CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL
PRESSUPOSTOS FORMAIS
PRESSUPOSTOS MATERIAIS
NÃO TRANSCRIÇÃO DA CONDENAÇÃO
Sumário

I- O artigo 13.º, n.º 1 da Lei n. 37/2015, de 5 de Maio, regula a não transcrição da respetiva sentença nos certificados de registo criminal das condenações de arguidos devidamente transitadas em julgado;
II-Ressalta do dispositivo em causa que a não transcrição nos certificados de registo criminal das respectivas decisões está condicionado à verificação de dois pressupostos:
Um de ordem formal, isto é, que se esteja perante uma pessoa singular, que a respectiva condenação seja em pena de prisão até um ano, ou em pena não privativa da liberdade e que o arguido não tenha sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e outro de ordem substantiva ou material, isto é, que das circunstâncias que acompanharam o crime não se possa induzir perigo de prática de novos crimes;
III-Logo se o arguido foi condenado pela pratica de um crime de “violência doméstica”, p. p. nos termos do art.º 152.º, nºs. 1, al. a), 2, al. a) e 4, do Cód. Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão, a qual ficou suspensa na sua execução por igual período de tempo e subordinada ao regime de prova, e, ainda, na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de dois anos e três meses, não é possível a não transcrição da condenação sofrida no seu CRC, por não estarem reunidos, quer os pressupostos formais, quer materiais exigidos por lei.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – No Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 6, Processo Comum Singular n.º 517/18.0PWLSB, foi o arguido/recorrente AA julgado e condenando com o autor de um crime de “violência doméstica”, p. p. nos termos do art.º 152.º, nºs. 1, al. a), 2, al. a) e 4, do Cód. Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão, a qual ficou suspensa na sua execução por igual período de tempo e subordinada ao regime de prova, e, ainda, na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de dois anos e três meses.
Transitada em julgado a referida decisão, veio o arguido requerer a não transcrição da sentença nos certificados de registo criminal, nos termos previstos no art.º 13.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio.
Esta pretensão, porém, veio a ser-lhe negada pelo tribunal “a quo” com a prolação do seguinte despacho:
“(…)
DO REQUERIMENTO DE NÃO TRANSCRIÇÃO DA DECISÃO PARA O CERTIFICADO DO REGISTO CRIMINAL:
Por requerimento de 05/03/2020, com a ref. citius n.º 25745047, veio o condenado AA requerer a não transcrição da sentença proferida nos presentes autos no seu certificado de registo criminal, com fundamento na circunstância de a referida transcrição o impedir de exercer a atividade profissional como motorista da Uber. Mais juntou o mesmo, para o efeito, diversos documentos (ref. citius n.° 25959300).
Em sentido contrário, pronunciou-se o Ministério Público, pugnando pelo indeferimento da pretensão acima descrita por falta de fundamento legal.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 13.° da Lei n. 37/2015, de 5 de Maio (Lei da identificação criminal):
«1- Sem prejuízo do disposto na Lei n.° 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.°-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os nºs. 5 e 6 do artigo 10.°.
2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão».
A exceção descrita no n.º 1 do referido preceito está relacionada com as situações em que esteja em causa o exercício, por parte do condenado, de atividade profissional que envolva o contacto regular com menores; situação em que os pressupostos para a não transcrição se revelam bastante mais restritos.
Conforme resulta dos autos, o arguido AA foi condenado nos mesmos, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°/1, alínea a), 2 e 4 do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada ao regime de prova, assente num plano de reinserção social que será determinado e fiscalizado pela DGRSP e dirigido à prevenção da prática, no futuro, de crimes da mesma natureza.
Mais foi igualmente o arguido condenado, outrossim, na pena acessória de proibição de contacto com a assistente (por qualquer meio, seja diretamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 2 ano e 3 meses, com exceção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns BB, CC e DD, nos termos do artigo nos termos do artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal e 152.º/4 do Código Penal.
 Pese embora a atividade profissional visada pelo arguido não envolva o contacto regular com menores e o mesmo não tenha averbado no seu CRC qualquer outra condenação, a verdade é que não se encontram reunidos os pressupostos legais para que seja deferida a sua pretensão quanto à não transcrição da sentença no seu certificado de registo criminal.
Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-09-2019, proc. 171/17.7P13MTA-A11-9, rel. Abrunhosa de Carvalho (disponível em www.dgsi.pt), «a normalidade em matéria de registo criminal é a transcrição, sendo a não transcrição a exceção, pois visando o registo criminal permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes, a não transcrição só pode mesmo ser considerada uma exceção, a qual tem na base razões de não estigmatização do condenado, já que se reporta a certificados para fins do exercício de profissão e sempre associadas a crimes de pequena gravidade, o que, manifestamente, não acontece no crime de violência doméstica quando os elementos disponíveis não permitem afastar o perigo da prática de novos crimes pelo arguido».
Ora, na situação dos autos, resulta sinalizado pela DGRSP que o arguido não demonstra adesão ao plano de reinserção social elaborado, designadamente no que respeita à frequência do programa de agressores em contexto de violência doméstica (cf. ref. citius n.° 25978070). Não sendo possível, em face do exposto, realizar qualquer tipo de juízo de prognose positiva relativamente à sua atuação futura.
Ao que se disse acresce, ademais, que se encontra ainda em curso o cumprimento da pena acessória de proibição de contacto do arguido com a assistente, tendo esta já demonstrado nos autos ter receio da atuação futura do ora condenado (cf. informação da DGRSP com a ref. citius n.° 25552598).
Nessa medida, e em face do que se disse, não se vislumbra ser possível induzir a inexistência de perigo da prática de novos crimes por parte do condenado, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 13.° da Lei da identificação criminal, aderindo-se, na íntegra, à promoção do Ministério Público que antecede, cujo teor se dá por integralmente reproduzido nesta sede.
 Termos em que, em face do exposto, julga-se improcedente o pedido de não transcrição da sentença formulado pelo arguido AA nos presentes autos. (…)”.
*
Inconformado com a decisão em causa, da mesma interpôs o arguido/requerente o presente recurso, o qual sustentou na verificação dos pressupostos que permitem a não transcrição da decisão condenatória nos respectivos certificados de registo criminal, considerando, ainda, que o despacho recorrido viola o que considera serem os seus direitos fundamentais.
Da motivação de recurso extraiu o recorrente, a final, as seguintes conclusões:
“(...)
O recorrente defende que estão preenchidos os requisitos formais e materiais exigidos pelo diploma legal que regula a matéria em discussão e pelos motivos acima elencados, requer desse tribunal pela procedência de seu recurso, pela revogação do despacho recorrido, autorizando-se nos termos requeridos pelo recorrente pela não transcrição da condenação em seu respectivo certificado de registo criminal. (…)”.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito não suspensivo.
*
Notificado da interposição do recurso, apresentou o Ministério Público a respectiva resposta, onde, a final, formulou as seguintes conclusões:
“(…)
1 - O arguido interpôs recurso do despacho proferido pelo Tribunal “a quo” que indeferiu o pedido de não transcrição da condenação que sofreu nos autos nos certificados de registo criminal entendendo que foi feita uma errada interpretação do art.° 13.°/1 da Lei 37/2015 de 05/05.
2 - A aplicação do art.° 13.º/1 da Lei 37/2015 de 05/05 pressupõe a coexistência de dois requisitos formais e um requisito material. Os dois primeiros relacionam-se com a natureza da condenação e com os antecedentes criminais do arguido: a pena aplicada tem de ser não privativa da liberdade ou, sendo de prisão, terá de se fixar até 1 ano; por outro lado, o arguido não pode ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza. O requisito material, traduz-se em não decorrer das circunstâncias do crime o perigo de prática de novos crimes.
3 - Em concreto o crime praticado - Violência doméstica- assume um carácter grave e as penas - principal e acessória - não se mostram extintas.
4- Em face das informações da DGRSP constantes dos autos infere-se que o condenado não assumiu o desvalor da sua conduta, pelo que não é possível realizar um juízo de prognose positiva relativamente à sua actuação futura, designadamente, de que o mesmo não praticará novos crimes.
5 - Assim, ao não se verificar o requisito material exigido na lei e sendo os três requisitos cumulativos, impunha-se que o Tribunal “a quo” indeferisse a pretensão do recorrente, tal como fez e bem.
6 - A normalidade em matéria de registo criminal é a transcrição, sendo a não transcrição a excepção. Da interpretação conjugada dos arts.° 2.°, 4.° da Lei n.° 113/2009 de 17/09 e arts.° 10.° e 13.° da Lei n.° 37/2015 de 05/05, com especial relevo para o art.° 4.°/6 da Lei n.° 113/2009, de 17/09, ressalta que o legislador quis afastar a possibilidade de não transcrição da condenação por crime de violência doméstica, entre outros.
7 - Com a prolação do despacho recorrido, o Tribunal “a quo” não violou qualquer norma ou princípio jurídico, porquanto o juízo de prognose feito a propósito da aplicação da suspensão da execução da pena não é coincidente com o que deve ser formulado para se aplicar o regime previsto no art.° 13.° da Lei n.° 37/2015, de 05/05. Uma coisa é a esperança tida como base na suspensão da execução de uma pena de prisão, de que o arguido não volte a delinquir e outra é a ponderação do perigo da prática de novos crimes, considerando as circunstâncias que acompanharam o crime nos termos constantes da sentença já transitado em julgado.
8 - A decisão recorrida não viola qualquer normativo constitucional, designadamente, não se verifica a ofensa ao princípio do ne bis in idem consagrado no art.° 29.°/5 da CRP, por não existir uma segunda condenação pelos mesmos factos; a decisão recorrida não viola o direito de acesso ao trabalho do arguido (art.° 58.° da CRP) nem a responsabilidade penal se transmite aos descendentes do condenado, por força da mesma (art.° 30.°/3 da CRP), tal como defende o recorrente.
9 - A pena aplicada ao recorrente não será considerada para efeitos de certificado do registo criminal requerido pelo mesmo para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou actividade em Portugal, que não exijam o requisito (exigência legal) da ausência, total ou parcial de antecedentes criminais.
10 - O despacho recorrido efectua uma correcta interpretação dos arts.° 10.° e 13.° da Lei n.° 37/2005, de 05/05 e arts.° 2.° e 4.°/4 da Lei n.° 113/2009, de 17/09, sendo o indeferimento da pretensão do recorrente uma decisão formal e materialmente adequada.
Nestes termos, julgamos que o presente recurso não merece provimento devendo ser considerado improcedente e mantida na íntegra a decisão recorrida. (…)”.
*
Neste Tribunal o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
*
Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.
*
2 - Cumpre apreciar e decidir:
É o objecto do presente recurso, tão só, o saber-se se há, ou não, fundamento válido e relevante para a não transcrição da condenação em causa nos certificados de registo criminal do recorrente.
Vejamos:
Dispõe o artigo 13.º, n.º 1 da Lei n. 37/2015, de 5 de Maio, que, “sem prejuízo do disposto na Lei n.° 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.°-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os nºs. 5 e 6 do artigo 10.°”.
O n.º 2, por sua vez, dispõe que, “no caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma”.
Assim, resulta do dispositivo em causa que a não transcrição nos certificados de registo criminal das respectivas decisões está condicionado à verificação de dois pressupostos:
Um de ordem formal, isto é, que se esteja perante uma “pessoa singular”, que a respectiva condenação seja em “pena de prisão até um ano” ou em pena não privativa da liberdade” e que “o arguido não tenha sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza”;
Outro de ordem substantiva ou material, isto é, “que das circunstâncias que acompanharam o crime não se possa induzir perigo de prática de novos crimes”.
Ora, reportados ao caso dos autos, impõe-se começar por dizer ser inquestionável, desde logo, a não verificação, na sua plenitude, do pressuposto de ordem formal, pois que o recorrente não só foi condenado numa pena de prisão, embora suspensa na sua execução, como esta foi superior a um ano - (2 anos e 3 meses).
Por outro lado, foi o recorrente, ainda, condenado na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, o que, por força do n.º 2 do citado art.º 13.º, impede, de todo, no imediato, a ponderação, sequer, da possibilidade de não transcrição da respectiva sentença nos certificados de registo criminal.
Depois, também o pressuposto de ordem substantiva ou material, como bem se salienta no despacho recorrido e melhor o justificou o Ministério Público na sua “resposta”, não poderá ter-se por verificado.
O recorrente, pese embora não registe antecedentes criminais, viu a suspensão da execução da pena ficar subordinada ao regime de prova.
Todavia, conforme informação prestada pela DGRSP, o mesmo “não demonstra adesão ao plano de reinserção social elaborado, designadamente no que respeita à frequência do programa de agressores em contexto de violência doméstica”.
Em julgamento, por sua vez, não assumiu o arguido/recorrente a prática dos factos, o que pressupõe falta de arrependimento e ser o mesmo dotado de uma personalidade insensível ou indiferente aos valores jurídicos tutelados, capaz, por isso, de reincidir na sua violação, o que, saliente-se, é corroborado pelo sentimento de receio manifestado e reafirmado pela ofendida/assistente.
Assim, como se salientou na decisão recorrida, “não é possível, realizar qualquer tipo de juízo de prognose positiva relativamente à atuação futura do recorrente.
Deste modo, invocando-se, no demais, os fundamentos da decisão recorrida e a argumentação usada pelo Ministério Público na sua “resposta” ao recurso, os quais aqui se dão por reproduzidos para os necessários efeitos, à luz, designadamente, do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 684/2015, de 15/12, publicado no D.R. n.º 42, 2.ª Série, de 01/3/2016, e, ainda, porque as exigências de prevenção, quer especial, quer geral, se fazem particularmente sentir neste tipo de crime, considera-se não estarem verificados os pressupostos exigidos no art.º 13.º, nºs. 1 e 2 da Lei n.º 37/2015, razão por que a pretensão do recorrente haverá de ser indeferida.
3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.

Lisboa, 24/09/20
Almeida Cabral
Fernando Estrela