido durante todo o ano.
c) A interpretação que o tribunal a quo fez da aplicação do disposto do nº 3 do artigo 236º do CIRE é inconstitucional por violação dos Princípios da Igualdade e proporcionalidade consagrados constitucionalmente nos seus artigos 18º e 20º nº 4 in fine, porque seria extremamente Injusto, Imoral e ilegal num Estado de Direito que, por exemplo, Dois cidadãos, auferindo exactamente o mesmo Igual rendimento ao fim de um ano |14 meses de salário para 11 de actividade| e tendo exactamente as mesmas Iguais obrigações e limites impostos pelo Tribunal ao valor do seu rendimento disponível, pudessem acabar por ter Diferentes valores a ceder à massa da insolvência, apenas porque um deles recebeu e “diluiu” no seu salário mensal em duodécimos, aos longo dos 12 meses, o valor do recebimento dos seus subsídios de Natal e de Férias …, enquanto, o outro cidadão, Não o pôde fazer, e, em consequência, naqueles dois meses em que este último cidadão recebe os respectivos subsídios de Natal e de Férias, acumulando o valor desse recebimento com o do salário mensal, acabará assim por ultrapassar o limite, nesses meses, do seu valor disponível ….
II – OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a criar soluções sobre temas de facto e/ou questões jurídicas que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos pedidos, bem como de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos essenciais da causa ou do incidente, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis.
Considerando o teor da decisão recorrida e das conclusões enunciadas pelos recorrentes, a questão por estes autos submetida a apreciação e decisão restringe-se à definição do critério ou referência temporal para determinação da existência e do montante dos rendimentos disponíveis objeto de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante.
III – FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
Para além do descrito no relatório supra, transcreve-se o teor do quadro de rendimentos dos devedores/recorrentes elaborado e apresentado nos autos pelo Sr. Fiduciário em 17.11.2018.






B) De Direito
O instituto da exoneração do passivo restante, previsto pelos arts. 235º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, corresponde a concessão de benefício a insolventes pessoas singulares que, esgotado que seja o património do devedor, se traduz num perdão de dívidas, sendo irrelevante para o efeito tratar-se de reduzidas ou de elevadas quantias, exonerando-os dos seus débitos com a perda e o sacrifício, para os credores, dos correspetivos créditos; benefício que é concedido independentemente de, à data da apreciação do pedido, o devedor ser ou não titular de efetivos rendimentos, facto que a lei não erigiu a requisito da concessão do dito benefício.    
Conforme se extrai da exposição de motivos que consta do diploma preambular do Dec. Lei nº 53/2004 de 18.03 (ponto 45) e das fontes do instituto em questão, o perdão de dívidas que pelo instituto em apreço é concedido encontra justificação sistémica de ordem económico-social, visando a recuperação da pessoa singular enquanto agente económico em benefício de uma visão sistémica da economia, no ciclo e de acordo com os papéis dos que nela intervêm; mas, por referência à esfera jurídica do devedor, surge também justificado pelo interesse superior do direito à realização pessoal condigna de cada ser humano, sendo aquele beneficio concedido apenas se o devedor revelar conduta anterior não desmerecedora do mesmo, a par com a reeducação, contemporânea com o decurso do período de cessão, de hábitos de consumo e poupança, com adequação do nível de vida aos rendimentos de que pode dispor e aos encargos que aquela importa, no quotidiano e em situações pontuais, mas previsíveis pela sua normalidade.
Cumpre por isso anotar que o ‘perdão legal’ de dívidas constitui o facto determinante da iniciativa da apresentação à insolvência pelo devedor singular (senão em todos pelo menos na grande maioria dos casos): alcançar a exoneração do passivo restante, libertando-se através deste benefício legal de um passivo que com toda a probabilidade o acompanharia ao longo de grande parte, senão de toda a sua vida, com os consequentes e recorrentes constrangimentos, no imediato logo ao nível das disponibilidades financeiras e, no mediato ao nível da sua paz pessoal, familiar, profissional, com o consequente reflexo no ao nível da integração sócio-económico-profissional do indivíduo e respetivo agregado familiar.
Deste concreto instituto decorre que a especificidade do processo de insolvência singular - para além da natureza da pessoa jurídica que dele é sujeito passivo (que, contrariamente ao que sucede com as pessoas coletivas, não se ‘extingue’ com o encerramento do processo) -, reside no referido benefício legal que através da insolvência o devedor pode ver legalmente reconhecido, traduzido na extinção do serviço de dívida remanescente depois de esgotado o produto da liquidação e decorrido que seja o período de cessão do rendimento disponível (também designado período de ‘probação’), durante o qual o devedor fica adstrito ao cumprimento de determinadas obrigações, previstas pelo art. 239º nº 2 e 4 do CIRE, sendo a mais relevante a cessão/entrega, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, do montante disponível dos rendimentos auferidos, a calcular na contraposição dos rendimentos efetivamente auferidos com os rendimentos necessários a uma subsistência humana e socialmente condigna, que ao juiz cabe quantificar e fixar, constituindo estes últimos, em contraposição com os primeiros, os rendimentos indisponíveis que o devedor não está obrigado a ceder à fidúcia.
Prevê o o art. 239º, nº 3, al. b) do CIRE que Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”……“com exclusão (…) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”.
No que respeita ao primeiro item de exclusão, a jurisprudência tem vindo a discutir o critério para fixação do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, sendo porém unanimemente aceite que tem como limite máximo o valor correspondente a três vezes o salário mínimo nacional, que só excecionalmente poderá ser excedido, caso em que o legislador impõe ao julgador um dever acrescido de fundamentação da decisão[1]. A discussão da questão assume maior acuidade na definição do limite mínimo. O critério qualitativo para o efeito ali previsto e tutelado, corresponde ao principio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição da República Portuguesa), principio universal de qualquer normativo de tutela dos direitos fundamentais que, por isso, se impõe interpretar e integrar de acordo com o previsto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo art. 25º prevê que [T]oda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários (…).     A execução do período de cessão impõe que o resultado da referida apreciação qualitativa se traduza e expresse num concreto montante. Nesta matéria, da jurisprudência produzida em primeira e segunda instâncias, destaca-se o recurso ao salário mínimo nacional como critério quantitativo referência para o apuramento do que em cada caso concreto possa entender-se como o rendimento necessário a uma vivência minimamente condigna[2]. Com efeito, o salário mínimo nacional, refém é certo das flutuações e concertações do sistema micro e macro económico-financeiro do país, corresponde à expressão numérica do que o legislador ordinário, no contexto sócio-económico em que é fixado, entendeu como o mínimo para salvaguardar uma vivência condigna. Por isso, e porque é o próprio legislador que dele se socorre como critério referência na fixação do limite máximo do rendimento indisponível, o salário mínimo nacional não poderá deixar de ser considerado como referência obrigatória na tarefa de quantificação do rendimento a excluir da cessão determinada pelo incidente da exoneração do passivo restante durante o período ‘de provação’ (entre nós ainda previsto com cinco anos de duração).
Mas, do facto de o salário mínimo mensal nacional constituir um critério referência para fixação do montante necessário ao sustento minimamente condigno dos exonerandos, daí não decorre que o legislador pretendeu e previu o cálculo ou apuramento dos rendimentos disponíveis vinculado a uma cadência mensal, por referência estanque aos rendimentos auferidos em cada mês de cada ano do período de cessão. Com efeito, não se vislumbram fundamentos legais para considerar o período de um mês e cada mês como o critério temporal escolhido pelo legislador para cômputo dos rendimentos devidos ceder pelos insolventes/recorrentes durante o período de cessão. Ao invés: se elementos existem, é em sustentação do critério anual, pois que foi com essa periodicidade que o legislador determinou a apresentação de relatório do período de cessão/da fidúcia pelo Fiduciário (cfr. art. 240º, nº 2 do CIRE).
De resto, a concretização do principio da dignidade humana e a inviolabilidade constitucional do direito a uma retribuição mínima periodicamente atualizada (cfr. art. 59º, nº 2 da CRP) – que é válido para cada dia da semana, para cada semana do mês, e para o mês de cada ano –, tal qual como na fixação do montante excluído da cessão, exige também que na consideração da referência temporal para o seu apuramento se atenda às particularidades do caso concreto, numa ponderação casuística suportada em premissas gerais que, antes de mais, tenham como critérios orientadores o desiderato legal e constitucional de assegurar/salvaguardar o sustento minimamente condigno do devedor e do respetivo agregado familiar, e o cumprimento dos princípios constitucionais da igualdade e, na concretização deste, da justiça relativa. No caso, dos termos do despacho inicial de deferimento do período de cessão e de fixação do valor dos rendimentos indisponíveis não se vislumbra opção por um qualquer critério temporal de cálculo/apuramento dos rendimentos disponíveis, mensal ou anual. Com efeito, em lado algum o Tribunal a quo tomou posição expressa a propósito da questão do período temporal a ter em conta no âmbito do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário. E certamente não o fez porque no caso em apreciação nunca foi suscitada, nem estava em causa, a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário por força da ponderação das exclusões previstas na alínea b), do n.º 3, do artigo 239.º do CIRE.[3]
Cumpre referir a este propósito que, em matéria de fixação do rendimento indisponível e critérios circunstanciais para apuramento dos rendimentos disponíveis, no que se integra a referência temporal utilizada para o cômputo destes, o incidente de exoneração do passivo restante assume vestes de procedimento de jurisdição voluntária na precisa medida em que um e outros são passiveis de ser alterados ao longo do incidente com fundamento em concretas circunstâncias, fixas, regulares ou ocasionais que, ou pela superveniência ou porque a questão, a decisão ou o processado as não suscitava ou demandava, não foram consideradas nem, por isso, contempladas, consideradas e decididas aquando da prolação do despacho inicial de autorização do período de cessão e de fixação do valor dos rendimentos indisponíveis (que, como ocorre in casu, se nos afigura dever ser através da indexação ao valor do salário mínimo nacional em cada momento/ano).
Conforme quadro de rendimentos elaborado pelo Sr. Fiduciário e cujo teor factual não vem impugnado, resulta que ao longo do período de cessão nele retratado os rendimentos auferidos pelos devedores se caracterizaram pela flutuação de valores: meses (7) em que auferiram montantes superiores, e noutros (43) montantes inferiores ao valor do rendimento indisponível fixado, este correspondente a duas vezes e meia o salário mínimo nacional.
Ora, considerando que o valor do rendimento indisponível fixado pressupõe não só o montante suficiente, mas também o necessário, para assegurar uma vivência minimamente condigna durante o período de cessão, aquele deverá corresponder ao necessário para, independentemente do concretamente auferido em cada mês, garantir uma subsistência minimamente condigna ao longo dos doze meses de cada ano pelo que, nos casos de rendimentos de montante variável ao longo do ano, impõe-se admitir que os meses em que são de montante superior compensam (por defeito ou equivalência) os meses em que o devedor auferiu rendimentos aquém dos considerados como o mínimo judicialmente necessário para uma vivência condigna.
No caso, e restringindo aos meses em que no período de março de 2014 a agosto de 2018 existe informação dos rendimentos auferidos por cada um dos elementos do casal devedor (correspondentes a 50 meses), para além dos meses de março de 2014 (anotando-se que este corresponde ao mês em que foi proferido o despacho inicial), abril de 2014 e abril de 2017, só nos meses de dezembro 2014, novembro 2015, dezembro de 2016 e julho de 2017, é que se registam rendimentos de montante superior ao valor do rendimento indisponível excluído da sessão, que coincidirão com a acumulação dos subsídios de férias e de natal auferidos pelo cônjuge marido; as diferenças positivas entre o montante dos rendimentos auferidos em cada um (7) meses assinalados e o montante mensal indisponível, no total somam a quantia de € 1.738,05. Em cada um dos restantes (43) meses, os rendimentos registados são inferiores ao valor fixado como o necessário para o sustento minimamente condigno dos devedores, sendo que em alguns meses a diferença negativa é de cerca de 1/5, de 1/4, ou de 1/3, e noutros chega a ser quase metade (caso dos meses de novembro de 2017, e janeiro a junho e agosto de 2018).          Impõe-se por isso o deferimento do que vem requerido pelos devedores quanto aos termos que propõem para determinação do montante dos rendimentos objeto de cessão – por referência aos rendimentos que no total auferiram em cada ano - , considerando que, assente na irregularidade do montante dos rendimentos por eles auferidos em cada mês, só assim se garante aos devedores a disposição, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior ao rendimento mensal indisponível fixado, pois que este, pelos valores (de subsistência minimamente condigna) que lhe estão associados, merece tutela legal e constitucional prevalecente sobre a cessão do montante do rendimento disponível sucessiva e isoladamente determinado por referência aos rendimentos auferidos em cada mês. Assim, se por um lado, e com exclusão do montante correspondente ao rendimento indisponível fixado, o rendimento disponível/objeto da cessão é integrado por todos os rendimentos que aos exonerandos advenham a qualquer título, o que incluiu a contabilização do auferido a título de subsídios de natal e de férias, por outro lado, o valor em excesso em cada mês, designadamente, nos meses em que aqueles subsídios são recebidos, apenas se integram na categoria dos rendimentos disponíveis se e na medida em que o resultado da divisão do montante da soma dos rendimentos anuais por doze meses exceder o montante do rendimento indisponível.
No sentido que (sempre) defendemos, acórdão da Relação de Évora de 17.01.2019 (proc. 344/16.0T8OLH.E1), cujo sumário se transcreve:
I- Nos casos em que o rendimento do insolvente, em determinados meses, não chega a alcançar o valor fixado como o mínimo de subsistência ou nem sequer há rendimento, terá necessariamente de ocorrer uma compensação relativamente aqueles em que o exceda, sob pena de aquela ficar comprometida.
II- Para esse efeito, terá de apurar-se o montante mensal médio dos rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal e cotejá-lo com valor mensal fixado pelo Tribunal.
III- Se tal montante mensal médio não exceder o valor mensal fixado pelo Tribunal, a obrigação de entrega ao fiduciário a que alude a alínea c) do nº4 do art.º 239º do C.I.R.E. é inexistente.
Admitindo em sede de fundamentação o cálculo dos rendimentos disponíveis com a periodicidade anual, para além do acórdão da Relação de Guimarães de 19.09.2019 supra citado, acórdão da Relação de Coimbra de 04.02.2020 (proc. 695/13.5TBLSA.C1).           
III - DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os Juízes deste coletivo em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, que se substitui por outra de deferimento da fórmula de apuramento dos rendimentos disponíveis/objeto de cessão por referência ao montante anual dos rendimentos líquidos auferidos pelos exonerandos/recorrentes.
Sem custas do recurso, considerando que os recorrentes obtiveram vencimento e que não foram apresentadas contra-alegações.

Lisboa, 22.09.2020
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Fernando Barroso Cabanelas
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[1] Nesse sentido, entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2012, e da Relação de Lisboa de 11.07.2013, ambos disponíveis na página da dgsi).
[2] No dizer do Sr. Conselheiro Fonseca Ramos, Salvo o devido respeito, não entendemos que o “sustento minimamente digno” equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia ao instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver.//As interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adoptar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem.//O salário mínimo nacional, (SMN) pese embora não ter sido actualizado entre 2009 e 2014, deveria ser considerado o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende que seja vivida com dignidade, tendo em contas despesas, essas sim de sobrevivência, como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica.//Nesta perspectiva consideramos que, em regra, o SMN é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna. esse sentido (acórdão do STJ de 02.02.2016, proc. nº 3562/14.1T8GMR.G1.S1). No mesmo sentido, acórdão da RC de 06.07.2016, proferido no processo n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1, relatado por Falcão de Magalhães, ambos disponíveis na página da dgsi, sendo que neste ultimo mais se justifica a não consideração do rendimento social de inserção como critério para apuramento do rendimento minimamente condigno.
[3] Acórdão da Relação de Guimarães de 19.09.2019 (processo 2984/18.3T8GMR-E.G1), disponível na página da dgsi, local onde foram consultados todos os acórdãos aqui citados.